Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Quando o ano estava a terminar a Maria José partiu. Para todos era a Adília Lopes, referência fundamental da poesia contemporânea. O tempo foi-nos aproximando e não esqueço o que Ilda David me disse há dias sobre não ter havido tempo para uma dedicatória no último volume da “Dobra” (Assírio e Alvim, 2024), que eu receberia, como sempre, com muita alegria. Mas por certo ela já a fez, entretanto… Era uma grande amiga, com uma presença inconfundível de afeto e atenção. Minha prima, encontrámo-nos naturalmente no culto da memória dos nossos ancestrais, a Rua José Estêvão era a referência. E regresso sempre à sua literatura com um misto de júbilo e de saudade.
O Cardeal José Tolentino Mendonça, na sentida homilia que proferiu na Capela do Rato quando fomos despedir-nos dela, recordou três coisas, que disse guardar no seu coração – a capacidade de contemplar, com uma extraordinária inteligência do coração; a procura de transformar a solidão em comunhão com os outros, em sentido comunitário; e a fé, que a levava a dizer “há milagres, não há truques”. A sua obra multifacetada é de uma extraordinária originalidade e irrepetível. Aí se notam os ecos de Sophia de Mello Breyner, de Ruy Belo, e de Nuno Bragança. Escolheu como divisa o pouco de S. Francisco de Assis, como explicou a propósito em “A Mulher-a-dias”, que do pouco quis o pouco, num elogio da frugalidade e da sobriedade com que o “poverello” sempre viveu. Como recordou o Presidente da República na Mensagem de fim de ano, ela foi um modelo de cuidado e de atenção, porque “nunca, nunca perdeu nada, nem deitou nada fora ao longo da sua vida” – e assim foi exemplo para que guardemos seguramente a nossa memória coletiva de séculos.
Iconoclasta, desconcertante, inesperada, doce e amarga, o seu lugar é insubstituível. A sua escrita inconfundível ficará na lembrança futura. A verdade é que, ao longo da sua obra poética sentimos uma permanente exigência, da busca da palavra certa, em que a imaginação e a lucidez se ligam intimamente num objetivo determinado em que o non sense surge de um modo ponderado como ilustração e compreensão da realidade. Ver o mundo às avessas era assim procurar melhor vê-lo, como num casaco de malha, quando parecia faltar-lhe uma casa para o botão, sendo o motivo estar mal abotoado… E lembramos do gosto que partilhava com José Blanc de Portugal, seu padrinho, ao ler os “Disparates do Mundo” de Chesterton, que este maravilhosamente traduziu. Por isso, Adília tinha preocupação de ver o mundo sob o ponto de vista atípico e aparentemente cómico ou até chocante, para que se compreendesse melhor a singularidade do que deve ser dito. E lembramo-nos de Paula Rego, ilustradora da Obra de Adília. “Os seus textos fizeram-me logo lembrar a minha juventude, com as criadas, as bonecas, as mães ultra-protetoras. Ela é de um grande romantismo e ao mesmo tempo de um grotesco e de um cómico transbordantes”. Não é assim demais pôr lado a lado Paula Rego e Adília Lopes. E o que é ser sempre criança como ela foi? É fazer da memória uma atenção permanente. “Memória-puzzle”. É não esquecer. É pôr os brinquedos na mesa redonda para falarem. E é compreender a magia do escorrega – uma bela comparação para pensar e escrever. Sempre um fundo de ironia, para compreender o essencial: “Os computadores são estúpidos. Só fazem aquilo para que foram programados. As árvores os gatos as casas velhas são inteligentes”.
Os Evangelhos escrevem sobre a realidade histórica, mas foram escritos por quem, à luz do fim, já acreditava que Jesus é o Messias, “o Filho do Deus vivo”. Assim, na sequência da crónica da semana passada e da explicação apresentada, continuo a responder a perguntas que muitos me fazem sobre o Natal.
São José é o pai de Jesus? A teologia não é um tratado de biologia e anatomia. São Paulo escreverá de modo simples: Jesus, “nascido de mulher”, para dizer que é da nossa raça, que é o que se lê também nos evangelistas. Mas Ele é especial, único. Para mostrar que João Baptista é especial, os Evangelhos dirão que foi concebido quando a mãe, Isabel, já não podia ter filhos. Quanto a Jesus, acreditando que Ele é o Filho de Deus, a revelação definitiva de Deus como Pai/Mãe, escreverão que foi concebido pelo Espírito Santo.
A mãe era Maria, o pai era José. Tinha irmãos e irmãs. Há algum mal em ter uma família numerosa?
Como foi a sua infância? Normal e despercebida, de tal modo que, quando aparece em Nazaré, a anunciar o Reino de Deus, os seus conterrâneos enchem-se de assombro: quem é este?, a família dele não vive entre nós? Lê-se no Evangelho segundo São Mateus: “Donde lhe vem esta sabedoria? Não é ele o filho do carpinteiro? Não se chama sua mãe Maria e seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas? E as suas irmãs não estão todas aqui entre nós? E estavam escandalizados por causa dele.”
Certamente, frequentando a sinagoga, Jesus aprendeu a rezar, a escrever e a ler as Escrituras (Antigo Testamento), aprendeu o ofício de tekton, artesão, trabalhando com a madeira, a pedra, o ferro: um ofício duro.
Os pastores foram os primeiros avisados do seu nascimento, porque Deus manifestou a sua salvação a todos, a começar pelos que constituíam a classe baixa dos pequenos e pobres...
E os magos vieram do Oriente? E quantos eram? E viram uma estrela sobre a manjedoura? Será inútil procurar nessa data algum sinal especial no céu, pois os Evangelhos também não são nenhum tratado de astronomia. Eles vêm do Oriente, porque “ex Oriente lux” e Jesus é a verdadeira Luz.
O episódio dos reis magos vindos do Oriente, guiados por uma estrela, é dos mais conhecidos e fascinantes para o imaginário colectivo, mas, quando se analisa criticamente todos os dados, realmente não crível historicamente. O que se passa é que o evangelista compara Jesus com o rei Salomão. Salomão, tão estimado pelos judeus pela sua sabedoria, foi visitado por uma rainha anónima vinda de longe, de Sabá, atraída pela sua fama. Jesus é mais do que Salomão. Ele é a Sabedoria verdadeira, que a todos ilumina. “Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida.” E veio para todos, também para os pagãos.
Também não é crível a matança dos inocentes. Como seria possível Flávio Josefo não ter referido essa matança? Herodes não precisava de preocupar-se com a notícia, porque Jesus é rei, mas o seu reino é de serviço e não de domínio.
E Jesus é levado para o Egipto — realmente nunca terá lá estado —, donde voltará. Isto para dizer que Jesus é o novo verdadeiro Moisés, o Libertador de todo o mal e opressão, incluindo a morte. Porque Deus não suporta a opressão, a escravidão. Jesus é que é o verdadeiro novo Moisés, o Libertador definitivo de toda a escravidão, incluindo a libertação da morte. Jesus ressuscitou, não morreu para o nada, mas para a plenitude da vida em Deus; com a fé nele veio para todos a esperança da vida plena e definitiva em Deus.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 10 de janeiro de 2025
Ao atribuir a Helder Macedo o Prémio Vasco Graça Moura de Cidadania Cultural, o júri afirmou que o poeta, romancista, ensaísta, crítico, e professor, apresenta um percurso exemplar no campo da cidadania.
O PRIMADO DA LIBERDADE “Vivendo em Moçambique, desde a sua juventude afirmou-se como uma consciência livre, considerando a liberdade como abrangendo a criação literária e artística, mas também o reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação e independência. Exilado em Londres a partir de 1960 foi colaborador da BBC e lecionou no King’s College onde ensinou Língua e Cultura Portuguesas, afirmando-se como prestigiado investigador. Após a Revolução de 25 de Abril exerceu em Portugal importantes funções na área cultural, tendo prosseguido, a par da criação literária e ensaística, uma ação persistente na cultura e educação em prol da língua portuguesa no mundo». A cidadania cultural constitui um modo de afirmação da liberdade e da justiça social como consequência natural da dignidade humana. A defesa dos direitos fundamentais e do Estado de Direito constitui, assim, uma experiência orientada para o respeito mútuo e para um saber de experiências feito centrado não em abstrações, mas na consideração de valores éticos enraizados na vida e numa prática dialógica em que eu e o outro se completam naturalmente.
UM PERCURSO DE RARA COERÊNCIA Quando seguimos o percurso de Helder Macedo, verificamos que o intelectual faz da sua ação algo de coerente e complementar, como acontece quando lemos o romance Partes de África (1991), onde a fronteira entre os acontecimentos e a invenção é propositadamente ténue para que melhor se compreenda a importância da memória como verdadeiro artífice da História. À infância em Moçambique, segue-se a adolescência passada em Lisboa, tendo frequentado a Faculdade de Direito em finais de cinquenta. O primeiro livro de poesia Vesperal é de 1957 e foi saudado por Jorge de Sena como dos mais perfeitos “que por esse tempo se publicaram”, como domínio da expressão e do ritmo. Participa então no Grupo do Café Gelo, ainda que numa atitude de original independência, sempre crítica da situação e do conformismo político. Foi coorganizador com António Salvado das Folhas de Poesia (1956-58). Crítico do regime, exila-se em Londres, com Suzette Morgado de Aguiar, onde entre 1960 e 1971 colabora com a BBC. Aí encontra Luís de Sousa Rebelo, que desempenhou em Londres um papel fundamental na afirmação da cultura portuguesa, numa perspetiva aberta e livre. Em termos académicos Helder Macedo prefere obter as necessárias qualificações académicas, estudando Bernardim Ribeiro e Cesário Verde, e prosseguindo uma carreira docente ativamente portuguesa no King’s College. A primeira tese de doutoramento que orientou será sobre Herberto Helder.
Organiza Antologias de poesia portuguesa em língua inglesa (em 1973 e 1978, esta com E. M. de Melo e Castro). Funda a revista Portuguese Studies, que será premiada nos Estados Unidos (1987) e dirige o departamento do King’s College que inclui os estudos brasileiros e se expande para abranger estudos africanos e História – com muitos alunos que exerceriam cargos docentes relevantes em escolas e universidades inglesas, americanas e portuguesas. Após a revolução portuguesa de 1974 regressou a Portugal, quando, na sua expressão, deixou de ter de haver para os portugueses o “lá fora”. Foi assim diretor-geral dos Espetáculos (1975), Secretário de Estado da Cultura (1979). Em 1976, organizara a importante antologia Camões – Some Poems (com Jonathan Griffin e Jorge de Sena). E entre 1981-82 foi professor visitante na Universidade de Harvard, tendo ainda lecionado em França, e no Brasil, nas Universidades de Campinas, S. Paulo e Federal do Rio de Janeiro. Regressado a Inglaterra foi titular da cátedra Camões no King’s College (1982-2004), função que acumulou com a de diretor do Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros, até 1991, sendo hoje EmmeritusProfessor. Dirigiu ainda a revista da Associação Internacional de Lusitanistas. Em 1998 publicou Pedro e Paula, romance que é saudado positivamente pela crítica e em 2005 obtém o Prémio do Pen Club português pelo romance Sem Nome, dando à estampa ainda Tão Longo Amor Tão Curta a Vida (2013).
EM PROL DA LÍNGUA PORTUGUESA Além de vasta produção poética, o grande ensaísta produziu textos fundamentais sobre o “Cancioneiro de Amigo”, a “Menina e Moça”, obtendo neste caso o prémio da Academia das Ciências (1977), e ainda sobre Camões e Cesário Verde, sendo autor com o seu amigo de infância Fernando Gil do notabilíssimo Viagens do Olhar: Retrospeção, Visão e Profecia no Renascimento Português, em 1998, que obteria os Prémios da Associação Portuguesa de Críticos Literários e do Pen Club português. Pode dizer-se que esta obra é indispensável (ainda para mais neste ano de Camões) para podermos ter uma visão de conjunto da cultura da língua portuguesa, na sua dimensão universalista. E assim se abrange: o efeito-Lusíadas, a sobrerrealidade do olhar em Camões, a poética da verdade na obra maior da nossa cultura, a História como profecia em Fernão Lopes e nos Príncipes da Ínclita Geração, as Crónicas portuguesas do século XVI, os enganos do olhar, Sá de Miranda e as ambiguidades do conhecimento, os modos do amor ausente nos mistérios do romance de Bernardim e nas suas obscuras transparências – por entre convergências e dissidências -, o apetite e a razão em Camões, envolvendo a distinção entre nacionalismo e pastoralismo, e culminando com dois estudos magníficos sobre o Padre António Vieira – desde o silogismo da Profecia á interrogação sobre dedução ou abdução no futuro tornado presente, culminando na consideração da profecia bíblica na Apologia das Coisas Profetizadas. O diálogo entre o filósofo Fernando Gil e o mestre da História Literária Helder Macedo – com uma bela incursão de Luís de Sousa Rebelo pelos cronistas - produz uma obra fascinante e inesgotável, tendo como centro irradiante Camões, em ligação com o extraordinário Imperador da Língua Portuguesa…
De facto, “o Renascimento português levanta problemas particulares, como sejam a viagem, o novo, o encontro com a diferença e como a pensar. As crónicas de viagem e de império constituem a sua expressão mais direta e aparente, e a sua importância fica devidamente assinalada no estudo que lhe consagra Luís de Sousa Rebelo. (…) Ver claramente visto põe simultaneamente o problema de ver o que ‘lá está’ e de como o que lá estivesse poderia ser visto. Este interrogar do exterior ia a par com modos novos de lidar consigo e com os outros”. Estamos, assim, no coração de um pensamento que se transforma. “As metamorfoses do eu através do amor” constituem, com efeito, temas que conduzem estas “viagens do olhar”. Ligando as considerações de Bernardim, Sá de Miranda, Fernão Lopes e Camões, descobrimos que a originalidade da posição do contributo português, culmina no Quinto Império, que é mais do que um sonho próprio uma ideia de refundação da humanidade. “Com efeito, os textos de Vieira mostram claramente que, menos do que Portugal, é antes o futuro do homem que se trata. (…) A evidência é ao mesmo tempo fundadora e insustentável: no amor como na profecia, na fundamentação da nação como nos fundamentos do eu” – como afirmam magistralmente os autores. E assim encontramos uma forte via racional no nosso Renascimento, que matiza o sentimento… E eis como temos aqui uma marca de cidadania em que a cultura compreende a complexidade da vida, para além do sonho.
O nosso amor é belo como as viagens de Inverno que nunca fizemos juntos, como os países quentes que não visitámos. É belo como os comboios perdidos no último segundo, ou as pequenas cidades portuárias descobertas por acaso. Belo como mapas rasgados a que faltam as linhas das estradas secundárias, como montanhas cobertas de nevoeiro em dias de calor, barcos numa baía deserta, livros cheios de areia, bicicletas sem travões nem destino. Belo como o sol que vai morrer depois de nós daqui a cinco mil milhões de anos e belo como o sopro selado do coração das coisas. É assim o nosso amor. Tão belo, tão claro, tão puro que, de olhos postos na noite, chegamos a acreditar que existe.
in Criatura nº 4, 2009
Boats, books, bicycles
Our love is beautiful like the winter journeys we never did together, like the hot countries we’ve never been to. It’s beautiful like a train missed at the last moment, or a small harbour town accidentally found. Beautiful like torn maps with the minor roads unmarked, like mountains shrouded in mist on a hot day, boats in a deserted bay, books peppered with sand, bicycles with no brakes or destination. Beautiful like the sun that will die after us five thousand million years from now, and beautiful like the sealed breath in the heart of things. Such is our love. So beautiful, so clear, so pure that, eyes set on the night, we manage to believe it exists.
