Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
A guerra é uma realidade histórica que tem acompanhado fielmente os humanos no seu percurso terreno.
Se analisarmos o que aconteceu ao longo da História, concluímos que é mais fácil dar passos em direção à guerra do que fazer a paz, razão pela qual nunca houve, que se saiba, uma paz total no nosso planeta, pois subsistem permanentemente guerras, mesmo quando maioritariamente há paz.
Se a bondade e a ferocidade são algo de inerente e natural ao ser humano, o ideal é o lado bom prevalecer e erradicar a destruição e a violência, em harmonia e conjugação de esforços por um bem maior e comum a toda a humanidade.
Quem luta pelo poder quer conservá-lo, se necessário através da força, usando a guerra, no seu grau mais extremo, porque ninguém gosta de perder, o que leva os decisores políticos a prolongar negociamentos ao máximo da sua extensão, para não perderem a face ou não ficarem desapossados daquilo que eram os ganhos que anteciparam antes do conflito, sem esquecer a manipulação e o relacionamento com as suas próprias audiências e populações.
Hobbes fala no “homo homini lupus”, que significa “o homem é o lobo do próprio homem”, sem preocupações metafísicas, o que explica, sob um ponto de vista racional, ser mais entendível fazer a guerra que a paz.
A paz perpétua, incluindo a de Kant, é tida como uma quimera, embora discorresse, com mistério, que a providência usava a guerra para preparar ou realizar a convivência pacífica dos povos.
Mesmo que haja uma guerra justa e esta seja indispensável para obtenção da paz, a guerra é vista, infelizmente, como um instrumento essencial e insubstituível.
Será que haverá, algures, uma civilização extraterrestre desconhecida que nos poderá resgatar, fazendo uso do culto e uso pacífico da paz, a tomarmos como referência, já que, entre nós, nem a religião, com os seus castigos e dogmatismos, se liberta do uso do poder pelo poder e do não querer perder?
A resposta indicia-se negativa, se atentarmos na profusão de literatura fantástica e de ficção científica, pelas suas adaptações cinematográficas, em que há sempre vencedores e vencidos (como na vida real), os que nunca abdicam voluntariamente do poder porque não podem nem querem perder, em que outras civilizações entram em choque e guerra com a nossa, sempre pelo poder, querer vencer e ninguém querer perder, indiciando futuras guerras espaciais interestelares.
Por princípio, todos gostam de ganhar e ninguém gosta de perder, e alguém tem de ganhar e perder, pelo que a guerra e a paz existem, como parte necessária do ser humano. Mesmo que se tenha a guerra um absurdo, uma derrota e uma mentira, será realista (embora desejável) olhá-la como uma contingência não irredutivelmente eterna?
Hoje espreitei o barracão, sim, abri a porta e a um canto está a velha bicicleta
e de repente é como se, sim, como dizer
como se uma voz me dissesse,
observa a bicicleta e nota como ela ainda anuncia todo o uso que se lhe deu e ela naquela quietude, leve, tão leve
As coisas são mesmo assim, julgo, as pessoas partem e as coisas ficam que até parece impossível que está tudo no mesmo lugar
que tudo é de certo modo o que é e ao mesmo tempo diferente
mas não posso ficar aqui parada
há muitas bicicletas amarradas a um alçapão e há que as libertar uma vez que o tempo do mundo urge e seguro na minha bicicleta e já decidi que corto naquela rua do medo em direção às realidades que só se fixam ao chão, e é o que são na verdade, rasteiras
e continuo a pedalar cada vez com mais força e graças a isso subo estrada acima, subo, subo até ao topo, próximo tão próximo dos inícios que por esta altura as gentes já saíram para trabalhar, portanto provavelmente o melhor será carregar as horas de bicicletas como esta que pedalo
David Lodge (1935-2025) foi um mestre do romance satírico britânico e a sua obra encerra uma análise plena de ironia da sociedade em que vivemos, desmascarando a vaidade, a hipocrisia e a mesquinhez que a cada passo encontramos. Discípulo de Jonathan Swift ou de Henry Fielding, seguiu as pisadas de Evelyn Waugh, de Graham Greene ou até de Chesterton, fazendo chegar até nós o saudável espírito de um cristão inconformista, empenhado em distinguir o essencial e o acessório, pondo em primeiro lugar o sentido crítico e o respeito mútuo. Os seus maiores êxitos editoriais tornaram-se referências que ultrapassaram as contingências do tempo em que surgiram. Quando publicou O Museu Britânico vem Abaixo (1965) partiu da sua experiência como professor universitário, seguindo o percurso de um jovem estudioso de língua inglesa às voltas com uma dissertação com tema muito complicado sobre “A estrutura de frases longas em três romances ingleses modernos”. Contudo o investigador deixou-se distrair com as circunstâncias mais diversas e estranhas. No caso de Lodge como autor da tese sobre “O Romance católico desde o movimento de Oxford até aos nossos dias”, ele fez da carreira universitária o seu ganha-pão, aproveitando o facto para poder criticar, com humor e sentido crítico, a perversidade dos labirintos universitários e das suas endogamias. Em A Troca (1975), romance passado nas Universidades fantasiosas de Rummidge e Euphoric, em Inglaterra e nos Estados Unidos, dois professores de literatura inglesa trocam as suas posições durante seis meses, e deparamo-nos nesse cenário com o cabotinismo e a preguiça generalizados em busca de reconhecimento intelectual, entre congressos e conferências, à mistura com devaneios amorosos. Com um humor feroz, encontramo-nos perante o que Umberto Eco designou, cheio de ironia, como “picaresco académico”.
Em How Far Can We Go (Até Onde Podemos Ir) (1980) o romancista põe em diálogo, com inteligência, ironia e até ternura, vários católicos que se conheceram nos anos cinquenta do século passado e que se veem confrontados com uma evolução dramática da espiritualidade, com as mudanças não apenas ditadas pelo Concílio Vaticano II, mas também pela sociedade contemporânea no tocante à tomada de consciência do corpo, a uma maior permissividade sexual e ao surgimento da pílula, no contexto de um confronto entre o tradicionalismo e a modernidade. Graham Greene dirá tratar-se de uma obra magnífica. Segundo David Lodge: “Ler é submeter a curiosidade e o desejo a um continuo movimento de uma frase para outra. O texto desvenda-se diante de nós, mas não permite que o possuamos. Mais do que desejarmos possuí-lo, deveremos obter o prazer de usufruir das suas traquinices”. De facto, a descoberta do prazer e dos jogos de sedução, permitindo compreender o que muda no mundo e na vida em cada momento, constitui uma permanente preocupação do escritor, na relação com a literatura e os seus leitores, como analisará nos casos de Henry James e H. G. Wells. Com efeito, as notícias que recebemos do paraíso obrigam a limitar os entusiasmos. Não nos devemos enganar. Daí a importância de uma boa dose de ironia, para que percebamos que não há mundo perfeito, mas a necessidade de termos sentido de autocrítica, para caminharmos com sinceridade e sabedoria...
A crónica da semana passada terminava com a pergunta: Por que é que o acesso das mulheres ao ministério sacerdotal não teve sequer possibilidade de ser colocado no Documento Final do Sínodo sobre a sinodalidade, aprovado pelo Papa Francisco em Outubro de 2024? E prometia tentar na crónica de hoje explicar como esta é questão decisiva na Igreja.
A discriminação das mulheres pela Igreja oficial constitui um escândalo e um pecado. De facto, é contra os direitos humanos e a vontade de Jesus. Tentarei desfazer equívocos para ir ao essencial.
1. O próprio Papa Francisco tem impedido colocar a questão, argumentando que “o sacerdócio é reservado aos varões, como sinal de Cristo Esposo que se entrega na Eucaristia”.
Como responder? Sim, Jesus é a visibilização de Deus, mistério indizível, em humanidade. O Evangelho segundo São João escreve que o Verbo (o Logos, Palavra) se fez carne (em grego, sarx), humanidade frágil. Sim, Jesus é homem, mas, como faz notar Marta Zubía, o que o Evangelho quer dizer é que o Verbo se humanizou, não que se varonizou, que “se fez homem (anthropos, homo) e não que se fez varão (aner, vir). Deus não se humanizou na sexualidade de Jesus, mas na sua pessoa, na sua humanidade. Esta redução, agravada pelo uso exclusivo de linguagem e imagens masculinas, leva a considerar a masculinidade, pelo menos na prática, como uma característica essencial do próprio Deus.”
2. Neste sentido, há quem argumente também que na Última Ceia só havia homens, os Apóstolos - afirmação muito discutível - e que só a eles foi entregue o governo da Igreja. O teólogo Herbert Haag, talvez o maior exegeta do século XX, respondeu que então, uma vez que todos eram judeus, só se poderia ordenar judeus!...
3. Jesus trouxe por palavras e obras a melhor notícia que a Humanidade teve: Deus é bom, Pai/Mãe e todos os homens e mulheres são seus filhos e, portanto, irmãos. Isso era intolerável para os interesses do Templo e do Império, que se coligaram para o assassinar. Portanto, Jesus não foi vítima de Deus, mas dos homens. Que Deus seria esse que teria precisado da morte do Filho para aplacar a sua ira? Note-se que Joseph Ratzinger, quando era só professor, escreveu que recusava acreditar que Deus se tornou “misericordioso” só depois de ver satisfeita a sua “vingança”. Opondo-se à teologia da “satisfação” que situava a cruz “no interior de um mecanismo de direito lesado e restabelecido”, rejeitou a noção de um Deus “cuja justiça inexorável teria exigido um sacrifício humano, o sacrifício do seu próprio Filho. Esta imagem, apesar de tão espalhada, não deixa de ser falsa”.
4. Foi também Herbert Haag que mostrou que as primeiras comunidades cristãs celebravam a Eucaristia, um banquete festivo, recordando a memória de Jesus, o que Ele disse e fez, a sua morte e ressurreição, e aprofundando o seu compromisso na realização do Reino de Deus... Quem presidia era um cristão ou uma cristã com uma casa melhor para se juntarem. Foi com a interpretação da Eucaristia como sacrifício que surgiram os sacerdotes, com uma ordenação sacra, o que levou, contra a vontade de Jesus que disse: “sois todos irmãos”, à divisão em duas classes: clero e leigos...
5. Como mostro no meu mais recente livro - O Mundo e a Igreja. Que Futuro? -, a Igreja sempre teve carismas, funções, ministérios..., mas nem Jesus, nem os Apóstolos ordenaram sacerdotes. Ela precisa de uma profundíssima reforma, e a não-discriminação das mulheres é essencial.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 24 de janeiro de 2025
As Raízes Culturais de Portugal e da Europa serão tema do próximo curso do CNC. Os Roteiros Culturais estarão na ordem do dia e nada melhor do que começarmos por Ulisses e a sua viagem mítica de Troia até Ítaca…
(Ilustração de Jaime Martins Barata)
QUE ITINERÁRIOS CULTURAIS? Quando Claudio Magris escreveu “Danúbio” deu-nos o paradigma dos Itinerários Culturais que constituem base para a compreensão das raízes e da diversidade do património cultural material e imaterial – monumentos, geografia, tradições, costumes e criação contemporânea. Num tempo de mal-estar e de grande incerteza, torna-se necessário regressar ao conhecimento da História, única forma de prevenir a repetição de erros antigos, tantas vezes devidos à pura ignorância e à tentação de reconstruir o mundo à luz de uma visão unilateral e fechada, tributária de uma conceção avessa ao diálogo entre culturas e à ideia de civilização. O mundo contemporâneo defronta-se com as noções de globalização e de complexidade, das quais importa tirar conclusões orientadas pela demarcação quer do absolutismo quer do relativismo nos valores éticos. Apenas o conceito de pluralismo, aliado ao respeito mútuo, à partilha de responsabilidades e a um verdadeiro intercâmbio de entendimentos diferentes quanto às raízes culturais, permitirá superarmos aquilo que Hermann Broch designou como “sonambulismo” e vazio de valores. Longe da tentação da procura de um lugar onde ninguém se possa encontrar, sob a ilusão de que assim se respeitariam as diferenças, importa garantir um consenso de sobreposição democrático que permita a todos sentirem-se em casa, enriquecendo-se mutuamente. Daí a importância da ideia de roteiro cultural, no qual se possa assegurar o encontro das diferenças e a complementaridade entre raízes múltiplas.
