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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


    Jean Jacques Rousseau 


202. O PROCESSO CIVILIZACIONAL E A NATUREZA HUMANA


A nossa atitude perante a vida e o que somos política, social e culturalmente, parte sempre de um pressuposto filosófico orientador e indagador, que é: o ser humano é, por natureza, bom ou mau?             

O mais correto será perguntar se o ser humano é, no essencial, naturalmente bom ou mau, dada a ausência de pessoas totalmente boas e más.   

Seguindo o pensamento geral, ou estamos com Rousseau ou Maquiavel.     

Rousseau defendia o regresso à natureza, convencido de que a maldade humana é uma consequência da civilização, que o Homem é naturalmente bom e foi estragado pelas instituições. É o espelho da bondade original da natureza humana, onde sobressai o “bom selvagem”, o ser humano em estado natural e puro, ainda não contaminado pelos preconceitos sociais.

Maquiavel diz que o Homem é naturalmente mau. O bom príncipe é o que sabe manter o poder e, para o conseguir, tudo lhe é lícito, desde a astúcia, crueldade, crime, violência, falta de palavra, hipocrisia, mentira e má fé, o que justifica como meios para alcançar o elevado fim do bem geral, que identifica com os interesses de quem governa, a que apelida de razões de Estado.

Partindo de um ou outro princípio temos os otimistas e os pessimistas, dando azo a ideologias, sistemas e organizações diferentes, havendo quem argumente que um otimista antropológico tende a ser de esquerda e um pessimista antropológico de direita (Carl Schmidt).         

Porém, se aceitarmos, em face da História por nós conhecida, que de tudo quanto muda o que menos muda somos nós, com avanços e recuos, por vezes regressões (o que é diferente de uma crescente inovação artística e progresso tecnológico e científico), conclui-se que o progresso civilizacional, por si, não altera a condição humana.   

Os nossos sentimentos e modo de sentir são os mesmos, sempre houve vida e morte, nem se vislumbra que algo mude, de essencial, a esse respeito, sendo que o progresso por mais evoluído e sofisticado que seja, também pode não ajudar, dependendo do seu uso, sendo sabido, por experiências bélicas, que a guerra é usual ser usada como um meio de desenvolvimento e de inovação crescente, apesar da sua vertente destrutiva.

Quem tem o poder comporta-se tendencial e maioritariamente do mesmo modo, pois embora as elites que o têm se vão sucedendo, quando a ele chegam e se mantêm, acabam por conduzir-se essencialmente como pessoas que ficam e querem poder, do que as que eram antes de lá chegar, o que é transversal a todas as ideologias.

Mesmo para quem acredita em sociedades perfeitas, nunca houve meios pacíficos para as alcançar, havendo que usar meios revolucionários e violentos por natureza, apesar de nunca terem sido alcançáveis ou realizáveis. Ao lado do belo, paradisíaco e magnífico também há o hediondo, o aterrador e o deplorável, em que a natureza é exemplo com cataclismos, terramotos, tsunamis, sismos, dilúvios, inundações, incêndios, em paralelo, nos humanos, com guerras, bombardeamentos, revoluções, revoltas, convulsões.   

O ser humano não é completamente e naturalmente bom ou mau, é uma simbiose ou síntese, dado não haver humanos absolutamente bons e maus, não havendo só preto e branco.   

Há que fazer culto dos universais possíveis que terão de ser encontrados na implementação de um diálogo, rumo à perfectibilidade, numa dimensão transcivilizacional, e não algo de misterioso suscetível de leituras facciosas.       


28.02.24
Joaquim M. M. Patrício

POESIA

Barco 

  


Nem posso acreditar que fomos tão fortes nos nossos tempos de juventude sim,

avançávamos para a frente do barco e pegávamo-lo com todas as viagens em cima, as feitas e as por fazer e as paralelas a tudo o que conhecíamos da vida num sentimento tremendamente poderoso que nos ligava ao mar e às urzes, a tudo junto, julgo, as pedras também

Agora sentimos que as realidades permaneceram em nós, como aquilo que foram e como aquilo de que não abdicamos

e já levo as mãos aos olhos e esfrego os olhos, e penso que afinal nada hoje é como sempre foi, algo aconteceu ou foi acontecendo,

mas o quê? Fixa-te na distância, digo, fixa-te a ir vendo

o sobrevindo

e esse quê é o sobrevindo

e é o que me leva e levou a alterar rotas em direção ao longe lá longe quando o horizonte se une com o céu, bem lá ao longe

depois regressámos e passámos a usar o ponto de referência

e de novo o barco alinhado, mas a partir desse ponto de referência,

e é diferente, julgo, é mesmo diferente, agora as nossas partidas só se fazem a partir dos pontos de referência, a partir daí, sim é isto que passou a estar no nosso entendimento

e esfrego os olhos de novo

Vá experimenta tu primeiro, encontraste uma explicação por que as nossas razões não se afundam, por que se recusam a afundar-se

Sim, é por aí, claro que sim, é por aí, digo

Depois o oceano quer-nos no barco com tudo o que amamos

No barco nunca esteve o que não amamos

por essa razão depois

tudo ao mesmo tempo nos aproxima da eternidade

sim, por que passámos a estar nela

e estamos de mão dada, firmes, fortes

Nem posso acreditar que somos tão fortes, tão fortes

que já nem sentimos o frio

antes o recuperamos para nos aquecermos

e preciso tanto, tanto, que venhas comigo agora


Teresa Bracinha Vieira

CONTRARIAR O FEUDALISMO DIGITAL

  
    © Mariana Mazzucato


A Cimeira de Paris para a ação sobre a Inteligência Artificial (IA) ocorreu num momento especialmente complexo, considerando a conjuntura internacional marcada pela eleição de Donald Trump, pelos avanços tecnológicos anunciados pelos chineses e pela afirmação de um oligopólio no mundo digital. Como salientou Mariana Mazzucato, estudiosa com provas dadas na análise rigorosa do setor, o que está em causa não é saber se a Europa pode rivalizar com a China e os Estados Unidos, mas saber se os europeus poderão abrir caminho a uma abordagem guiada por uma investigação séria sobre o “valor público”. O objetivo deverá ser o de nos afastarmos do “feudalismo digital” enquanto modelo dominante das plataformas digitais, baseado na exploração das respetivas rendas. Sabemos que a IA, independentemente do termo ser equívoco, tem características próprias que influenciam todos os setores da economia, da política e da cultura, quer numa perspetiva positiva, quer nos riscos negativos.

Não se trata de uma tecnologia neutra, razão pela qual se torna fundamental orientá-la para o bem comum – e a investigadora considera ser essencial estruturar os mercados de inovação em IA, criando um ecossistema descentralizado ao serviço do interesse geral. Nesse sentido, importa remar contra uma perigosa maré que nos invade (“Le Monde”, 11.2.25) e que parece esquecer que não foi possível generalizar a internet sem os investimentos públicos estruturais realizados na área da Defesa de que a sociedade civil e o mundo da ciência puderam beneficiar. É assim surpreendente que Elon Musk surja como campeão da supressão de programas de financiamento governamentais em áreas estratégicas, quando ele e a sua empresa Tesla foram beneficiários de 4,7 mil milhões de euros de subvenções. E sejamos claros: além de haver dois pesos e duas medidas no discurso político, a verdade é que o enfraquecimento das capacidades dos Estados tornará cada vez mais difícil a regulação das novas tecnologias no sentido da defesa do interesse público. O que acontecerá quando o poder económico dominar as instituições da sociedade, e quando os conhecimentos técnicos ficarem concentrados apenas em cinco grupos económicos privados?

Quando hoje relemos as “Cartas Persas” de Montesquieu, percebemos como funcionava o despotismo oriental, sem um poder que limitasse o poder. E os investigadores do University College de Londres, em que se integra Mariana Mazzucato, têm sublinhado a necessidade de diferenciar, no caso da IA, a criação e o aproveitamento do valor, ou seja, devendo considerar as “rendas algorítmicas”. A manipulação dos utilizadores tornou-se regra, através de conteúdos aditivos impostos, que maximizam a dependência. Assim as plataformas escondem mecanismos muito lucrativos de fixação da atenção, pelo que urge, em nome da verdade, obrigar os operadores a tornarem público o uso abusivo que fazem dos seus algoritmos, já que há um claro abuso de direito, que tem de ser limitado. São perigosos os danos colaterais de uma lógica que favorece o parasitismo e afeta gravemente a coesão social e a solidariedade cívica, a defesa do meio ambiente e a formação dos menores. As virtualidades da IA têm de ser salientadas e a produtividade europeia depende delas, mas o feudalismo digital tem de ser contrariado, através de instituições mediadoras democráticas e fatores que favoreçam o valor público e o bem comum.      