Pensamos, vezes sem conta, uma coisa e sentimos outra...ou, pelo menos, isso pretendemos e afirmamos. Quando o António Damásio demonstrou que o pensamento é também emoção, ocorreu-me que não seria disparate dizer pensossinto, sobretudo ao referir-me a coisas mais intimamente percebidas. Tanto quanto as percebemos, pois a mesma palavra "coisa" diz muito e coisíssima nenhuma... Assim andou o José às voltas com o apelido do autor do livro que Ricardo Reis se esquecera de devolver à biblioteca do Highland Brigade, o vapor da Mala Real que o trouxera do Rio a Lisboa: Herbert Quain, irlandês, chamara "The god of the labyrinth" ao livro para o qual "o tédio da viagem e a sugestão do título o tinham atraído, um labirinto com um deus, que deus seria, que labirinto era, que deus labiríntico, e afinal saíra-lhe um simples romance policial"... Mas fica-lhe a bulir como pergunta simples e difícil, no labirinto de si, essa de aquele autor desconhecido se chamar Quain: "o nome, esse sim, é singularíssimo, pois sem máximo erro de pronúncia se poderia ler, Quem, repare-se, Quain, Quem, escritor que só não é desconhecido porque alguém o achou no Highland Brigade, agora, se lá estava em único exemplar, nem isso, razão maior para perguntarmos nós, Quem.". Pensassente bem, José, Quem é labiríntico, essa intuição de nós que em nós nos perderá, a menos que outra interrogação nos transcenda. Como essa que Ricardo Reis encontra com inacabados versos seus: "Vivem em nós inúmeros, se penso ou sinto, ignoro quem é que pensa ou sente, sou somente o lugar onde se pensa e sente, e, não acabando aqui, é como se acabasse, uma vez que para além de pensar e sentir não há mais nada. Se somente isto sou, pensa Ricardo Reis depois de ler, quem estará pensando agora o que eu penso, ou penso que estou pensando no lugar que sou de pensar, quem estará sentindo o que sinto, ou sinto que estou sentindo no lugar que sou de sentir, quem se serve de mim para sentir e pensar, e, de quantos inúmeros que em mim vivem, eu sou qual, quem, Quain, que pensamentos e sensações serão os que não partilho por só me pertencerem, quem sou eu que outros não sejam ou tenham sido ou venham a ser." Olhe, José: eu cá só tenho homónimos, porque os heterónimos dão muito mais trabalho, e nem por isso disfarçam. Não fugimos a Quem. Nascemos com ele, com ele vivemos e morremos. É inalienável, intransmissível. É este quem que pensassente e está e o Quem é. Espinoza intuiu bem a essência ontológica, o Ser tudo em todos. Como os grandes místicos. Os livros da colecção "Poesia" da Ática - que eu comprava nos anos 50, e onde me encontrei com o universo de Pessoa, Sá-Carneiro, Sebastião da Gama, Nemésio, Sophia, Carlos Queiroz, Pessanha... - abriam todos com essa citação de Novalis que, creio, foi sugerida pelo Luiz de Montalvor: "A Poesia é o autêntico real absoluto. Isto é o cerne da minha filosofia. Quanto mais poético, mais verdadeiro." Hoje, hoje para mim, para si não há nem hoje, nem ontem, nem amanhã, como o D. Sebastião do Pessoa, deixou cá o seu " ser que houve, não o que há "... Para mim, que ainda estou, pouco importam as fórmulas das "coisas"... Artífices, tudo formulamos. Menos esse impossível de dizer, que é uma imagem que, como a memória de Platão, inexoravelmente carregamos. Que, dolorosamente ou com feroz alegria, sentimos com gratidão ou raiva, mas a que não escapamos. Quiçá por ser fruto do pensarsentir, acolhemos a poesia, como a música, universalmente, expressão misteriosa do indizível em nós. Encontro-me muitas vezes consigo, quando, lendo-o, sinto um toque de graça que me atinge, uma visão que me encanta. Termino esta carta, agradecendo-lhe este trecho da História do Cerco de Lisboa": "Trago-lhe aqui as provas ,como combinámos, disse Raimundo Silva, e a doutora Maria Sara recebeu-as, por assim dizer, à passagem, agora está sentada à secretária, convidou o revisor a que se sentasse, mas ele respondeu: Não vale a pena, e desviou o olhar para a rosa branca, tão perto dela está que pode ver-lhe o coração suavíssimo, e, porque palavra puxa palavra, lembra-se de um verso que em tempos revira, um que falava do íntimo rumor que abre as rosas, pareceu-lhe este um formoso dizer, venturas que podem acontecer até a poetas medíocres, O íntimo rumor que abre as rosas, repetiu consigo mesmo, e ouviu, ainda que não se acredite, o roçar inefável das pétalas, ou teria sido o roçar da manga contra a curva do seio, meu Deus, tende piedade dos homens que vivem de imaginar." Deus já teve piedade de si, José. Tenha de mim também e de todos os que, por cá, procuram porto, como Cristo, na agonia e na esperança. E a todos nós ajude a estar atentos ao "íntimo rumor que abre as rosas"...
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 18.10.13 neste blogue.
195. DE TUDO QUANTO MUDA, O QUE MENOS MUDA É O SER HUMANO
Quem acreditou e acredita que o progresso material e tecnológico traria e traz consigo toda a panóplia de progressos, entre os quais o moral e ético, e que quanto mais se avançar no futuro as ideias pacíficas progredirão, facilmente conclui que não, se fizer uma viagem minuciosa pelo passado de todas as civilizações.
A condição, o conteúdo e a natureza intrínseca do ser humano permanecem, nem é previsível que se alterem enquanto existirmos, uma vez que os nossos instintos ou sentimentos de ambição, poder, ódio, amor, posse, propriedade, sobrevivência, de defesa, entre outros, sempre existiram e permanecerão.
Podem modificar-se os modos exteriores da sua expressão, os motivos imediatos e métodos usados, adaptando-os e flexibilizando-os consoante as circunstâncias, mas a dimensão específica e essencial do ser humano permanece.
Enquanto o progresso científico e técnico é portador de uma evolução gradativa, progressiva e sucessiva de avanço e inovação, o mesmo não sucede com o tempo cumulativo do desenvolvimento das relações humanas, podendo ser progressivo, regressivo ou repetitivo.
O sermos mais avançados científica e tecnologicamente não nos garante sermos humanamente mais pacíficos e “civilizados”, sendo mais um culto prestado à ciência e à nossa capacidade de invenção e inovação, que não se compadece com realidades permanentes como a guerra, instintos como o ódio, o fanatismo e a luta pelo poder a qualquer preço, a mando de psicopatas, narcisistas, megalomaníacos e maquiavélicos. Que fazer? Desistir? A resposta, por nós, deve ser negativa.
Aceitando que o género humano é imperfeito por natureza, com caraterísticas boas e más (invariáveis ao longo do tempo), há que priorizar as suas qualidades, cultivando-as em prol do bem comum e da dignidade da pessoa humana, dado sermos perfectíveis, apesar da nossa imperfeição, mesmo que cientes de que de tudo quanto muda, somos nós o que menos muda.
Não se desejam democracias supostamente aperfeiçoadas até ao adormecimento de quem não zelou pela exclusão, pela violência, pelas voltagens das diferentes culturas de humanos como nós.
As democracias existiram e existem para serem cuidadas e acordadas o suficiente para que nelas não medrem os silêncios brancos.
As democracias não se desenvolvem no isolamento do não escutar outros mundos, nem se podem envolver em mistérios que não descodificam erros graves não os denunciando, nem criando alternativas de correção, e não podem, nem poderiam as democracias deixarem-se constituir como meras periferias de natureza e cenários.
Todos os que para essas democracias contribuíram, são os mesmos que lhes reforçaram a fragilidade sob um aparato jurídico que as limitou desde a primeira hora.
A democracia por si só não é garantia de liberdade e a sua essência sempre dependeu da cultura e do desenvolvimento dos povos no aprendizado.
As democracias possuem vínculos irrompíveis e todos nós lhe sentimos a liberdade possível a entrar por aquela janela que nunca se fecha ao radar atento à descoberta que faz dos homens uma noção mais disponível.
Certo é que os homens têm de assumir a responsabilidade de se deixarem convocar pelo mais inóspito que se agarra à mochila das democracias, e descobrir a razão da não luz, e levá-la até onde se possa resolver por empenho e surpreendente passo a passo o que se permitiu que enquistasse.
E a democracia é também o reconhecimento da oposição.
E a democracia existe quando é possível o sim e o não, ou seja, quando nos podemos condenar, mas também salvar-nos.
E aquí a fundamental esperança de Aranguren - Nadie connoce al ombre, nadie puede sondarle en su corázón, pero debemos creer en él y esperar de él.
Todavia, nunca descuremos que o ambiente molda o caracter em maior dimensão do que o património biológico, como nos diz Kerstin Bergman, e não é possível eleger entre a violência e a pureza, mas sim entre distintos tipos de violência como bem afirmou Merleau-Ponty.
Na verdade, apela-se à violência e à não violência, quando ambas não se reconhecem como tal porque se autojustificaram e institucionalizaram pela lei dos homens, afastados do conhecimento de si, e nesse “si”, a violência primária e nua encapotada sob o manto do direito e da moral.
Há muito que a não-vida fez parar mentalmente as gentes que só se identificaram com elas próprias, e são essas mesmas gentes que seguem os guionistas como se segue um vício pardo, mas metastático.
O laisser faire permitiu os negócios de proteção de grupos para privilégio real de uns poucos, sem se procurar uma resposta de moralização democrática, a partir da desigualdade provocada nos cidadãos por estas mesmas realidades.
Mas registe-se que fora do espaço da democracia até o direito natural se converte num instrumento político ao serviço da ordem estabelecida.
E também certo tipo de religiosidade, quando se sente ameaçada pela secularização própria dos nossos dias, reage constituindo-se na base de muitos fanatismos.
E diga-se que as democracias permitem, enfim, que um sistema de vasos comunicantes funcione.
Todavia, para isso acontecer em consistência, não nos esqueçamos de corrigir as nossas inúmeras omissões aos avisos de entupimento desses vasos comunicantes, nomeadamente sabendo o que constitui a integração social, indispensável realidade para a estabilização de todos os excluídos, os sem oportunidades, os desprovidos da possibilidade do uso dos direitos, enfim, todos aqueles para quem a repulsa pela democracia ou por um extremismo qualquer lhes é absolutamente indiferente.
Ao contrário do que muito se afirma, não estão os bons de um lado e os maus de outro, para se condenar uns, e para que se possa canonizar outros, só a minimização moral sem sustentação na mais ínfima realidade, concede.
