A VIDA DOS LIVROS
De 5 a 11 de maio de 2025
O Papa Francisco deixou-nos um testamento pessoal que considerou dever ser lido depois da sua morte. Tudo se precipitou – a doença, a incerteza e por fim o seu falecimento. Damos espaço, a um texto que merece ser lido e meditado.
A memória do Papa Francisco ficará ligada à ideia de um novo rejuvenescimento. Ao chamar a atenção para as margens e para as periferias, procurou mobilizar novas energias, apesar das dificuldades que sentiu e das atitudes corajosas que teve de tomar para limpar alguns sinais de acomodação e de abuso, que não deixou de considerar como vergonha. «Torna-se necessária uma evangelização que ilumine os novos modos de se relacionar com Deus, com os outros e com o ambiente, e que suscite os valores fundamentais» – como afirma a Exortação Pastoral “Evangelii Gaudium” (EG). Na mesma linha em que o Papa João XXIII apelava ao reconhecimento da importância dos “sinais dos tempos”, o Papa Francisco disse: «É necessário chegar aonde são concebidas as novas histórias e paradigmas, alcançar com a Palavra de Jesus os núcleos mais profundos da alma das cidades. (…) Nas grandes cidades, pode observar-se uma trama em que grupos de pessoas compartilham as mesmas formas de sonhar a vida e ilusões semelhantes, constituindo-se em novos sectores humanos, em territórios culturais, em cidades invisíveis. Na realidade, convivem variadas formas culturais, mas exercem muitas vezes práticas de segregação e violência».
Fidelidade e mudança foram marcas profundas do pontificado de Francisco, cuja primeira Encíclica, Lumen Fidei foi escrita em colaboração com Bento XVI. Os temas de uma cultura humanista, de uma Ecologia integral, de uma Economia solidária constituem projetos de renovação, que se tornaram essenciais na mensagem das Jornadas Mundiais da Juventude de 2023: «A par do património natural, encontra-se igualmente ameaçado um património histórico, artístico e cultural. Faz parte da identidade comum de um lugar, servindo de base para construir uma cidade habitável. Não se trata de destruir e criar novas cidades hipoteticamente mais ecológicas, onde nem sempre resulta desejável viver. É preciso integrar a história, a cultura e a arquitetura dum lugar, salvaguardando a sua identidade original. Por isso, a ecologia envolve também o cuidado das riquezas culturais da humanidade, no seu sentido mais amplo». Eis por que razão o Papa Francisco pedia com insistência que se prestasse atenção às culturas locais, mais diretamente, “quando se analisam questões relacionadas com o meio ambiente, fazendo dialogar a linguagem técnico-científica com a linguagem popular. É a cultura – entendida não só como constituída pelos monumentos do passado, mas especialmente no seu sentido vivo, dinâmico e participativo – que não se pode excluir na hora de repensar a relação do ser humano com o meio ambiente» (Laudato Si’, 143). Com efeito, a nossa relação com a cultura obriga à necessidade da compreensão da gratuitidade, da partilha, em vez de uma cega atitude consumista, esquecida da justiça e da solidariedade. «A sobriedade, vivida livre e conscientemente, é libertadora. Não se trata de menos vida, nem de vida de baixa intensidade; é precisamente o contrário. Com efeito, as pessoas que saboreiam mais e vivem melhor cada momento são aquelas que deixam de debicar aqui e ali, sempre à procura do que não têm, e experimentam o que significa dar apreço a cada pessoa e a cada coisa, aprendem a familiarizar com as coisas mais simples e sabem alegrar-se com elas» (EG, 223). E importa ainda lembrar que «a cidade dá origem a uma espécie de ambivalência permanente, porque, ao mesmo tempo que oferece aos seus habitantes infinitas possibilidades, interpõe também numerosas dificuldades ao pleno desenvolvimento da vida de muitos. Esta contradição provoca sofrimentos lancinantes. Em muitas partes do mundo, as cidades são cenário de protestos em massa, onde milhares de habitantes reclamam liberdade, participação, justiça e várias reivindicações que, se não forem adequadamente interpretadas, nem pela força poderão ser silenciadas» (EG,74). Só uma cultura respeitadora da liberdade e da responsabilidade, da memória e do conhecimento poderá encontrar caminhos de autonomia, emancipação, dignidade e paz. Esse projeto de responsabilidade e de coragem foi defendido tenazmente pelo Papa em diversos domínios, razão pela qual a sua herança é muito rica. Assim, o seu desaparecimento não é só uma perda para os cristãos, é uma perda para o mundo.
O encontro com o Grande Imã da Mesquita de Al Azhar, Ahmed Mohamed El-Tayeb, no Abu Dhabi, constituiu um momento da maior importância no âmbito do diálogo entre as religiões, envolvendo a assinatura do Documento sobre a Fraternidade Humana (4.2.2019), que permite a afirmação de uma cultura de paz baseada no respeito mútuo, na liberdade de consciência e na necessidade de uma compreensão mútua baseada no conhecimento e na sabedoria. “A fé leva o crente a ver no outro um irmão que se deve apoiar e amar. Da fé em Deus, que criou o universo, as criaturas e todos os seres humanos – iguais pela sua Misericórdia -, o crente é chamado a expressar a fraternidade humana, salvaguardando a criação e todo o universo, apoiando todas as pessoas, especialmente as mais necessitadas e pobres». Há, porém, um longo caminho a percorrer.
O Documento Final do Sínodo dos Bispos merece uma especial atenção e uma leitura cuidada, porque aí se sente a intervenção do Papa. Saliente-se a tendência para não referir de modo fechado uma Igreja universal, preferindo-se a fórmula abrangente e a lógica de rede com diversas ramificações periféricas. Torna-se, de facto, necessária uma linguagem adequada ao tempo presente: há a comunhão de Igrejas, reportando-nos ao povo de Deus, unido em Cristo. O universalismo não pode, assim, confundir-se com uniformização. As igrejas locais correspondem a diferentes maneiras de viver as relações entre cristãos. Deste modo, quando o Papa Francisco afirmou que o Documento sinodal "não é normativo", preferiu indicar um caminho a ser tomado por todos. "Não se trata, portanto, de leis vindas de uma instância central para serem adaptadas nas periferias, mas de responder a um apelo à conversão, ou seja, a viver as relações eclesiais de modo diferente".
A liturgia é ainda um tema que ainda deve ser avaliado. No entanto, onde for apropriado deve haver mais participação. Há experiências já existentes que exigem aprofundamento. Quanto ao diaconato feminino, persiste a questão em aberto, mas para o Papa a participação das mulheres na Igreja terá de ser alvo de especial atenção. "Devemos tornar-nos uma espécie de centro no qual as diferentes pessoas possam reconhecer-se como irmãos e irmãs, filhos de um único Pai". Estamos perante uma ideia diferenciada de serviço, que pode ser vivida de forma integrada e dinâmica, não podendo os leigos ser subalternos ou substitutos. O Papa Francisco lembrava Gustav Mahler, a defender que a fidelidade à tradição não consistiria em adorar as cinzas, mas em conservar o fogo. Por isso, perguntava, ao defender o método da colegialidade: antes de começarmos o caminho sinodal, a que estaremos mais inclinados: a cuidar das cinzas da Igreja, do grupo restrito de cada qual, ou a conservar o fogo? Infelizmente, há mais tendência para adorar as coisas que nos encerram e não as que nos fazem viver. “Sou de Pedro, sou de Paulo, sou desta associação, tu és da outra, sou padre, sou bispo, ou sentimo-nos chamados a guardar o fogo do Espírito?”