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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANTOLOGIA


UMA NOVA SÉRIE – MEU CARO JOSÉ!
por Camilo Martins de Oliveira


Meu Caro José Saramago:


Por qualquer razão que me escapa, quando me achei já cansado de traduzir as cartas do Marquês de Sarolea à Princesa de... lembrei-me de si. Talvez por ter caído na tentação de responder post-mortem a Camilo Maria, que me desafiara a telefonar-lhe para o céu... Terei pensado então que, nesse nenhures intemporal, o José (permita-me tratá-lo com uma familiaridade antiga em mim) estaria presente lá em cima, lado a lado, com aquele "reacionário"? Ou, antes, seria pela necessidade de lhe confessar, a si, sentimentos de profunda, eterna (acredita, eterna?) intimidade espiritual? Porque me ocorreu dizer-lhe essas palavras com que o José fala de Fernando Pessoa, "neste preciso instante em que Ricardo Reis, encostado a um candeeiro no alto da Calçada do Combro, lê a oração fúnebre" que, pela morte do seu alter ego, alguém escreveu mas Reis-Saramago diz assim: "Duas palavras sobre o seu trânsito mortal, para ele chegam duas palavras, ou nenhuma, preferível fora o silêncio, o silêncio que já o envolve a ele e a nós, que é da estatura do seu espírito, com ele está bem o que está perto de Deus, mas também não deviam, nem podiam os que foram pares com ele no convívio da sua Beleza, vê-lo descer à terra, ou antes, subir as linhas definitivas da Eternidade, sem anunciar o protesto calmo, mas humano, da raiva que nos fica da sua partida...  ...lastimamos o homem que a morte nos rouba, e com ele a perda do prodígio do seu convívio e da graça da sua presença humana, somente o homem, é duro dizê-lo, pois ao seu espírito e seu poder criador, a esses deu-lhes o destino uma estranha formosura, que não morre..." Assim é: nascemos um dia, e connosco, em qualquer de nós, inda que pequeno, breve, talvez feio, essa misteriosa "estranha formosura, que não morre." 


Vivi quarenta anos - trinta deles seguidos - fora de Portugal. Por enquanto, ainda não mas quase 50% do tempo deste meu itinerário mortal. Quando vinha por cá, "esvaziava" livrarias e... pagava excessos de bagagem! O José, entre outros, foi um dos "culpados" desses excessos. Primeiro, com o "Memorial do Convento" que, no avião e em casa, achei interessante mas algo pesadote. Depois, com "O Ano da Morte de Ricardo Reis", que devorei sem dormir.... Até me cheirava a Lisboa, como "El Amor en los Tiempos del Colera" do Garcia Marquez me tinha enchido as narinas, o coração, a pele e os ossos da alma, de Cartagena de las Indias! Adolescente ainda, gastei uns cobres da mesada a comprar os Pessoa na Ática, e trazia no bolso do obrigatório casaco essa edição de uma antologia dos heterónimos, que o Adolfo (veja o José, aí no céu, como até os nomes enganam!) Casais Monteiro tinha publicado com a Agir, no Brasil... Aos quarenta, dou de caras, graças a si, com o Ricardo Reis, andei com ele pela Lisboa húmida, que transpirava, e nós com ela... Bem haja! Reparo agora que nunca o tratei por V. Exa., nem sequer por Senhor Saramago... Sem mesmo qualquer respeito, sequer, pela progressiva familiarização das formas de tratamento com que o Eça nos vai medindo, em "Os Maias", com os oportunismos do mundo. Trato-o por José, nome respeitável e cristão, em meu entender preferível ao "você" com que nos banalizam. Não digo Senhor José, atenção!, mas José apenas: é bem maior e muito mais bonito! Sabe? Quando adquiri, na livraria Arco-Íris, ali nas Avenidas Novas, o seu "O Ano da Morte de Ricardo Reis", vivia em Scarsdale, no Westchester County, subúrbio de New York. Abri-o em casa, logo que cheguei, lá pelas dez da noite (três da manhã em Lisboa), na cama, para me vir o sono. Fechei-o só a meio do dia seguinte, não dormi, li-o todo! Como se acompanhasse, percorrendo a sua vida de Ricardo Reis, não apenas essa, mas outro percurso interior: aquele em que José Saramago se reconhecia nas "Odes" de Ricardo Reis. Com a mesma perplexidade de uma cidade de Lisboa que, ali, com Ricardo Reis que acaba de chegar do Brasil, num vapor inglês da Mala Real, nasce de um Tejo húmido, cinzento e frio, e o leva no seu coração, em que o tempo pára. Começa assim: "Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro..." E termina quando Fernando Pessoa vem buscar o mais coevo dos seus heterónimos, e o tira do leito e das ilusões, para a noite fria: "Você não trouxe chapéu. Melhor do que eu sabe que não se usa lá. Estavam no passeio do jardim, olhavam as luzes pálidas do rio, a sombra ameaçadora dos montes. Então vamos, disse Fernando Pessoa. Vamos, disse Ricardo Reis. O Adamastor não se voltou para ver, parecia-lhe que desta vez ia ser capaz de dar o grande grito. Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera." Chegado a este fim, ocorreu-me essa breve ode de Reis:


            "Aguardo, equânime, o que não conheço...
             Meu futuro e o de tudo.
             No fim tudo será silêncio, salvo
             Onde o mar banhar nada."


E fico, talvez como o Ricardo Reis do Saramago, que, ao sair, ainda "foi à mesa de cabeceira buscar «The god of the labyrinth», meteu-o debaixo do braço"... nesse (cito o autor das "Odes"):


              "Nesse desassossego que o descanso
              Nos traz às vidas quando só pensamos
              Naquilo que já fomos,
              E há só noite lá fora."


Ricardo chega a Lisboa no princípio de dezembro de 1935, quando é devolvido à terra o corpo de Fernando, nascido um ano antes dele e que publicara, em 34, o seu único livro em vida: "Mensagem". Aí diz, da vida breve, o que lhe oferece a memória de D. Sebastião, Rei de Portugal:


             "Louco, sim, louco porque quis grandeza
             Qual a sorte não dá.
             Não coube em mim minha certeza;
             Por isso onde o areal está
             Ficou meu ser que houve, não o que há”


Na Lisboa invernal e turva Reis-Saramago está entre parênteses, ou entre dois portos: o da chegada, onde o mar acabou; e o da partida, onde Fernando Pessoa o vem buscar. Nem ele nem ninguém sabe qual é a demora, nem experimentou ainda a divisão de quem parte e fica. Desconhece o destino, sabe apenas que há essa "estranha formosura, que não morre"... E porque eu mesmo, muitas vezes, não sei bem separar a angústia da esperança, nem fugir à tentação de estar, ficando, quando uma voz me chama para a loucura de ser, desligando-me do meu temor, penso em si, José, e em onde estará o seu ser "que há". Onde talvez veja como Deus nos vê, e leia, com nova descoberta, esta ode de Ricardo Reis:


             "Para ser grande, sê inteiro: nada
              Teu exagera ou exclui.
              Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
             No mínimo que fazes.
             Assim em cada lago a lua toda
             Brilha, porque alta vive."


Se achar bem, vou-lhe escrevendo. Gosto de conversar consigo.


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 15.10.13 neste blogue.