Não há maus sem mescla de bons nem bons sem mescla de mal algum, mas a situação extremada de ambos constitui a suprema responsabilidade de todas as maiores violências, de todas as ambiguidades, de todas as submissões ao poder de quem tem, em valor monetário, o mesmo que um orçamento de um estado soberano, e ainda promete oferecer a todos um teto para uma existência ajoelhada.
Só o homem aventureiro que renuncia a este amparo submetido, se entrega ao risco de um heroísmo solitário, esse mesmo que todo o homem generoso transporta em si, colocando-se fora desta nova lei, não enquanto bandido, mas recusando o colaboracionismo assente nos caídos que cederam ao cansaço, ou os que habitaram a ignorância não sabendo desde quando assinaram o contrato. Este o tema de Albert Camus no seu livro Os justos.
As democracias estão confrontadas por uma polarização aberrante. As redes sociais provocam indizíveis disfunções. Os algoritmos estão projetados para que as pessoas cliquem e cliquem e cliquem, pontuando nas bitcoins, ou a facilidade do poder ao dinheiro não fosse a base da nova e opulenta sociedade, a mesma que diz respeitar os sentimentos numa nova fórmula sem qualquer emoção.
Mas como a grande aventura continua a ser a interior
Quem se habituou a ler o “Verdadeiro Almanaque do Borda d’Água” sabe que o ano de 2025 se inicia sob os auspícios do planeta Júpiter, normalmente associado ironicamente ao humor, à verdade, à sabedoria e à confiança. E lá para o fim de janeiro, teremos o Ano Novo chinês, sob a evocação da Serpente. Contudo, defrontamo-nos com muitas dúvidas e a incertezas. Estamos perante a mesma perplexidade descrita por Stefan Zweig, no seu inesquecível e perturbador O Mundo de Ontem – Recordações de um Europeu (1942). “Tudo na nossa democracia austríaca quase milenar parecia construído para durar sempre, sendo o próprio Estado o garante supremo dessa estabilidade. (…) O sentimento de segurança era o tesouro mais desejado por milhões de pessoas o ideal da vida comum”. Todavia, com a eclosão da Primeira Grande Guerra, em 1914, subitamente, tudo se precipitou, sem que os analistas supostamente mais conhecedores pudessem prever. Nem as relações familiares entre os monarcas e imperadores, nem a ilusão de que a solidariedade proletária impediria um confronto bélico puderam impedir a cegueira bárbara, de ferro e fogo, insuspeitada nos meios sofisticados.
Hermann Broch descreveu lucidamente, no início dos anos 30, a evolução desse tempo, de um modo que nos impressiona, em Os Sonâmbulos. Tudo começa em 1888, em plena Belle Époque, depois da guerra franco-prussiana, em torno da personagem romântica de Joachim von Pasenow, das suas dúvidas e hesitações em tudo na vida; continuando, em 1903, com August Esch, um livreiro luxemburguês que se move nas margens do Reno, mas que se sente inseguro num mundo de anarquia e decadência, que desrespeita os valores tradicionais nos negócios e nos amores; e termina no ano de 1918, quando a guerra devastadora fez os seus efeitos, num ambiente de desordem e de vazio de valores. Wilhelm Huguenau, comerciante de vinhos alsaciano, simboliza um estranho realismo que é o ponto zero dos valores, o egoísmo sem qualquer forma de remorso. As três histórias ligam-se num pesadelo e num sonambulismo absurdos, dominados por um vazio de valores éticos, pela tragédia da guerra, pelo salve-se quem puder, pela derrota alemã e por uma tentação totalitária que profeticamente se anuncia. Usando a mesma ideia, o historiador Cristopher Clark em Os Sonâmbulos – Como a Europa entrou em Guerra em 1914 (Relógio d’Água) vem dizer-nos que foi a cegueira de muitos governantes que determinou um conjunto de decisões desastrosas que culminaram numa guerra de violência inaudita, que teve como consequência a queda de quatro impérios e a abertura de um período de ressentimento e de terror que duraria até 1945. Ao relermos tais obras apercebemo-nos de que tudo pode acontecer, perante a acumulação de erros evitáveis. E hoje o adensar das nuvens negras em tudo se assemelha a esses outros tempos. Acumulam-se ódios, perde-se a memória dos valores éticos e dos compromissos necessários. Miguel Monjardino tem razão em falar de um vazio histórico e de uma cegueira imediatista. E em lugar da partilha de responsabilidades cívicas inventam-se tótemes ou falsas tábuas de salvação. A tentação das vitórias imediatas e a vertigem das novas conquistas territoriais escondem a acumulação de fatores que destroem a confiança e a força mediadora das instituições.
Já estamos no ano de 2025 em todas as partes do mundo — desejo a todos um 2025 com saúde, paz, boas realizações... —, mas quantos tomaram consciência de que a data se refere ao nascimento de Jesus?
Precisamente por causa do Natal, muitas pessoas vêm ao meu encontro com perguntas, e nesta e na próxima crónica tentarei dar respostas ainda que breves, por vezes até com algumas repetições.
Para entender as respostas, é essencial perceber que a festa do Natal não é a festa principal do cristianismo, mesmo que seja a mais popular e entendamos o entusiasmo que suscita em toda a parte, compreendendo perfeitamente a luz, o calor humano, as deslocações para juntar as famílias e os amigos, a evocação da ternura do nascimento de uma criança...
