Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Recordamos hoje um grande amigo, destacado intelectual brasileiro – Marcos Vinícios Vilaça, membro da Academia Brasileira de Letras.
As lembranças não são apenas memórias passadas, são referências da própria existência presente que fazem reviver as relações humanas na sua plena representação. Quando recebemos a notícia da partida de um amigo dileto, como Marcos Vinícios Vilaça (1939-2025), fica-nos a recordação de encontros inolvidáveis, animados por um espírito brilhante e versátil e por uma incontida generosidade, completada pela presença inesquecível de sua mulher, Maria do Carmo, que constituía sempre uma companhia que nos enchia, a seus amigos, de uma verdadeira alegria. O nosso conhecimento foi muito fácil e natural, até porque depressa encontrámos memórias comuns, através de meu avô, conferencista, no Recife, nas celebrações do Tricentenário da Restauração Pernambucana (1954), tendo-se tornado a partir de então amigo de Jordão Emerenciano (1919-1972), brilhante intelectual e orador, que conheci em Lisboa e sobre quem falámos longamente de vastas memórias pernambucanas.
Nascido no município de Nazaré da Mata, no estado de Pernambuco, Marcos Vilaça foi justamente considerado como um ensaísta brilhante, consciente da importância da relação estreita entre a cultura e a iniciativa económica, tendo desempenhado importantes responsabilidades, como no Conselho Federal de Cultura. Por designação do Presidente José Sarney, foi ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) durante mais de duas décadas. Desde 1950, viveu no Recife, onde estudou no tradicional Colégio Nóbrega, fazendo o “Curso Clássico”, onde aprofundou os campos das Letras e das Humanidades. Depois de 1958, foi professor de História do Brasil no Ginásio de Limoeiro, no Recife, e ingressou no curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde se licenciou em Direito e obteve o grau de mestre, o que lhe permitiu tornar-se professor daquela instituição no ano de 1964. Marcos Vilaça lecionou as disciplinas de Direito Internacional Público e de Direito Administrativo, o que foi de grande utilidade para o desempenho de suas funções quando se tornou ministro de TCU. Na década de 1960, dedicou-se à literatura, à reflexão e ao ensaísmo, áreas que o consagraram no mundo cultural. Um pouco antes, em 1958, publicou Conceito de Verdade, o discurso que pronunciou no Salão Nobre do Colégio Nóbrega em dezembro de 1957, na condição de orador da turma de finalistas do Curso Clássico.
Em 1961, Marcos Vilaça publicou um dos seus trabalhos literários de maior sucesso e originalidade: Em torno da Sociologia do Caminhão, que recebeu o prémio Joaquim Nabuco da Academia Pernambucana de Letras. Na Academia Brasileira de Letras ocupou a cadeira 26, sendo eleito em 1985 na sucessão de Mauro Mota, seu conterrâneo, e recebido pelo académico José Sarney. Recebeu os académicos Ariano Suassuna, Alberto da Costa de Silva e Marco Maciel, tendo sido Presidente da ABL no biénio 2006-2007. Além do ensaio sobre a juventude de Gilberto Freyre (1980), escreveu o impressivo “O Coronelismo no Nordeste Brasileiro” (2004), que nos permite compreender como a influência política e social se repercutiu na evolução cultural da região. Marcos Vinícios era um conversador nato, uma companhia inigualável, as conversas com ele interligavam-se de modo ininterrupto e com uma cadência de grande vivacidade.
NOITE INOLVIDÁVEL Tanto falávamos da sua experiência política no Recife e sobre José Sarney, grande artífice com Mário Soares da génese da CPLP, através do Instituto Internacional de Língua Portuguesa ou do papel desempenhado por José Aparecido de Oliveira, assim como invocávamos o ambiente dos romances de Eça de Queiroz, como aconteceu num jantar inolvidável no Grémio Literário, com José Carlos de Vasconcelos, Alfredo José de Sousa e José Tavares, em que Luís Santos Ferro nos pôde falar deliciosamente de Manuel Vilaça, a personagem romanesca fidelíssima de “Os Maias”, de quem ouvimos dizer: “Eu sou um homem de princípios e os princípios não se vendem” ou chamar a atenção para a importância do amor à casa em que se nasceu. Mas o prazer das palavras e da memória viva do ambiente queirosiano, ali mesmo onde o romancista terá lido pela primeira vez “Les Fleurs du Mal” de Baudelaire, culminou nas esperadas gargalhadas para o Taveira, amanuense do Tribunal de Contas. "Duas horas e um quarto! exclamou Taveira, que olhara para o relógio. E eu aqui, empregado público, tendo deveres para com o Estado, logo às dez horas da manhã. - Que diabo se faz no Tribunal de Contas? perguntou Carlos. Joga-se? Cavaqueia-se? - Faz-se um pouco de tudo, para matar tempo... Até contas!" E o efeito não se fez esperar. E Luís Santos Ferro com o seu humor e conhecimento das coisas animou aquela charla, lembrando, de seguida, naturalmente Maria Eduarda. E a descrição foi pontuada por natural volúpia, lembrando que a morada dela era a dois passos de onde se encontra o Grémio, hoje rua Ivens, outrora rua de S. Francisco. E todos relembrámos esse momento crucial da obra de Eça: ela era «uma senhora alta, loira, com um meio véu muito apertado e muito escuro que realçava o esplendor da sua carnação ebúrnea. Craft e Carlos afastaram-se, ela passou diante deles, com um passo soberano de deusa, maravilhosamente bem feita, deixando atrás de si como uma claridade, um reflexo de cabelos de oiro, e um aroma no ar. Trazia um casaco colante de veludo branco de Génova, e um momento sobre as lajes do peristilo brilhou o verniz das suas botinas». Estava tudo dito. Maria do Carmo saudava o estilo irrepreensível de escrita e Marcos Vinícios a arte enaltecida pelo Luís. Todos aplaudíamos.
E a conversa continuava no elogio da nossa língua de um lado e do outro do Atlântico, com a lembrança de Machado e do extraordinário domínio das palavras e dos sentimentos. “Palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução, alguns dizem que assim é que a natureza compôs as suas espécies”… E se Machado de Assis foi a alma da Academia Brasileira de Letras, Marcos Vinícios Vilaça fazia questão de pôr a tónica no convívio e no diálogo cultural, como centro da criatividade, institucionalizando o chá como ponto de encontro para o necessário ambiente de acolhimento e encontro capaz de reunir vontades e lembranças, desejos e esperanças. Nas nossas memórias ficou gravado para sempre o tom dessa amizade, verdadeira matéria-prima da língua comum e da cultura enquanto realidades indestrutíveis.
EM DIA DE COMUNHÃO DE IGUAIS por Camilo Martins de Oliveira
Meu Caro José Saramago:
Veja bem ao que chegámos! Aí, que não é sítio em que se esteja, mas tão simplesmente se é, em alegria e paz... Ou, melhor ainda - procuro eu exprimir-me apesar da minha limitação - aí, que nem sítio é, mas tão somente a magnífica glória da comunhão de todos nós, passados, presentes e futuros, com a infinitude do universo que, creio, sim, é o coração de Deus, o José está cheio de todos os que amou, publicamente ou no segredo íntimo do seu coração imortal, o tal que já morreu e continua... Desculpe, hesito no modo de dizer, pois não sei como... e como seria eu capaz de dizer o profundamente sentido, o que nem eu de mim entendo e entrego à misericórdia de Deus? O indizível, porque indefinível como o mesmo Deus? Volto ao meu sítio, Portugal em dia de Todos os Santos, 258 anos depois do terramoto que arrasou Lisboa. Não vou comemorar uma dor, basta-nos a lembrança dela. E a esperança renascida, que reconstruiu uma cidade, hoje ainda renovadamente querida! Lisboas com vários nomes, muitos senhores, diversos povos e fés, mais ou menos acertadas urbanizações, muitas houve! E, nelas todas, só uma é. A nossa Lisboa, que está aqui, como a vemos hoje, mutilada, reparada, acrescentada, projetada ainda, esta que o nosso olhar enxerga...é querida e efémera! A Lisboa que é, aquela que ainda descobrimos ou vamos pressentindo como estava noutros disfarces passados, essa é a que é, sem tempo nem modo, a nossa comunhão com o que vemos e não vemos, com o que dizemos e o que não conseguimos dizer. Volto ao meu tempo, a este 1º de novembro de 2013, quando, pela primeira vez, por acordo entre o Estado Português e a Igreja Católica, não haverá dia de feriado santo para a celebração do que é a essência das comunidades: esse manifesto sinal de pertença e esperança, essa lembrança de que não somos sem os que nos vieram antes e nos virão depois. Há milénios que todas as civilizações de gentes humanas procuram conservar os mortos e celebrá-los com os vivos. Numa Nação tão tecnologicamente "avançada" e economicamente poderosa como o Japão, a celebração de lares e de penates - assim diriam os romanos - determina hoje duas semanas de feriados por ano. Não há futuro sem origem. Não há sociedade solidária sem comunhão. Não há existência sem essência. Não há desenvolvimento sem pessoas. Nem motivação sem alma. Esta, já outro dizia, no século XIX, que não a encontrara na ponta do bisturi. Procurou mal, nunca ali a encontraria. Estes dizem que encontram aumento de produto no corte da comunhão das almas. Curto é o alcance de quem não comunga na gente. Talvez o José me compreenda. Já não está aqui, onde o interesse imediato é o exercício quotidiano da estupidez. Chegue a esse assento etéreo o meu queixume.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 02.11.13 neste blogue.
Quando há dias, em Óbidos, nos fomos despedir da nossa professora de Filosofia do Liceu de Pedro Nunes vieram-nos à memória mil lembranças. E, sob uma chuva leve, foi possível compreender como a educação constitui a chave para uma sociedade que procura ser melhor, enriquecendo a herança que recebe das gerações que a antecederam. Património é etimologicamente o serviço prestado aos nossos pais, frutificando as suas lições (patres, munus). Daí que a qualidade das aprendizagens seja uma exigência da sociedade que deseja progredir. Maria Luísa Guerra foi um caso exemplar. Os manuais de História que concebeu e concretizou com Maria Fernanda Espinosa (outra mestra inesquecível que partiu na flor da idade) foram pioneiros nos trilhos de uma moderna pedagogia, ao lado das edições irrepreensíveis dos textos de Filosofia para o ensino secundário. Tais educadoras fizeram parte de uma plêiade que deixou muito bons frutos. E não esquecemos Rómulo de Carvalho e o prazer sincero da leitura que nos incutia com os pequenos volumes da sua “Ciência para Gente Nova”, que tantas vocações despertou. A experiência destes nossos professores continua a ser atual. Ensinaram-nos sempre a não cultivar a nostalgia, mas a cuidar dos desafios de hoje, com a sua complexidade. No caso de Maria Luísa Guerra foram os seus alunos que constituíram a sua família até aos últimos dias (depois da morte do irmão, o artista José Guerra). A sua memória prodigiosa, a entrega total à permanente aprendizagem ficaram indeléveis como marcas perenes. Num dos nossos últimos encontros, recordou com entusiasmo um hipotético (ou real) encontro da criança que foi com Fernando Pessoa. “Todos os anos ouvia dizer : o senhor Pessoa vai chegar. Quem era o senhor Pessoa? Um homem triste, magro, vestido de escuro. Alojava-se numa casa baixa que ficava defronte da minha, numa rua branca fora do tempo. A casa onde eu vivia era alta. Tinha na frente um pequeno jardim com três acácias e um gradeamento verde. Chamávamos-lhe o Passeio. A janela de cima, do quarto dos meus Pais, dava-me paisagem: a estrada, um largo com gente que ia à mercearia, um coreto no meio de flores, ninhos de cegonha na torre da igreja. O senhor Pessoa, da sua janela, só via o muro do Passeio, o meu portão, a minha casa cor de rosa e dois olhos que o espreitavam por trás da vidraça. Dois olhos amplos. Depois do almoço, o senhor Pessoa lá estava, colado à janela. Com se não tivesse havido luar. Como se uma flor não estivesse a roçar o coração do vento. Como se uma criança não tivesse nascido. Perguntava-lhe lá de cima, na minha alma de bibe: vem a ares? Porque é que não vai ao pinhal? Não gosta de ouvir as pinhas a cair? E as formigas a correr ? O senhor Pessoa ficava mudo, quieto, absorto, parado no tempo e no destino. (…) E os nossos olhares cruzavam-se cheios de solidão, solidão infinita. Carregados de destino e de interrogação. Às vezes, (raras vezes) via-o sair. Absorto como a noite. Mas voltava depressa para janela. Para a clausura. E olhava. O meu olhar voltava a encontrá-lo. E assim nos demorávamos um no outro. Ele olhando, eu perguntando. Quantos poemas foram feitos neste diálogo? Hoje pergunto, quem é que eu via? Fernando Pessoa? Álvaro de Campos? Ricardo Reis? Bernardo Soares? Alberto Caeiro? António Mora? Outro qualquer?”. Os olhos da mestra iluminavam-se. Diversas vezes nos levou pelos caminhos da literatura para revelar os segredos da existência. E assim nos ensinava a vida.
Descontentes e frustrados com nós próprios procuramos, muitas vezes, os mais variados modos de evasão. Não é só a alucinação da velocidade, a droga, o sexo, as compras e o consumo compulsivo. É tido como escapismo tudo quanto excede as necessidades primárias dos humanos em condições normais de saúde física e psíquica, incluindo uma procura exagerada de novidade em coisas simples e indispensáveis à felicidade da maioria das pessoas, como na alimentação e vestuário.
A permanente necessidade de acompanhar a moda, de estarmos sempre na onda, geradora de frustração se assim não for, é uma compensação ilusória para uma vida que não muda, em que o tempo fica (e não passa) e nós é que vamos passando.
Fazer tudo para esquecer que envelhecemos e somos mortais, adquirindo e consumindo mais coisas, não é solução para viver, dado que, ao fazê-lo, se meditarmos e nos ouvirmos, a nós próprios, no silêncio, olhamos para o nosso interior e sentimo-nos angustiados, oprimidos e vazios.
Se aceitamos que o tempo é uma “coisa”, porque é usual dizer-se que o tempo é “dinheiro”, também aceitamos que o nosso tempo está coisificado, porque é um mundo de “coisas”.
Perante a mortalidade da nossa condição há que saber observar e fruir as múltiplas singularidades da vida, ser capaz de ter resistência à frustração da monotonia, do tédio, do repetir a mesma tarefa, do não fazer nada, o que não é fácil, mas difícil.
É necessário substituir a expressão derrotista “matar o tempo”, por outra, mais importante, que será saber “viver o tempo”, preenchendo-o, material e espiritualmente, da forma mais adequada à evolução e ao progresso.
Há que saber domesticar o culto do impulso humano de agir, da fuga, da evasão, do escapismo e sermos capazes de permanecer em repouso e em silêncio para pensar, meditar e observar.
A viagem pode tornar-se sem sentido e a existência um equívoco.
A preferência pelo imediato e pelo descartável identifica as sociedades em que a leitura e o pensamento crítico não existem.
Uma sociedade que não lê não consegue interpretar nem se sabe desafiar e enfim de si mesma não evolui.
A ideia de que tudo deve ser fácil, descomplicado e imediato, contribui para a exclusão dos estímulos num contexto de expressões culturais mais exigentes, gerando cidadãos não preparados para a complexidade.
Vive-se no espetáculo e no entretenimento; vive-se num mundo em que o afeto só é verdade se exposto; vive-se numa realidade que deve impactar o que não causa descoberta ou aprendizagem, num dia-a-dia em que se nivelam padrões de mediocridade e se negligenciam as experiências formativas de qualidade.
E tudo isto parece importar pouco.
E tudo isto forma gentes submissas; gentes que caminham de trela curta num show de obediências ao sistema que as sufoca.
Deste mundo, ausente a liberdade, restando apenas o jogo infantil que se propõe ganhar todos os jogos vãos.
E eis uma multidão mimética, intoxicada e iludida em totalitarismos que a prendem a uma teia que não detestam.
E eis que a viagem pode tornar-se sem sentido e a existência um equívoco.
E eis que se sonha ser senhor comportando-se e contendo-se como escravo.
Vence a preferência pelo imediato e pelo descartável na luta de todos contra todos?
Vence a mercantilização dos valores reunidos num único organismo?
Uma coisa é aceitar o risco de morte, outra é aceitar a morte.
A hipocondria é o último refúgio da liberdade de expressão. As opiniões que eu tenho sobre a minha saúde são inescrutáveis. As que tenho sobre a dos outros são inesgotáveis. Falar sobre as oscilações da saúde própria ou alheia é motivo de alegria selvagem.
A hipocondria é felizmente encorajada. Confrontados com a inexistência de grandes assuntos de conversa, com o fim de aventuras e perigos, e com uma certa reticência em relação à justificação das nossas ideias, os cientistas sociais perceberam logo que era importante que as energias que os nossos antepassados tinham usado para falar de deuses, caçar ursos e provar teoremas fossem convenientemente aproveitadas. Agora que os príncipes deste mundo têm o espírito e o poder das ciências sociais, o aproveitamento dessas energias passou a ser uma questão de políticas públicas.
Eis simplificada a génese dos costumes e instituições de saúde modernos. Diz-se muitas vezes que a saúde constitui um direito. Em que sentido porém será um direito? Entendida em abstracto, como um direito natural, a ideia de direito à saúde é uma contradição nos termos, tão vápida como o direito a construir uma ameixa ou a deixar um prédio casar-se: a quem nos queixaríamos de uma pedra no rim? A única defesa do direito à saúde só pode ser a defesa da liberdade de expressão. A saúde encoraja com efeito que nos exprimamos em público a respeito de nós próprios e dos outros, e representa mesmo o último, e possivelmente o único, assunto a respeito do qual qualquer pessoa pode falar com desenvoltura e autoridade.
Não admira por isso que a imprensa livre dependa do sistema nacional de saúde. Logo que arrumadas as solicitações mais urgentes daquilo que acontece acontecer, reiteradamente cantam-se ali no modo hipocondríaco calos, ambulâncias, consultas e nervos. O cimento das sociedades onde coexistem sistemas de saúde e uma imprensa livre deve-se à possibilidade de partilhar histórias de doenças e dos seus arredores.
‘Também eu fiz uma rinite’, confessa-se nessas cerimónias, intimando apuro e conhecimento técnico. De facto, num estado de saúde moderno nada acontece e tudo se faz. Mas ao falar das várias coisas que fiz, e quantas vezes a propósito da saúde dos outros, estou a falar daquelas acções realizadas em que não compito com mais ninguém, de acções a respeito das quais, como à minha rinite amoravelmente feita, não reconheço a mais ninguém capacidade de se pronunciar. Quando canto as minhas dores tenho por isso duas alegrias ao mesmo tempo: posso proclamar a ignorância irremediável de todos os outros seres humanos e posso proclamar o facto de ser a maior autoridade viva a respeito de mim próprio.
Miguel Tamen Escreve de acordo com a antiga ortografia
Jürgen Moltmann, o grande teólogo protestante com quem tive o privilégio de conversar mais de uma vez em Tubinga, que faleceu no ano transacto, escreveu que, na juventude, feito prisioneiro, na Segunda Guerra Mundial, embora não sendo particularmente crente e o que mais lhe apetecesse era comida, o que o capelão lhe ofereceu foi o Novo Testamento. Leu-o e, a partir da experiência dramática por que estava a passar por causa do Nazismo, percebeu que ou Deus não existe mesmo ou então o Deus verdadeiro é o que se revela em Jesus Cristo pregado na cruz para dar testemunho da verdade e do amor incondicional. E foi dessa experiência que partiu para o estudo da Teologia, tendo escrito obras que a marcaram no século XX: O Deus crucificado e Teologia da esperança, entre outras.
Com o terramoto de Lisboa, aconteceu um sismo no pensamento europeu, que abalou os grandes intelectuais. A famosa Teodiceia de Leibniz afundava-se. Como é que este podia ser o melhor dos mundos possíveis? E como pode a razão finita justificar Deus frente ao mal, pois é isso que pretende a teodiceia? O mal físico talvez seja explicável; mas como compreender o mal moral? Porque é que não somos sempre bons e, pelo contrário, criamos infernos de desumanidade? Há aquele enigma que amargurava São Paulo: “Ai de mim, que sou um homem desgraçado, pois faço o mal que não quero e não faço o bem que quero!”
A brutalidade do mal, que nos faz gritar e nos esvazia a capacidade de pensar, tem uma expressão terrível num passo célebre de Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski, quando Ivan refere a tortura exercida sobre as crianças. Ele conta a história estarrecedora de um menino de oito anos que, um dia, quando se divertia a arremessar pedras, feriu na pata um dos cães favoritos de um antigo general, tendo, por isso, de passar a noite na masmorra. No dia seguinte, arrancado à mãe e completamente nu, é obrigado a correr. Como se de caça se tratasse, o general lança sobre o miúdo toda a matilha, perante o olhar aterrorizado e impotente da mãe.
Ivan diz que precisa de uma compensação, pois de outra forma destruir-se-á. Mas quer que ela seja aqui em baixo, “uma compensação que eu veja”.
Ele quer estar presente, “quando todos souberem o porquê das coisas.” Mas como compreender qual possa ser o papel das crianças que sofrem para concorrerem para a harmonia eterna futura? “Compreendo a solidariedade do pecado e do castigo, mas não se pode aplicá-la aos inocentes”, diz.
No final da História, Deus revelará os seus desígnios, e tudo ficará iluminado. Ivan recusa-se, porém, a aceitar essa harmonia superior, uma vez que não elimina o horror do sofrimento das crianças. “Acho que não vale uma lágrima de criança”. Ele não quer, portanto, entrar nessa harmonia última, pois o seu preço é exagerado. “Acho melhor devolver o bilhete... E é o que eu faço. Não me nego a admitir Deus, mas devolvo-lhe respeitosamente o meu bilhete.”
O mal é o espinho cravado na fé do crente. Perante o horror do mundo e face à morte, não se sabe quantas pessoas, se fosse possível escolher vir ou não à existência — claro, é um pensamento-limite e, em última análise, absurdo —, teriam escolhido existir.
Quem algum dia foi a Auschwitz fica estarrecido, mudo, sem palavras. Ali, é o horror pura e simplesmente. Mas também houve generosidades puras e quem caminhasse para as câmaras de gás com uma oração nos lábios.
Quem nega Deus também é confrontado com a pergunta dilacerante do mal. E é necessário tomar a sério o ateu e a sua convicção. Ignacio Sotelo, o filósofo espanhol agnóstico, escreveu numa troca de cartas com o teólogo J. I. González Faus, recentemente falecido: “a vida é uma luta que, por muito que nos esforcemos, está perdida à partida – desapareceremos no nada e os verdugos continuarão a dominar – e, no entanto, sustenta-nos a convicção de que não podemos abandonar o combate sem nos aniquilarmos a nós mesmos. Viver é lutar pela justiça, sabendo que a batalha está perdida à partida e que não podemos abandonar o combate.”
O crente que sabe o que quer dizer a fé participa no mesmo combate pela justiça. Mas ousa entregar-se confiadamente ao Mistério último de Deus. A História do mundo é um processo que ainda não transitou em julgado, e o crente confia, sem ingenuidade e convivendo com a dúvida, em que o juízo definitivo será de salvação para todos.
Na Sexta-Feira Santa histórica de há dois mil anos, Jesus, inocente e condenado como blasfemo e subversivo, morreu a rezar esta pergunta in-finita que atravessa os séculos: “Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?” Mas as suas últimas palavras foram de esperança confiada no Mistério da Bondade radical: “Pai, entrego-me nas tuas mãos”.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia 12 de Abril de 2025
Por ocasião dos 120 anos do nascimento de Emmanuel Mounier (1905-1950) publicamos hoje no CNC o texto que também é publicado em França pela Association des Amis d’Emmanuel Mounier aqui.
Quando Mounier lançou o ambicioso projeto da revista «Esprit» em outubro de 1932, há 80 anos, o panorama da história europeia era de grande incerteza. Viviam-se os efeitos da «Grande Depressão», a sombra negra da guerra e dos tratados de Versalhes fazia-se sentir, o desprestígio da política era evidente. Tudo se associava no sentido de uma estranha ameaça em que os nacionalismos agressivos se ligavam aos ressentimentos alimentados por uma perigosa associação do «salve-se quem puder», dos protecionismos e de uma violência social descontrolada, com tensões que se acumulavam. Quatro episódios vão marcar decisivamente a evolução do pensamento de Mounier e do grupo de intelectuais que o rodeavam – a invasão da Etiópia pela Itália fascista (1934), a Frente Popular francesa (1936), a guerra de Espanha e os Acordos de Munique de 1938. Em 1932, a revista «Esprit» vai nascer ligada ao movimento «Troisième Force» (de Izard e Deléage), sob as fortes dúvidas de Jacques Maritain, que desejaria uma revista católica e de católicos. Mounier aceita num primeiro momento associar-se ao movimento político, mas opta por um projeto pioneiro baseado na cooperação entre cristãos e não cristãos. No entanto, quanto à «Terceira Força», depressa a revista se autonomizará dela, afirmando-se como um projeto cultural com intervenção política, não confundível com um partido.
Como afirma Guy Coq «a linha seguida por Mounier nestes anos cruciais de antes da guerra organiza-se em torno da viva consciência da escalada de um perigo mortal na Europa». Diz então Mounier: «Sinto um sofrimento cada vez mais vivo por ver o nosso cristianismo solidarizar-se com o que designarei um pouco mais tarde de “desordem estabelecida” e de vontade de fazer rotura». Numa carta que escreve a Jean-Marie Domenach afirma: «o acontecimento será o nosso mestre interior». De facto, Mounier considera-se essencialmente testemunha do seu tempo. E este testemunho põe a tónica na relação entre o pensamento e a história, o que é mais importante do que uma apreciação puramente conjuntural das tomadas de posição em face das circunstâncias. Estamos perante o valor da imperfeição como um sinal da ação humana, o que é muito mais importante do que a consideração de modelos ou receitas fechados. Se lermos os textos de Mounier (sobretudo depois de conhecer Landsberg) percebemos bem que correr riscos (o sujar as mãos) é fundamental para procurar a justiça animada pela verdade. Péguy ou Maritain falam dos polos profético e político – E. Mounier e P.L. Landsberg procuram fazer do compromisso (engagement) a ligação entre o respeito da «eminente dignidade humana» e a realização das ações necessárias à justiça, à verdade e à dignidade, a partir dos «sinais dos tempos», de que falará João XXIII.
Mounier concebe a pessoa humana como superação de si-mesma - «ela é o movimento do ser para o ser». O tema dos valores espirituais torna-se, por isso, crucial perante o drama histórico que prenuncia o recrudescer da guerra. Mounier e Landsberg demarcam-se da ideia de Max Scheler, segundo a qual os valores são realidades absolutas. Não é possível subordinar a pessoa a um abstrato impessoal. E assim trabalham o vínculo entre a pessoa e o valor, a partir do cristianismo: «o personalismo cristão vai até ao fim; todos os valores se reagrupam para o cristianismo, sob o apelo singular de uma Pessoa suprema». Deste modo, consideram os valores espirituais compreendidos ora como resposta cristã, ora como sinal filosófico, orientado pelo crivo da razão. Os valores não são, assim, ideias gerais ou desenraizadas - «são fonte inesgotável e viva de determinações, exuberância, apelo irradiante: como tal revelam uma como que singularidade expansiva e uma proximidade com o ser pessoal, mais primitiva do que o seu deslizar para a generalidade». Assim, há uma viragem metafísica em Mounier com a chegada à revista «Esprit» de Landsberg. Conhecedor da experiência e dos perigos alemães, bem como das ameaças e riscos que se manifestam em Espanha, onde esteve exilado nem Barcelona, o pensador introduz um conjunto de preocupações novas, que vão revelar-se fundamentais. Há uma especificidade da política, distinta da dimensão espiritual. E as noções de acontecimento e de compromisso vão assentar num diálogo intenso entre a pessoa e os valores. E os dois pensadores recusam separar o corpo e o espírito – do mesmo modo que não aceitam encarar a realidade histórica que os cerca sem uma filosofia do compromisso, que significa um pensamento de ação. «O compromisso pode revestir diversas formas: é humano, ético, político, espiritual, segundo a dimensão da ação que domina. Mas nenhuma das formas pode ser pensada de modo totalmente independente por referência às outras». E a verdade é que a coerência de Paul-Louis Landsberg leva a que, depois da tomada de consciência sobre a situação dramática em que então se vivia, numa caminhada inexorável, o filósofo sofra até às últimas consequências o seu compromisso, indo até ao sacrifício supremo da morte, no Campo de concentração de Oranienburg.
«A minha pessoa e em mim a presença e a unidade de uma vocação intemporal (…) chama a superar-me indefinidamente e opera, através da matéria que a refrata, uma unificação sempre imperfeita, sempre recomeçada, de elementos que em mim se agitam». Se o compromisso e o acontecimento se tornaram centrais nesta reflexão, devemos ainda acrescentar a capacidade de fazer frente aos acontecimentos, a ideia de afrontamento: «a pessoa expõe-se, exprime-se, faz face a, é rosto». E, de facto, a palavra grega mais próxima da noção de pessoa é «prosopon»: aquele que olha de frente, a máscara que identifica o ator no teatro grego. Ora, a partir da ideia de «afrontamento», chegamos áquilo que Unamuno designava por «agonia», a luta pessoal emancipadora, a partir da consideração dos valores espirituais. «A pessoa toma consciência de si própria, não no êxtase, mas na luta de força». Afinal, «o amor é luta; a vida é luta contra a morte; a vida espiritual é luta contra a inércia material e o sono vital». No fundo, alguém só atinge a plena maturidade, no momento em que «opta por fidelidades que valem mais do que a vida».
ATORES, ENCENADORES (XXIII) TRÊS MESTRES DA LITERATURA PORTUGUESA QUE FORAM ATORES por Duarte Ivo Cruz
Refiro-me, no título, a Gil Vicente, Garrett e Eça de Queiroz, sendo certo que nesta série já nos ocupámos precisamente de Garrett como ator das suas próprias peças. Recordamos então as suas intervenções episódicas mas nem por isso menos assinaláveis na estreia do “Catão”, em 1821 e do “Frei Luis de Sousa” em 1843. Referi na altura que Garrett, no “Frei Luis de Sousa”, interpretou nada menos do que o Telmo Pais, e em condições difíceis de saúde: convalescente de uma queda que o imobilizou durante semanas, terá feito um Telmo um pouco coxo, o que justificou elogios algo irónicos de Herculano.
Quatro séculos antes, concretamente em 8 de junho de 1502, Gil Vicente, transformado em pastor, entraria com estrondo, “aos arrepelões e à punhada” na câmara da infanta D. Maria, mulher de D. Manuel, que acabava de dar á luz o futuro D. João III. E bem se queixou das dificuldades, afinal óbvias: “se tal soubera/não viera: e vindo/ não entraria/e se entrasse eu olharia/ de maneira/ que nenhum me chagaria”!
E na Compilação efetuada em 1562 por Luis e Paula Vicente, filhos de Gil Vicente, é referido que “por ser coisa nova em Portugal gostou tanto a Rainha Velha desta representação que pediu ao autor que isto mesmo lhe representasse às matinas de Natal endereçado ao nascimento do Redentor”…
Mas a “estreia” diríamos hoje, passou-se em 1502, plausivelmente nos 47 anos do autor, que geralmente é dado como nascido em 1465: Teófilo Braga avança com 1470, mas em qualquer caso podemos aqui assinalar hoje algo como os 550 anos do nascimento de Gil Vicente e os 513 anos, não digo do “nascimento” mas, isso sim, da definição estética e dramatúrgica do teatro português.
Garrett e Gil Vicente “cruzam-se” em 1838, com o garretteano “Um Auto de Gil Vicente”, peça inicial do ciclo romântico. Cito aqui a lição de Marques Braga:
“Quando Almeida Garrett quis reatar a tradição dramática do seculo XVI com a renovação do romantismo (século XIX), conseguindo restaurar o teatro português, teve de remontar à obra vicentina, engastando, no seu drama ”Um Auto de Gil Vicente”, a representação da D .Manuel da Tragicomédia Cortes de Júpiter. A idealização da corte e a representação da Tragicomédia deram a base para o belo drama de Garrett” (cfr. prefácio das Obras Completas de Gil Vicente, vol. I).
Recorde-se que a peça põe em cena e em confronto Paula Vicente, Bernardim Ribeiro e o próprio Gil Vicente, num registo de tolerância de D. Manuel e de independência do próprio Gil Vicente, o qual inclusivé declama a certa altura: “Nunca me escondi de priores e nem de cónegos mais… e no dia depois do Juiz da Beira jantei com dois desembargadores do agravo. Tudo pelo exemplo de tolerância e liberdade do Rei”.
E Bernardim: “Desgraçado de quem tocar nesta mão. São duques, são reis, são príncipes? Eu sou Bernardim Ribeiro, o trovador, o poeta, que tenho maior coroa que a sua”…
Isto é Garrett numa versão integral…
Ora bem: antes de Gil Vicente, já havia expressões dramáticas na cultura e na sociedade portuguesa: mas efetivamente o “trovador e mestre de balança”, cargo que aponta para a gestão financeira da Corte marca uma renovação que se prolongaria pelos séculos, até ao romantismo e ao ultrarromantismo teatral.
E para terminar, Eça de Queiroz. Aqui, como se sabe, o teatro perpassa pelos sucessivos romances numa expressão notabilíssima de espetáculo, no mais elevado sentido do termo. Referências a peças, a atores, a dramas e comédias, a personagens ligados ao miro teatral são recorrentes: por exemplo o Artur Corvelo de “A Capital”, o Ernestino de “O Primo Basílio”, o José Fernandes que se queixa de uma peça em “A Cidade e as Serras”, entre tantos outros mais…
Daí, a sucessão de filmes, peças e outras expressões de espetáculo extraídas dos romances de Eça – desde por exemplo as peças “Os Maias” de Bruno Carreiro (1945) ou “Os Maias no Trindade” de António Torrado (2009) ou a “Madame” de Lídia Jorge (1999) que evoca Maria Eduarda da Maia, e a uma sucessão considerável de filmes, desde três “Primo(s) Basílio(s), até ao recente (2014) “Os Maias” de João Botelho.
E no entanto, nas “Farpas” há muitas referências a espetáculos e a textos teatrais. E nas “Últimas Páginas” no texto denominado “O Francesismo”, Eça de Queiroz recorda que em Coimbra se interessou pelo teatro. Ouçamo-lo:
“Comecei por me fazer ator do Teatro Académico (em Coimbra). Era pai nobre. E durante três anos, como pai nobre, ora grave, opulento, de suíças grisalhas, ora aldeão trémulo, apoiado ao meu cajado, eu representei entre as palamas ardentes dos Académicos, toda a sorte de papéis de comédias, de dramas – tudo traduzido do francês (…) Um dia, porém, Teófilo Braga, farto da França, escreveu um drama conciso e violento, que se chamava Garção. Eu representei o Garção, com calções e cabeleira e fui sublime; mas o Garção foi acolhido com indiferença e secura (…) Imediatamente nos refugiamos no francês e em Scribe”...
Duarte Ivo Cruz
Obs: Reposição de texto publicado em 13.05.15 neste blogue.
Em 21 de maio de 1994, nos Encontros Internacionais de Sintra, promovidos pela SEDES, Timothy Garton Ash falou-nos da “Sombra da História Europeia”, sob a presidência de António Sousa Gomes, com moderação de João Carlos Espada e comentários de Vítor Constâncio e Carlos Gaspar. O tema geral era “A Nova Fronteira de Europa” e estavam em causa os desafios do alargamento comunitário. Havia uma onda de esperança, mas o conferencista britânico lançou pertinentes alertas relativamente às incertezas e contra os excessos de otimismo, uma vez que a história europeia não poderia ser esquecida. O que importava? A ideia de União Económica e Monetária, a moeda única, o Banco Central Europeu, o Sistema Europeu de Bancos Centrais exigiam avanços políticos e institucionais. A moeda única obrigaria a transferências visíveis e inequívocas de soberania dos Estados-membros, o que exigiria abrir-se corajosamente o dossiê da União Política. Acabava o romance, começava a História. Vítor Constâncio falou de três cenários: a fragmentação maligna, a fragmentação benigna e a Europa com unidade e vontade política suficiente para agir na sociedade internacional. O que tivemos foram amostras dos dois primeiros cenários, e hoje ainda por cima uma guerra.
Trinta anos depois, ouvimos Timothy Garton Ash, referindo-se ao facto de estarmos perante um triplo choque: (a) o revanchismo de Putin e o regresso expansionista da velha guerra entre Estados, numa tentativa de reconstruir o império russo; (b) a emergência de um universo pós-ocidental, envolvendo a China, a Índia, a Turquia, o Brasil ou a África do Sul, que contornaram as sanções à Federação Russa, permitindo o crescimento desta, graças à utilização dos recursos de que dispõem; e (c) o choque Trump, com o não apoio á Europa, a atenção à Ásia, tendência para liquidar a Ucrânia, privilegiando tornar os EUA uma potencia transacional em vez da defesa de uma lógica liberal. Eis o pano de fundo, e a resposta necessária tem de corresponder ao conjunto, prevalecendo a dimensão nacional e fragmentária. Donald Trump tornou-se um adversário da Europa, quer no plano político, quer no plano económico, o que não significa ainda que os Estados Unidos e a sua opinião pública se tenham tornado adversários da Europa. Daí as necessidade de construir uma Europa capaz de se defender a si própria, mantendo os elos atlantistas. Precisaremos para T. Garton Ash de uma síntese entre os pensamentos de De Gaulle e de Churchill. Na OTAN, os europeus deverão ter um papel acrescido, em detrimento da quase exclusiva influência americana. Assim, a dissuasão mundial futura obrigará a uma maior consideração franco-britânica no equilíbrio nuclear. Apesar da tragédia do Brexit, há agora uma oportunidade de correção através da integração do Reino Unido nos programas europeus de defesa. Enquanto a Alemanha e a Polónia deverão ter também um papel fundamental. “A grande questão é unir tudo isto, para reduzir os efeitos negativos da fragmentação.” (Le Monde, 23.3.2025). Daí um otimismo moderado do historiador. Investir mais na defesa não é um bem, mas uma necessidade. Precisamos, de facto, de um estímulo keynesiano, que anime a economia e não sacrifique o modelo social. Importa, por isso, investir corajosamente, utilizar os bens russos congelados e contrair créditos mutualizados. A industrialização poderá facilitar a inovação, com benefício para a coesão social. E assim somos chamados à coragem.