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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

  

De 24 de fevereiro a 2 de março de 2025


Maria Teresa Horta é uma referência fundamental da moderna literatura da língua portuguesa.


Ao assinalar os cinquenta anos da Revolução portuguesa de 25 de Abril de 1974, o Presidente da República de França destacou o caso da publicação das “Novas Cartas Portuguesas” como um exemplo de combate cívico pela liberdade cidadã, homenageando as suas autoras Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. É significativo que seja uma referência da literatura e da liberdade criadora a identificar o que Samuel Huntington designou como o início da Terceira Vaga da democratização. Quando Maria Teresa Horta nos deixa, essa recordação ganha especial importância, uma vez que a História portuguesa, desde as suas origens, foi marcada por referências literárias – lembrando-nos dos trovadores na génese da nação e da língua que nos define e projeta globalmente pelo mundo até Camões. E o certo é que as “Novas Cartas Portuguesas” significam um grito de alerta em nome da liberdade do pensamento e da defesa intransigente da dignidade humana, considerando a igual consideração e respeito de todos. 


Conheci bem as três autoras dessa obra emblemática. Maria Teresa Horta foi uma amiga a que me ligam laços de mútua admiração que nunca poderei esquecer. Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa foram próximas colaboradoras no Ministério da Educação, a quem devo testemunhos vivos de entrega à ideia generosa e necessária de fazer da Educação um fator de emancipação cidadã, de cosmopolitismo e de partilha de responsabilidades. Concordo com Helena Vasconcelos que Maria Teresa é uma “autora ímpar”, assentando a sua singularidade em vários fatores, “nos quais se incluem uma linguagem inconfundível, fluida e apaixonada, um imaginário riquíssimo, uma vasta cultura humanista – de raízes clássicas – e uma capacidade invejável de escrever continuamente, sem limites nem amarras, reinventando em cada linha as mais profundas e inefáveis questões que desafiam – e angustiam – a humanidade” (Público, 5.2.2025). Foi sempre assim que a encontrei. Era inconformada e inconformista, rebelde e iconoclasta, mas quase paradoxalmente profundamente consciente das raízes e da importância da dimensão histórica da vida. Quando Patrícia Reis encontrou a palavra “desobediente” para dar título à sua biografia deu, propositadamente, apenas um traço da sua extraordinária personalidade, mas quando fechamos o livro, ao terminar a leitura entusiasta e motivadora, percebemos que é apenas um começo aquilo de que se trata, porque, ao longo da vida, facilmente percebemos que estamos perante uma personalidade multifacetada capaz da determinação e da extrema coragem (demonstrada em vários momentos da vida, perante a violência absurda do Estado policial), mas também de uma extrema sensibilidade e doçura, bem evidentes na sua poesia. O jornalismo atraiu-a desde muito cedo. Gostava do acontecimento e da tensão do contraditório – e desde cedo foi uma cinéfila militante. Foi a primeira mulher a liderar um Cineclube, o ABC. “A Capital” e o “Diário de Notícias” estão no seu currículo, bem como os textos dispersos nos “Diário de Lisboa”, “República”, “O Século”, e naturalmente o “JL”. Na revista “Mulheres” entrevistou Maria de Lourdes Pintasilgo, Marguerite Yourcenar, Marguerite Duras e Maria Betânia. Na Faculdade de Letras foi amiga inseparável de Fiama Hasse Pais Brandão. “Espelho Inicial” foi o primeiro livro, graças a António Ramos Rosa, com a capa de Manuel Baptista, antes deste partir com uma bolsa da Gulbenkian para Paris. O livro suscita comentário positivo de João Gaspar Simões: elogiando a originalidade e dizendo que era uma nova voz a surgir no meio literário português. Em 1961 participa na “Poesia 61” com Gastão Cruz, Luiza Nerto Jorge, Fiama e Casimiro de Brito, com “Tatuagem”. Gastão Cruz dirá: “A novidade da poesia de Maria Teresa Horta manifesta-se (…) em vários planos e setores: o da linguagem e da construção do poema; o social e político; o sexual”. Pouco depois conhece Leonor Cunha Leão, a alma dos Guimarães Editores. Era a primeira mulher  editora em Portugal que publicava Agustina Bessa-Luís, que convida Teresa para publicar na coleção “Poesia e Verdade”. Conhece escritores como Sophia de Mello Breyner, Yvette Centeno, Ana Hatherly; mas também David Mourão-Ferreira, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny, Alexandre O’Neill, José Carlos Ary dos Santos, Pedro Tamen e António Gedeão. Maria Teresa Horta entrava nos meios literários com uma marca própria que o tempo irá revelar em toda a sua riqueza e maturidade, para além de qualquer lógica puramente circunstancial.


Em 1971, a publicação de “Minha Senhora de Mim”, nas Publicações Dom Quixote, sob a direção de Snu Abecassis, abre um processo de denuncia da ausência de liberdade de expressão, que se soma à participação de Maria Teresa Horta na “Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica” de Natália Correia. Segue-se a apresentação e proibição das “Novas Cartas Portuguesas” apenas vem confirmar a ausência de “abertura política”, que contribuiria para acelerar o processo que culminaria na Revolução de Abril. Inspiradas nas “Cartas Portuguesas” de Mariana Alcoforado (1640-1723) o método epistolar, conduzido pelas três escritoras, vai tornar claro como se acumulam fatores de bloqueamento relativamente à evolução democrática no tocante aos direitos fundamentais, em especial das mulheres, com repercussões em toda a sociedade, no sistema judicial, na pressão migratória, na violência do regime ou na guerra colonial… Estamos perante uma obra reveladora da exigência de abertura política e social, como questão de sobrevivência. Não estamos perante um epifenómeno, mas de um problema crucial. Na obra de Maria Teresa Horta encontramo-nos, assim, num momento decisivo, que no entanto revela, no conjunto da sua obra, um percurso que conduzirá à afirmação de uma identidade cultural emancipadora e aberta, servida por uma literatura segura e aberta, reconhecida desde o início internacionalmente por Simone de Beauvoir, Marguerite Duras, Iris Murdoch ou Doris Lessing… Deste modo, a obra de Maria Teresa culminará numa obra-prima, o romance biográfico “As Luzes de Leonor”, revelador a um tempo da importância da Marquesa de Alorna e da interpretação atualista do seu pensamento iluminista, lido à luz da contemporaneidade, com inteligência e sentido humanista. “Não sei o que em mim é memória ou recriação. E nesse meu engenho de poeta, julgo-me no inventar dos versos, postos mais na intimidade do peito e bem menos no alento do corpo e seu fogo; e nele mal se reacende a chama logo me apresto a apagá-la, faço-o sem o menor regozijo, desejando eu pelo contrário ateá-la. Mas a razão sempre se encarrega de me lembrar quanto o coração está debilitado, a ponto de me levar a esquecer como o bem e o mal se assemelham, tal como o mar e o rio que na sua branda fusão na mesma foz se misturam”.    


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença