ANTOLOGIA
QUE SOBRE SI NÃO SE ENGANE QUEM AMA…
por Camilo Martins de Oliveira
Meu Caro José:
Ao dirigir-me tão familiarmente a si, meu Caro José, lembrei-me das hesitações de Ricardo Reis sobre o modo como tratar Marcenda na primeira carta que lhe escreve. O José resolve-lhe bem o problema: "depois de algumas folhas rasgadas achou-se com o simples nome, por ele nos devíamos tratar todos, nomeai-vos uns aos outros, para isso mesmo o nome nos foi dado e o conservamos". Nomeai-vos uns aos outros convoca esse preceito que diz "amai-vos uns aos outros", e a evocação não é gratuita, muito pouco do que o José escreve é gratuito, nem sequer os pleonasmos de que afirma não gostar mas pelos quais tantas vezes tão bem se exprime. No que tenho lido de si, há inspirações recorrentes, como se Quem o perseguisse no seu labirinto. O texto bíblico vai aparecendo, há um qualquer som evangélico que em si canta como a sombra que nos acompanha. Volto sempre a "O Ano da Morte de Ricardo Reis", ouço o poeta das "Odes" dizer a Marcenda que, ao médico que ele é e ela quer amigo, pede uma cura, um conselho, um remédio que lhe reanime a inerte mão esquerda: "Já lhe disse que não sou especialista, e a Marcenda, tanto quanto posso julgar, se está doente do coração, também está doente de si mesma, É a primeira vez que mo dizem, Todos nós sofremos duma doença, duma doença básica, digamos assim, esta que é inseparável do que somos e que, duma certa maneira, faz aquilo que somos, se não seria mais exato dizer que cada um de nós é a sua doença, por causa dela somos tão pouco, também por causa dela conseguimos ser tanto..." E quando, cansada de adiamentos, Marcenda lhe confidencia "Já quase não acredito", Ricardo lhe dirá "Defenda o que lhe resta, acreditar será o seu álibi, Para quê, Para manter a esperança, Qual, A esperança, só a esperança, nada mais, chega-se a um ponto em que não há mais nada senão ela, é então que descobrimos que ainda temos tudo." E o visitante Fernando Pessoa que, de vez em quando, regressa da mansão dos mortos para conversar com Reis, explica-lhe assim a diferença entre vivos e mortos: "A diferença é uma só, os vivos ainda têm tempo, mas o mesmo tempo lho vai acabando, para dizerem a palavra, para fazerem o gesto, Que gesto, que palavra, Não sei, morre-se de a não ter dito, morre-se de não o ter feito, é disso que se morre, não de doença, e é por isso que a um morto custa tanto aceitar a sua morte..." Assim também medita a Sophia que há-de regressar para buscar os instantes que não viveu junto do mar, na sua homenagem a Ricardo Reis:
"Não creias, Lídia,que nenhum estio
Por nós perdido possa regressar
Oferecendo a flor
Que adiámos colher.
Cada dia te é dado uma só vez
E no redondo círculo da noite
Não existe piedade
Para aquele que hesita.
Mais tarde será tarde e já é tarde.
O tempo apaga tudo menos esse
Longo indelével rasto
Que o não-vivido deixa.
Não creias na demora em que te medes.
Jamais se detém Kronos cujo passo
Vai sempre mais à frente
Do que o teu próprio passo."
O mesmo pensassentimento, esse acreditar-esperar que nos persegue e nos diz que sem-remédio é só o que não amámos, surge na última carta de Camilo Maria à Princesa de... "Neste ano em que talvez me morra, nesta manhã tão cheia de sol amigo, vejo as primeiras andorinhas de uma primavera que tardou. Estou deitado, pedi que me abrissem as largas janelas do quarto, para te escrever à luz firme de um novo dia..." E recorre ao teólogo Yves Congar: "A ontologia do céu é o amor, a comunhão e a ação de graças; a da terra é a possibilidade de tudo correr melhor amanhã, a possibilidade da conversão. A ontologia do inferno é a permanência numa vida destituída de significado e esperança. Uma vez mais, Dostoïevsky tem sobre tudo isso páginas de extraordinária profundidade. " E cita passos das reflexões do monge Zózimo em "Os Irmãos Karamazov": "O que é o inferno? É o sofrimento de já não poder amar. Uma vez só, na vida infinita que não podemos medir, nem no tempo nem no espaço, foi dada a um ser espiritual, pelo facto de ter aparecido cá em baixo, a possibilidade de dizer: Sou e amo! Uma vez, apenas uma vez, lhe foi dado um instante de amor ativo e vivo, e por isso lhe foi dada a vida terrestre nos seus limites temporais." Sabe, José? Senti-o por vezes um pouco irrefletido, inutilmente injusto, quase ou até inquisitorial na perseguição, quiçá mesquinhamente raivoso. Está no seu direito, ou no seu esquerdo, é como queira, todos nós acordamos para o lado errado, hoje, amanhã ou depois. Ou temos alergias, birras, escrúpulos irritáveis, suscetibilidades. Mas talvez isso nos torne humanos, diferentes do barro inerte de que fomos feitos. E como necessariamente temos de conviver, meritório será o esforço de aceitarmos esse risco inato. É certo que, pelo espaço geográfico e o tempo histórico do mundo a que chamamos nosso, a força centrípeta que moldou tribos e estados, seitas e religiões, qual roda de oleiro, foi sempre suscitando a afirmação do poder centralizador pela exclusão do estrangeiro ou do heterodoxo, do servidor escravizado ou do hereje perseguido... Por isso, ao longo de gerações de seres humanos, alguns clamaram que o poder político e as religiões eram fautores de injustiça e guerra. Ceifadores da fé e da esperança, porque o objeto destas é o amor que prometem e podem ir realizando. Talvez o José Saramago pudesse ter amado mais, se não tivesse sentido o espinho do desamor, esse falhanço de uma promessa que outros tornaram engano. Ou talvez não, ou, quiçá, pudesse e devesse amar mais, mesmo sem essa frustração. Não sei. Nem tenho de saber. Sei, sim, pensossinto, que amou muito. Sem excessos de romantismo nem baboseiras eróticas ou beatas, quantos outros escritores terão falado das mulheres (da Mulher que há em todas) com a atenção, a veneração natural e sensível, a misericórdia (que, só ela torna visível, entre nós, o amor de Deus)? E termino esta com mais um texto seu, este respigado de "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", sobre o qual me sobra ainda muito para lhe dizer. "Tendo sido Maria Madalena, como é geralmente sabido, tão pecadora mulher, perdida como as mais que o foram, teria também de ser loura, para não desmentir as convicções, em bem e em mal adquiridas, de metade do género humano. Não é, porém, por parecer esta terceira Maria, em comparação com a outra, mais clara na tez e no tom do cabelo, que insinuamos e propomos, contra as arrasadoras evidências de um decote profundo e de um peito que se exibe, ser ela a Madalena. Outra prova, esta fortíssima, robustece e afirma a identificação, e vem a ser que a dita mulher, ainda que um pouco amparando, com distraída mão, a extenuada mãe de Jesus, levanta, sim, para o alto o olhar, e este olhar, que é de autêntico e arrebatado amor, ascende com tal força que parece levar consigo o corpo todo, todo o seu ser carnal, como uma irradiante auréola capaz de fazer empalidecer o halo que já lhe está rodeando a cabeça e reduzindo pensamentos e emoções. Apenas uma mulher que pudesse ter amado tanto quanto imaginamos que Maria Madalena amou poderia olhar desta maneira..." Noutra carta, José, lhe falarei do seu curioso materialismo, ou de como a poesia (ou lá o que é) escapa à consideração positivista da natureza. Pensandossentindo essa luz guardada na tijela cheia de terra que o anjo-mendigo deixou a Maria e José de Nazaré. E se nesse assento etéreo abraços desta vida se consentem...
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 25.10.13 neste blogue.