GOM

CRÓNICAS PÁRA E PENSA

  
    José Maria Mardones


A ditadura da imagem 
e a pobreza do símbolo


No século VIII, no contexto da ameaça militar e religiosa do islão a Bizâncio, a tradição cristã viu-se confrontada com a pureza radical do monoteísmo islâmico e a sua proibição das imagens. Os imperadores bizantinos mandaram destruir as imagens e os seus defensores foram perseguidos como idólatras. Embora esta luta dos iconoclastas tenha acabado com a vitória dos iconódulos (veneradores das imagens), pois Jesus Cristo é a imagem visível de Deus, nunca deveria esquecer-se que Deus é infinitamente transcendente e, se o Homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, Deus não é à imagem do Homem.

Diz-se perante certas imagens: vale mais uma imagem que milhares de palavras. Pense-se, por exemplo, naquelas imagens televisivas das crianças esfomeadas no mundo — pequenos andaimes de ossos a soçobrar, num olhar suplicante e quase morto —, e o soco que nos dão no estômago e na alma.

Aqui, porém, do que se trata é da civilização da imagem, daquela civilização que quer a visualização de tudo. Trata-se daquilo para que uma aluna uma vez me chamou a atenção. Ela tinha feito um trabalho sobre A Sociedade do espectáculo, de Guy Debord, um dos breviários da geração de 68, e disse-me: “Viu a transmissão televisiva do funeral do Papa João Paulo II? Aquilo era espectáculo, donde o mistério da morte foi arredado. Logo a seguir, em sequências vertiginosas, lá estavam imagens publicitárias e futebol: tudo o mesmo.” Ah! A alienação com o futebol: “pensar com os pés” (Carlos Fiolhais)!

Há perigos na civilização da imagem?

Nela, por paradoxal que pareça, julga-se que se está perante a hiper-realidade, mas o que se vai impondo é o virtual, com a consequente perda da realidade real.

Depois, é isso: a vertigem de imagens e de informações, em voragem. Mas, então, onde está o tempo da possibilidade de distanciamento e de crítica? Ah!, e a própria crítica, se existe, tem de ser dada em espectáculo, dissolvendo-se então com ele e nele, pois, como escreveu José María Mardones, mais do que permitir a reflexão e a crítica, do que se trata é de vender e “seduzir”.

Na civilização da imagem, importante não é ser, mas parecer e aparecer. Quem não aparece existe? Por isso, lá dizem os políticos, e não só eles, que decisivo é aparecer, mesmo se se diz mal deles.

De novo José Maria Mardones: o predomínio da imagem, com a pretensão de mostrar tudo, até a interioridade do sujeito, tem outra consequência perversa: “o esvaziamento da intimidade”. Por causa disso, eu fui uma vez à televisão para prevenir e chamar a atenção para a necessidade da distinção não apenas do público e do privado, mas do público, do privado e do íntimo. De facto, não anda para aí tudo desavergonhadamente escancarado, sem réstia de pudor?...

O símbolo, esse, abre para a profundidade do real e para o mistério e vincula à transcendência. Na civilização da imagem, onde a realidade é o que se mostra, vive-se na imediatidade do que há, do mercado das sensações, do empírico-funcional, e, portanto, na in-transcendência.

E uma conclusão, que pode parecer abrupta. Por vezes, há quem se espante  com a indiferença e a distância dos jovens em relação à  política. Seja-me permitido espantar-me com esse espanto. Razão de fundo – não a única, evidentemente, – para esse distanciamento está em que o espectáculo da política e dos políticos é muitas vezes deprimente e pouco recomendável. Não está a própria Assembleia da República, por exemplo, a sucumbir por vezes à falta de vergonha, à má-criação?...

Com o fim do trabalho simbólico e o império da imagem e da técnica, o mundo humano vai definhando. Sem o símbolo, também não há lugar para a religião na sua autenticidade e verdade. E corre-se o perigo da idolatria.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
22 de fevereiro de 2025

A VIDA DOS LIVROS

  

De 24 de fevereiro a 2 de março de 2025


Maria Teresa Horta é uma referência fundamental da moderna literatura da língua portuguesa.