PORQUÊ ULISSES? Lembremo-nos do paradigma de Ulisses e da sua viagem de Troia para Ítaca. Aí temos, num registo imaginário, o encontro das diferenças, e uma aprendizagem do inesperado pela experiência. E recorde-se que o projeto de Claudio Magris de seguir o caminho do Danúbio das nascentes até à foz, começou com um desafio centrado no projeto “Arquitetura da Viagem. Os Hotéis: História e Utopia”. Sim, História e Utopia encontram-se na ideia de viagem, uma vez que os acontecimentos históricos ocorrem sem repetição e dependem das circunstâncias concretas e do modo como os viajantes respondem aos diferentes desafios, enquanto a utopia leva à consideração de um horizonte de vários possíveis, que a cada passo nos confronta. Os dois polos coexistem e confrontam-se e a ideia de que o acontecimento é nosso mestre interior resulta dessa ligação. Que era o “Grand Tour”, praticado por várias gerações das elites europeias, príncipes e mercadores, intelectuais e aventureiros, senão a imersão total nesse confronto da aprendizagem entre a realidade e o sonho? Ruskin encontrou esse paradoxo entre realidade e imaginação na cidade de Veneza, já que a República Sereníssima simboliza essa misteriosa relação entre a cidade e a sua sombra – “um fantasma na areia do mar, tão frágil, tão silenciosa, tão despojada de tudo exceto da sua beleza, que por vezes, ao contemplarmos o seu lânguido reflexo na laguna, nos perguntamos quase como se fosse uma miragem, qual a cidade, qual a sua sombra”.
Nos percursos culturais, importa revelar as referências históricas, mitos, lugares e acontecimentos, origens e raízes. Trata-se de peregrinar ao encontro da memória, ilustrando a aventura com o que é digno de interesse e atenção. Montaigne, Stendhal, Goethe, Chateaubriand, Thoreau, Júlio Verne, George Sand, Magris, Canetti, André Gide, Bruce Chatwin ensinaram-nos a construir uma síntese entre história, geografia, literatura, filosofia, política, economia e artes. As Viagens Extraordinárias de Verne envolvem, por isso, a realidade e o fantástico, os mundos conhecidos e desconhecidos. Em A Volta ao Mundo em Oitenta Dias faz-se a divulgação do novo sistema horário universal e da linha internacional de mudança de data, que salvará a aposta de Phileas Fogg. Em Da Terra à Lua antecipa-se o que apenas em 1969 se concretizará. E com Miguel Strogoff, o correio do czar revela-nos todo o mistério do maior império de sempre.
A VIAGEM MODELAR Comecemos por Ulisses, o grande viajante mítico, perdido entre a saudade de Ítaca e o perigo das viagens. Trata-se da história do “herói de mil estratagemas que tanto vagueou, depois de ter destruído a cidadela sagrada de Troia, que viu cidades e conheceu costumes de muitos homens e que no mar padeceu mil tormentos, quando lutava pela vida e pelo regresso dos seus companheiros”. Ulisses levará dez anos a chegar à sua terra natal, depois da guerra de Troia, que durara outra década. Encontramo-lo cativo da bela ninfa Calipso, que o libertará, ao fim de sete anos, pela intervenção de Atena. Depois de novo naufrágio, o herói alcança a praia de Esquéria, lar dos Feaces, hábeis construtores de navios, sendo recebido por Nausícaa, que lhe dá hospitalidade e o ajuda, em contrapartida do relato das suas aventuras desde a partida de Troia. Aí recorda a aventurosa estada na Ciclopia, onde se vira confrontado pelos Ciclopes e pelo ameaçador Polifemo, contra quem teve de usar a proverbial astúcia, cegando o único olho que o monstro tinha, o que causaria a ira de Poseidon. A viagem envolveu ainda o encontro com Éolo e Circe, as previsões de Tirésias, e a ida à última fronteira dos Oceanos, ao limiar dos infernos e ao reino dos mortos. Nas tempestades entre Cila e Caríbdis perde alguns dos seus companheiros e, ao passar pela ilha das sereias protege-se, evitando deixar-se seduzir pelos cantos encantatórios, conseguindo regressar à luz e à alegria, não sem que sofresse ainda as vicissitudes na ilha do Sol, antes de regressar a Ítaca, para junto de Penélope e seu filho Telémaco, vencendo os pretendentes oportunistas que procuravam suceder-lhe no poder e influência. Temos aqui o exemplo supremo de uma viagem iniciática, que influenciou obras tão diferentes como a Eneida de Virgílio, Os Lusíadas de Camões ou Ulisses de James Joyce.
Referindo os itinerários que se tornaram modelos, importa seguir o Livro de Marco Polo, que relata a experiência do veneziano na Rota da Seda, que passa por Samarcanda e chega a Pequim e vai até ao contorno da Ásia, da Índia e do Golfo Pérsico, até aos lugares do domínio futuro do Império de Alexandre o Grande no Levante Mediterrânico. E eis como chegamos ao itinerário do nosso Infante D. Pedro das Sete Partidas, Duque de Coimbra e de Treviso, no Veneto, o mesmo que trouxe para a corte portuguesa o Livro das Maravilhas de Marco Polo. E assim o conhecimento do Império Romano-Germânico leva-nos à redescoberta do Mediterrâneo, lembrando a viagem Ibn Batuta, o extraordinário visitante que foi até ao fim do mundo. E interrogamo-nos sobre o encontro dos portugueses com Génova, Veneza e Roma, na génese do Plano da Índia do Príncipe Perfeito e na demanda do Preste João, encontrando-nos com Pero da Covilhã e Afonso de Paiva no Cairo até ao mar Arábico, culminando na Etiópia. E como não evocar os grandes cientistas portugueses e o seu decisivo contributo para a humanidade – Pedro Nunes, Garcia de Horta e D. João de Castro, com a demonstração de como o saber de experiências feito nos deu o conhecimento do mundo?
Por onde quer que tenha começado, pelo corpo ou pelo sentido, ficou tudo por fazer, o feito e o não feito, como num sono agitado interrompido.
O teu nome tinha alturas inacessíveis e lugares mal iluminados onde se escondiam animais tímidos que só à noite se mostravam, e talvez devesse ter começado por aí.
Agora é tarde, do que podia ter sido restam ruínas; sobre elas construirei a minha Igreja como quem, ao fim do dia, volta a uma casa.
in Como se desenha uma casa, 2011
Ruins
Regardless of where I started, with the form or the meaning, all was left undone, the done and the not done, as in agitated, interrupted sleep.
Your name held unattainable heights and dimly lit places where timid animals hid not showing up till dark and perhaps I should have started there.
Now it’s too late, nothing but ruins of what might have been; I’ll build over them my Church like one returning to a house at the close of day.