A festa central da fé cristã é a Páscoa, que celebra a vida, o anúncio da Boa Nova do Reino de Deus, a paixão e morte de Jesus e a sua ressurreição: na morte, Jesus não morreu para o nada, na morte encontrou a plenitude da vida em Deus, que é Pai-Mãe. Este é o núcleo da mensagem cristã, como proclamou São Paulo: “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé.”
E assim é à luz da Páscoa que se compreendem as narrativas do Natal. De facto, no início, os cristãos não se interessaram pelo nascimento de Jesus, pois o essencial era a vida, a morte e a ressurreição.
Então, como apareceu a festa do Natal? Hoje, nenhum historiador sério nega que Jesus existiu realmente. Quando, nos séculos III-IV já havia comunidades cristãs espalhadas pelo Império Romano, houve a ideia de transformar a festa pagã do Dies Natalis Solis Invicti (Natal do Sol Invicto), associada ao solstício do Inverno, quando os dias começam a crescer e com eles a luz solar, na festa do nascimento do Sol dos cristãos, dAquele que é o verdadeiro Sol invencível, a Luz verdadeira. A Missa do galo está associada a esta luz; o galo canta, anunciando a aurora.
E voltamos à questão da data e de nos encontrarmos no ano de 2025. Quando nasceu Jesus? Realmente, estamos enganados quando dizemos que entrámos no ano 2025 depois de Cristo. De facto, no século VI, quando o cristianismo já se tinha vastamente difundido e Jesus surgia como figura determinante da História, de tal modo que agora o calendário se deveria orientar pela data do seu nascimento: a. C., d. C. (antes de Cristo, depois de Cristo), o monge encarregado de determinar essa data, Dionísio o Exíguo, enganou-se em 4 ou mesmo 6 anos. Portanto, Jesus, paradoxalmente, terá nascido em 4-6 a.C.
Nasceu em Belém? Voltamos ao início. O essencial da fé cristã encontra-se na Páscoa. Foi a partir dessa fé que os discípulos leram a vida histórica de Jesus, real, situada num tempo concreto, uma história real, mas lida e interpretada com o olhar da fé. Esta leitura é particularmente visível nos relatos da infância, que só aparecem nos Evangelhos de São Mateus e São Lucas, utilizando um género literário próprio, que projecta e vê no princípio o que só sabem no fim: em Jesus cumpriram-se as promessas, Ele é o Messias, o Filho de Deus, o Salvador por todos esperado. Na realidade, Jesus terá nascido em Nazaré: é conhecido por Jesus de Nazaré ou o Nazareno. Mas puseram-no a nascer em Belém: trata-se de mostrar que ele é o verdadeiro Messias e rei, da descendência de David, que era de Belém.
E a mensagem do Natal? Jesus proclamou o Reino de Deus. Deus é Pai/Mãe. Somos todos filhos e filhas e, portanto, irmãos. No Reino de Deus, não há súbditos. Continua.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 3 de janeiro de 2025
Na semana em que ocorrerá a justíssima trasladação de Eça de Queiroz para o Panteão Nacional, recordamos a publicação da autoria de Alfredo Campos Matos de “Eça de Queiroz – Fotobiografia – Vida e Obra”, Caminho, 2007.
OPORTUNIDADE ÚNICA A leitura desta fotobiografia constitui oportunidade única para conhecermos melhor não só a vida e obra de José Maria Eça de Queiroz (1845-1900), mas também a história do seu tempo, uma vez que poucas personalidades culturais portuguesas tiveram uma influência tão grande sobre o país, no tempo da sua existência e no século que se lhe seguiu. Como aconteceu tal? Através da capacidade excecional de retratar Portugal e os portugueses com argúcia e ironia, estabelecendo uma relação próxima com as grandes referências intelectuais do seu tempo. Nas suas personagens está o retrato de um País que ainda não desapareceu… Lembremo-nos da fotografia tirada no velho Palácio de Cristal do Porto em 1885, onde se encontram as cinco maiores referências culturais de então – Antero de Quental, Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro. Depois de um encontro aparentemente fútil, em torno de um leque a oferecer à noiva de Eça, foi possível reunir lado a lado o suprassumo da elite desse tempo.