Ao assinalar os cinquenta anos da Revolução portuguesa de 25 de Abril de 1974, o Presidente da República de França destacou o caso da publicação das “Novas Cartas Portuguesas” como um exemplo de combate cívico pela liberdade cidadã, homenageando as suas autoras Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. É significativo que seja uma referência da literatura e da liberdade criadora a identificar o que Samuel Huntington designou como o início da Terceira Vaga da democratização. Quando Maria Teresa Horta nos deixa, essa recordação ganha especial importância, uma vez que a História portuguesa, desde as suas origens, foi marcada por referências literárias – lembrando-nos dos trovadores na génese da nação e da língua que nos define e projeta globalmente pelo mundo até Camões. E o certo é que as “Novas Cartas Portuguesas” significam um grito de alerta em nome da liberdade do pensamento e da defesa intransigente da dignidade humana, considerando a igual consideração e respeito de todos. 


Conheci bem as três autoras dessa obra emblemática. Maria Teresa Horta foi uma amiga a que me ligam laços de mútua admiração que nunca poderei esquecer. Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa foram próximas colaboradoras no Ministério da Educação, a quem devo testemunhos vivos de entrega à ideia generosa e necessária de fazer da Educação um fator de emancipação cidadã, de cosmopolitismo e de partilha de responsabilidades. Concordo com Helena Vasconcelos que Maria Teresa é uma “autora ímpar”, assentando a sua singularidade em vários fatores, “nos quais se incluem uma linguagem inconfundível, fluida e apaixonada, um imaginário riquíssimo, uma vasta cultura humanista – de raízes clássicas – e uma capacidade invejável de escrever continuamente, sem limites nem amarras, reinventando em cada linha as mais profundas e inefáveis questões que desafiam – e angustiam – a humanidade” (Público, 5.2.2025). Foi sempre assim que a encontrei. Era inconformada e inconformista, rebelde e iconoclasta, mas quase paradoxalmente profundamente consciente das raízes e da importância da dimensão histórica da vida. Quando Patrícia Reis encontrou a palavra “desobediente” para dar título à sua biografia deu, propositadamente, apenas um traço da sua extraordinária personalidade, mas quando fechamos o livro, ao terminar a leitura entusiasta e motivadora, percebemos que é apenas um começo aquilo de que se trata, porque, ao longo da vida, facilmente percebemos que estamos perante uma personalidade multifacetada capaz da determinação e da extrema coragem (demonstrada em vários momentos da vida, perante a violência absurda do Estado policial), mas também de uma extrema sensibilidade e doçura, bem evidentes na sua poesia. O jornalismo atraiu-a desde muito cedo. Gostava do acontecimento e da tensão do contraditório – e desde cedo foi uma cinéfila militante. Foi a primeira mulher a liderar um Cineclube, o ABC. “A Capital” e o “Diário de Notícias” estão no seu currículo, bem como os textos dispersos nos “Diário de Lisboa”, “República”, “O Século”, e naturalmente o “JL”. Na revista “Mulheres” entrevistou Maria de Lourdes Pintasilgo, Marguerite Yourcenar, Marguerite Duras e Maria Betânia. Na Faculdade de Letras foi amiga inseparável de Fiama Hasse Pais Brandão. “Espelho Inicial” foi o primeiro livro, graças a António Ramos Rosa, com a capa de Manuel Baptista, antes deste partir com uma bolsa da Gulbenkian para Paris. O livro suscita comentário positivo de João Gaspar Simões: elogiando a originalidade e dizendo que era uma nova voz a surgir no meio literário português. Em 1961 participa na “Poesia 61” com Gastão Cruz, Luiza Nerto Jorge, Fiama e Casimiro de Brito, com “Tatuagem”. Gastão Cruz dirá: “A novidade da poesia de Maria Teresa Horta manifesta-se (…) em vários planos e setores: o da linguagem e da construção do poema; o social e político; o sexual”. Pouco depois conhece Leonor Cunha Leão, a alma dos Guimarães Editores. Era a primeira mulher  editora em Portugal que publicava Agustina Bessa-Luís, que convida Teresa para publicar na coleção “Poesia e Verdade”. Conhece escritores como Sophia de Mello Breyner, Yvette Centeno, Ana Hatherly; mas também David Mourão-Ferreira, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny, Alexandre O’Neill, José Carlos Ary dos Santos, Pedro Tamen e António Gedeão. Maria Teresa Horta entrava nos meios literários com uma marca própria que o tempo irá revelar em toda a sua riqueza e maturidade, para além de qualquer lógica puramente circunstancial.


Em 1971, a publicação de “Minha Senhora de Mim”, nas Publicações Dom Quixote, sob a direção de Snu Abecassis, abre um processo de denuncia da ausência de liberdade de expressão, que se soma à participação de Maria Teresa Horta na “Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica” de Natália Correia. Segue-se a apresentação e proibição das “Novas Cartas Portuguesas” apenas vem confirmar a ausência de “abertura política”, que contribuiria para acelerar o processo que culminaria na Revolução de Abril. Inspiradas nas “Cartas Portuguesas” de Mariana Alcoforado (1640-1723) o método epistolar, conduzido pelas três escritoras, vai tornar claro como se acumulam fatores de bloqueamento relativamente à evolução democrática no tocante aos direitos fundamentais, em especial das mulheres, com repercussões em toda a sociedade, no sistema judicial, na pressão migratória, na violência do regime ou na guerra colonial… Estamos perante uma obra reveladora da exigência de abertura política e social, como questão de sobrevivência. Não estamos perante um epifenómeno, mas de um problema crucial. Na obra de Maria Teresa Horta encontramo-nos, assim, num momento decisivo, que no entanto revela, no conjunto da sua obra, um percurso que conduzirá à afirmação de uma identidade cultural emancipadora e aberta, servida por uma literatura segura e aberta, reconhecida desde o início internacionalmente por Simone de Beauvoir, Marguerite Duras, Iris Murdoch ou Doris Lessing… Deste modo, a obra de Maria Teresa culminará numa obra-prima, o romance biográfico “As Luzes de Leonor”, revelador a um tempo da importância da Marquesa de Alorna e da interpretação atualista do seu pensamento iluminista, lido à luz da contemporaneidade, com inteligência e sentido humanista. “Não sei o que em mim é memória ou recriação. E nesse meu engenho de poeta, julgo-me no inventar dos versos, postos mais na intimidade do peito e bem menos no alento do corpo e seu fogo; e nele mal se reacende a chama logo me apresto a apagá-la, faço-o sem o menor regozijo, desejando eu pelo contrário ateá-la. Mas a razão sempre se encarrega de me lembrar quanto o coração está debilitado, a ponto de me levar a esquecer como o bem e o mal se assemelham, tal como o mar e o rio que na sua branda fusão na mesma foz se misturam”.    


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE MARIA ANDRESEN 

  


Dies Irae I


(Dreyer)

A natureza é escassa e o sol quando brilha é baço;
é furtiva por aqui a alegria
quando quase sem aviso nos visita

Há um foco de luz a desenhar o mundo
a luz fria, a luz do desassombro:
porque a morte de Herlof Marthe
soa e contagia

Vai manhã alta no coração de Anne
e altas são as chamas do castigo
– aqui o sol é frio –
Assombra-nos como um canto de rotina
Herlof Marthe e o seu dom pressagiante

A sentença avançará com a sua luz contida
com a sua faca propícia
a sentença avançará na sua forma fria

Só Anne convoca o amor, o venenoso amor
e com Martin assim caminha sobre pedras –
ao longe o som do machado corta de frio o ar


in Lugares, 2010


Dies irae I


(Dreyer)

Nature is sparse and the sun when it shines is dim;
joy is furtive around here
when it visits with almost no warning

There’s a beam of light tracing the world
cold light, ungiving light:
for the death of Herlof Marthe
resounds and spreads

The morning tide is high in Anne’s heart
as high are the flames of retribution
– here the sun is cold –
Herlof Marthe and his foreboding gift
haunt us like a persistent song

The verdict will go forth with its restricting light
its propitious knife
the verdict will go forth in its coldness

Only Anne summons love, the poisonous love
and walks with Martin over stones –
in the distance, the sound of the axe cuts coldly in air


© Translated by Ana Hudson, 2010
in Poems from the Portuguese

ANTOLOGIA

  


DE MARCENDA A LÍDIA…
por Camilo Martins de Oliveira


Meu Caro José:

A última carta que o seu Ricardo Reis escreve não é carta, nem vai assinada. É um sobrescrito endereçado a Marcenda Sampaio, para a posta restante de Coimbra. Dentro leva, sozinhos, estes versos, de que o José apenas transcreve os dois primeiros:  

"Saudoso já deste verão que vejo,
Lágrimas para as flores dele emprego
Na lembrança invertida
De quando hei-de perdê-las.
Transpostos os portais irreparáveis
De cada ano, me antecipo a sombra
Em que hei de errar, sem flores,
No abismo rumoroso.
E colho a rosa porque a sorte manda.
Marcenda, guardo-a; murche-se comigo
Antes que com a curva
Diurna da ampla terra".

Marcenda é murchante, flor que murcha. É essa menina doente de si mesma, de braço pendente e mão inerte. Descrente da esperança, trava a seiva de um amor nascente e, deste, o viço para sempre se quedará secreta memória. O José foi atrás do gosto classicista de Reis, que assim cria a forma verbal "marcenda" (de "marceo-es,-ere,-ui = murchar) , e dali fez um nome de mulher e o deu à contraponto de Lídia. Se, como escreve João Gaspar Simões, "com efeito, é através de Ricardo Reis que Fernando Pessoa se aproxima de si mesmo, de si mesmo como Fernando Pessoa. E Ricardo Reis, no fim de contas, quem descobre Fernando Pessoa a si próprio", a Marcenda de José Saramago descobre-nos o namoro de Fernando e Ofélia... Mas tudo isso é mera conjetura, Marcenda é criação sua, José, tal como a Lídia que se deita com Ricardo Reis não é a musa das odes,a menos que o poeta afinal a ela também diga "Temo, Lídia,o destino. Nada é certo... / ...Fora do conhecido é estranho o passo / Que próprio damos." E em mais odes repetirá "Sofro, Lídia, do medo do destino. / Qualquer pequena cousa de onde pode / Brotar uma ordem nova em minha vida, / Lídia, me aterra." Mas esta Lídia, criada de profissão e solteira, anuncia ao homem, que é médico e pessoa de outra condição, a esperança - também chamada embaraço - que ele lhe fez. E logo lhe corta a ilusão de poder ou querer fugir do que - a ela, mais do que a ele, pois é desamparada e de humilde condição - lhe mudará o destino e a vida: "Lídia mete-se adiante e responde, Vou deixar vir o menino. Então, pela primeira vez, Ricardo Reis sente um dedo tocar-lhe o coração... ...Que é um embrião de dez dias, pergunta mentalmente Ricardo Reis a si mesmo, e não tem resposta para dar, em toda a sua vida de médico nunca aconteceu ter diante dos olhos esse minúsculo processo de multiplicação celular, do que os livros ao acaso lhe mostraram não conservou memória, e aqui não pode ver mais do que esta mulher calada e séria... ... Puxou-a para si, e ela veio como quem enfim se protege do mundo, de repente corada, de repente feliz, perguntando como uma noiva tímida, ainda é tempo delas, Não ficou zangado comigo, Que ideia a tua, por que motivo iria eu zangar-me, e estas palavras não são sinceras, justamente nesta altura se está formando uma grande cólera dentro de Ricardo Reis, Meti-me em grande sarilho, pensa ele, se ela não faz o aborto fico para aqui com um filho às costas, terei de o perfilhar, é minha obrigação moral, que chatice, nunca esperei que viesse a acontecer-me uma destas. Lídia aconchegou-se melhor, quer que ele a abrace com força, por nada, só pelo bem que sabe, e diz as incríveis palavras, simplesmente, sem nenhuma ênfase particular, Se não quiser perfilhar o menino não faz mal, fica sendo filho de pai incógnito, como eu. Os olhos de Ricardo Reis encheram-se de lágrimas, umas de vergonha, outras de piedade, distinga-as quem puder, num impulso, enfim, sincero, abraçou-a, e beijou-a, imagine-se, beijou-a muito, na boca, aliviado daquele grande peso, na vida há momentos assim, julgamos que está uma paixão a expandir-se e é só o desafogo da gratidão." Conjeturando ainda, pergunto-me - pergunto-lhe, a si, talvez o José, desde esse assento etéreo, me responda - que mais teria feito Ricardo Reis, se Fernando não o tivesse vindo buscar para donde não se regressa tão cedo... Sei, posto que o afirma, que o médico-poeta assentiu que devia ter ficado à espera de Lídia, ali no Alto de Santa Catarina, para a consolar da perda do irmão marinheiro, o próprio Pessoa lho diz. Mas acha, afinal, que não poderia valer-lhe, a ela que dele tantas vezes cuidou. Mais sei que, ao ouvir o som dos canhões que atiravam contra o navio Afonso de Albuquerque, ele vai correndo por Lisboa, na ânsia de poder ser de algum préstimo no eventual salvamento do irmão de Lídia. E que a procura no Hotel Bragança, onde ela é serviçal, a ver se poderá oferecer-lhe apoio e conforto. Não a encontra, mas algo terá já mudado nesse monárquico, antigo aluno dos jesuítas, hoje cético dos deuses todos, que o seu neopaganismo situa num olimpo distante dos homens e onde "há só noite lá fora". O Ricardo que pensa que "sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo", e assim se considera, sairá afinal ao encontro do outro, desse desconhecido irmão da mulher humilde que quiçá o converteu à misteriosa capacidade do amor. Que pena tenho, José Saramago, de que não esteja agora aqui para me contar que caminhos imaginou para esse homem novo.


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 27.10.13 neste blogue.

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  
    Pormenor da estátua David de Michelangelo


201. RESISTIR À DESUMANIZAÇÃO


Sobressai, de há longa data, corroborada no tempo que vivemos, uma ausência de equidistância na análise de muitos quanto à não empatia e desumanização que manifestam pelas vítimas de países que têm como agressores ou governados por líderes, políticos ou políticas que ideologicamente não aprovam.     

O que coloca a questão: como resistir à desumanização?   

Uma das formas de resistência começa por ter consciência da nossa imperfeição e vulnerabilidade, dos nossos defeitos baseando-nos, como um desígnio mais alto (e não obstante o reconhecimento das nossas falhas) em princípios e valores que não nos deixem desumanizar e perder o rumo.   

Tendo como referência que todo o ser humano é igual na sua dignidade ontológica, existencial e social, que há (ou deve haver) referentes comuns resultantes de um genuíno acordo, mesmo que tácito, entre os povos, é inaceitável que não se manifeste a mesma censura, angústia, dor, preocupação ou solidariedade perante vítimas civis que, seja qual for a origem, são iguais na sua integridade e respeitabilidade.

Não há vítimas mais ou menos dignas, nem é aceitável que algumas sejam beneficiárias de maior condoimento e misericórdia por meros preconceitos pessoais, culturais ou ideológicos, sob pena de prevalecer e sermos cúmplices (no mínimo) do culto do ódio e de uma desumanização que, além de passiva, se limita a condenar apenas (e parcialmente) os atos de crueldade alheios perpetrados por aqueles que temos como mais responsáveis, abrindo o caminho a só mantermos a empatia pelas vítimas do lado do agredido, do oprimido e do mais fraco.

O ser humano tem, desde sempre, caraterísticas positivas e negativas, devendo aperfeiçoar as primeiras priorizando, igualmente, que a dignidade humana e o “amarás o próximo como a ti mesmo” devem ser consequentes na sua plenitude e universalidade.    


21.02.25
Joaquim M. M. Patrício 

CRÓNICA DA CULTURA

“O oposto do amor não é nenhum ódio, é a indiferença (…) o oposto da vida não é a morte, é a indiferença.”
Elie Wiesel

  


Será que não nos vemos uns nos outros e por isso não nos sabemos prometer?

A indiferença é a maior doença social do mundo de hoje, é mesmo a única que nos implora para que deixemos de ser neutros.

A indiferença é não dar à vida o que ela tem de especial, o que nós temos de expectativa em relação a nós próprios, e é ferir de morte a coesão de todos.

Está provado que a nossa demonstração de indiferença é uma das atitudes mais dolorosas que podemos projetar; é mesmo levar a uma pessoa o claro sentir de que ela não existe para nós, e pouco há de mais cruel.

Que estejamos felizes ou tristes, seja a mesma coisa para outros, é uma dor inexplicável do nosso sentir de encontro ao nada.

Vivem-se as inúmeras notícias de tragédias num individualismo exacerbado pela insensibilização que sempre se distanciou do bem comum.

Educar as novas gerações para a importância do coletivo, envolvê-las em causas comunitárias, em gestos de empatia e escuta do outro, não seria mais do que salvá-las da sua própria já mirrada condição.

Embora frequentemente subestimada, a postura passiva perante os problemas alheios, tem consequências devastadoras no tecido social, e numa era em que a informação está acessível a todos é mais alarmante e incompreensível por que insistimos em ignorar o sofrer alheio.

