Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  

De 10 a 16 de março de 2025


O Dicionário Crítico da Revolução Liberal (1820-1834) coordenado por Rui Ramos, José Luís Cardoso, Nuno Gonçalo Monteiro e Isabel Corrêa da Silva (D. Quixote, 2025) vem preencher um espaço importante na historiografia portuguesa dos últimos duzentos anos.


O Dicionário Crítico da Revolução Liberal (1820-1834) coordenado por Rui Ramos, José Luís Cardoso, Nuno Gonçalo Monteiro e Isabel Corrêa da Silva (D. Quixote, 2025) preenche um espaço importante na historiografia portuguesa dos últimos duzentos anos, com a especial preocupação de revelar e esclarecer, de um modo plural e aberto, um período complexo da vida portuguesa. Sobre um período marcado por um intenso e controverso debate e por um choque ideológico muito aceso, com repercussões sociais, económicas e culturais muito evidentes, passamos com esta obra a poder contar com um conjunto significativo de ensaios e análises esclarecedoras sobre o sentido e alcance da implantação em Portugal do constitucionalismo moderno, na linha das três grandes revoluções liberais, inglesa, americana e francesa, que puseram termo ao Antigo Regime e ao absolutismo monárquico. No caso português, sentem-se os efeitos das guerras peninsulares, do Congresso de Viena e do início das independências da América do Sul.


UM CONFRONTO ATUAL
Como facilmente se compreende, deparamo-nos com um intenso confronto entre a corrente liberal, que corresponde a uma opinião pública cosmopolita citadina e a uma corrente conservadora e tradicionalista de base mais rural, mas, mais do que isso, estamos perante uma contradição entre os interesses do Portugal europeu e da poderosa colónia brasileira, sobretudo depois de ter conquistado uma posição de supremacia estratégica, com a instalação da coroa no Rio de Janeiro, numa situação única entre as potências europeias. Se o modelo seguido foi o do fundamental Dicionário Crítico da Revolução Francesa coordenado por Mona Ozouf e François Furet, a verdade é que é possível encontrar na obra agora publicada a compreensão de relevantes especificidades que dão aos acontecimentos portugueses características próprias que permitem uma visão panorâmica da projeção do período relatado numa encruzilhada desde os períodos pré-pombalino e pombalino até à institucionalização do constitucionalismo liberal oitocentista. Nestas 1638 páginas, com 103 entradas e 59 autores, incluindo um exercício de comparatismo internacional, respeitante ao final do Antigo Regime, deparamo-nos com perspetivas várias que permitem abarcar um processo muito complexo pleno de hesitações e contradições, suscetível de análise sob diferentes perspetivas, uma vez que estamos perante acontecimentos que marcaram decisivamente a história dos últimos dois séculos. Se na historiografia nada pode ser definitivo, o importante é colocar em confronto as várias hipóteses de trabalho de modo a compreendermos a razão de ser dos acontecimentos. Como afirma Maria Lúcia Amaral: “Os homens que fizeram o pronunciamento de 1820 queriam que Portugal se dotasse de uma Constituição”, não a da velha ordem, mas “uma Constituição moderna, à francesa, semelhante à que já fora escrita em Cádis em 1812 e, sobretudo, semelhante a várias que já tinham sido escritas por influência das grandes ideias nascidas na Revolução de 1789”.  Mas é preciso compreendermos que foi em plena guerra civil (1832-1834) que José Xavier Mouzinho da Silveira, ministro da Fazenda do governo do Duque de Bragança, “decretou a maior parte da legislação que atingiu os fundamentos do Antigo Regime: a abolição dos morgados de pequeno rendimento, a extinção do imposto da sisa, a reforma administrativa (pela qual se separou o poder judicial do poder administrativo e se definiu um modelo centralista de inspiração napoleónica da administração local), a erradicação de grande parte dos tribunais polisinodais, a extinção dos dízimos eclesiásticos e, por fim, a abolição dos ‘forais’, ‘bens da coroa’ e ‘lei mental, ou seja os direitos senhoriais e do regime da sua doação às grandes casas aristocráticas” (Rui Ramos e Nuno Gonçalo Monteiro). Seguir-se-ia a abolição das ordens religiosas e das corporações de ofícios, e assim as relações de poder e a cultura política sofreram profundas transformações como os mais importantes historiadores portugueses do século XIX reconheceram, apesar  da persistência de uma sociedade de base rural e analfabeta. Apesar de tudo, “foram políticos liberais que, através da extensão do sufrágio eleitoral, envolveram a população em práticas políticas modernas” e foram autores como Garrett e Herculano que desenvolveram uma história erudita, o cânone literário e o estudo da cultura popular.


INSTITUIÇÕES QUE PREVALECEM
No entanto, Oliveira Martins diria que “os liberais tinham tentado estabelecer as instituições representativas e mecanismos de mercado num país que não atingira ainda o ‘grau de desenvolvimento do saber, da ordem e da indústria’ que constituíam a base de ‘civilização’. (…) Era preciso, portanto, tornar o país finalmente ‘natural’, o que passava ‘por aumentar o nosso pecúlio científico e melhorar a nossa ferramenta industrial’: ‘carecemos de ser tão sábios e tão ricos como os melhores da Europa: não porque aí esteja o fim das nossas ambições, mas porque sem conseguir primeiro isso, jamais poderemos vê-las realizadas” (Rui Ramos). Daí a defesa de uma necessária atitude proativa e não fatalista. Importaria, pois, assumir uma lógica reformista como a defendida pela Vida Nova, em Política e Economia Nacional.


Ao longo dos diferentes ensaios integrantes do Dicionário, podemos entender não apenas as condicionantes que marcaram a Revolução Liberal, que são decisivos enquanto acontecimento de consequências muito significativas na história política até aos nossos dias, pelo paradigma democrático que definiu duradouramente. Saliente-se a importância do tema da instrução pública e da formação cívica dos cidadãos, estudado por Sérgio Campos Matos, de que Garrett estava bem consciente sobre como era difícil e lento emendar “o mal da má educação”, agravado pela ausência de um espírito nacional, na expressão do próprio poeta. Por outro lado, importa ainda lembrar o tema recorrente das Finanças Públicas, do défice orçamental e da dívida pública, analisado por José Luís Cardoso, que constitui desde sempre uma preocupação constante da monarquia constitucional e da legitimidade representativa, pedra de toque da sustentabilidade do regime, como foi salientado pelos constituintes de 1821 – tomando a nação a responsabilidade da dívida, de que os bens nacionais eram a respetiva hipoteca especial. Limitamo-nos a estes temas, num conjunto muito vasto e inesgotável.


A leitura da obra, seguindo os acontecimentos, os atores, as  ideias, as instituições e dinâmicas sociais, os intérpretes, memorialistas e historiadores e as comparações internacionais, acompanha, de um modo esclarecedor e muito bem fundamentado, a evolução do Portugal Velho para o Portugal Novo, que Alexandre Herculano considerou, justamente, ser a maior mudança política e social ocorrida em Portugal desde a Idade Média. Assim, a leitura deste volume imponente permite-nos perceber melhor os múltiplos domínios em que se desdobrou a realidade portuguesa. Trata-se, insista-se, de um precioso vademecum indispensável para os estudiosos do Portugal moderno, que apresenta as pistas fundamentais de reflexão e análise de um riquíssimo período, que agora passa a dispor de um corpo de estudo apto a tornar acessível a compreensão de um tempo muito fecundo.   


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença