CONTRARIAR O FEUDALISMO DIGITAL
© Mariana Mazzucato
A Cimeira de Paris para a ação sobre a Inteligência Artificial (IA) ocorreu num momento especialmente complexo, considerando a conjuntura internacional marcada pela eleição de Donald Trump, pelos avanços tecnológicos anunciados pelos chineses e pela afirmação de um oligopólio no mundo digital. Como salientou Mariana Mazzucato, estudiosa com provas dadas na análise rigorosa do setor, o que está em causa não é saber se a Europa pode rivalizar com a China e os Estados Unidos, mas saber se os europeus poderão abrir caminho a uma abordagem guiada por uma investigação séria sobre o “valor público”. O objetivo deverá ser o de nos afastarmos do “feudalismo digital” enquanto modelo dominante das plataformas digitais, baseado na exploração das respetivas rendas. Sabemos que a IA, independentemente do termo ser equívoco, tem características próprias que influenciam todos os setores da economia, da política e da cultura, quer numa perspetiva positiva, quer nos riscos negativos.
Não se trata de uma tecnologia neutra, razão pela qual se torna fundamental orientá-la para o bem comum – e a investigadora considera ser essencial estruturar os mercados de inovação em IA, criando um ecossistema descentralizado ao serviço do interesse geral. Nesse sentido, importa remar contra uma perigosa maré que nos invade (“Le Monde”, 11.2.25) e que parece esquecer que não foi possível generalizar a internet sem os investimentos públicos estruturais realizados na área da Defesa de que a sociedade civil e o mundo da ciência puderam beneficiar. É assim surpreendente que Elon Musk surja como campeão da supressão de programas de financiamento governamentais em áreas estratégicas, quando ele e a sua empresa Tesla foram beneficiários de 4,7 mil milhões de euros de subvenções. E sejamos claros: além de haver dois pesos e duas medidas no discurso político, a verdade é que o enfraquecimento das capacidades dos Estados tornará cada vez mais difícil a regulação das novas tecnologias no sentido da defesa do interesse público. O que acontecerá quando o poder económico dominar as instituições da sociedade, e quando os conhecimentos técnicos ficarem concentrados apenas em cinco grupos económicos privados?
Quando hoje relemos as “Cartas Persas” de Montesquieu, percebemos como funcionava o despotismo oriental, sem um poder que limitasse o poder. E os investigadores do University College de Londres, em que se integra Mariana Mazzucato, têm sublinhado a necessidade de diferenciar, no caso da IA, a criação e o aproveitamento do valor, ou seja, devendo considerar as “rendas algorítmicas”. A manipulação dos utilizadores tornou-se regra, através de conteúdos aditivos impostos, que maximizam a dependência. Assim as plataformas escondem mecanismos muito lucrativos de fixação da atenção, pelo que urge, em nome da verdade, obrigar os operadores a tornarem público o uso abusivo que fazem dos seus algoritmos, já que há um claro abuso de direito, que tem de ser limitado. São perigosos os danos colaterais de uma lógica que favorece o parasitismo e afeta gravemente a coesão social e a solidariedade cívica, a defesa do meio ambiente e a formação dos menores. As virtualidades da IA têm de ser salientadas e a produtividade europeia depende delas, mas o feudalismo digital tem de ser contrariado, através de instituições mediadoras democráticas e fatores que favoreçam o valor público e o bem comum.
GOM