Raul Solnado no Centro Nacional de Cultura em 2002
ATORES, ENCENADORES (XX) BREVE EVOCAÇÃO DE RAUL SOLNADO NO TEATRO, NO CINEMA, NA ÓPERA por Duarte Ivo Cruz
Evocamos aqui Raul Solnado na perspetiva e na circunstância do cinquentenário do Teatro Villaret, por ele fundado em 1964 e onde estreou em 1965, há exatos 50 anos, com “O Impostor Geral”, adaptação do clássico “Inspetor Geral” de Gogol, “transformado” num espetáculo musical de excelente qualidade. O registo cómico que dominou grande parte da carreira de Solnado não excluiu obviamente a dramaticidade direta ou implícita de uma longa atividade de ator - encenador, e ainda menos, a expressão direta da excecional comunicabilidade com o público em papéis cómicos como em papéis trágicos, no teatro de revista como no teatro declamado, na rádio, no cinema e na televisão.
E vem a propósito evocar também o programa ZIP ZIP, realizado semanalmente no Teatro Villaret a partir de 1969 para a RTP, numa produção conjunta com Fialho Gouveia e Carlos Cruz. Foi de facto um grande momento do espetáculo em Portugal, na simbiose de produção artística direta e de jornalismo televisivo.
E já referi o desdobramento que o Teatro Villaret efetuou, precisamente em 1965, com a companhia do Teatro do Nosso Tempo, dirigida por Jacinto Ramos, com Maria Barroso na protagonista da “Antígona” de Jean Annouil.
Ora bem: no conjunto de uma carreira de dezenas de anos, repartida em Portugal e no Brasil, pela revista, pelo teatro musicado e declamado – e não só comédia, longe disso – e pela televisão, só poderemos aqui descrever alguns momentos de especificidade, todos eles marcados pela excecional qualidade das interpretações de Solnado, fosse ou não protagonista – e acabava sempre por o ser, independentemente da estrutura das peças e dos personagens desempenhados…
E começo por referir os monólogos, originais ou adaptados, que interpretou numa expressão cénica de contacto direto com o público. Cito designadamente “A História da Ida à Guerra de 1908” de Miguel Gila, devidamente adaptado, na revista “Bate o Pé”, em cena no Teatro Maria Vitória (1961/62). E outros se seguiram.
Há que citar intervenções destacadas num repertório heterogéneo que aliás veio das primeiras colaborações cénicas, designadamente mas não só na Sociedade Guilherme Cossoul - Gil Vicente, “O Fidalgo Aprendiz” de D. Francisco Manoel de Melo (no TMDMII), “O Avarento” de Molière, Tchekcov, Eduardo Schewalbach, o “Baton” de Alfredo Cortez, a “Maria Emília” de Alves Redol, o “Schewik na Segunda Guerra Mundial” de Brecht, muitos autores contemporâneos traduzidos e também a revelação de peças portuguesas contemporâneas como “As Fúrias” de Agustina Bessa-Luis ou “O Magnifico Reitor” de Diogo Freitas do Amaral (no Teatro da Trindade). Isto é, uma clara transposição da vivência e problemática da sociedade e da política portuguesa e internacional.
Raul Solnado participou, a partir de 1956/1957 (“Ar Água e Luz” de Ricardo Malheiro, “O Noivo das Caldas” de Artur Duarte, “Perdeu-se um Marido” de Henrique de Campos e “Sangue Toureiro” de Augusto Fraga), em mais de uma dúzia de filmes em Portugal e no Brasil, com destaque para “As Pupilas de Senhor Reitor” (1961) de Perdigão Queiroga, “Dom Roberto” (1962) de José Ernesto de Sousa, este premiado no Festival de Cannes, aquele premiado em Portugal, e ainda, entre outros mais, em “A Balada da Praia dos Cães” de José Fonseca e Costa a partir do romance de José Cardoso Pires.
E finalmente: teve uma intervenção em 1992 na ópera de Johann Strauss “O Morcego”, no Teatro Nacional de São Carlos.
Esta versatilidade em muito ultrapassa o registo, aliás notável em si mesmo, de ator cómico. Raul Solnado era de facto um artista global.
DUARTE IVO CRUZ
Obs: Reposição de texto publicado em 22.04.15 neste blogue.
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197. DIREITOS HUMANOS E CHOQUE DE CIVILIZAÇÕES
Quando, em 1947, estava em preparação o texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, foi emitido um parecer, pela American Antropological Association, que foi submetido à consideração da Comissão para os direitos humanos das Nações Unidas, onde se sublinhou ser necessário respeitar culturas diferentes como condição imprescindível para uma efetiva e justificada universalidade dos direitos declarados.
Contudo, à data, questionar a sua universalidade era um falso problema, sendo tidos como absolutos e de alcance universal, dada a sua evidência.
Embora aceitáveis quanto ao fundamento de serem direitos inerentes a todos os seres humanos por força da sua condição humana, começou desde logo, em plena guerra fria, por haver uma oposição preferencial entre dois tipos definíveis dentro da categoria de direitos humanos: os civis e políticos, privilegiados pelo Ocidente democrático e liberal, e os direitos económicos e sociais, acarinhados pelo bloco de leste ou soviético.
A que se soma a divergência entre o Ocidente e o Islão no que toca ao seu reconhecimento e tutela, a oposição que mais sensibiliza a opinião pública ocidental, pela maior insignificância que é dada à vida e integridade física das pessoas no mundo islâmico, pela ausência de liberdade religiosa para estrangeiros, pelo estatuto de menoridade conferido legalmente às mulheres, proibição da homossexualidade, do casamento ou união entre pessoas do mesmo sexo, entre outras limitações.
E se há ditaduras, países autoritários e iliberais que consagram constitucional e formalmente os direitos humanos, na sua plena ou quase plenitude, sem correspondência na prática, outros há em que isso não sucede, nem na forma nem em termos substantivos, desrespeitando valores para nós tidos como fundamentais.
Esses valores que o Ocidente tenta comunicar ao resto do planeta é aquilo que esse mundo designa por “proselitismo”, “um produto ocidental” e “imperialismo dos direitos humanos”, o que nos conduz, nesta sequência, a uma perspetiva mais relativista que universalista.
A questão, no essencial, é saber até que ponto a sua declarada origem ocidental, proveniente de países tidos, pelos seus opositores, como imperialistas, colonialistas, neocolonialistas, inviabiliza a sua universalização, dado ser evidente que tais direitos são hoje parte imprescindível do diálogo internacional, onde os universais possíveis têm de ser encontrados num diálogo inter-civilizacional, pautado por referentes comuns devidamente sancionados, legitimado por um consenso em redor de um núcleo de valores de dimensão transcivilizacional.
Mas não nos esqueçamos que se o progresso científico e tecnológico não uniformizou o mundo, por maioria de razão o não uniformizou a imperfeição humana.
