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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

De 3 a 9 de março de 2025


Damião de Góis é um verdadeiro símbolo do humanismo português. A sua vida e obra constituem exemplos de testemunhos fundamentais reveladores de uma personagem e de uma cultura abertas ao futuro e à necessidade de abrir perspetivas novas para o progresso dos povos e para uma melhor humanidade.

 


FIGURA FUNDAMENTAL
Damião de Góis (1502-1574) é, de facto, um símbolo do humanismo universalista português. É um bom exemplo de quem, que em lugar de se deixar encerrar dentro dos nossos limites, dialogou com os grandes espíritos do seu tempo. Foi hóspede e confidente de Erasmo de Roterdão, foi desenhado por Albrecht Dürer (como aqui se reproduz). Foi historiador, epistológrafo, diplomata e viajante. Na corte de D. Manuel sofreu influência de Cataldo Sículo (1455-1517), precetor de príncipes portugueses, que o conduziu para o estudo dos clássicos greco-latinos, tendo conhecido as principais personalidades da política e cultura portuguesas do tempo. Nesses anos iniciais, conviveu com matemáticos, músicos, poetas e navegadores, com quem estava na vanguarda do conhecimento e da ação. Com o apoio decisivo do rei D. João III pôde libertar-se das suspeitas inquisitoriais, o que não aconteceu no tempo seguinte, desaparecido o rei, designadamente sob o poder do Cardeal-Rei. A sua biografia e a sua obra dão-lhe um lugar fundamental no panorama da cultura europeia. E quando hoje visitamos Alenquer, sentimos a presença positiva de Damião de Góis e a sua lição de abertura e liberdade. E ao falarmos de humanismo, lembramos a reflexão de Jaime Cortesão no tocante ao humanismo universalista, como raiz da primeira globalização e do Renascimento. O nosso cronista constitui um símbolo indiscutível deste momento glorioso da nossa História.


CULTURA MARCANTE
Sobre a nossa cultura, António José Saraiva falou da característica singular de “estar-se onde não se está”, o que levaria os portugueses a serem religiosos e heréticos; ortodoxos, mas heterodoxos; emigrantes mas não apenas colonizadores (por força da miscigenação); aventureiros, mas radicados (como na Diáspora); pobres mas generosos; e atrasados, mas crentes num destino. De Gil Vicente a António José da Silva, o Judeu, de Garrett a Camilo e Eça de Queiroz encontramos a exigência crítica como contraponto à indiferença ou ao conformismo. Quanto ao designado por Unamuno “país de suicidas”, esse não seria senão uma manifestação de inconformismo e de combate à passividade e à irrelevância. O Padre Manuel Antunes, lembrado por Miguel Real, afirmou: “Reencontrar o antigo, por vezes mesmo o mais antigo para criar algo de novo (…). A nossa história multissecular de Povo independente é feita de espaços de continuidade e de espaços de rutura, de períodos de deterioração e de períodos de recuperação, de anos de sonolência e de momentos de crítico despertar, de estados de descrença e de instantes largos de esperança quase tão ampla como o universo” … Uma história antiga, com raízes culturais múltiplas, encontro entre vontade e destino – tudo se somando numa Ibéria em que a nossa “maritimidade” se contrapõe à “continentalidade” de Espanha, projetando nos dois símbolos contrapostos – Fernão Mendes Pinto, como personagem múltipla no mundo, e D. Quixote, como imaginação e sonho. A multiplicidade da aventura da “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto sublima-se na vontade do povo que Herculano encontra como explicação da independência e da unidade. O Brasil é a imagem grandiosa da frente marítima europeia de Portugal projetada no mundo, enquanto as Espanhas projetam-se na América segundo uma pluralidade de influências. E a literatura ibérica representa uma mudança poderosa – em que o descobrimento se associa à necessidade de diálogo e de melhores conhecimentos.


UM ESPÍRITO AVANÇADO
Segundo Eduardo Lourenço, faltou uma mentalidade europeia desde a segunda metade do século XVI. Por isso, Antero nos ensinou a não nos escondermos no nosso passado (o Messias de Portugal é o seu próprio passado). Graças à sua amizade com Dom João III este ajuda-o e envia-o para Antuérpia, na Flandres, como secretário da feitoria portuguesa, um estabelecimento comercial, a partir do qual o norte da Europa podia aceder aos produtos vindos das colónias portuguesas em África, na Ásia e na América do Sul. Em 1532, inscreveu-se na Universidade de Lovaina, uma das mais eruditas da Europa. Entretanto, conhecera Martinho Lutero e estivera na corte de Frederico I da Dinamarca. Em 1548, foi nomeado guarda-mor da Torre do Tombo, substituindo Fernão de Pina e exercendo o cargo durante mais de vinte anos, até 1571. O Cardeal D. Henrique encomenda-lhe a crónica do rei Dom Manuel, em virtude de o guarda-mor ter vivido na corte, estando em boa posição para relatar os factos. Damião de Góis desenvolveu o trabalho de acordo com os valores renascentistas, fiel à verdade. As crónicas foram publicadas em vários volumes. Depois de denúncia à Inquisição, diversos elementos da sua própria família foram interrogados, e o próprio  foi preso e transferido para o Mosteiro da Batalha. Com 69 anos, foi libertado e viveu na sua casa em Alenquer até morrer, em circunstâncias misteriosas, em 1574, sendo enterrado na capela local.


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença