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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICAS PLURICULTURAIS


        Joshua Cohen, foto de David Shankbone CC BY 3.0 - Wikimedia Commons


193. DECLÍNIO LITERÁRIO


“A literatura é um espaço de liberdade por causa do abandono a que foi votada. Acho que hoje em dia os únicos sítios onde há liberdade são aqueles que são negligenciados. A literatura, neste momento, beneficia de uma falta de santidade, uma falta de estar no centro da conversa cultural”
.  

Joshua Cohen (JC), (entrevista ao Público, 05.07.24).   

No século XIX o prestígio literário era associado ao sucesso que o autor tinha nos bastidores, nos seus conhecimentos e privacidades com os jornalistas, no meio da imprensa.     

No século XX havia páginas e suplementos culturais em que as querelas literárias eram apelativas. No Estado Novo, entre nós, a censura imposta ao debate político jogava-se na literatura, vindo a público através de polémicas entre os comunistas, via neorealistas, e os democratas, via presencistas ou independentes.  

Até então os escritores eram uma espécie de consciência moral do mundo.   

Agora é crescentemente reduzido o espaço literário na imprensa e redes sociais em geral, ao que não será alheio, por um lado, o crescente relevo cultural do cinema, das artes cénicas, performativas e da música e, por outro, a ascensão do visual, do imediato, em desfavor de horas a ler, quando o que se quer é que seja rápido.

A glória literária aprendeu que é mortal, ao mesmo tempo que o aprenderam os jornais com a digitalização, sem ter havido óbito do papel, dos livros, da literatura e das publicações impressas.       

Mas hoje, segundo JC, se há espaço onde se pode dizer tudo é na literatura. Porquê? Porque não se lê. E se tempos houve em que os escritores eram a consciência do mundo, isso acabou. O que é extensivo a uma pretensa superioridade moral dos intelectuais.  

Se assim é, pode dizer-se que a não leitura do que se escreve é um exercício máximo da liberdade de expressão em absoluto, por maioria se for uma literatura sem filtros.

Há também o outro lado da moeda, o dos escritores cancelados, vítimas do politicamente e moralmente correto, porque inconvenientes e, quando lidos, a pretexto de um olhar ideológico mais adequado, são proibidos ou reescritos.    

E há quem diga que para escrever nos pode ajudar o não ler (o que não significa excluir, de todo, a leitura), dado que ler nos torna passivos, ocupa-nos o tempo e leva-nos a reboque de quem escreveu.  

Contudo, há leitores. Que continuam a comprar livros e a ler, interagindo com a escrita e a literatura como todas as gerações fizeram, adaptando-se às circunstâncias, mesmo que agora também leiam no computador ou no kindle.     

O leitor, ao ler, dá vida ao que foi escrito e ao seu autor, mesmo que a escrita e o autor tenham centenas ou milhares de anos.       

O que é cada vez mais questionável é que o escritor seja uma figura de referência a quem se pede explicações acerca do mundo, dado não ser a consciência ideológica ou moral (ou qualquer outra) do universo, mesmo que tenha de escrever tudo o que quer na sua excelsa liberdade de expressão, por mais incorreto que seja, exigindo a sua leitura, para os leitores, disponibilidade de tempo e de reflexão. O que se tem como inadequado para os velocistas que têm como modelo dominante e futurista a internet, interpelando os demais sobre uma inevitável melancolia invasiva e para a abertura de novas fronteiras.  


27.12.24
Joaquim M. M. Patrício