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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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SOMBRAS NUMA FOTOGRAFIA


   Em cima: Mário Cesariny, José-Augusto França e Vespeira. Em baixo: António Pedro, Alexandre O’Neill e João Moniz Pereira


Na vida de Alexandre O’Neill há uma fotografia tirada em maio de 1948 no Jardim da Parada, em Campo de Ourique, que simboliza um tempo em que coincidiam fatores contraditórios, mas plenos de sentido. A ditadura persistia, apesar dos ventos que sopravam na Europa e no mundo. Mário Cesariny, José-Augusto França, Marcelino Vespeira, António Pedro, O’Neill e João Moniz Pereira constituem o grupo. Alexandre faz-se representar provocatoriamente com um osso a sair da manga direita do casaco, como marca de controvérsia. O momento é, no entanto, fugaz. Maurice Nadeau escrevera a Histoire du Surrealisme no fim da Guerra. O’Neill, Cesariny, António Domingues e Moniz Pereira formaram, entusiasmados, o Grupo Surrealista de Lisboa, mais de vinte anos depois do manifesto de André Breton de 1924. Havia que aproveitar a oportunidade para trilhar caminhos novos.  A Ampola Miraculosa, um romance-colagem, marca o contributo de Alexandre O’Neill para o movimento, preocupado com a reconstrução das palavras, enquanto Cesariny tratava do domínio das representações. Mas Cesariny e Moniz Pereira abandonam o grupo e o poeta de No Reino da Dinamarca encontra uma vocação própria (“Impossível tomar o íngreme caminho / da aventura mental”). Continuará, no entanto, atento a tudo de essencial que se fazia e escrevia.


A sua fábrica poética apresenta-se como inesgotável. Cada neologismo representa um modo de fazer da ironia uma denúncia da vidinha pobre e desprezível. “Às duas por três nascemos, / às duas por três morremos. / E a vida? Não a vivemos” (Poemas com endereço, 1962). Não se tratava apenas de ver a superfície, havia que ir ao fundo. “Portugal, questão que eu tenho comigo mesmo, / golpe até ao osso, fome sem entretém, / perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes, / rocim engraxado, / feira cabisbaixa, / meu remorso, / meu remorso de todos nós.” (Feira Cabisbaixa, 1965). E por mais que se cite, ficamos sempre a pensar. É uma marca indelével. Como não procurar os símbolos muito nossos? O exemplo de Belarmino tornava-se um modo de nos entendermos melhor – “pugilista e poeta, campeões com jeito / e amadores da má vida”. Estava-se, afinal, num país relativo: “País purista a prosear bonito, / a versejar tão chique e tão púdico, / enquanto a língua portuguesa se vai rindo, / galhofeira, comigo. (…) / País engravatado todo o ano / e a assoar-se na gravata por engano. (…) / A santa Paciência, país, a tua padroeira, / já perde a paciência à nossa cabeceira” (id.). Portugal está sempre presente na sua reflexão, sem ilusões e sedento de ironia. Vinham à lembrança os encontros com Pascoaes no Café Central de Amarante. Longe das influências que lhe quiseram apontar, o poeta sempre deixou dito que mais do que Nicolau Tolentino ou do que o Abade de Jazente (hipotéticas sombras) havia que cuidar da realidade concreta e das suas particularidades. “Talento? / Tolentino? / Tolos.” O excesso e o divertimento eram necessários. E António Carlos Cortês tem razão quando salienta “que a originalidade de O’Neill passa pela pesquisa sobre um idioma que o poeta desconstrói e redescobre” – do amor ao humor, na melhor tradição do nosso lirismo. “Quanto a esse Tolentino, esse faceto, / devo dizer que nada lhe roubei / mas que podia ser seu neto” (id). Afinal, ao pesquisar a língua, do que se tratou sempre foi de tentar descobrir quem somos. 


GOM