Não é inofensivo desviar o olhar, e também não é inofensivo o silêncio cúmplice perante as injustiças flagrantes que só perpetuam desigualdades, normalizam sofrimentos e nos desumanizam a todos.

Em grande parte, a apatia generalizada decorre sempre de almas não livres, almas de pus que nem reconhecem a inocência.

Não há que fundar mais religiões para as colocar no lugar do mundo de onde o significado partiu. Todos podemos ir além do possível, esse é o projeto.

E depois sim, o imenso começo.


Teresa Bracinha Vieira 

AS LUZES DE LEONOR

  


Um dia, sua mãe chamou-a à salinha onde recebia as amigas e ouvia música e apontou para um livro que estava sobre a mesinha baixa, e disse-lhe assinalando «uma página onde estava o retrato de uma mulher fascinante no seu vestido antigo, sorriso de fatalidade, pérolas entrançadas nos cabelos e olhar de enigma: “Esta  mulher é a tua avó e foi uma grande poetisa”. Nesse dia, a Leonor entrou na minha vida». É Maria Teresa Horta quem o diz. A mulher fascinante era Leonor de Almeida, a marquesa de Alorna. E eu abro o meu volume do romance extraordinário As Luzes de Leonor e leio a dedicatória da autora: “… este livro de poetas e anjos, mas sobretudo da maravilhosa Leonor de Almeida…” E é com profunda saudade que recordo essas palavras e quem as escreveu, que resumem duzentos anos de lembranças. E oiço: “Sou tua espia / Sou tua neta / Tua vigia // Sou tua asa / Sou tua guia / Tua passagem //Crio-te a fresta / Abro-te a porta / Teço-te a aura” (in Poemas para Leonor, 2012). Numa obra apaixonante, vasta e plural, lemos o livro segundo o conselho da autora, pela história dos Távoras ou pela história de Leonor, que esteve em reclusão no Convento de S. Félix de Chelas durante dezoito anos, “pela suprema vontade de um déspota” que determinou a sua existência, pois ao condenar à morte os avós Távora, ao prender o pai nas masmorras da Junqueira e “ao mandar enclausurar a minha mãe num mosteiro, comigo e a mana Maria no rasto e sombra da sua saia, julgou Sebastião José de Carvalho e Melo salgar o chão do meu destino”. E as palavras fluem naturalmente. “Desde sempre as mulheres da família dos Távora foram dadas a pressentimentos, a anjos e a cintilações, a negrumes, a visões, a premonições, a adivinhamentos e sonhos; dom maligno que, ao longo dos anos tendo trato com as profecias, veem sem rebuço entretecer a realidade em que vivem com o lado sombrio do seu mundo interior…” Deparamo-nos com o cego destino e o fanatismo que o domina, mas Leonor cultiva as Luzes e ama a liberdade. Lê Rousseau, Voltaire, Pope, Locke e Leibniz. Todos eles levam a questionar a autoridade do poder despótico, no qual “todo o sistema de educação se dirige ao temor e à vileza”. E Leonor confessa a seu pai: “Eu não acredito no destino, a vida é aquela que nós traçamos por decisão própria e nossa vontade”. E que melhor modo de exprimir o que vai na alma senão a poesia? Francisco Manuel do Nascimento lê o que Leonor escreve: “Li teus versos, Alcipe, e quando os lia / Bem cri que com a História conversava”. E a resposta não se faz esperar, batizando Alcipe seu interlocutor de Elísio, nome que ele junta a Filinto. Leonor sente a força do sentimento, mas no ambiente conventual torna-se “perigosa no querer passar para além do seu limite”,  - “alma nunca aplacada , gémea da tempestade, torvelinho e desacerto, novelo de muita água”. A poesia e o pensamento entusiasmam-na. Maria Teresa Horta segue com intensidade e amor os caminhos de Leonor e põe na sua boca as palavras que sente. “Não gosto, não consinto, não aceito: o negrume, a obediência cega. O torpor, a ignorância, o perdimento”. Terminado o pesadelo de Pombal, Leonor torna-se admirada na Corte e D. Maria I trá-la para junto de si. Casada com o conde de Oeynhausen, consegue para o marido a Embaixada em Viena, iniciando uma vida intensa e agitada. E seguindo-a Maria Teresa Horta deixou-nos uma obra-prima e um autorretrato sublime, pleno de audácia e inconformismo.


GOM

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