UM ROTEIRO NECESSÁRIO Definindo um percurso rigorosamente delineado, o autor permite-nos seguir a par e passo quem foi o grande romancista, permitindo-nos ter contacto com o meio em que nasceu e viveu, a família, a Universidade de Coimbra, os amigos, a atividade diplomática que desenvolveu e a atenção que prestou ao país e ao mundo. Não faremos aqui uma análise exaustiva desta obra indispensável, limitar-nos-emos a seguir um breve roteiro de Lisboa do escritor. Quando se faz um roteiro, escolhemos alguns pontos focais que nos permitem fazer a peregrinação. No caso de Eça de Queiroz, na cidade de Lisboa, o Jardim de S. Pedro de Alcântara, o Chiado e o Rossio são os polos naturais. E nessa varanda sobre a cidade, onde, os amigos vindos de Coimbra estabeleceram o que designaram como Cenáculo, Jaime Batalha Reis explica: “E como Antero e eu nos tivéssemos habituado a estar juntos dia e noite, pensando em voz alta, conversando , discutindo esquecidos muitas vezes, quase, de tudo que não fossem as ideias em conflito dos mil sistemas, fomos viver ambos para S. Pedro de Alcântara, em frente da Alameda, na sobreloja de uma casa que foi depois substituída por um palácio moderno, perto do convento alto”. E que era o Cenáculo? Um ponto de encontro com desígnios elevados da mudança do mundo. E lá se encontraram ainda Eça de Queiroz, Teófilo Braga, Oliveira Martins e José Fontana. E as ideias germinavam. Aí nasceram as Conferências Democráticas do Casino Lisbonense, ao mesmo tempo que em Paris, acabada a guerra franco-prussiana, tinham lugar os acontecimentos dramáticos da Comuna de Paris. Antero de Quental, Eça de Queiroz e Adolfo Coelho ainda puderam fazer as suas palestras, mas Salomão Saragga já não pôde, perante a proibição governamental. E a iniciativa que poderia ter passado discretamente, tornou-se um acontecimento, que continuou o grande debate sobre o Bom Senso e o Bom Gosto, de Coimbra, alargando-o, com o protesto veemente de Alexandre Herculano, não em nome de qualquer programa político, mas na defesa da liberdade de pensar e de falar. E se falamos das Conferências do Casino, não esquecemos a Revista Ocidental, onde começou a ser publicado o romance iconoclasta de Eça “O Crime do Padre Amaro”. E ao descermos a atual Rua da Misericórdia até ao Largo de Camões, seguindo a muralha fernandina, artéria que se chamou Rua Larga de S. Roque e Rua do Mundo, passamos à porta do Restaurante Tavares, onde Eça jantava com os seus amigos Vencidos da Vida, enquanto numa rua paralela no Largo da Abegoaria (hoje Largo Rafael Bordalo Pinheiro) se situava o Casino Lisbonense.
CHIADO LUGAR COSMOPOLITA O Chiado é o segundo ponto por nós escolhido. Aí podemos encontrar as principais personagens dos romances de Eça. Paremos na esquina da casa Havanesa, loja refinada de tabacos, ponto de encontro dos janotas da altura. Nesta esquina o senhor Guimarães encontrou João da Ega a quem revelou a chave do mistério de “Os Maias”, entregando os papeis que provavam que Carlos Eduardo era irmão de Maria Eduarda. Por cima da Havanesa havia o Hotel Aliança, cujas persianas eram constituídas, na velha tradição lisboeta, por tabuinhas verdes descidas nas janelas, como “pálpebras pesadas de langor e de sono”, como Eça dirá em “A Relíquia”. Aqui encontramos o Conselheiro Acácio, despedindo-se apressadamente de Luísa em “O Primo Basílio” à porta da Basílica dos Mártires. Aqui estão as grandes lojas, o Jerónimo Martins, que representou o célebre azeite de Herculano, a Livraria Bertrand, a mais antiga da Europa, o restaurante Marrare do Polimento, lugar de muitos compromissos. Um pouco adiante o Teatro de S. Carlos, onde Carlos foi apresentado à condessa de Gouvarinho e onde Artur de “A Capital!” ficou deslumbrado por aquilo que viu na grande sala da ópera. No Chiado temos na atual Rua Ivens, antiga Rua de S. Francisco, o Grémio Literário e ao lado a casa onde morou a Maria Eduarda. O Grémio, fundado por Garrett, é referido em “O Primo Basílio”, “A Capital!” e “Os Maias” e foi aí que Eça primeiro leu “Les Fleurs du Mal” de Baudelaire. Descemos a Rua Garrett, antiga Rua Larga de Santa Catarina e aprestamo-nos a chegar ao terceiro ponto por nós escolhido – o Rossio. É um dos cenários principais da ficção queiroziana. Aí está a casa de seus pais num quarto andar, onde o escritor morava quando vem à capital. A varanda oferece sobre a praça um panorama surpreendente, que nos dá a sensação de termos a cidade a nossos pés. Aqui passeiam o Padre Amaro, o Conselheiro Acácio, Luísa, o Raposão ou Gonçalo Mendes Ramires. O consultório médico de Carlos Eduardo da Maia tinha janelas para o Rossio, tal como o dentista de Luísa, o Dr. Vitry, personagem real. Para o Rossio dava também o escritório do Dr. Vaz Caminha, patrono do nosso conhecido Alípio Abranhos. Foi aqui que na passagem do cortejo comemorativo da chegada à Índia de Vasco da Gama que Eça foi reconhecido e teve uma inesperada ovação popular. E, voltando à varanda do quarto andar da casa dos pais de Eça, avistamos, a norte, o que foi a entrada do Passeio Público, sacrificado pela abertura da Avenida da Liberdade, onde hoje é a Praça dos Restauradores. O Passeio foi cenário obrigatório em “O Primo Basílio” - aí Jorge conheceu Luísa, Luísa encontrou-se com Basílio junto do tanque e D. Felicidade esperou pelo Conselheiro Acácio afrontada pelas flatulências… E há reminiscências do velho Passeio Público um pouco por toda a parte na cidade, como o coreto do Jardim da Estrela concebido para o antigo sonho pombalino à imagem dos parques londrinos. E falando do roteiro lisboeta de Eça, temos de ouvir João da Ega a gritar “Lisboa é Portugal – Fora de Lisboa não há nada. O País está todo entre a Arcada e S. Bento”…