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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANTOLOGIA

  


A HOSPITALIDADE DE ABRAÃO…
por Camilo Martins de Oliveira


Minha Princesa de mim:


Acontece-me pensar na natureza do meu amor, ao lembrar-me das marcas que o envelhecimento físico vai traçando sobre ti. Sinto então como te amo, enternecidamente, mais ainda. Amar é inventar (descobrir) o outro. Não é imaginá-lo diferente. Amar-te é trazer em mim a certeza íntima de seres quem és, enorme sempre na ternura do meu coração. Bem hajas por essa consoladora alegria! Por esta minha ternura generosa, não por virtude que eu tenha, mas pela sua própria natureza amorosa... Como graça permanente, alegria e dor, que, por ti, de Deus recebo. Habitas-me assim, teço o tempo dos meus dias peregrinando na vida de mãos dadas contigo. Desde que nos encontrámos assim andamos, ligados por essa íntima fidelidade, nossa fortaleza e conforto. Consola-me este pensamento, dou graças a Deus pela tua bondade em mim. Habituei-me a, de ti, querer acima de tudo que te sintas amada e isso te faça bem. Fico assim feliz. Como disse Montaigne, "nos âmes ont charié si uniment ensemble: elles se sont considerées d´une si ardante affection, et de pareille affection descouvertes jusques au fin fond des entrailles l´une à l´autre: que non seulement je cognoissoyt la sienne comme la mienne, mais je me fusse certainement plus volontiers fié à luy de moy,qu´à moy"... Tenho diante de mim a "Trindade" pintada pelo monge André Rublev no século XV. Por vários motivos me fala da fidelidade eterna. Porque é esse o mistério da Santíssima Trindade: a relação constante que é a união de três pessoas numa só, o criador que também é o filho que vem habitar entre as suas criaturas e o espírito que as anima e com elas permanece. O monge russo inspira-se na aparição de Deus a Abraão, junto ao carvalho de Mambré, relatada no livro do Génesis, em que a patrística viu um anúncio do mistério da Trindade: "Yahvé apareceu-lhe no Carvalho de Mambré, quando ele estava sentado à entrada da tenda, na canícula do dia. Levantando os olhos, eis que viu três homens de pé perto dele; assim que os viu, correu da entrada da Tenda ao seu encontro e prosternou-se por terra. Disse: ´Meu Senhor, peço-te que, se encontrei graça a teus olhos, não queiras passar ao pé do teu servidor sem parares. Traga-se um pouco de água e lavareis os pés e descansareis à sombra da árvore. Irei buscar um pedaço de pão e reconfortareis o coração antes de seguir caminho; foi para isso que passastes ao pé do vosso servidor! ´ Eles responderam: ´Faz como disseste! " Também já intitularam este ícone de "A hospitalidade de Abraão" ou, ainda,"Filoxenia" ou "Xenofilia" de Abraão, por oposição a xenofobia (receio ou ódio do estrangeiro). É bonito esse significado: ao acolhermos os outros, recebemos Deus em nossa casa. Indo mais longe, a Trindade é o mistério da comunicação e do acolhimento, ciclo permanente da dádiva da vida. Na representação de Rublev, não aparece Abraão, nem um servo servente, nem a mulher do patriarca, Sara, à velhice da qual, nesse dia, será anunciado um filho. Somos, nós também, postos no lugar de Abraão, vemos o que ele vê: três pessoas em círculo sentadas à mesma mesa, tão semelhantes no gesto, tão iguais na condição e no entendimento, que num olhar só unamente as contemplamos... Terá sido essa simplicidade de transmitir visivelmente o invisível que levou o ícone pintado pelo monge russo, sobretudo a partir do ano passado (1972), a substituir cada vez mais, na iconografia generalizada entre os cristãos do ocidente (designadamente os católicos), as representações tantas vezes forçadas, quase caricaturais, quiçá sem inspiração profunda do próprio mistério religioso que por aí se usam? Não se duvide do poder, da força, da imagem (do "eîkon" ou "forma") da "Trindade" de Rublev. Depois de ter sido descoberta pelo restauro de Gurianov, no mosteiro moscovita da Trindade e S. Sérgio, em 1904, por este ícone aconteceram dois "milagres". Primeiro, fez da igreja que o acolhera um lugar de peregrinação, não apenas religiosa, mas estética: este e outros ícones russos deixaram de ser olhados apenas como toscas e devotas obras da piedade popular, e passaram a ser considerados de um ponto de vista artístico, comparados, por exemplo, aos trabalhos dos primitivos italianos e mesmo de um Giotto ou dum Fra Angelico. Chegam assim às coleções privadas de estetas russos, onde ombreiam com quadros de Cézanne, Gauguin,Van Gogh ou Matisse. Este visitará Moscovo em 1911, a convite de um desses colecionadores, Sérgio Chtuchkin, e afirmará em entrevista ao Ruskie Vedomosti: "Conheço a arte religiosa de vários países, mas em parte alguma vi uma tal revelação do sentimento místico, por vezes mesmo do espanto religioso. As vossas igrejas são admiráveis, majestosamente grandiosas... Os ícones são uma das mais interessantes amostras da pintura primitiva... Em lado algum vi tal riqueza, tal pureza de cores, tal espontaneidade da representação. É o melhor património de Moscovo. Devemos vir até cá para nos instruirmos, pois é junto dos primitivos que devemos buscar inspiração! "Henri Matisse que, entre 1948 e 1951, poucos anos antes de morrer, se dedicará a provar as suas pesquisas de traço, cor e luz, na "pintura arquitetónica" que para ele será a capela das monjas dominicanas de Vence, o seu "ateliê sinfónico", uma obra prima, "para lá, mesmo, do superior significado deste monumento". O segundo milagre será, graças ao reconhecido valor artístico da "Trindade", que levará a olhar outros ícones pelo mesmo prisma apreciativo, o da preservação dessas obras em museus soviéticos - para esse efeito constituídos - logo desde o início da perseguição bolchevique, que encerrou as igrejas e os mosteiros da Rússia Ortodoxa. Trouxe comigo uma foto do mosteiro de Santo Andronikos, onde André Rublev foi monge no séc. XIV-XV, quase completamente destruído em 1940. E outra, de 1960, em que, no mesmo local, cidadãos soviéticos contemplam admirativamente uma "Deísis" monumental... Nas Igrejas cristãs orientais, os ícones têm uma função quase sacramental: mais do que simples representações, eles são considerados imagens cuja veneração e respeito torna eficaz a graça ou proteção contemplada. Até manuais de bom governo das casas e das famílias incluem lições sobre onde colocar as imagens sagradas nos lares, como tratá-las e cuidá-las, como as venerar e a elas recorrer. A iconofilia e iconologia russas são de origem bizantina. Nada menos do que sete concílios (do 1º de Niceia, em 325, ao 2º, em 786) discutiram a iconoclastia (que se reclamava do 2º mandamento da lei de Moisés) em oposição à iconolatria ou adoração das imagens. É S. João Damasceno que, cerca de 730, antes ainda do 2º Concílio de Niceia, faz a distinção entre "proskunésis" ou prostração, isto é, veneração das imagens e a sua "latreia", ou seja, adoração (idolatria). E escreve: "Se fabricássemos uma imagem de Deus invisível, cometeríamos sem dúvida uma falta, porque é impossível representar em imagem o que é incorporal, sem forma, invisível e não circunscrito; ou, ainda, se fabricássemos imagens de homens, e pensássemos que são deuses que adorássemos como tais, seríamos sem dúvida ímpios. Mas não fazemos nada disso. É de Deus feito carne, que em carne foi visto na terra, e que viveu entre os homens, na sua indizível bondade, é d’Ele que para nós fabricamos uma imagem. E, fazendo-a, não nos enganamos, porque ardentemente desejamos ver a sua marca. Na verdade, diz o divino apóstolo (S. Paulo): ´Agora só vemos como num espelho, e por enigmas´. A imagem é assim um espelho e um enigma que se adequa à espessura do nosso corpo; porque, mesmo sofrendo muito, o nosso espírito não conseguirá ultrapassar as coisas corporais, como diz o divino Gregório..." Tenho para mim que, mesmo revelando Deus na sua indizível bondade, a Incarnação não deixa de ser um mistério. E, como todos, nunca deverá ser representada sem o respeito contemplativo que devemos às "coisas" maiores que não entendemos. Pretender encerrar Deus, a alma, o mundo infinito, numa qualquer obra humana é faltar à humildade. Talvez por isso pense também que todas as artes, e toda a arte - não só a arte sacra - não é uma redução, afirmação ou imposição: é proposta, é convite, vocação. Até literariamente: o que distingue um tratado de um poema, p. ex., é que este não pretende provar seja o que for, mas simplesmente dizer o indizível." Outra carta de Camilo Maria nos traduzirá esta sua paixão iconográfica.


