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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

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  199.  SILÊNCIOS E MISTÉRIOS

 

Se se aceita que a natureza é amoral, isso significa que a ciência humana também o pode ser? Há quem defenda que a ciência perdeu o sopro inspirador do humanismo, que é uma soma de técnicas, que se afasta crescentemente dos seus genuínos fins humanos. Já foi essencialmente progresso. Hoje é progresso e é retrocesso.

Fala-se na ferocidade atual no processo científico, que levou à guerra nuclear, aos problemas de ambiente, a que se junta a perplexidade de alguns progressos da genética, da bioquímica e da inteligência artificial, em que a responsabilidade do cientista é só para com a verdade científica, não a verdade moral, ética ou social.

Diz-se que neste momento há investigadores honestos e bons pais de família a trabalhar em laboratórios (muitos deles secretos) à descoberta de meios mais maléficos de matar, agindo conscientemente, não com ingenuidade, rumo a uma destruição mortal.

Assim, hoje, os homens de ciência são tidos, para muitos, como meros especialistas que perderam o saber moral, ético e humanista portador do prestígio incomum dos eleitos, isolando-se cada vez mais na torre esotérica da sua sabedoria rarificada, indiferentes à sorte dos demais seres humanos tornando-se, por vezes, imorais.

Sempre foi difícil para o ser humano conceber um mundo sem uma natureza moral, moralizadora e ética, com uma natureza amoral e zangada (ou um Deus irado) que se manifesta através de terramotos, tsunamis e tempestades (ou castigos divinos) mas que, por arrastamento, aceita a guerra, quando necessário, sem arrependimento, reflexão e qualquer peso moral e ético, em paralelo com cientistas, poderosos e políticos fabricantes do terror absoluto.

Ou será que a salvação está nos homens simples e sem Poder, em antagonismo com os homens pequenos que governam o mundo? Ou é uma esperança vã, dado que todos os humanos têm a mesma natureza e condição?

Expurgando liminarmente fábulas e mitos, persistem desafios e mistérios por desvendar, que nos remetem para a nossa natural e singela pequenez, dado não sermos a medida de tudo e de todas as coisas.

 

07.02.24
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

As pandemias sempre deixaram as pessoas muito assustadas, e entre a porta da vida e a porta da morte, nada como tornar as pessoas propensas a abraçar soluções mágicas

  


Ainda que seja estranho pensar que o bem sairá do mal e que nós como espécie ressurgiríamos bondosos e rendidos a novas promessas por efeito da pandemia, a verdade é que os líderes autoritários e cínicos deste mundo, não desaproveitaram tempo e politizaram o vírus e ridicularizaram a ciência e desprezaram os feridos e não enterraram os mortos.

Foi um tempo certeiro para colocar as solidatriedades em xeque e deixar tudo ficar sob ameaça, inclusive as instituições mais credíveis para nossa derrapagem descontrolada e para seu controlo a cadeado.

Muitas foram também as divisões que provocaram em inúmeros pontos do mundo as quais agora são usadas a favor deles. Não será exagero afirmar que criaram abismos e ódios para que as pessoas se desentendessem e desprezassem.

Eis uma das grandes vitórias das teorias da conspiração.

Enfim, reparar os danos que estas pessoas provocaram e continuadamente provocam não será nada fácil.

Recuperar sem medo a nossa antiga vida social tem-se mostrado difícil depois da pandemia, o que os beneficia, diga-se, já que nós, mais isolados, teremos menor debate de ideias, menos informação e seremos mais frágeis.

Contudo, o processo destes líderes vai-se tornando óbvio: utilizam as próprias instituições democráticas para as destruírem de dentro para fora progressivamente.

Assim, quando ascendem ao poder tentam bloquear todos os acordos e todas as relações multilaterais. Trata-se de um processo, como de forma precisa bem definiu Stefanie Walter, é um processo de “desintegração baseado nas massas” e é assim referido porque normalmente se sustenta num forte apoio interno que aplaude o líder político como divindade.

Outra das suas máximas, é que o Estado não tem de se ocupar de nada.

Para estes líderes, a desigualdade é absolutamente natural pois defendem o darwinismo social, ou seja, acreditam na premissa de que existem sociedades superiores, e as que intelectualmente e fisicamente sobressaírem, devem ser as que governam, enquanto as sociedades menos aptas não devem ter função pois não acompanham as linhas evolutivas da sociedade segundo as suas posturas algorítmicas.

