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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  
    Filme "Matrix"


213. UTOPIA, DISTOPIA OU PROTOPIA?


Se a utopia idealiza uma sociedade perfeita que, segundo o seu criador (Tomás Moro), vive numa ilha imaginária (“Utopia”), que não existe em lado algum, não vinculada às condições económicas e políticas da realidade concreta, tendo como referência um modelo abstrato irrealizável, então torna-se inexequível uma comunidade idílica e justa onde não há desigualdades de qualquer tipo.   

Se a distopia idealiza uma sociedade imaginária destrutiva, caótica, injusta, desigualitária por natureza, baseada num pensamento futurista negativo, se não mesmo apocalíptico, tendo como referência um modelo abstrato gerador de sistemas totalitários, onde o ambiente, a ciência, a tecnologia, a moral e a ética não melhoram a nossa vida, conclui-se ser sempre indesejável, mesmo que realizável.   

Entre a mensagem de pacifismo utópico e total do sermão da montanha protagonizado por Jesus Cristo, e a de quem trabalha como hacker e programador em que a realidade que habita é uma ilusão virtual e distópica controlada por máquinas (Matrix), melhor é ser utópico que distópico, dado o lado mais construtivo e positivo dos utopistas e das suas conquistas.

Se a protopia idealiza uma sociedade de futuro possível, exequível, sustentável e realizável, sem amanhãs que cantam ou pessimismos exagerados, num mundo de melhorias permanentes e evolução contínua, que tem por assente, por condição e natureza, a imperfeição humana, assim como o equilíbrio, o compromisso e o pacifismo possível como bens e fins inestimáveis, com consciência de que há sempre algo por fazer e fazível pelo bem comum, então a protopia estará mais bem posicionada para, realisticamente, ser mais realizável e nos fazer melhorar, porque indicia agarrar mais de perto aquilo que somos como humanos.  


16.05.25
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

A alma-planta que rompe a pedra 

  


Nem por um instante nos podemos distrair da luta contra a desumanização e que tanto expõe a fealdade quotidiana do mundo.

Vive-se numa guerra entre versões incombináveis da realidade e temos de aprender a travá-la.

As narrativas prenhas de destruidoras mentiras contam histórias que se têm revelado atraentes para os seguidores dos gostos como nova gulodice.

É chegada a hora de expormos as realidades dentro das quais, em consciência, as pessoas querem viver.

É chegada a hora de deixarmos absolutamente claro o quanto a brutalidade cria falsas explicações para justificar a agressão e o controlo; o quanto a opressão conduz ao desastre total que visa impedir-nos o pensar e o sentir.

E sabe-se que o amor dos opressores está cheio de ódio, e que tudo o resto do seu íntimo e dos seus objetivos, já a história tragicamente conheceu.

Mas em nós, em nós, a substantiva bússola da alma-planta que rompe a pedra e é esperançar, e é caminhar, agir, fazer nascer, clamar pela nossa atenção ao presente para que não viremos costas ao futuro; para que saibamos que não estamos impotentes se não ficarmos ociosamente quietos, enquanto as batalhas tiranizadoras grassam em várias frentes.

Em nós, dizíamos, esta substantiva bússola da alma-planta que rompe a pedra e expõe a conciliação dos humanos com a sua humanidade.

Aleluia!

E se é certo que o poema não impede a bomba ele recorda-nos que é mais forte do que a morte.

Todos temos os nossos meios para nos mantermos envolvidos e prestarmos atenção, de forma útil, aos tempos que se vivem.

Lembremo-nos que a proibição aos seres de não irem mais além sempre tem sido vencida.

Lembremo-nos que não seríamos quem somos sem os nossos ontens.

Lembremo-nos das acutilantes e esperançosas palavras de Aranguren:

Nadie conoce al hombre,

nadie puede sondarle en su corazón,

pero debemos creer en él

y esperar de él.


Teresa Bracinha Vieira

EXPERIÊNCIA

  


É comum a queixa de que nos debates sobre as três áreas fundamentais da actividade humana (a economia, a educação e o futebol)  a única coisa que os participantes fazem é falar. Dificilmente, no entanto, poderiam fazer outra coisa. Seria imprático e caro que tais debates fossem organizados como concursos de culinária; e fosse dado a cada concorrente tempo razoável para e.g. equilibrar o orçamento,  preparar os jovens de amanhã, ou ganhar um torneio de futebol.

No entanto, ao contrário de um concurso de culinária em que podemos decidir entre várias versões de ovos mexidos, um concurso que nos permitisse mostrar a real experiência dos concorrentes nas áreas fundamentais da actividade humana só seria possível se houvesse pelo menos um mundo à disposição de cada concorrente. Com tal sistema, por exemplo, o concorrente 1 treinaria a equipa A no mundo 1; o concorrente 2 treinaria a equipa A no mundo 2; e assim sucessivamente. Por várias razões, a solução não é exequível. Como saber então que alguém tem experiência nas áreas fundamentais da actividade humana?

É convicção geral que se pode saber; e a convicção é apoiada justamente pelo espectáculo familiar de pessoas que mostram em público tal experiência, por exemplo em debates, comícios, entrevistas ou conferências. Porém, se pensarmos bem, o que essas pessoas mostram em público não pode ser a sua experiência. Excepto quando a especialidade é falar, exercer uma especialidade e falar dela é como comer e cantar ao mesmo tempo. As aparições públicas de pessoas experientes são aparições em que elas, por motivos logísticos e mesmo anatómicos, não podem exercer a sua experiência.

Quando concluimos que alguém num debate tem experiência não nos baseamos em nenhuma evidência de tal experiência, mas simplesmente no modo como fala. Seria possível, com trabalho ou astúcia, ensinar alguém a falar perfeitamente como um educador ou um economista: mas o seu modo de falar não permitiria concluir nada sobre o que é capaz de fazer. Por outro lado, em áreas menos fundamentais da actividade humana não nos preocupamos tanto com a maneira como as pessoas falam. Não contratamos um canalizador porque fala como um canalizador. Talvez por isso não haja debates públicos entre canalizadores.

Se num debate público os participantes não podem demonstrar a sua experiência, o que fazem eles?  A resposta é: normalmente anunciam a sua experiência. Anunciar a minha experiência consiste em sugerir que, caso tenha feito uma coisa, sou capaz de a voltar a fazer; e que, caso nunca a tenha feito, também. A presença pública de pessoas experientes corresponde assim a uma mistura de autobiografia e profecia: serve para descrever feitos e fazer pressentir proezas. Como toda a gente, as pessoas experientes têm de si próprias boa impressão. Como quase toda a gente, gostam de falar como pessoas experientes. Não admira por isso que, quando têm quem as oiça, aproveitem para se recomendar a si próprias.


Miguel Tamen
Escreve de acordo com a antiga ortografia

CRÓNICAS PÁRA E PENSA

 

  
    Fotografia de Christopher Furlong/Getty Images


As primeiras palavras do Papa Leão XIV 
na sua primeira bênção Urbi et Orbi
8 de Maio de 2025 


A paz esteja com todos vós!

Caríssimos irmãos e irmãs, esta é a primeira saudação de Cristo Ressuscitado, o Bom Pastor que deu a vida pelo rebanho de Deus. Eu também gostaria que esta saudação de paz entrasse nos vossos corações, chegasse às vossas famílias, a todas as pessoas, onde quer que estejam, a todos os povos, a toda a terra. A paz esteja convosco!

Esta é a paz de Cristo Ressuscitado, uma paz desarmada e uma paz desarmante, humilde e perseverante. Ela vem de Deus, Deus que nos ama a todos incondicionalmente. Ainda conservamos nos nossos ouvidos aquela voz fraca, mas sempre corajosa, do Papa Francisco que abençoava Roma!

O Papa que abençoava Roma concedia a sua bênção ao mundo, ao mundo inteiro, naquela manhã do dia de Páscoa. Permitam-me prosseguir com essa mesma bênção: Deus ama-nos, Deus ama a todos vós, e o mal não prevalecerá! Estamos todos nas mãos de Deus. Portanto, sem medo, unidos, de mãos dadas com Deus e entre nós, sigamos em frente. Somos discípulos de Cristo. Cristo precede-nos. O mundo precisa da sua luz. A humanidade precisa dele como ponte para ser alcançada por Deus e pelo seu amor. Ajudai-nos também vós, pois, uns aos outros, a construir pontes, com o diálogo, com o encontro, unindo-nos todos para sermos um só povo, sempre em paz. Obrigado, Papa Francisco!

Quero também agradecer a todos os meus irmãos cardeais que me escolheram para ser o Sucessor de Pedro e caminhar convosco, como Igreja unida, sempre procurando a paz, a justiça, procurando sempre trabalhar como homens e mulheres fiéis a Jesus Cristo, sem medo, para proclamar o Evangelho, para sermos missionários.

Sou um filho de Santo Agostinho, agostiniano, que disse: «Convosco sou cristão e, para vós, bispo». Neste sentido, podemos todos caminhar juntos rumo àquela pátria que Deus nos preparou.

À Igreja de Roma, uma saudação especial! Devemos procurar juntos como ser uma Igreja missionária, uma Igreja que constrói pontes, dialoga, sempre aberta para receber, como esta praça com os braços abertos, a todos, a todos aqueles que precisam da nossa caridade, da nossa presença, do diálogo e do amor.

(em espanhol)

E se também me permitem, uma palavra, uma saudação a todos aqueles, e em particular à minha querida diocese de Chiclayo, no Peru, onde um povo fiel acompanhou o seu bispo, compartilhou a sua fé e deu muito, muito para continuar a ser Igreja fiel de Jesus Cristo.

A todos vós, irmãos e irmãs de Roma, da Itália, do mundo inteiro, queremos ser uma Igreja sinodal, uma Igreja que caminha, uma Igreja que procura sempre a paz, que procura sempre a caridade, que procura sempre estar próxima, especialmente daqueles que sofrem.

Hoje é o dia da Súplica a Nossa Senhora de Pompeia. Nossa Mãe Maria quer sempre caminhar connosco, estar próxima, ajudar-nos com a sua intercessão e o seu amor.

Agora, gostaria de rezar convosco. Rezemos juntos por esta nova missão, por toda a Igreja, pela paz no mundo e peçamos esta graça especial a Maria, nossa Mãe.

Ave-Maria...

(Texto original em italiano)


Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia

A VIDA DOS LIVROS

  

De 12 a 18 de maio de 2025


Passa em 2025, o primeiro centenário do nascimento de Joaquim Veríssimo Serrão, antigo Presidente da Academia Portuguesa da História e historiador com importante obra, recordamo-lo hoje.


O testemunho que importa deixar em memória de Joaquim Veríssimo Serrão tem como marco fundamental a entrega total que dedicou ao estudo da História portuguesa. Os diversos domínios da sua investigação correspondem a uma procura sistemática das profundas razões que determinaram a afirmação da autonomia de Portugal no contexto mundial. Desde os alvores da nacionalidade, encontramos motivações complexas que não podem ser resumidas em razões simplistas. Esse facto, levou o historiador a recusar considerações simplistas ou unilaterais. A cada passo, encontramos uma convergência entre razões geográficas, políticas, económicas, sociais e culturais para os diferentes acontecimentos e fenómenos. E às razões prevalecentes em cada momento, vamos acrescentando outras que nos permitem avançar na compreensão de uma existência diversa e multifacetada. Os séculos XV, XVI e XVII, para Portugal e para o Brasil são os períodos que mais ocuparam a investigação do historiador, com destaque para a monarquia dual e para sua evolução, no contexto internacional.


Cem anos, já. Celebramos o primeiro centenário do nascimento de um historiador probo, de um estudioso incansável, que nos deixou uma herança rica e positiva de investigação e estudo sobre as nossas raízes e desenvolvimentos históricos. Nascido em Santarém, em 8 de julho de 1925, Joaquim Veríssimo Serrão licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em 1948, tendo militado cedo no MUD juvenil. Profundamente interessado pela ligação entre a história regional e a projeção internacional da mesma, dera à estampa, um ano antes, “Ensaio Histórico sobre o Significado da Tomada de Santarém aos Mouros em 1147”,  estudo na linha dos ensinamentos de Alexandre Herculano, o verdadeiro fundador da moderna historiografia portuguesa. Em 1948, estreara-se como conferencista, apresentando “A mundividência na poesia de Guilherme de Azevedo”, sobre o talentoso poeta e jornalista de Santarém (1839-1882), com estreitas relações com a Geração de 70, colaborador do Álbum das Glórias com o pseudónimo de João Rialto.


Em 1950, partiu para Toulouse, no sul de França, onde foi nomeado leitor de Cultura Portuguesa da Universidade. Durante este período teve contacto estreito com os mais brilhantes lusitanistas, como Paul Teyssier (1915-2002), León Bourdon (1900-1994) e Jean Roche (1917-2006). Recorde-se que qualquer um dos três considerou sempre a grande importância das culturas da língua  portuguesa de Portugal até ao Brasil. Durante este período publicou “A Infanta D. Maria (1521-1577) e a sua Fortuna no Sul da França”. Trata-se de um importante estudo que se insere no papel fundamental desempenhado pela corte portuguesa no movimento cultural renascentista, depois da chegada Portugal de Cataldo Parísio Sículo (1455-1517). Reveste-se, aliás, de especial importância o papel desempenhado pela Infanta D. Maria de Portugal, filha de D. Manuel, estudada exaustivamente por Carolina Michaelis de Vasconcelos. Por outro lado, deu ainda a conhecer importantes investigações sobre António de Gouveia, Francisco Sanches, Diogo de Teive, Manuel Álvares e outros letrados portugueses que frequentaram aquela universidade.


Em 1957 defendeu a tese de doutoramento na Universidade de Coimbra, intitulada “O Reinado de D. António Prior do Crato: 1580-88”, sobre um período pouco estudado da história portuguesa e iniciou funções docentes na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Na década seguinte, o historiador foi particularmente profícuo: além de dar aulas e conferências, publicou trabalhos sobre humanistas portugueses nas universidades de Salamanca, Montpellier e Toulouse, as relações externas entre Portugal e as cortes europeias no século XVI, o Brasil colonial (séculos XVI e XVII) e a crise dinástica de finais do século XVI. Fez ainda parte dos colaboradores da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira e do Dicionário da História de Portugal, dirigido por Joel Serrão, onde assinou diversas entradas.Entre 1967 e 1972, suspendeu a atividade docente, por ter sido nomeado diretor do Centro Cultural Português da Fundação Calouste Gulbenkian em Paris. Nestas funções destacou-se na divulgação dos estudos portugueses através dos “Arquivos do Centro Cultural Português”. É muito importante a sua ação em Paris pelas iniciativas que levou a cabo e pelos conferencistas e estudiosos que convidou para animarem tão relevante ação internacional, num tempo em que a projeção da cultura além fronteiras estava limitada pelas circunstâncias políticas. As relações que estabeleceu com J. V. de Pina Martins constituíram um exemplo de diálogo cultural muito fecundo, de que foi largamente beneficiária não apenas a história da literatura e da arte, mas também a história das instituições – tendo a Fundação Gulbenkian sido um catalisador extramente importante. Em 1973 regressou a Portugal para a docência na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, da qual foi reitor até 1974, cargo que deixou após a Revolução de 25 de Abril. Pouco depois, com grande coerência, o historiador deu testemunho das suas relações de amizade com Marcello Caetano, publicando “Confidências no Exílio” (1985) e “Correspondência com Marcello Caetano 1974-1980” (1994). Desde 1975 até 2006 presidiu à Academia Portuguesa da História. A sua “História de Portugal” (Editorial Verbo, 1978-2010) de dezoito volumes (Vol. I - 1080-1415; Vol. II - 1415-1495; Vol. III - 1495-1580; Vol. IV - 1580-1640; Vol. V - 1640-1750; Vol. VI - 1750-1807; Vol. VII - 1807-1832; Vol. VIII - 1832-1851; Vol. IX - 1851-1890; Vol. X - 1890-1910; Vol. XI - 1910-1926; Vol. XII - 1910-1926; Vol. XIII - 1926-1935; Vol. XIV - 1935-1941; Vol. XV - 1941-1951; Vol. XVI - 1951-1960; Vol. XVII - 1951-1960; Vol. XVIII - 1960-1968) constitui um significativo contributo para o conhecimento e divulgação pedagógica dos contributos portugueses para a evolução do mundo.  Joaquim Veríssimo Serrão foi sócio de mérito, membro honorário e correspondente de inúmeras sociedades científicas, portuguesas e estrangeiras, tendo recebido diferentes distinções, condecorações e prémios, bem como doutoramentos “honoris causa” por universidades francesas, espanholas e portuguesas. Recebeu o Prémio Príncipe das Astúrias de Ciências Sociais em 1995.


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

ANTOLOGIA

  
    Luzia Maria Martins e Helena Félix (in http://diasquevoam.blogspot.pt/)


ATORES, ENCENADORES (XXIV)

NOS 50 ANOS DO TEATRO ESTÚDIO DE LISBOA
por Duarte Ivo Cruz


Já evocamos aqui dois cinquentenários – o do Teatro Villaret, fundado e dirigido por Raul Solnado, e o da companhia do Teatro do Nosso Tempo, fundada e dirigida por Jacinto Ramos. Agora, também 50 anos decorridos, é oportuna uma referência à companhia do Teatro Estúdio de Lisboa (TEL), fundada e dirigida por Helena Félix e Luzia Maria Martins, no desaparecido Teatro Vasco Santana.

Mas não deixa de ser também oportuna a referência ao Teatro em si, hoje uma ruina situada em zona referencial de Lisboa mas que, há meio século e durante largos anos, valorizou o meio e a cultura teatral. Lá se instalou e se manteve, com efeito, o TEL, que se destacaria pela exigência de repertórios: e tanto mais de assinalar que a própria implantação do Teatro e da companhia no que era, na altura, a Feira Popular de Lisboa, de certo modo contrastava e valorizava, da melhor maneira, o teor especificamente popular do recinto e das suas atividades.

Evidentemente, a saudosa Feira Popular e as respetivas atividades, eram obviamente legítimas e de qualidade, e constituíram, durante dezenas de anos, uma faceta relevante da vida da cidade: mas não tão exigente, no ponto de vista artístico e cultural, como sempre foi o repertório e os elencos e encenações do TEL.

Basta recordar algumas marcas do repertório do TEL, mantidas, sempre com exigência, durante larguíssimos anos: peças de Luís Sttau Monteiro, Fernando Luso Soares, Prista Monteiro, da própria Luzia Maria Martins, para referir autores portugueses contemporâneos. E peças de Maxell Andersen, Arnold Wesker, Anton Tchekov, David Story, Terence Rattigan, Jean Giraudoux, John Osborne, Peter Shaffer, Roger Vitrac, Arthur Miller, Marguerite Duras, entre tantos mais.

Isto consubstância um repertório dominantemente contemporâneo, numa altura em que o teatro moderno enfrentava os problemas bem conhecidos.

Importa referir entretanto que as duas animadoras do TEL chegaram à Feira Popular com um currículo e uma preparação cultural notável pela abrangência e pela própria internacionalização. Assim, Helena Félix permaneceu mais de 10 anos na Companhia Rey Colaço – Robles Monteiro, o que implica um registo de qualidade que hoje já ninguém contesta.  E de 1961 a 1964 completou em Londres uma formação artística de grande qualidade.

E quanto às encenações de Luzia Maria Martins, que trabalhou em Londres e foi também dramaturga, apraz-me recuperar algumas das numerosas análises críticas que ao longo dos anos, fui fazendo.

 Assim em “A Nossa Cidade” de Thorton Wilder, salientei designadamente as soluções encontradas para as expressões de mímica, sempre difíceis; em “A Louca de Chaillot” de Jean Giraudoux, salientei a interpretação e o “muito feliz jogo de marcações”; ou “a marcação sempre correta, sempre engenhosa” na “Noite de Verão” de Ted Williams; ou a “interligação entre os diversos planos (de Vitor ou as Crianças no Poder de Roger Vitrac) menosprezando assim um pouco a heterogeneidade surrealista da obra”. E tantas mais.

Pois, como escrevi numa crítica à peça “Lar” de David Storey, “Helena Félix e Luzia Maria Martins, à frente do Teatro Estúdio de Lisboa, teimam prosseguir uma verdadeira obra de renovação cultural”.

E assim foi durante vários anos!


Duarte Ivo Cruz


Obs: Reposição de texto publicado em 20.05.15 neste blogue.

QUE FRATERNIDADE HUMANA?

  
    Visita do Papa Francisco a Lampedusa, Foto: AFP/Getty Images


Várias vezes Eduardo Lourenço me confessou que o grande mistério que gostaria de ver desvendado era o de saber o que Jesus Cristo teria escrito com o dedo no chão, no episódio da mulher adúltera. Esse é o único momento do “Novo Testamento” em que o Filho de Deus escreve. E compreende-se que para o intelectual e o ensaísta fosse muito importante desvendar esse lado oculto do Nazareno. Tal circunstância tem tudo a ver com a personalidade do Papa Francisco, que em vários momentos nos lembrou a importância dessa passagem. “Quem de vós estiver sem pecado seja o primeiro a lançar-lhe uma pedra! E inclinando-Se novamente recomeçou a escrever no chão. Eles, porém, quando isto ouviram, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos, e ficou Jesus com a mulher, que continuava ali no meio…” (Jo, 8, 7-9). Em diversas circunstâncias o Papa Francisco recordou este episódio, não como gesto teórico, mas como exemplo de vida.

A marca da diferença foi o sinal único de um magistério que perdurará por certo, qualquer que seja o desenvolvimento histórico. Serão inúteis as especulações sobre o que irá acontecer agora, a verdade é que presenciámos o lançamento à terra de pequenas sementes, como grãos de mostarda, de simplicidade e de sobriedade. O contraste com os gestos de barbárie, de ódio e de caos que presenciamos é evidente – e sentimos a angústia do Papa nos seus últimos dias de vida perante a inaudita violência  da guerra mundial aos pedaços que, antes de tudo, oportunamente diagnosticou. Com grande coragem defendeu os temas fundamentais de uma cultura humanista: uma Ecologia integral, uma Economia justa, o papel da mulher, uma Solidariedade com os pobres, os excluídos, os migrantes.

A viagem a Lampedusa está na memória de todos. E a palavra todos tornou-se para o Papa uma bandeira que congrega os projetos de renovação, que se tornaram essenciais na Jornada Mundial da Juventude de 2023. Laudato Si’ (2015) e Fratelli Tutti (2020) constituem gritos de alerta que suscitaram contestação de quantos preferem o dogmatismo e a intolerância que o Papa combateu até ao último dia. Só uma cultura respeitadora da liberdade e da responsabilidade, da memória e do conhecimento poderá encontrar caminhos de autonomia, emancipação, dignidade e paz – eis a grande lição de alguém que usou as palavras e o exemplo para fazer um mundo melhor. E esse projeto de responsabilidade e de coragem foi defendido tenazmente em diversos domínios, razão pela qual a sua herança é muito rica. Assim, o seu desaparecimento não é só uma perda para os cristãos, mas uma perda para o mundo.

O encontro com o Grande Imã da Mesquita de Al Azhar, Ahmed Mohamed El-Tayeb, no Abu Dhabi, constituiu um momento de rara importância no âmbito do diálogo entre as religiões, envolvendo a assinatura do Documento sobre a Fraternidade Humana (4.2.2019), que permitiu a afirmação de uma cultura de paz fundada no respeito mútuo, na liberdade de consciência e na necessidade de uma compreensão mútua baseada no conhecimento e na sabedoria.  Frederico Lourenço faz uma síntese com que concordo plenamente e que subscrevo: “Com Francisco foi-nos dada a visão daquilo que a Igreja poderá ser. Desse ponto de vista, foi um Papa que veio do futuro” (Expresso, 25.4.2025). Todos os sinais do seu percurso e as suas palavras merecem, pois, especial atenção e cuidado. E desejamos que não fiquem no esquecimento ou votadas à indiferença.   


GOM

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  
    Fotograma do filme “Peço a Palavra!”


212. A VERDADE


Se se aceita que a verdade existe acima da nossa vontade e não é criada por nós, seja ela genuína ou moral, conclui-se que é uma descoberta, pois há leis da natureza e morais que nos ultrapassam, que foram descobertas pela ciência e codificadas na tradição do direito natural e universalidade de direitos tidos como inalienáveis.   

Se se aceita que não há verdade objetiva, de que só há vontade e perspetivas subjetivas, tudo é relativo, não se aceitando qualquer universalismo (científico ou outro) e os direitos indisponíveis, entre estes os direitos humanos, surgindo um indeterminável número de narrativas sem validez objetiva.   

Aceita-se, em qualquer caso, que temos de ser nós a decidir-nos por uma vontade normativa e modo convivencial para podermos viver, mesmo que se argumente que a verdadeira essência da condição humana está no caos e se aceite que há uma verdade ficcional onde a verdade autêntica não vem ao de cima.

Se a verdade implica sempre uma decisão, uma opção, como algo que lhe é inerente por natureza, pode concluir-se que ser imparcial é impossível, não é natural nem humano.

As pessoas querem ver-nos a concordar ou a discordar, a aprovar ou desaprovar, tomando uma posição, e não a dizer nada ou não tomar partido.   

Mesmo quando ocultamos os nossos sentimentos e maneira de pensar, tentando ser neutros, há sempre uma interação entre duas ou mais pessoas no espaço público, onde há uma soma de regras que é necessário respeitar, assentes numa vontade/verdade convencionalmente estabelecida, que é a verdade possível, onde a tolerância da pluralidade de ideias não pode ser feita sem filtros.  


09.05.25
Joaquim M. M. Patrício

POESIA

Minha metade lá, meu lá, meu cá 

  
    David hockney


1.

Minha metade lá, meu lá, meu cá

 

porque não era este ser antes de ser

quase totalidade

que ao correr por tantas coisas

também as fui abandonando

para existir e ouvir

outros assombros


2.
 

Minha metade lá, meu lá, meu cá

 

que sobre terra e mar de minha vida

descobri as flores da oceania

percebi verdades

sem domínio

entendi falares, silêncios e muitas dores

na alegria das montanhas que se não inclinam

com o tempo

e que assim seja


3.

Minha metade lá, meu lá, meu cá

 

grandeza que me torna diminuta

dentro de cada folha íntima da floresta inteira

muito além da minha pele

em ti

dedilhei o sol

e um medidor de chuva

às minhas lágrimas


4.
Minha metade lá, meu lá, meu cá

 

os meus pés livres

em danças de partidas e regressos

em virações e desavisos

acordei

batucada em orações

que as nunca acreditei

sem medos


5.

Minha metade lá, meu lá, meu cá

 

raízes fortes de onde eu vim de mim

licença de maternidade

tempo

que agora sou

e as ruas

cortejos de ilusões

fui esquecendo de esquecer

e acordei na minha porção

totalidade

metade lá, meu lá, meu cá

minha casa una entre uma curva e outra


Teresa Bracinha Vieira

ESTAR EM MINORIA

  
    © Damien Meyer/AFP/Getty Images


Entre as  coisas que há vantagem em encorajar nos outros, e em especial nas crianças, uma das mais importantes é o talento ou a paciência de estar em minoria. Não quer isto dizer que haja qualquer coisa de inerentemente meritório na ideia de se estar sozinho, ou pouco, ou mal, acompanhado, contra a opinião de toda a gente. É possível estar em minoria por uma razão disparatada e é possível que em muitos casos, e porventura na maioria dos casos, as maiorias tenham razão.

É também o caso que muitas coisas importantes não são nem podem ser decididas por maioria. As frases ‘O gato está no mato’, ou ‘Não matarás’ são verdadeiras ou falsas independentemente do número de votos que cada alternativa recebe em cada momento. Estar em minoria não é porém importante por causa das coisas importantes que nenhuma maioria pode decidir.   

Uma razão por que estar em minoria é importante é em parte, embora não na parte mais importante, a de que aquilo que é geralmente encorajado pela maioria é estar em maioria. De facto, estar em maioria tem vantagens. Poupa-nos ao esforço de explicar porque concordamos com aqueles com quem estamos. Estar em maioria poupa-nos também ao esforço de pensar naquilo que fazemos: porque aquilo que fazemos é muito parecido com aquilo que a maioria das pessoas com quem estamos faz ou faria. Finalmente, estar em maioria dá-nos a satisfação de acertar em todas as opiniões alheias, como quem aposta num número que temos a certeza de que vai ser premiado. No entanto, o prémio por acertar nas opiniões daqueles pensam como nós é baixo; e a vantagem de dizer o que já sabemos que os outros pensam é nula.

A razão mais importante para encorajar a coragem de estar em minoria, e encorajá-la mesmo nas crianças mais pequenas, é que essa posição nos obriga exactamente aos esforços que quem está em maioria não faz. Os principais são o esforço de explicar as nossas opiniões e o esforço de justificar as nossas acções. Tais esforços ajudam a perceber porque pensamos o que pensamos e fazemos o que fazemos.

Bem entendido, esses esforços podem não dar grandes resultados. Há muitos patetas que passam a vida tentar justificar-se sem grande sucesso; e há acções injustificáveis, mesmo pela pessoa mais inteligente do mundo. Aquilo que justificamos é por isso muito importante. Mas há, independentemente do resto, uma diferença entre não conseguir justificar as nossas opiniões e não tentar sequer explicá-las. É a diferença entre ser-se uma pessoa que se engana de vez em quando e por isso tem muito a perder, e uma não-pessoa que acerta sempre e por isso não tem nada a ganhar. A maioria prefere normalmente esta segunda alternativa; a maioria prefere estar em maioria.


Miguel Tamen
Escreve de acordo com a antiga ortografia

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