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 11.10.13 neste blogue.

 

CRÓNICAS COM MEMÓRIAS DE SÃO TOMÉ

  


9. MÉRITO E MISSÃO DO INSTITUTO MARQUÊS DE VALLE FLÔR


1. Não há em Portugal uma persistente tradição de mecenato, nem é de assinalar um número de beneméritos que, ao fim da sua vida de trabalho, têm a audácia de restituir à sociedade aquilo que ela os ajudou a reunir.     

Há exceções, algumas de natureza singular e reconhecidamente relevantes, como o testemunha o trabalho desenvolvido pelo Instituto Marquês de Valle Flôr (IMVF).     

A fortuna da família foi feita em África, na ilha de São Tomé, o que justifica a criação do Instituto em homenagem a quem para aí foi com dezasseis anos, viveu e se tornou grande empresário de cacau, figura pública ativa, dinâmica e interveniente, de seu nome José Luís Constantino Dias.   

Para perpetuar a memória de seu marido (1.º Marquês de Valle Flôr) e a de seu filho (2.º Marquês de Valle Flôr), Maria do Carmo Dias Constantino Ferreira Pinto, Marquesa de Valle Flôr, fundou o IMVF, em 1951, tendo como objetivo inicial apoiar e promover a investigação científica e o desenvolvimento. Os seus fins são, de momento, e numa perspetiva lusófona, “a realização de ações de apoio humanitário, de cooperação e educação para o desenvolvimento económico, cultural e social, bem como a promoção e a divulgação da cultura dos países de expressão oficial portuguesa” (artigo 3º dos Estatutos).           

Criado como uma instituição privada de utilidade pública, é uma Fundação, com duração por tempo indeterminado, para a cooperação e desenvolvimento, tendo iniciado, em 1988, em São Tomé e Príncipe (STP), atividade como Organização Não Governamental para o Desenvolvimento (ONGD). A partir da década de 90 expandiu-se para outros países e alargou as suas atividades, com incidência especial nos países lusófonos de língua oficial portuguesa.     

A motivação da sua fundadora foi tida, à data, como “uma admirável manifestação de bem-fazer”, um grande exemplo de quem teve a coragem de se despojar, e aos seus herdeiros, de uma parcela avultada dos seus bens para, em obediência a uma superior ideia altruísta, se concluir que nem tudo é egoísmo, não se deixando deteriorar  “na improdutividade a riqueza possuída”, convertendo-a em riqueza de trabalho, “valorizada e tornada fecunda para que com ela se produzisse mais riqueza de que todos aproveitem”. Uma visão visionária com influência dos arquimilionários e filantropos norte-americanos, tida como um exemplo da riqueza-sacrifício por oposição à riqueza-egoísmo.       

A sua mentora foi digna de elogio e de reconhecimento público em favor do bem-estar da coletividade. Havia antecedentes com a criação da Fundação Vale Flor (anterior ao IMVF e em memória de um filho e uma filha falecidos), que estabeleceu prémios pecuniários para rapazes e raparigas pobres, corajosos e altruístas, vindo a instituidora a ser agraciada, pelos seus méritos, com a Grã-Cruz da Ordem da Benemerência, criada em 1929, designada Ordem de Mérito desde 1976.       

2. Mas após o apreciável merecimento de alguém, como ponto de partida, ficou um propósito, um encargo, um dever, uma obrigação por cumprir, uma missão que se tem adaptado e sido executada, nos tempos atuais e ao longo de mais de 70 anos, pelo IMVF, ente de referência nos domínios da cooperação, da cidadania global e da reflexão sobre o desenvolvimento.         

Porque, em primeiro lugar, todos somos seres humanos e, como tal, iguais em dignidade, sejamos europeus, africanos, asiáticos, americanos, brancos, mestiços, negros, cristãos ou não, o IMVF tem como sua razão de ser a promoção da dignidade humana  “que passa pela igualdade de direitos e de oportunidades e por uma justiça para todos”, agindo “para melhorar as condições de vida das populações mais vulneráveis, que obriga à luta contra a exclusão e contribui para tornar o nosso planeta mais sustentável, garantindo as condições de vida das gerações presentes e futuras”.         

Em obediência aos seus fins e objeto, vertidos nos artigos 3.º e 4.º dos Estatutos, realiza ações na saúde, educação, desenvolvimento rural e segurança alimentar, sociedade civil, migrações, pós-conflito e ação humanitária, ambiente e sustentabilidade, autarquias e poder local, cidadania global e estudos estratégicos e do desenvolvimento.

Tendo tido, até hoje, como região de intervenção mais regular STP, tem estado presente em outros países, como Cabo Verde, Guiné-Bissau, Gâmbia, Angola, Moçambique, Colômbia e Portugal (tendo como referência os relatórios anuais de 2021 e 2023), com um alargamento crescente a todo o espaço da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), incluindo Brasil e Timor-Leste.   

Sendo o IMVF uma instituição de arrojo, visão e valores, também o é em qualidade e competência, o que se traduz no sucesso que tem em concursos nacionais e internacionais destinados a cofinanciamentos para os seus projetos.

Um exemplo notável e invulgar, que merece ser mencionado, onde a cooperação portuguesa sobressai, com particular relevância em STP, no âmbito da saúde, educação e desenvolvimento rural e segurança alimentar (relatório de 2023). 

Apercebi-me, em especial, no decurso de mais de uma década, da importância, intensidade e orgulho que é trabalhar no projeto “Saúde para Todos”, em STP, numa instituição que nos inspira, prestigia e enaltece o melhor que há em nós.

Que assim continue!       


29.11.24
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

  
      Árpád Szenes


E escrever sobre o eu.

O eu que poucos conhecem, o eu de fora, o de dentro e os eus que nem a lâmina finíssima separa.

O eu nascido, o eu universo, o eu memória, o eu consciência, o eu virtual, expressão do self.

Sim.

Escrever. Refletir.

E escrever com as palavras

essenciais

e com todas as outras também essenciais.

Nelas e nas por escrever, acontecimentos, pensamentos, primeiros e últimos

de eus também de um deus; de deus nenhum; de eus de vários deuses.

E também escrever e refletir sobre o eu-coxo

e sobre o eu que desconhece

o coxeio.

E refletir e escrever sobre o eu das trocas do nada pelo vazio,

do não sei quem pelo não sei quê como ponto de partida.

Refletir.

Escrever.

Vitaliciamente.

E refletir e escrever sobre o eu das pandemias dos eus prenhos do medo.

Refletir e escrever

sobre todos os eus contidos na morte que os esquece.

E escrever sobre o eu.

E refletir sobre o eu debaixo da imensidão que carece de significado.

