A VIDA DOS LIVROS
De 7 a 13 de abril de 2025
António Cícero (1945-2024) foi um poeta, compositor, pensador e escritor, com uma obra multifacetada que merece ser lido e pensado como representante da mais moderna capacidade criadora dos brasileiros e dos cultores da língua portuguesa.
O último número do ano de 2024, a “Revista Brasileira” da Academia Brasileira de Letras, dirigida por Rozisca Darcy de Oliveira, dedicou um importante conjunto de textos e de depoimentos à memória do académico recentemente falecido Antonio Cícero (1945-2024), compositor, poeta, filósofo e crítico literário, titular da cadeira 27. Como letrista celebrizou-se junto do grande público ao acompanhar com os seus poemas sua irmã Marina Lima bem como outros artistas como Adriana Calcanhotto, José Miguel Wisnik, João Bosco e Waly Salomão. Prestigiado investigador, coordenou na Universidade Federal Fluminense com Alex Varella Cursos de Estética e Teoria da Arte realizados no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Em colaboração com Waly Salomão, desenvolveu o Banco Nacional de Ideias, promovendo ciclos de conferências e discussões com artistas e intelectuais consagrados, como João Cabral de Melo Neto, Haroldo de Campos, John Ashbery, Derek Walcott, Caetano Veloso, Richard Rorty, Tzventan Todorov, Hans Magnus Enzensberger, Peter Sloterdijk e Darcy Ribeiro.
Na antologia organizada por Italo Moriconi “Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século”, o seu poema “Guardar” foi um dos escolhidos. E ao ouvirmo-lo, sentimos a força e a alma da sua palavra: “Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. / Em cofre não se guarda coisa alguma. / Em cofre perde-se coisa à vista. / Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por / admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. / Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por / ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, / isto é, estar por ela ou ser por ela. / Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro / Do que um pássaro sem voo. / Por isso se escreve, por isso, se diz, por isso se publica / por isso se declara e se declama um poema: / Para guardá-lo: / Para que ele, por sua vez, guarda o que guarda: / Guarde o que quer que guarda um poema: / Por isso o lance do poema: / Por guardar-se o que se quer guardar”. Merece referência especial a iniciativa em que participou com Gabriel o Pensador, Chico Buarque, Ronaldo Bastos e Fernando Brant da publicação de quatro CDs de homenagem a Carlos Drummond de Andrade (2002). Com José Saramago, Wim Wenders e Hermeto Pascoal participou no documentário “Janela da Alma” de João Jardim e Walter Carvalho. Em 2007 proferiu em Lisboa na Fundação Gulbenkian a conferência “Da atualidade do conceito de civilização”, no âmbito do encontro “O Estado do Mundo”, publicado em “A Urgência da Teoria”. Ainda em Lisboa, proferiu em 2008 a conferência de encerramento do Congresso Internacional Fernando Pessoa com o título “Fernando Pessoa – Poesia e Razão”, publicado em 2010. A Imprensa Nacional publicou “Guardar. A Cidade e os Livros. Porventura” (2020), uma reunião fundamental integrada na coleção Plural, com direção literária de Jorge Reis-Sá e o poeta teve participação relevante na Póvoa de Varzim nas Correntes de Escritas.
Pensador de uma fina inteligência aberta e livre, Antonio Cícero, ao tomar posse na Academia, afirmou:: “O cânone literário positivo, sendo produzido por uma sociedade aberta, é, ele próprio, aberto, expansivo, sempre sujeito a questionamentos, discussões e modificações. Convém ressaltar que o reconhecimento de um cânone não é absolutamente incompatível com a valorização da inovação na literatura. Assim, os movimentos de vanguarda não eram necessariamente contra o cânone. (…) Penso que a importância do cânone está, em primeiro lugar, no facto de que é através dele que sabemos o que é a literatura e o que é a boa literatura.. Não é através de nenhuma definição que sabemos o que é poesia, mas sim através da leitura de poemas e, em primeiro lugar, de poemas que têm sido considerados bons, modelares, clássicos, canónicos pela sociedade aberta de poetas, escritores, teóricos da literatura, críticos, professores, jornalistas, leitores etc.”. Ao longo das páginas dedicadas ao poeta homenageado, sentimos um percurso de rara coerência, bem demonstrada até ao seu último gesto. Simbolicamente, para além do dossiê de homenagem e dos diversos textos que o compõem, há uma página que estava destinada ao texto do poeta, que de algum modo, adivinhamos, relendo o que nos deixou. Como diz Rosiska Darcy de Oliveira: “Exercendo a sua última liberdade, ele escolheu colocar o ponto-final em sua história. Na sua ausência essa página em branco ilustra o vazio que ele deixou”.
Ilustrando a importância da vitalidade da cultura, o académico António Carlos Secchin, a propósito da Semana de Arte Moderna de 1922, demonstra como os caminhos da criação são insondáveis dando, afinal, razão a António Cícero sobre a importância da sociedade aberta e das suas diferenças. E fala-nos paradoxalmente de “Os Sapos” de Manuel Bandeira como possível símbolo dessa célebre Semana (de que não participou), quando o poema de Carlos Drummond “No meio do caminho” seria porventura mais coerentemente “hino” da Semana…Mas a mitologia desenvolveu-se de outro modo. “O Olimpo em Chamas”, eis as repercussões de uma sessão académica agitada pelas polémicas sobre a Semana modernista, com troca de argumentos corrosivos e a saída de Graça Aranha em ombros, em rutura anunciada com a Academia… Contudo, por momentos, a sessão modernista da ABL cairia no olvido. Mas ocorreu a seguir um volte-face. «Ainda assim, a despeito de tudo isso (diz A.C. Secchin), a Semana de Arte Moderna se consolidou miticamente como o maior acontecimento da história brasileira. Se Oswald de Andrade fosse vivo e eu lhe indagasse por quê, ele, irreverente, talvez respondesse: ‘Ora, você não conhece a profunda verdade de um verso paradoxal de Fernando Pessoa? O mito é o nada que é tudo’».
A “Revista Brasileira” está cheia de motivos de interesse como o importante ensaio de Lília Schwarcz sobre Amália Augusta de Lima Barreto, exemplo das estratégias conhecidas de certas famílias afro-brasileiras para ganharem a liberdade jurídica e conquistarem o reconhecimento social pelo acesso à educação. Por fim, a recensão da obra de Edgar Morin, “De Guerra em Guerra – de 1940 à Ucrânia”, permite-nos ouvir o centenário sócio correspondente da Academia dizer-nos: “A certeza de políticos e economistas de que o neoliberalismo seria produtor de um crescimento continuo era ilusória; a pandemia mundial, que provocou uma crise planetária gigantesca e multidimensional, foi mal compreendida pelo pensamento reinante, mecanicista e linear, que se mostra incapaz de conceber a complexidade dos fenómenos. Enquanto nos felicitamos por ter conseguido chegar à sociedade do conhecimento, estamos mergulhados numa cegueira que, quanto mais acredita possuir os meios adequados do saber, mais aumenta”…
Guilherme d'Oliveira Martins
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