ANTOLOGIA
A HOSPITALIDADE DE ABRAÃO…
por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim:
Acontece-me pensar na natureza do meu amor, ao lembrar-me das marcas que o envelhecimento físico vai traçando sobre ti. Sinto então como te amo, enternecidamente, mais ainda. Amar é inventar (descobrir) o outro. Não é imaginá-lo diferente. Amar-te é trazer em mim a certeza íntima de seres quem és, enorme sempre na ternura do meu coração. Bem hajas por essa consoladora alegria! Por esta minha ternura generosa, não por virtude que eu tenha, mas pela sua própria natureza amorosa... Como graça permanente, alegria e dor, que, por ti, de Deus recebo. Habitas-me assim, teço o tempo dos meus dias peregrinando na vida de mãos dadas contigo. Desde que nos encontrámos assim andamos, ligados por essa íntima fidelidade, nossa fortaleza e conforto. Consola-me este pensamento, dou graças a Deus pela tua bondade em mim. Habituei-me a, de ti, querer acima de tudo que te sintas amada e isso te faça bem. Fico assim feliz. Como disse Montaigne, "nos âmes ont charié si uniment ensemble: elles se sont considerées d´une si ardante affection, et de pareille affection descouvertes jusques au fin fond des entrailles l´une à l´autre: que non seulement je cognoissoyt la sienne comme la mienne, mais je me fusse certainement plus volontiers fié à luy de moy,qu´à moy"... Tenho diante de mim a "Trindade" pintada pelo monge André Rublev no século XV. Por vários motivos me fala da fidelidade eterna. Porque é esse o mistério da Santíssima Trindade: a relação constante que é a união de três pessoas numa só, o criador que também é o filho que vem habitar entre as suas criaturas e o espírito que as anima e com elas permanece. O monge russo inspira-se na aparição de Deus a Abraão, junto ao carvalho de Mambré, relatada no livro do Génesis, em que a patrística viu um anúncio do mistério da Trindade: "Yahvé apareceu-lhe no Carvalho de Mambré, quando ele estava sentado à entrada da tenda, na canícula do dia. Levantando os olhos, eis que viu três homens de pé perto dele; assim que os viu, correu da entrada da Tenda ao seu encontro e prosternou-se por terra. Disse: ´Meu Senhor, peço-te que, se encontrei graça a teus olhos, não queiras passar ao pé do teu servidor sem parares. Traga-se um pouco de água e lavareis os pés e descansareis à sombra da árvore. Irei buscar um pedaço de pão e reconfortareis o coração antes de seguir caminho; foi para isso que passastes ao pé do vosso servidor! ´ Eles responderam: ´Faz como disseste! " Também já intitularam este ícone de "A hospitalidade de Abraão" ou, ainda,"Filoxenia" ou "Xenofilia" de Abraão, por oposição a xenofobia (receio ou ódio do estrangeiro). É bonito esse significado: ao acolhermos os outros, recebemos Deus em nossa casa. Indo mais longe, a Trindade é o mistério da comunicação e do acolhimento, ciclo permanente da dádiva da vida. Na representação de Rublev, não aparece Abraão, nem um servo servente, nem a mulher do patriarca, Sara, à velhice da qual, nesse dia, será anunciado um filho. Somos, nós também, postos no lugar de Abraão, vemos o que ele vê: três pessoas em círculo sentadas à mesma mesa, tão semelhantes no gesto, tão iguais na condição e no entendimento, que num olhar só unamente as contemplamos... Terá sido essa simplicidade de transmitir visivelmente o invisível que levou o ícone pintado pelo monge russo, sobretudo a partir do ano passado (1972), a substituir cada vez mais, na iconografia generalizada entre os cristãos do ocidente (designadamente os católicos), as representações tantas vezes forçadas, quase caricaturais, quiçá sem inspiração profunda do próprio mistério religioso que por aí se usam? Não se duvide do poder, da força, da imagem (do "eîkon" ou "forma") da "Trindade" de Rublev. Depois de ter sido descoberta pelo restauro de Gurianov, no mosteiro moscovita da Trindade e S. Sérgio, em 1904, por este ícone aconteceram dois "milagres". Primeiro, fez da igreja que o acolhera um lugar de peregrinação, não apenas religiosa, mas estética: este e outros ícones russos deixaram de ser olhados apenas como toscas e devotas obras da piedade popular, e passaram a ser considerados de um ponto de vista artístico, comparados, por exemplo, aos trabalhos dos primitivos italianos e mesmo de um Giotto ou dum Fra Angelico. Chegam assim às coleções privadas de estetas russos, onde ombreiam com quadros de Cézanne, Gauguin,Van Gogh ou Matisse. Este visitará Moscovo em 1911, a convite de um desses colecionadores, Sérgio Chtuchkin, e afirmará em entrevista ao Ruskie Vedomosti: "Conheço a arte religiosa de vários países, mas em parte alguma vi uma tal revelação do sentimento místico, por vezes mesmo do espanto religioso. As vossas igrejas são admiráveis, majestosamente grandiosas... Os ícones são uma das mais interessantes amostras da pintura primitiva... Em lado algum vi tal riqueza, tal pureza de cores, tal espontaneidade da representação. É o melhor património de Moscovo. Devemos vir até cá para nos instruirmos, pois é junto dos primitivos que devemos buscar inspiração! "Henri Matisse que, entre 1948 e 1951, poucos anos antes de morrer, se dedicará a provar as suas pesquisas de traço, cor e luz, na "pintura arquitetónica" que para ele será a capela das monjas dominicanas de Vence, o seu "ateliê sinfónico", uma obra prima, "para lá, mesmo, do superior significado deste monumento". O segundo milagre será, graças ao reconhecido valor artístico da "Trindade", que levará a olhar outros ícones pelo mesmo prisma apreciativo, o da preservação dessas obras em museus soviéticos - para esse efeito constituídos - logo desde o início da perseguição bolchevique, que encerrou as igrejas e os mosteiros da Rússia Ortodoxa. Trouxe comigo uma foto do mosteiro de Santo Andronikos, onde André Rublev foi monge no séc. XIV-XV, quase completamente destruído em 1940. E outra, de 1960, em que, no mesmo local, cidadãos soviéticos contemplam admirativamente uma "Deísis" monumental... Nas Igrejas cristãs orientais, os ícones têm uma função quase sacramental: mais do que simples representações, eles são considerados imagens cuja veneração e respeito torna eficaz a graça ou proteção contemplada. Até manuais de bom governo das casas e das famílias incluem lições sobre onde colocar as imagens sagradas nos lares, como tratá-las e cuidá-las, como as venerar e a elas recorrer. A iconofilia e iconologia russas são de origem bizantina. Nada menos do que sete concílios (do 1º de Niceia, em 325, ao 2º, em 786) discutiram a iconoclastia (que se reclamava do 2º mandamento da lei de Moisés) em oposição à iconolatria ou adoração das imagens. É S. João Damasceno que, cerca de 730, antes ainda do 2º Concílio de Niceia, faz a distinção entre "proskunésis" ou prostração, isto é, veneração das imagens e a sua "latreia", ou seja, adoração (idolatria). E escreve: "Se fabricássemos uma imagem de Deus invisível, cometeríamos sem dúvida uma falta, porque é impossível representar em imagem o que é incorporal, sem forma, invisível e não circunscrito; ou, ainda, se fabricássemos imagens de homens, e pensássemos que são deuses que adorássemos como tais, seríamos sem dúvida ímpios. Mas não fazemos nada disso. É de Deus feito carne, que em carne foi visto na terra, e que viveu entre os homens, na sua indizível bondade, é d’Ele que para nós fabricamos uma imagem. E, fazendo-a, não nos enganamos, porque ardentemente desejamos ver a sua marca. Na verdade, diz o divino apóstolo (S. Paulo): ´Agora só vemos como num espelho, e por enigmas´. A imagem é assim um espelho e um enigma que se adequa à espessura do nosso corpo; porque, mesmo sofrendo muito, o nosso espírito não conseguirá ultrapassar as coisas corporais, como diz o divino Gregório..." Tenho para mim que, mesmo revelando Deus na sua indizível bondade, a Incarnação não deixa de ser um mistério. E, como todos, nunca deverá ser representada sem o respeito contemplativo que devemos às "coisas" maiores que não entendemos. Pretender encerrar Deus, a alma, o mundo infinito, numa qualquer obra humana é faltar à humildade. Talvez por isso pense também que todas as artes, e toda a arte - não só a arte sacra - não é uma redução, afirmação ou imposição: é proposta, é convite, vocação. Até literariamente: o que distingue um tratado de um poema, p. ex., é que este não pretende provar seja o que for, mas simplesmente dizer o indizível." Outra carta de Camilo Maria nos traduzirá esta sua paixão iconográfica.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 11.10.13 neste blogue.