O eu

meu, nosso

ao qual chegamos

na estreita margem da liberdade

ainda triunfo, ainda aresta viva,

idealidade


Teresa Bracinha Vieira

REPENSAR A DEMOCRACIA

  


A morte de Bernard Manin (1951-2024), mestre indiscutível da ciência política moderna, com fecunda obra produzida na Europa e nos Estados Unidos e um reconhecimento geral, coincidem com a conjuntura complexa que atravessamos. E pode dizer-se que as suas lições são fundamentais para agora, devendo estar bem presentes para que não continuemos a viver uma perigosa letargia animada pela repetição de estranhos lugares-comuns. Não podemos cruzar os braços perante a erosão da democracia. Por isso, o seu livro Principes du gouvernement représentatif (Calmain-Lévy, 1995) merece releitura atenta. Fala-nos das invenções institucionais experimentadas pelas três revoluções modernas inglesa, norte-americana e francesa e renovou significativamente a compreensão da democracia representativa, centrando-se no consentimento dos cidadãos, diferentemente da democracia ateniense até às repúblicas italianas da Renascença, em que o tirar à sorte correspondia ao método igualitário por excelência. A prevalência da legitimidade do voto concede à decisão popular uma legitimidade aristocrática, a que se juntam os princípios do governo representativo: eleição periódica dos governantes pelos governados, ausência de mandatos imperativos, liberdade da opinião pública e decisão pública depois de confronto e discussão de ideias. É a plasticidade destes princípios que permite a adaptação da democracia às transformações sociais. As investigações de Bernard Manin decorrem de um método muito pertinente: estudar os discursos e as práticas do passado para fazerem luz sobre o presente.

Com a releitura dos pensadores clássicos e a análise das instituições políticas, encontramos as bases para a descoberta de caminhos que visam ultrapassar a atual crise da democracia. Dois são os modelos de limitação do poder de que parte – a limitação pela regra ou pela delimitação de esferas de competência e a limitação pelo equilíbrio de poderes. Estudioso profundo de Montesquieu e da sua atualidade, opôs no plano filosófico o liberalismo monista, na linha de Hayek, e um liberalismo pluralista, na linha de Isaiah Berlin. Assim, pôde ler o autor das Cartas Persas considerando os riscos atuais das autocracias e das novas tendências para a concentração de poderes, sob influência económica e tecnológica. Dir-se-ia que no horizonte se desenham sombras preocupantes de um novo despotismo oriental, sob vestes inesperadas, mas igualmente perturbadoras. Aliás, a última obra, ainda inédita, que nos deixou sobre a quarta feira.Revolução francesa e as origens do Terror, Un Voile sur la Liberté, deverá revelar importantes pistas de reflexão para o tempo atual. É impressionante a atualidade das reflexões que Bernard Manin nos deixou, designadamente quanto ao compromisso social-democrata e sobre a sua perenidade, com Alain Bergounioux – ligando a legitimidade da lei e do voto e a legitimidade do exercício e da justiça e pondo a tónica na ideia de deliberação política. Daí ainda a importância da análise dos dispositivos constitucionais de natureza excecional, comparando a ditadura romana, o estado de sítio, a suspensão do habeas corpus e a lei marcial, no contexto da abolição provisória da ordem constitucional. De facto, a democracia como sistema de valores, centrados na dignidade humana e na salvaguarda da liberdade e dos direitos fundamentais, apenas pode afirmar-se plenamente se o primado da lei for servido pelo compromisso dos cidadãos e pela limitação do poder.    


GOM

O HOMEM: QUESTÃO PARA SI MESMO (16)

  
     "Il Vangello secondo Matteo" (Pasolini)


16. As vítimas inocentes


Quando olhamos para os horrores do mundo hoje, concretamente para a Ucrânia e o Médio Oriente, é o horror  pura e simplesmente, pensando concretamente nas vítimas inocentes. Mas não foi sempre assim? Veja-se Auschwitz. A gente vai lá e fica estarrecido. Bento XVI foi lá também e deixou estas palavras: Há “um silêncio que é um grito interior para Deus: Porque te calaste? Porque quiseste tolerar tudo isto? Onde estava Deus nesses dias? Porque se calou?”  

Ele deixou uma encíclica sobre a esperança — Spe salvi  —, e nela debruça-se sobre uma pergunta decisiva, “a pergunta fundamental da Filosofia” (Max Horkheimer) : o que podem esperar as incontáveis vítimas inocentes da História? Quem lhes fará justiça? Elas clamam, um grito ensurdecedor percorre a História.

E ergue-se um ateísmo moral precisamente por causa das injustiças do mundo e da História . “Um mundo no qual há tanta injustiça, tanto sofrimento dos inocentes e tanto cinismo do poder, não pode ser obra de um Deus bom”.  Quase se poderia dizer que se é ateu ad majorem Dei gloriam, para a maior glória de Deus, como se, perante o horror do mundo, a justificação de Deus fosse não existir. É-se ateu por causa de Deus.

Afastado Deus, deve ser o Homem a estabelecer a justiça no mundo. Mas não será esta uma pretensão arrogante e intrinsecamente falsa? Quem não ouve o eco das palavras de Sófocles: Na terra “há muita coisa terrível, mas nada existe mais terrível do que o Homem.”.  Tem, pois, razão Bento XVI, ao acrescentar: “Um mundo que tem de criar a sua justiça por si mesmo é um mundo sem esperança. Ninguém nem nada responde pelo sofrimento dos séculos”.