Recorde-se que um destes autoritários políticos chamou aos direitos humanos o “esterco da preguiça”.

O sentido de palavras como estas que se referiam aos direitos humanos, atenta ao perigoso surto pandémico e ao aumento inesperado de infetados desta medonha doença que circula hoje no mundo, e cuja vacina única reside na cultura e na educação, realidades que a melhor mente não fabrica em laboratório, nem a melhor técnica quântica expande.

Todavia, entre a porta da vida e a porta da morte, e face ao rugido do mundo, saberemos como se pode encontrar caminho para que a vida imaginada possa crescer.


Teresa Bracinha Vieira

LUANDINO VIEIRA

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Ourém homenageou Luandino Vieira, um dos seus mais ilustres conterrâneos, natural de Lagoa do Furadouro, para surpresa de alguns, já que a celebridade do escritor angolano e até o seu pseudónimo se devem à ligação íntima que estabeleceu com a cidade de Luanda. Tratou-se de uma iniciativa plena de significado, e foi com emoção que pudemos usufruir dos trabalhos realizados pelos estudantes das escolas sobre a obra do escritor. Ficou mais uma vez demonstrado como a atividade educativa pode desempenhar um papel fundamental não apenas na troca e difusão de conhecimentos, mas também na mobilização das comunidades no desenvolvimento da educação para a cidadania, pela construção de uma escola de cidadãos, como pretenderam os melhores pedagogos, de Maria Montessori ou John Dewey até aos nossos Luísa e António Sérgio. Que melhor promoção da cultura senão através da leitura participada? As bibliotecas escolares estão, assim, no centro de qualquer vida cultural. E deste modo pudemos reler com os olhos de sempre a obra de Luandino Vieira, designadamente “Luuanda”, através da sensibilidade de alunos e professores de Ourém.

 

Graças à iniciativa de Agripina Carriço Vieira, foi possível mobilizar o Município de Ourém e o Instituto Politécnico de Tomar numa importante reflexão sobre a vida e o exemplo do escritor luso-angolano. E Roberto Vecchi visitou os “Papeis da Prisão” como testemunhos vivos da revelação do que Eduardo Lourenço designou como o “nosso impensado”, a resistência e o combate pela liberdade. A força da cultura da nossa língua evidencia-se em tal determinação. E nessa reflexão, José Luís Pires Laranjeira, Lívia Apa, Tânia Macedo e Francisco Topa abriram horizontes sobre a vitalidade cultural de quando no livro “Luuanda” os casos se passaram “no musseque Sambizanga nesta nossa terra de Luanda”. E eis que podemos descobrir o que Carmen Tindó Secco afirmou sobre o facto, “de um modo próprio e genial”, de Luandino ter recriado “a língua portuguesa para refletir a oralidade angolana”. Vem à memória “Sagarana”, o inesquecível livro de contos de João Guimarães Rosa, cujo espírito renovador se projeta na escrita de “Luuanda”. E assim seguimos as três narrativas capitulares: “Vavó Xixi e seu neto Zeca Santos”, “A estória do ladrão e do papagaio” e “A estória da galinha e do ovo”, que tanto entusiasmaram os jovens leitores de hoje, surpreendidos pelo inesperado da criatividade vivida entre o português e o quimbundo, língua viva dos musseques. Como afirma Margarida Calafate Ribeiro: esta obra “ganhou um lugar tanto na história portuguesa como na angolana como um momento chave de enfrentamento”.

 

Quando Luandino Vieira recusou receber o Prémio Camões em 2006, fê-lo com o argumento que não tinha então uma ação continuada no mundo literário. Contudo fica claro que a sua presença na cultura da língua portuguesa é marcante como demonstrou o Grande Prémio de Novelística atribuído pela Sociedade Portuguesa de Escritores em 1965, que originou a perseguição política e o brutal fecho da instituição presidida por Jacinto do Prado Coelho. O júri constituído por Alexandre Pinheiro Torres, Augusto Abelaira, Fernanda Botelho, João Gaspar Simões e Manuel da Fonseca reconheceu de forma pioneira uma obra muito importante na moderna literatura portuguesa, daí que o Prémio Camões caiba com inteira justiça a Luandino Vieira, numa análise global de tudo o que nos deixa. 

 

GOM

DONALD TRUMP. QUE DEUS?

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    Bispa Mariann Edgar Budde/EPA


Quero deixar uma homenagem sentida a uma mulher, a Bispa episcopaliana Mariann Edgar Budde, e a tantas e tantos que, com inteligência e coragem, continuam a missão do Evangelho de Jesus.    

1. No passado dia 20, no seu discurso de tomada de posse, Donald Trump declarou triunfalmente que começava “a era de ouro” da América. Fora salvo por Deus da bala assassina, “para fazer a América grande outra vez”; a partir de agora, “há apenas dois géneros: masculino e feminino” e um novo sistema de imigração nas fronteiras e a deportação massiva de imigrantes ilegais, delinquentes...

2. No dia seguinte, iniciou o dia com uma celebração religiosa na Catedral Nacional de Washington, um acontecimento que encerra os actos da investidura do novo Presidente.

A pregação — ficam excertos — coube à Bispa Mariann Budde: “Como país, reunimo-nos esta manhã para rezar pela unidade..., uma unidade que serve o bem comum..., uma forma de estar com os outros que abraça e respeita as nossas diferenças. Permite-nos, nas nossas comunidades e nas esferas do poder, preocuparmo-nos verdadeiramente uns com os outros, mesmo quando discordamos.” A unidade tem de importar-nos: “Espero que nos importemos porque a cultura do desprezo que se normalizou neste país ameaça destruir-nos.” Temos de continuar a acreditar nos ideais expressos na Declaração da Independência, com a sua “afirmação da igualdade e dignidade humanas inatas”.

E quais são os fundamentos da unidade? “Com base nas nossas tradições e textos sagrados, existem pelo menos três.” O primeiro é “honrar a dignidade inerente a cada ser humano, que é o direito inato de todas as pessoas como filhos do nosso único Deus.” O segundo é “a honestidade, tanto nas conversas privadas como no discurso público.” O terceiro é a humildade, “da qual todos precisamos porque somos todos seres humanos falíveis.”

“Permita-me um último pedido. Senhor Presidente, milhões de pessoas confiaram em si e, como disse ontem à nação, sentiu a mão providencial de um Deus amoroso. Em nome do nosso Deus, peço-lhe que tenha compaixão   do povo do nosso país que agora está com medo.” E lembrou gays, lésbicas e transexuais. “E as pessoas que cuidam das nossas colheitas, limpam os nossos escritórios, trabalham nas explorações agrícolas e nas fábricas, lavam a louça e trabalham no turno da noite nos hospitais: podem não ser cidadãos ou não ter a documentação adequada, mas a grande maioria dos imigrantes não são criminosos. Eles pagam impostos e são bons vizinhos. Peço-lhe que tenha misericórdia, Senhor Presidente, e ajude os que fogem das zonas de guerra e da perseguição nas suas terras a encontrar compaixão e acolhimento aqui. O nosso Deus ensina-nos que devemos ser misericordiosos com o estrangeiro, pois éramos todos estrangeiros nesta terra.” “Que Deus nos conceda a força e a coragem para honrar a dignidade de cada ser humano.”

Trump, que é presbiteriano e tem a Bíblia como livro favorito, não gostou, escrevendo na sua rede social contra a Bispa: “Com comentários inapropriados, o sermão foi aborrecido e muito pouco inspirador. Ela e a sua Igreja devem pedir desculpa ao público.” Evidentemente, a Bispa declarou que não o faria, de modo nenhum.

3. Numa carta aberta, o jesuíta J. I. González Faus lembrou a Trump que o Deus de Jesus é “o Amor infinito”, não “o orgulho infinito”. Penso que isto deveria ser lembrado a todos.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 31 de janeiro de 2025

A VIDA DOS LIVROS

  
De 3 a 9 de fevereiro de 2025


Recentemente terminado o Sínodo da Igreja Católica debruçou-se sobre o papel das mulheres e chegou a conclusões que podem prenunciar um caminho renovador, a que devemos estar atentos.


UMA LEITURA CUIDADA
É fundamental estar atento às conclusões do Sínodo da Igreja Católica no tocante ao papel das mulheres. Torna-se necessário fazer uma leitura cuidada do que aí se disse. É verdade que se poderia ter ido mais longe, mas numa instituição bimilenária é indispensável dar passos seguros, sem esquecer a audácia e a coragem. Se virmos bem, tudo aqui está dito, e não podemos esquecer que a sociedade humana compreende que a dignidade da pessoa humana, no sentido universalista, tem de abranger todos de um modo aberto e paritário. Releia-se, por isso, o texto fundamental do Sínodo, que deve estar bem presente: «Em virtude do Batismo, homens e mulheres gozam de igual dignidade no Povo de Deus. No entanto, as mulheres continuam a encontrar obstáculos para obter um reconhecimento mais pleno dos seus carismas, da sua vocação e do seu lugar nos vários sectores da vida da Igreja, em detrimento do serviço à missão comum».


Sem tergiversações, sigamos diretamente o texto aprovado. Não pode haver qualquer ilusão sobre qual o sentido das Escrituras nesta matéria. De facto, «as Escrituras atestam o papel de primeiro plano de muitas mulheres na história da salvação. A uma mulher, Maria de Magdala, foi confiado o primeiro anúncio da Ressurreição; no dia de Pentecostes, Maria, a Mãe de Jesus, estava presente no Cenáculo, juntamente com muitas outras mulheres que tinham seguido o Senhor. É importante que as passagens relevantes da Escritura encontrem lugar apropriado nos lecionários litúrgicos. Alguns momentos cruciais da história da Igreja confirmam o contributo essencial das mulheres movidas pelo Espírito. As mulheres constituem a maioria daqueles que frequentam as igrejas e são frequentemente as primeiras testemunhas da fé nas famílias. São ativas na vida das pequenas comunidades cristãs e nas paróquias; dirigem escolas, hospitais e centros de acolhimento; lideram iniciativas de reconciliação e de promoção da dignidade humana e da justiça social. As mulheres contribuem para a investigação teológica e estão presentes em posições de responsabilidade nas instituições ligadas à Igreja, na Cúria diocesana e na Cúria Romana. Há mulheres que exercem cargos de autoridade ou são responsáveis pela comunidade».


A PRIMEIRA PREFEITA COM DICASTÉRIO ATRIBUÍDO
Há, deste modo, um sinal muito importante que acaba de ser dado: pela primeira vez na história da Igreja Católica, uma mulher foi nomeada Prefeita do Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica. Trata-se da irmã Simona Brambilla, religiosa das Missionárias da Consolata, doutorada em Psicologia pela Universidade Gregoriana. Quando Emmanuel Mounier afirmou que “a mulher também é pessoa”, houve quem considerasse a afirmação como óbvia ou supérflua, mas a verdade é que ainda hoje estamos confrontados com incompreensões e dúvidas incompreensíveis a esse respeito, o que obriga a tirarmos as devidas consequências.


Até hoje, a Igreja Católica reconheceu 36 doutores, entre os quais quatro mulheres: Teresa de Ávila (1515-1582), Catarina de Sena (1347-1380), Teresa de Lisieux (1873-1897) e, por último, a monja beneditina Hildegarda de Bingen (1098-1179). Poderemos falar, certamente no futuro próximo, ainda da Santa Teresa Benedita da Cruz, a filósofa reconhecida mundialmente com uma importante obra publicada, Edith Stein (1891-1942). E quando lemos os contributos teológicos destas mulheres compreendemos bem a força da sua fé e da sua reflexão em termos de extraordinária relevância. Demonstram, afinal, como o tempo confirmará por certo, a exigência do reconhecimento da dignidade humana com todas as suas consequências. Daí o Sínodo convidar a uma plena concretização «de todas as oportunidades já previstas no direito vigente relativamente ao papel das mulheres, particularmente nos lugares onde estas continuam por cumprir. Não há razões que impeçam as mulheres de assumir funções de liderança na Igreja: não se pode impedir o que vem do Espírito Santo. A questão do acesso das mulheres ao ministério diaconal também permanece em aberto. É necessário prosseguir o discernimento a este respeito. A Assembleia convida também a prestar maior atenção à linguagem e às imagens utilizadas na pregação, no ensino, na catequese e na redação dos documentos oficiais da Igreja, dando mais espaço ao contributo de mulheres santas, teólogas e místicas».


SINAL PROMETEDOR
Se temos agora um sinal prometedor, somos chamados à coragem e ao uso coerente da sabedoria. Daí a importância de uma leitura atenta de um texto notável onde está tudo dito, importando tirar consequências. Eis o desafio fundamental: partir de cada uma destas considerações, para podermos com determinação avançar no reconhecimento da dignidade humana para todos nas suas justas consequências. Como afirmou o Papa Francisco, “penso em todas as mulheres: agradeço-lhes pelo seu compromisso em construir uma sociedade mais humana, por meio da sua capacidade de compreender a realidade com um olhar criativo e um coração terno”.


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE MANUEL DE FREITAS 

  


Restaurant Biblioteket


Há poemas assim, que não precisam
de ser escritos; apenas enunciados,
ditos em voz baixa a mais ninguém.
A cidade levar-te-á onde te quiser levar,
indiferente à paixão ou à minúcia dos teus passos.
Quem esteve na Toldbodgade, 5,
depressa concordará comigo.


in Brynt Kobolt, 2008


Restaurant Biblioteket


There are poems which, as they are, don’t need
to be written; just summoned,
spoken quietly to no one else.
The city will take you wherever it will,
indifferent to the passion or preciseness of your steps.
Who has ever been at 5, Toldbodgade
will promptly agree.


© Translated by Ana Hudson, 2012R
in Poems from the Portuguese

 

ANTOLOGIA

  


QUE SOBRE SI NÃO SE ENGANE QUEM AMA…
por Camilo Martins de Oliveira


Meu Caro José:

Ao dirigir-me tão familiarmente a si, meu Caro José, lembrei-me das hesitações de Ricardo Reis sobre o modo como tratar Marcenda na primeira carta que lhe escreve. O José resolve-lhe bem o problema: "depois de algumas folhas rasgadas achou-se com o simples nome, por ele nos devíamos tratar todos, nomeai-vos uns aos outros, para isso mesmo o nome nos foi dado e o conservamos". Nomeai-vos uns aos outros convoca esse preceito que diz "amai-vos uns aos outros", e a evocação não é gratuita, muito pouco do que o José escreve é gratuito, nem sequer os pleonasmos de que afirma não gostar mas pelos quais tantas vezes tão bem se exprime. No que tenho lido de si, há inspirações recorrentes, como se Quem o perseguisse no seu labirinto. O texto bíblico vai aparecendo, há um qualquer som evangélico que em si canta como a sombra que nos acompanha. Volto sempre a "O Ano da Morte de Ricardo Reis", ouço o poeta das "Odes" dizer a Marcenda que, ao médico que ele é e ela quer amigo, pede uma cura, um conselho, um remédio que lhe reanime a inerte mão esquerda: "Já lhe disse que não sou especialista, e a Marcenda, tanto quanto posso julgar, se está doente do coração, também está doente de si mesma, É a primeira vez que mo dizem, Todos nós sofremos duma doença, duma doença básica, digamos assim, esta que é inseparável do que somos e que, duma certa maneira, faz aquilo que somos, se não seria mais exato dizer que cada um de nós é a sua doença, por causa dela somos tão pouco, também por causa dela conseguimos ser tanto..." E quando, cansada de adiamentos, Marcenda lhe confidencia "Já quase não acredito", Ricardo lhe dirá "Defenda o que lhe resta, acreditar será o seu álibi, Para quê, Para manter a esperança, Qual, A esperança, só a esperança, nada mais, chega-se a um ponto em que não há mais nada senão ela, é então que descobrimos que ainda temos tudo." E o visitante Fernando Pessoa que, de vez em quando, regressa da mansão dos mortos para conversar com Reis, explica-lhe assim a diferença entre vivos e mortos: "A diferença é uma só, os vivos ainda têm tempo, mas o mesmo tempo lho vai acabando, para dizerem a palavra, para fazerem o gesto, Que gesto, que palavra, Não sei, morre-se de a não ter dito, morre-se de não o ter feito, é disso que se morre, não de doença, e é por isso que a um morto custa tanto aceitar a sua morte..."  Assim também medita a Sophia que há-de regressar para buscar os instantes que não viveu junto do mar, na sua homenagem a Ricardo Reis:


"Não creias, Lídia,que nenhum estio

Por nós perdido possa regressar
Oferecendo a flor
Que adiámos colher.
Cada dia te é dado uma só vez
E no redondo círculo da noite
Não existe piedade
Para aquele que hesita.
Mais tarde será tarde e já é tarde.
O tempo apaga tudo menos esse
Longo indelével rasto
Que o não-vivido deixa.
Não creias na demora em que te medes.
Jamais se detém Kronos cujo passo
Vai sempre mais à frente
Do que o teu próprio passo."


