DEMOCRACIA INCOMPLETA
António Barreto © António Cotrim/Lusa
Para grandes males grandes remédios. Vivemos um dos momentos mais graves da história contemporânea. O que aconteceu nos últimos dias na cena internacional, quanto a hesitações, avanços, recuos e discursos absurdos assemelha-se aos tempos mais tristes da história. Precisamos de cabeça fria e nervos de aço, para não corrermos atrás dos estranhos acontecimentos que povoam o mundo… O caos instalado está a prejudicar todos e corresponde a uma pulsão suicida, que se assemelha à parábola dos cegos no precipício. E nós portugueses, ainda que distantes do epicentro do temporal, não podemos alhear-nos do que se passa. Somos, por isso, chamados à responsabilidade.
Há dias, numa entrevista de rara lucidez, com a coerência que lhe conhecemos, António Barreto disse preto no branco o que deve ser dito: “Se houver maioria de um só partido ou se os dois partidos centrais fizerem coligação e governo talvez haja uma mudança positiva. Haverá mais possibilidades de resolver a questão dos financiamentos europeus, os problemas de segurança e defesa e o relançamento do Serviço Nacional de Saúde. Talvez a justiça mereça mais atenção por parte do legislador; depois destes anos de verdadeira desordem institucional. (…). Defendo um governo de coligação nacional, com os dois maiores partidos, com um programa escrito, assinado com validade para quatro anos” (DN, 28.3.2025). Está tudo dito. E não se perca muito tempo. Sabemos que há mil argumentos sobre futuros imponderáveis, contudo a coragem obriga a forçar os acontecimentos e a não seguir os falsos lugares comuns. Estamos numa circunstância única. Não podemos dar-nos ao luxo de continuar a debater o sexo dos anjos.
Veja-se o que ocorre neste momento na Alemanha. Os riscos da grande coligação são evidentes, mas a ausência de uma solução forte determinaria necessariamente uma crise arrastada e fatal. Num tempo em que se tornou moda não ouvir a ciência e a sabedoria, devemos desconfiar das frases bombásticas e das simplificações grotescas. Impõe-se, pois, criar condições de governabilidade e se as mesmas funcionarem, não há o perigo de dar argumentos aos discursos radicais, pois já sabemos do que não são capazes e dos efeitos nefastos das suas políticas. Mais do que a moderação, precisamos de cuidar do bem comum e do interesse geral. Os maiores economistas do último século e meio – Knut Wicksell e John Maynard Keynes – ensinaram-nos a necessidade de estarmos atentos aos acontecimentos, às incertezas e à “experiência madre de todas as cousas”. Para o sueco, importaria encontrar consensos duráveis nas políticas estruturais entre os principais partidos, para que as alternativas pudessem funcionar nos ciclos eleitorais democráticos, sem sobressaltos e demagogias. Para o britânico, haveria que ligar a procura efetiva global à capacidade de realizar investimentos reprodutivos pelos diferentes agentes económicos privados e públicos, com atenção especial à criatividade, à ciência e até à arte. Infelizmente, um certo hedonismo cínico tem esquecido estes elementares ensinamentos e o nosso antigo “saber todo de experiências feito”, que Camões elogiou no centro de “Os Lusíadas”. Gerir é menos que governar, e do que precisamos é de capacidade para dar um rumo, uma orientação à sociedade e ao Estado, centrada no pluralismo, na liberdade e no Estado de Direito. Eis o que importa.
NOTA - O título da crónica é o mesmo do livro que escrevemos em 1978 com António Rebelo de Sousa.
GOM