Aqui, ele lembra a Escola de Frankfurt, nomeadamente Max Horkheimer e Theodor Adorno, que viveram filosoficamente a inconsolável  “tristeza metafísica” da impossibilidade de fazer justiça às vítimas da História. De facto, mesmo supondo, no quadro do marxismo e da ideia do progresso moderno, que algum dia fosse possível erguer  uma sociedade finalmente justa, transparente e reconciliada, ela não poderia ser feliz, já que ou essa sociedade se lembrava de todas as vítimas do passado, que não participam dela, e seria atravessada pela infelicidade, ou não se interessava por elas e então não era humana, porque insolidária.

Horkheimer e Adorno exprimiram uma filosofia em tenaz: por um lado, não podiam acreditar num Deus justo e bom; por outro, há uma verdade da religião, apesar de todas as suas traições no conluio com o poder e os vencedores: a religião “no bom sentido” é, segundo Horkheimer, “o anelo inesgotável, sustentado contra a realidade fáctica, de que esta mude, que acabe o desterro e chegue a justiça”. Não se trata de um desejo egoísta, mas da esperança contrafáctica de que a realidade dominante da injustiça não tenha a última palavra. Daí, o “anelo do totalmente Outro”, o “anelo da justiça universal cumprida”, “a esperança de que a injustiça que atravessa a História não permaneça, não tenha a última palavra”. E Adorno também escreveu  que, frente às aporias da razão, neste domínio, a única filosofia legítima seria “o intento de contemplar todas as coisas como aparecem à luz da redenção”. Embora se não possa afirmar nada para lá da imanência, a pergunta pela esperança truncada das vítimas, que acusam o mundo da história dos vencedores, obriga a pensar para lá dos limites da imanência, colocando a pergunta pelo Absoluto enquanto pergunta pela justiça universal. 


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 24 de novembro de 2024

A VIDA DOS LIVROS

  

De 25 de novembro a 1 de dezembro de 2024


A biografia de Egas Moniz, da autoria de João Lobo Antunes, permite-nos tomar contacto com um republicano humanista que em toda a sua vida acreditou no progresso social, nos direitos humanos e nas instituições baseadas na liberdade. (Egas Moniz – Uma Biografia, Gradiva, 2010).

 


LEMBRAR PERSONALIDADE MULTIFACETADA
O primeiro Prémio Nobel de nacionalidade portuguesa é ainda desconhecido por muitos, apesar de ter tido uma intervenção importante no seu tempo, quer como médico e professor na sua especialidade, quer como político muito ativo e interveniente na I República, quer como ensaísta e estudioso da língua e da literatura e amante das artes plásticas. Foi, de facto, no seu tempo uma figura marcante, que hoje merece ser recordado nas diversas áreas e facetas em que desenvolveu atividade. João Lobo Antunes legou-nos uma obra fundamental, que é a primeira biografia de Egas Moniz, uma das mais fascinantes personalidades de cidadão e médico do século XX, a quem se devem contribuições científicas fundamentais: a angiografia, técnica que permite a visualização dos vasos cerebrais, e a psicocirurgia, o primeiro tratamento cirúrgico de certas doenças psiquiátricas, retomada nos tempos atuais, em consequência dos progressos tecnológicos mais recentes. Foi galardoado com o Prémio Nobel da Fisiologia e da Medicina de 1949, partilhado com o fisiologista suíço Walter Rudolf Hess.


DE UMA ESTIRPE MUITO ANTIGA
António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz nasceu há 150 anos em 1874 em Avanca e formou-se na Universidade de Coimbra. Seu tio paterno e padrinho, o Padre Caetano de Pina Resende e Sá Freire insistiu que adotasse o nome de Egas Moniz em virtude de considerar que a família Resende descendia em linha direta de Egas Moniz, o aio do rei D. Afonso Henriques. A sua tese sobre “A Vida Sexual” tornou-se num bestseller quando foi publicada, conhecendo diversas edições. Em 1911 transferiu-se de Coimbra para a Universidade de Lisboa como Professor de Neurologia. Contudo, até 1919 foi sobretudo um político ativo, chegando a Ministro de Negócios Estrangeiros no governo de Sidónio Pais, depois de ter sido Embaixador em Madrid, tendo ainda chefiado a delegação portuguesa à Conferência de Paz de Versalhes no final da Grande Guerra. Foi fundador do Partido Republicano Centrista, dissidência do Partido Evolucionista de António José de Almeida, que se integraria no Partido Nacional Republicano (sidonista).   Foi ainda escritor e autor de obras como "A Nossa Casa" e "Confidências de um investigador científico". Foi também autor de um ensaio de crítica literária de grande interesse: "Júlio Dinis e a sua obra" (1924), onde demonstra que o escritor se inspirou em personagens reais oriundas de Ovar na criação das figuras principais dos seus romances fundamentais "A Morgadinha dos Canaviais" e "Pupilas do Senhor Reitor". Egas Moniz também escreveu sobre pintura e reuniu uma coleção de pintura naturalista, atualmente aberta ao público na Casa-Museu Egas Moniz em Estarreja, onde se destacam obras de Silva Porto, José Malhoa e Carlos Reis, além de uma coleção de peças de louça, prata e mobiliário de variada proveniência, testemunho do seu grande interesse e apurado gosto pelas artes plásticas e decorativas. A 14 de março de 1939, aos 64 anos, sofreu um atentado no seu consultório, perpetrado por um doente mental, engenheiro agrónomo de 28 anos, que, numa crise de paranoia, alvejou o médico com oito tiros. Foram-lhe retiradas três balas, mas uma ficou alojada na coluna dorsal. Apesar da gravidade dos ferimentos, Egas Moniz recuperou por completo, sem qualquer sequela física.


Sobrinho do colaborador direto de Egas Moniz, Pedro de Almeida Lima, João Lobo Antunes disponibilizou-nos uma narrativa objetiva e crítica, para a qual dispôs de testemunhos diretos, de origem familiar, bem como de numerosos documentos e cartas inéditos. Temos acesso assim a elementos fundamentais para o melhor conhecimento de um português que foi um notável cidadão e político, um diplomata, um homem das letras e do mundo, um clínico de sucesso e um celebrado cientista, inesperado e improvável.


EXEMPLO FASCINANTE
A biografia de Egas Moniz permite-nos, de facto, tomar contacto com um republicano humanista que em toda a sua vida acreditou no progresso social, no bem comum, na educação e na ciência, nos direitos humanos e nas instituições baseadas na liberdade, na igualdade e na fraternidade (Egas Moniz – Uma Biografia, Gradiva, 2010). Usando um nome heroico que lembrava as raízes antigas e originais da pátria portuguesa, alcançou a celebridade internacional, de que muito se orgulhava. A melhor homenagem que o saudoso João Lobo Antunes lhe faz é a de nos recordar uma personalidade multifacetada que, entre o muito que o interessava, não só foi premiado com o Prémio Nobel, mas, mais do que isso, foi um exemplar pedagogo e ensaísta, profundo conhecedor da língua portuguesa e respeitado até aos nossos dias pelos seus cultores. Morreu em 13 de dezembro de 1955.   


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE JOÃO BOSCO DA SILVA 

  


Outro Aniversário


É triste acordar, logo depois de entrares no carro comigo, o cemitério ali ao lado,

Fechas a porta e quando o teu cheiro tão próximo que quase o sinto iluminar o hipocampo

Acordar para mais um ano, longe do teu cabelo a frisar com o vapor da nossa excitação,

E hoje o dia é de Sol, chove-me nas recordações, mas nunca fui tão triste,

Trocam-se os sonhos por anos e as mãos cada vez mais inúteis e vazias,

Os poemas amontoam-se, vazios que tentam preencher um vazio que cresce,

São velas que ardem em busca de uma cura para o tédio, mas só fumo e manchas negras

No crânio que nem se digna a guardar o que vale a pena, porque sabe bem que não há nada

Que valha a pena, valeram os teus lábios enquanto nos meus, tão húmida tu, tão sincera

Na minha pele e eu que quase nem joelhos, acreditando na eternidade dos teus olhos,

Eu todo a ser nebulosa dentro do teu universo, mas a porta fechou-se, eu acordei

E hoje nem chove, nem festejo, duro apenas, trago comigo todas as recordações

Que me fazem o hoje triste, porque quanto mais vida, menos vida se sente,

O calor sem o teu corpo é um desconforto, o Sol um horizonte difícil de olhar,

A humidade o que os olhos buscam, mas só palavras, e os anos somam-se, na tua ausência.


in Saber Esperar Pelo Vazio, 2012.


Another anniversary


Waking up is sad, immediately after you got into the car with me, the graveyard so near,

You shut the door and your smell is so close I almost feel it lightning up the hippocampus,

Waking up to another year, away from your hair curling in the steam of our excitement,

And today is a sunny day, it rains inside my memories, I’ve never been so sad,

Dreams are exchanged for years and my hands are increasingly useless and empty,

Poems pile up high, empty vessels trying to fill a growing emptiness,

Candles burning in search of a cure for dreariness, but there’s only smoke and dark stains

In the skull which can’t be bothered to keep what is worth keeping, because there’s nothing

worth it, except your lips while on mine, you so humid, so true

On my skin and I, who hardly ever kneel, believing the eternity of your eyes,

I being a nebula inside your universe, but the door shut, I woke up

and today isn’t even raining, and I don’t even rejoice, I only endure, carrying with me

all the memories that make my today sad, because the more there is life the less I feel it,

The heat without your body is a discomfort, the Sun a horizon hard to look at,

Humidity what the eyes are looking for, but words are all there is, and the years pile up in Your absence.


© Translated by Ana Hudson
in Poems from the Portuguese

 

ANTOLOGIA

  
Centro Nacional de Cultura, 1960
Isabel Ruth, Fernando Amado, Manuela de Freitas e Glória de Matos


ATORES, ENCENADORES (XVII)
GLÓRIA DE MATOS NO TEATRO E NO CINEMA
por Duarte Ivo Cruz


Já aqui tivemos oportunidade de recordar a deslocação ao Brasil do Grupo Fernando Pessoa - GPF. As celebrações do centenário do ORPHEU, e designadamente a realização, em Lisboa na semana finda e proximamente em São Paulo, do Congresso Internacional denominado precisamente “100 Orpheu”, iniciativa de centros de estudo e investigação do CLEPUL e do LEPEM da Faculdade de Letras de Lisboa, e também da Universidade de São Paulo, além de outras entidades luso-brasileiras, justificam retomar essa evocação, recordando designadamente a atriz Glória de Matos, elemento destacado do GFP, como já aqui se referiu.

Recorde-se então que Glória de Matos iniciou sua atividade profissional na Casa da Comédia, iniciativa de Fernando Amado que viria a dirigir, no âmbito do Centro Nacional de Cultura o Grupo Fernando Pessoa, o qual em 1962, como já vimos, levaria “O Marinheiro” ao Brasil. Essa “internacionalização” de Glória de Matos foi completada, digamos assim, com uma formação na Bristol Old Vic Theatre School e posteriormente, com atividade profissional e docente no Canadá.

Glória trabalhou com Raul Solnado e ingressou na Companhia do Teatro Nacional de D. Maria II, onde se manteve, com intermitências e com colaborações diversas, a partir de 1969. Destaco então, mas é um mero exemplo, o que escrevi na época acerca da interpretação de Glória de Matos em “Quem tem Medo de Virginia Woolf”, de Edward Albee, encenação de João Vieira, no Teatro Villaret, que valeu a Glória o prémio da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, pela interpretação “espantosa na violência paroxística” numa peça que fez época pela “construção seguríssima no retratamento psicológico e veemente no acerado criticismo social”.   

Importa salientar a atividade docente de Glória de Matos, pois ao longo da carreira teve como referencial relevante a permanência no Conservatório Nacional depois Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa. Destaco essa dimensão da carreira de Gloria de Matos porque não é tão habitual em profissionais que conciliaram a atividade de espetáculo com a atividade docente.

Glória foi professora durante décadas. A título pessoal, posso também recordar que coincidimos na docência, pois, em grande parte desse longo período, fui titular, no Conservatório/ESTCL da cadeira de História da Literatura Dramática e do Espetáculo Teatral. Glória era professora na área de cadeiras de Formação de Atores, como o foi também de Expressão Oral no Mestrado da Universidade Aberta. A complementaridade no plano teórico e prático do ensino foi sempre assumida.

E interessa ainda salientar a intervenção de Glória de Matos no cinema. A colaboração com Manoel de Oliveira marca uma época na cinematografia nacional, na perspetiva da interpretação adequada à exigência específica da filmografia de Oliveira, a qual, como bem se sabe, é exigente para os atores, como aliás o é para os espectadores.

No caso de Glória, refiram-se papéis determinantes em filmes como a “Benilde ou a Virgem-Mãe” a partir da peça de Régio, “Francisca”, “Canibais”, “Vale Abraão”, “O Quinto Império”, “Espelho Mágico”, ou “Singularidades de Uma Rapariga Loura”, evocativo de Eça de Queiroz. Todos esses filmes, para lá da especificidade no plano da realização, reportam, na dimensão de enredo e diálogo, para uma exigência de qualidade que se projeta obviamente nas interpretações.


Duarte Ivo Cruz


Obs: Reposição de texto publicado em 01.04.15 neste blogue.

CRÓNICAS COM MEMÓRIAS DE SÃO TOMÉ

  

 © Facebook da Biblioteca Nacional STP 


8. CAMINHAR A PÉ PELA CAPITAL DE SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE


Há que ter duas pernas saudáveis para caminhar. Ao fazê-lo laboramos com a mente, humanizamo-nos interagindo com a paisagem, o espaço e o tempo que respiramos, em tranquilidade e sem demoras. Caminhar não é um desporto, em que o andar depressa, em muito pouco tempo, apressa tudo. Pode ser uma fuga, um exercício espiritual, uma satisfação física, mental, uma inspiração para sairmos de casa com o muito para nos oferecer e revelar sobre aquilo que somos. 

Foi o que me guiou ao percorrer a pé o espaço urbano da cidade capital de São Tomé e Príncipe (STP), conhecida por São Tomé ou Cidade de São Tomé.   

Após uma breve caminhada, a primeira paragem foi na Biblioteca Nacional Francisco José Tenreiro (poeta e geógrafo), inaugurada em 1 de maio de 2002, oferta da República da China (Taiwan), em cujo exterior se lê: “Que a leitura seja a maior luz do mundo e que os homens a encontrarem-se, sejam como luzes que se juntam” (Jerónimo Salvaterra, in A Ilha do Amanhã). Pelo que vi, o espaço interior, não acanhado e espaçoso, está subaproveitado, quer em livros ou novas tecnologias, apesar de apelos a doações. Aí decorria uma conferência, reunião ou apresentação restrita. Destaque, nas paredes, para um processo de institucionalização da memória associado a figuras públicas da cultura santomense, o que ajuda a consolidar uma lembrança específica da nação. Alda Espírito Santo, que além do exercício de cargos governamentais e da sua vasta obra literária, integrou movimentos emancipalistas, sendo dela a letra do hino das ilhas. Alda Neves da Graça Espírito Santo, que incorporou movimentos emancipalistas que levaram à independência de antigas colónias portuguesas, entre eles o MLSTP, que conduziu à emancipação de STP. Maria Manuela Margarido (casada com Alfredo Margarido), um nome cimeiro da poesia de STP, que abraçou a causa anti-colonialista e levantou a voz contra o massacre de Batepá, em 1953. Francisco José Tenreiro, ensaísta e poeta da negritude, assumiu-se como pan-africanista, “sem, no entanto, renegar outros valores adquiridos na cultura europeia”. Caetano da Costa Alegre, poeta, que viveu no século XIX e a quem Manuel Ferreira chamou “criador da negritude em poesia”, exemplificando-o em versos: Ah! Pátria mulher, olha, a noite é negra e tem milhões de estrelas/o dia é belo e branco e tem apenas uma”.         

