POLÍTICA E LITERATURA
Recebi sempre de Mário Soares as melhores provas de amizade e estima pessoal, num período largo sem sombras e com provas de confiança inexcedíveis. O mesmo devo dizer de Maria de Jesus Barroso, que foi sempre de uma generosidade a toda a prova. Trabalhei de perto com o então Presidente da República na sua Casa Civil na Assessoria Política e fui membro da Comissão Política do MASP em 1985 e 1991 e porta-voz nesta última campanha. Estive na administração da Fundação Mário Soares, a cujos órgãos continuo a pertencer. Foram, assim, quarenta anos de uma relação que jamais esquecerei. Tive oportunidade de recordar em testemunhos pessoais esses tempos, ficando muito por dizer do que usufrui dessa amizade. Em Belém, almoçávamos todas as semanas e devo dizer que havia uma verdadeira partilha de pontos de vista e de ideias. Mário Soares ouvia atentamente, e deixava claro o seu ponto de vista – cuidava da liberdade como o contrário da indiferença e do relativismo. Os valores republicanos ilustravam o culto da liberdade de consciência.
Mário Soares sempre teve uma preocupação com a questão religiosa que envenenara a Primeira República. E lembro a relação saudável que estabeleceu com o Cardeal-Patriarca D. António Ribeiro, crucial para a institucionalização da democracia, aliada ao contacto, vindo da resistência, com D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, sem esquecer a admiração que tinha por D. Alexandre Nascimento, futuro Cardeal de Luanda e a amizade profética com António Alçada Baptista e os democratas católicos. A sua coerência era exemplar, não esquecendo o equilíbrio nas relações institucionais importantes. Sophia de Mello Breyner falava de uma coragem que nos dava ânimo. E as suas casas eram lugares de hospitalidade plena e recordo muitas horas de genuíno encontro, no Campo Grande, em Nafarros ou no Vau. Eram momentos extraordinários. Muito se tem dito sobre Mário Soares, no entanto, salvo o testemunho do meu amigo José Manuel dos Santos, poucas têm sido as referências ao escritor. E a verdade é que estamos perante alguém que viveu sempre a paixão da escrita e da grande literatura. Num passeio pelos alfarrabistas da Rua da Misericórdia ofereceu-me um dia a biografia de Garrett, de Gomes de Amorim, e esse foi motivo para falarmos longamente sobre o dramaturgo e sobre Herculano, à sombra de cujo busto conversávamos em Nafarros. Leiam-se o “Portugal Amordaçado”, as “Incursões Literárias” ou “Um Político Assume-se” – aí se encontra, numa escrita clara e atraente, a demonstração da ligação incindível entre a responsabilidade cívica e a paixão literária. Desde Péricles, Tucídides e Cícero, de Montesquieu, Rousseau, Voltaire, Burke ou Tocqueville, até Tolstoi resulta a ideia de que nada há de mais digno do que o compromisso com a polis na sua expressão mais nobre. Mário Soares foi um grande escritor e o futuro confirmá-lo-á. A proximidade dos acontecimentos não permitiu aferir plenamente essa qualidade, de quem teria gostado de ser romancista. Contudo, a vida cultural e literária encontra grandes políticos que se singularizam na escrita. E o tempo revelará para Soares essa faceta, do mesmo modo que hoje, ao relermos o diálogo entre Garrett e José Estevão sobre o Porto Pireu, temos ecos do mais puro uso da língua como sinal de cidadania.
GOM