Na divisão principal da casa o fogão a lenha esteve atento toda a noite. Bem o sabes
Está uma bela manhã e sou testemunha de todo um mundo distinto quando é manhã por ti
porque sei que nestas manhãs os sonhos são transumantes nas mais puras espécies
com o que de imenso abre as portas aos homens e velo
Sim, é isso mesmo, velo pelo atracar do barco e pela decisão do cais e do remo e do ir
Não foi assim que fizemos muitos de nós quando o frio era demasiado frio mesmo dentro das casas dos mundos quentes? e o céu parecia pender sempre mais para baixo, sempre mais pesado, sim, já me pusera a pensar por que razão a primeira coisa que se fazia de manhã era vomitar algum muco e depois sentíamo-nos melhor
Depois o dia podia começar e com ele o teu despertar de todos
ó Sol! que logo começava a haver diferenças em relação às manhãs anteriores, e logo a nossa força preparava de novo um outro pão e íamos até ao mar alto, desatado de tão alto
Íamos sim, foi sempre assim que fizemos até que a luz do céu obedecesse a ti, Sol
e com o tempo que faz hoje, tempo demasiado adverso sim, seremos prova que as redes e outros utensílios de estranha pesca, armadilhas, amarrações,
não nos vencem em lado algum
mesmo que assustadores seixos nos atinjam pelas costas
Na varanda de casa de seus pais no Rossio, aquando do desfile de celebração da descoberta do caminho marítimo para a Índia (maio de 1898), José Maria Eça de Queiroz foi surpreendido por uma sentida ovação dos populares presentes na circunstância. Lembrei-me desse episódio quando assisti à cerimónia de concessão de honras de Panteão Nacional em memória do grande romancista da língua portuguesa, cuja importância ultrapassa em muito a nossa dimensão geográfica. Na manifestação espontânea de outrora, que muito sensibilizou o escritor, está simbolizada a justiça da homenagem de agora. Estavam então e agora representados cidadãos comuns, leitores, admiradores e amantes da língua comum, e nesse sentido o Panteão constitui um lugar de culto cívico que sai mais prestigiado pela chegada de um dos nossos imortais.
Citou o Presidente da República um trecho da carta datada de Paris em 28 de janeiro de 1890, dirigida a Oliveira Martins, que constitui um testemunho simbólico, onde sentimos ainda como Eça de Queiroz não seria indiferente a este reconhecimento. Daí a ligação das duas ocasiões – a do aplauso popular e a da confissão do mestre. A propósito de umas eventuais intrigas sobre o consulado de Paris, com epicentro no famigerado visconde de Faria, Eça pedia ao seu amigo que cuidasse de garantir a continuidade no consulado da cidade-luz, porém acrescentava: “Isto não quer dizer que eu não tenha desejo de recolher à minha Pátria; mas isso é difícil, por questões orçamentais, e a ficar na carreira, então desejo ficar em Paris. Se Vocês, todavia, homens poderosos, pudessem arranjar aí um nicho ao vosso amigo há tantos anos exilado, teríeis feito obra amiga e santa! Era necessário, porém, descobrir o nicho! E depois, arranjar do nosso bom amigo, o Rei, que eu fosse plantado no nicho! E dizer que, se eu, tivesse nascido dos Pirenéus para cá, e dado romances ao Petit Journal possuiria talvez 60.000 francos de renda”… Havia, no fundo, uma ligação íntima ao torrão natal e à nossa gente. E falando nas Notas Contemporâneas a propósito da demanda artificial de grandes homens que havia em França, Eça reconhecia que em qualquer escolha “a demonstração fica sujeita a dúvidas, a contestações, a protestos. Fica sobretudo incompreendida pela multidão”. Contudo, na distinção dos melhores, havia a exceção de Vítor Hugo, “pelo menos, é um grande homem – que não necessita demonstração”. E é disso que se trata no caso do nosso grande romancista.
Ele, melhor que ninguém, usou da ironia para distinguir o trigo do joio, e isso não se esquece quando se fala dos melhores, sabendo-se que a sociedade envolve todos, incluindo as respetivas caricaturas, os Acácios, os Pachecos e os Abranhos, dos quais não se conhecia obra, mas apenas inefável talento. O contexto da carta era o do Ultimato inglês, na sequência do Mapa Cor-de-Rosa, momento dramático da vida nacional, e a Eça parecia-lhe que o País acordava estremunhado e olhava em redor procurando um caminho. E Eça de Queiroz foi uma personalidade atenta, que, com espírito positivo, desejava que Portugal singrasse. A atualidade queiroziana está assim na sua obra, que importa ler e reler, e no retrato crítico e rigoroso da sociedade com os seus defeitos e qualidades que importa apurar, para sermos melhores.