Seguiu-se o Arquivo Histórico de STP, criado na época colonial, com documentos e exposições alusivos ao início da colonização das ilhas, população e ciclos económicos, preservação da memória e identidade nacional, património arquitetónico, afirmação cultural, escravos contratados, fundos e administração colonial, por entre livros vendáveis, alguns fundamentais para a compreensão do país.     

O cineteatro Marcelo da Veiga (poeta), antigo cinema Império na era colonial, é um edifício digno, modernista e de escala monumental para a área onde se localiza. Construído na década 50-60 do século passado e recuperado, com um donativo de Taiwan, no início deste milénio, necessita de obras urgentes de conservação e manutenção, aí funcionando, à data, escritórios de advogados e a única livraria de ST (a exígua livraria Nón), pelo que apurei. Nos tempos áureos tinha mil lugares, aí tendo atuado, em 1954, “o grande e inimitável artista João Villaret”. Aí tocou, em 1965, Sequeira da Costa, segundo placa alusiva, aluno de Vianna da Mota, este nascido em São Tomé. Custa, uma vez mais, ver o abandono e degradação de um espaço que tem todas as condições para se reabilitar na dignidade que merece.   

No exterior, no centro da Praça da Cultura, a estátua do Rei Amador (em homenagem aos heróis da liberdade), que em 1595 chefiou uma das mais importantes revoltas de escravos, acabando por ser preso e morto, hoje herói nacional.         

As redes viárias e passeios apresentam-se muito desgastadas e danificadas, incluindo buracos, o que é uma constante por toda a cidade, o que foi atenuado, à data, segundo relatos, pela realização de uma cimeira da CPLP.   

No centro da cidade, numa das ruas mais movimentadas, visitei o Instituto Camões e Centro Cultural Português, nomeadamente a sala de leitura Almada Negreiros, de conferências e de formação, com mesas e cadeiras repletas de jovens, ávidos de internet e ar condicionado, cujo acesso aí dispunham para estudo, investigação e lazer (uma agulha no palheiro ver alguém folhear, consultar ou ler um livro). Há obrigações que devemos manter e preservar, reforçando-as, não valendo apenas o imediato, mas essencialmente o longo prazo. O Brasil está representado através do Instituto Guimarães Rosa, num edifício pintado com as cores nacionais.     

O núcleo mais central, concentrado, de maior circulação e de arquitetura colonial, tem de tudo um pouco, num emaranhado de ruas que se cruzam umas nas outras, pouco cuidadas e necessitando de arranjos e obras. Insegura, degradada e em ruínas, estava a linda marginal, a pedir, como pão para a boca, uma reabilitação e requalificação célere. Por entre ruas, ruelas, praças, largos, estradas, passeios e habitações, há muito a fazer, recuperar, reabilitar e requalificar, numa urbe com enorme potencial.

Há surpresas, a maior das quais foi, para mim, o estado imaculado e respeitável do Monumento aos Descobrimentos, limpo, exemplarmente pintado, preservado, não destruído ou vandalizado, não ignorando a História, descolonizando-a sem complexos, numa súmula do que teve (e tem) de positivo e negativo. Bem perto, o palácio do Povo (presidência da República) e a Igreja da Sé, da era colonial, bem preservados.   

Destaco ainda a embaixada de Portugal (muito bem localizada), o liceu nacional e o forte de São Sebastião, o bairro 3 de fevereiro, zona residencial de moradias unifamiliares (antigo bairro Salazar), a Praça da Independência, instalações do Instituto Marquês de Valle Flôr. Sem esquecer, na avenida Marginal, a casa Claudio Corallo e a loja/salão de chá e café Diogo Vaz, duas representantes do melhor chocolate que há a nível mundial.     

Come-se bem em ST, onde o défice de carne é compensado por muito bom peixe e frutas típicas. Há boa escolha de restaurantes pela capital (Papa Figo, Pirata, Filomar, Cacau). Diz-se que “quem morre com fome é preguiçoso”: basta sair da cidade e a natureza abunda em exuberância. Registei a ausência de qualquer queixa do meu organismo ao que aí comi. O que foi uma agradável e estimulante surpresa.


22.11.24
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

E pego-vos ao colo

numa pretensão de mãe

que

só vos fala

através dos sonhos 

  

Que

a vossa superlativa dor reclama à piedade extinta

que

a indiferença do mundo em vós

não finda

que

a vossa resistência é húmida de sangue e lágrimas e medo e aflição

e tão imensa a vossa nudez

acossada

por homens sem olhos

de horrendas pálpebras

grandemente abertas

para que nada viva

para que nada se perceba ou se ame

que

vossos rostos

desaparição

Ó inocentes!

que

rasgada e arrastada a vossa pele em chaga

ainda rejeitam

que

vossos filhos pressintam

que

as asas que lhes prometeram

se suicidaram no amanhecer

do vosso abandono

absoluto

Ó inocentes

que

de nós retiraram parte

para fazer outros iguais

que

somos nós

os indignos

E pego-vos ao colo

numa pretensão de mãe

que

só vos fala

através dos sonhos


Teresa Bracinha Vieira

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