O mesmo pensassentimento, esse acreditar-esperar que nos persegue e nos diz que sem-remédio é só o que não amámos, surge na última carta de Camilo Maria à Princesa de... "Neste ano em que talvez me morra, nesta manhã tão cheia de sol amigo, vejo as primeiras andorinhas de uma primavera que tardou. Estou deitado, pedi que me abrissem as largas janelas do quarto, para te escrever à luz firme de um novo dia..." E recorre ao teólogo Yves Congar: "A ontologia do céu é o amor, a comunhão e a ação de graças; a da terra é a possibilidade de tudo correr melhor amanhã, a possibilidade da conversão. A ontologia do inferno é a permanência numa vida destituída de significado e esperança. Uma vez mais, Dostoïevsky tem sobre tudo isso páginas de extraordinária profundidade. " E cita passos das reflexões do monge Zózimo em "Os Irmãos Karamazov":  "O que é o inferno? É o sofrimento de já não poder amar. Uma vez só, na vida infinita que não podemos medir, nem no tempo nem no espaço, foi dada a um ser espiritual, pelo facto de ter aparecido cá em baixo, a possibilidade de dizer: Sou e amo! Uma vez, apenas uma vez, lhe foi dado um instante de amor ativo e vivo, e por isso lhe foi dada a vida terrestre nos seus limites temporais." Sabe, José? Senti-o por vezes um pouco irrefletido, inutilmente injusto, quase ou até inquisitorial na perseguição, quiçá mesquinhamente raivoso. Está no seu direito, ou no seu esquerdo, é como queira, todos nós acordamos para o lado errado, hoje, amanhã ou depois. Ou temos alergias, birras, escrúpulos irritáveis, suscetibilidades. Mas talvez isso nos torne humanos, diferentes do barro inerte de que fomos feitos. E como necessariamente temos de conviver, meritório será o esforço de aceitarmos esse risco inato. É certo que, pelo espaço geográfico e o tempo histórico do mundo a que chamamos nosso, a força centrípeta que moldou tribos e estados, seitas e religiões, qual roda de oleiro, foi sempre suscitando a afirmação do poder centralizador pela exclusão do estrangeiro ou do heterodoxo, do servidor escravizado ou do hereje perseguido... Por isso, ao longo de gerações de seres humanos, alguns clamaram que o poder político e as religiões eram fautores de injustiça e guerra. Ceifadores da fé e da esperança, porque o objeto destas é o amor que prometem e podem ir realizando. Talvez o José Saramago pudesse ter amado mais, se não tivesse sentido o espinho do desamor, esse falhanço de uma promessa que outros tornaram engano. Ou talvez não, ou, quiçá, pudesse e devesse amar mais, mesmo sem essa frustração. Não sei. Nem tenho de saber. Sei, sim, pensossinto, que amou muito. Sem excessos de romantismo nem baboseiras eróticas ou beatas, quantos outros escritores terão falado das mulheres (da Mulher que há em todas) com a atenção, a veneração natural e sensível, a misericórdia (que, só ela torna visível, entre nós, o amor de Deus)?  E termino esta com mais um texto seu, este respigado de "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", sobre o qual me sobra ainda muito para lhe dizer. "Tendo sido Maria Madalena, como é geralmente sabido, tão pecadora mulher, perdida como as mais que o foram, teria também de ser loura, para não desmentir as convicções, em bem e em mal adquiridas, de metade do género humano. Não é, porém, por parecer esta terceira Maria, em comparação com a outra, mais clara na tez e no tom do cabelo, que insinuamos e propomos, contra as arrasadoras evidências de um decote profundo e de um peito que se exibe, ser ela a Madalena. Outra prova, esta fortíssima, robustece e afirma a identificação, e vem a ser que a dita mulher, ainda que um pouco amparando, com distraída mão, a extenuada mãe de Jesus, levanta, sim, para o alto o olhar, e este olhar, que é de autêntico e arrebatado amor, ascende com tal força que parece levar consigo o corpo todo, todo o seu ser carnal, como uma irradiante auréola capaz de fazer empalidecer o halo que já lhe está rodeando a cabeça e reduzindo pensamentos e emoções. Apenas uma mulher que pudesse ter amado tanto quanto imaginamos que Maria Madalena amou poderia olhar desta maneira..." Noutra carta, José, lhe falarei do seu curioso materialismo, ou de como a poesia (ou lá o que é) escapa à consideração positivista da natureza. Pensandossentindo essa luz guardada na tijela cheia de terra que o anjo-mendigo deixou a Maria e José de Nazaré. E se nesse assento etéreo abraços desta vida se consentem...


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 25.10.13 neste blogue.