Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Quantos portugueses e portuguesas saberão que o feriado de anteontem, Quinta-Feira, é por causa de um banquete: a festa do Corpo de Deus, precisamente lembrando a última Ceia de Jesus!
Os primeiros cristãos reuniam-se nas suas casas, e, recordando essa Ceia e os banquetes de Jesus na sua vida terrena enquanto sinal da chegada do Reino da Filadélfia (Reino dos amigos e irmãos, que é isso que quer dizer filadélfia), celebravam um ágape em sua memória - uma refeição festiva e fraterna.
Foi só mais tarde que a missa começou a ser concebida como sacrifício. Com essa perspectivação cultual sacrificial, apareceu o sacerdote, e, com a sua celebração diária, a obrigação do celibato, pois o sacerdote está separado, à parte: tocando no Corpo do Senhor não pode tocar a profanidade impura do corpo da mulher. Na missa, havia uma imolação e matação de Cristo, embora se discutisse se essa imolação era real, moral, mística, ou sacramental.
O sacerdote tinha o poder de "trazer Cristo à Terra", realizando o milagre da transubstanciação do pão e do vinho, que deixavam, por isso mesmo, de ser pão e vinho.
Esta concepção arrastou consigo vários equívocos. Em primeiro lugar, uma concepção substancialista e coisista da presença de Cristo. O filósofo Hegel viu bem o perigo desta coisificação: referindo-se à celebração da Eucaristia, escreveu que, segundo a representação católica, "a hóstia - essa coisa exterior, sensível, não espiritual - é, mediante a consagração, o Deus presente - Deus como coisa."
Deste modo, a Eucaristia deixou de ser a celebração festiva em que todos participavam activamente, para tornar-se sacrifício objectivo autónomo, que o padre até podia celebrar sozinho e que oferecia pelas almas do purgatório e muitas outras intenções, com uma remuneração monetária... De agora em diante, era, portanto, possível ir à missa - repare-se nas expressões “ir à missa”, “assistir à missa” - e não comungar: está-se na missa, mas de fora, ignorando que a celebração da memória de Jesus implica uma real e autêntica conversão, que consiste na entrada activa na dinâmica do seu Reino: Reino da paz, da reconciliação, do amor, da fraternidade e da verdade. Chegou-se a esta distorção: é-se convidado para um banquete, mas é de fora que se assiste à festa. Por isso é que há o sem-sentido das "missas oficiais" a que assistem agnósticos, ateus e indiferentes...
Paradoxalmente, com a interpretação coisista da presença de Cristo, contra o sentido profundo do que São Paulo escreve aos Coríntios - "quem come do pão e bebe do cálice do Senhor indignamente torna-se réu do corpo e do sangue do Senhor" -, muitos cristãos, indo à missa e não comungando, vêem-se libertos da urgência da conversão ao projecto da vida de Jesus. Ora, precisamente nesta não conversão, é que, segundo São Paulo, nos tornamos réus do corpo e do sangue do Senhor, isto é, culpados da sua morte: de facto, o que São Paulo condena na comunidade de Corinto são as suas divisões e que, enquanto uns comem lautamente, outros passam fome.
É, pois, urgente e necessário ser consequente: uma vez que se deve partir do pressuposto de que quem vai à missa - a própria expressão “ir à missa” diz bem a passividade do acto - é porque quer sinceramente entrar no espírito de Jesus, não se compreende que não comungue. Nesta mesma dinâmica, a comunhão também não deveria ser negada às crianças, que, à sua maneira, participam, com a família, na celebração da Ceia do Senhor: nas nossas festividades familiares, também as não excluímos.
Quando os cristãos se reúnem em Eucaristia, celebram festivamente o que Jesus foi e é, a sua vida, a sua morte, a sua ressurreição e o seu Reino - o seu Reino já presente, mas anunciando e esperando a sua consumação.
P. S.: Amanhã, Domingo, realiza-se o funeral do bom amigo Padre José Martins Júnior. Evidentemente, causa sempre tristeza a partida de um amigo. Mas o cristão crê com confiança radical racional que, na morte, ele não caiu no nada mas entrou na plenitude da vida em Deus e que havemos de reencontrar-nos. As celebrações eucarísticas a que presidia ficam na memória pela alegria e a participação viva, activa, de todos, incluindo os mais jovens. Cristão convicto, Martins Júnior combateu sempre pela promoção das pessoas, a justiça social e a fraternidade. Tenho muita satisfação em ter contribuído para a revogação em 2019 pelo bispo da Diocese do Funchal, Nuno Brás, da sua suspensão ‘a divinis’ (proibição de exercer funções sacerdotais). Continuará a ecoar aquela sua palavra: “Servi o Povo de Deus e não a Igreja Católica”.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Sábado, 21 de Junho de 2025
Foi há 80 anos! Em 1945, a 13 de maio, o Centro Nacional de Cultura foi fundado por Afonso Botelho, António Seabra e Gastão da Cunha Ferreira, vindos de uma peregrinação a Fátima.
Passava uma semana sob o fim da Segunda Guerra Mundial na Europa. Desde o primeiro momento, as ideias novas e a modernidade estiveram bem presentes no CNC. E o Centro tornou-se, no Largo de S. Roque, ponto de encontro pioneiro de jovens artistas, escritores, pessoas do teatro, defensores avant-la-lettre do meio ambiente e da fidelidade às raízes, com os olhos postos no futuro. Sarah Afonso foi a primeira mulher no Centro, graças à participação de Almada Negreiros. Este e Fernando Amado fizeram do tempo novo a regra e o princípio. E, sem cuidar das naturais vicissitudes de um grupo que ganhou direitos de alforria sonhando uma «Cidade Nova», notamos que depressa foi o desejo de ar fresco e de liberdade de espírito que prevaleceu neste grupo de jovens monárquicos que desejavam usufruir de uma necessária liberdade. Tudo começou logo em 1946 com um grupo de teatro que levou à cena “A Caixa de Pandora” com Fernando Amado, Ruy Cinatti, João Maria Bravo e Vasco Futscher Pereira. Houve uma rádio de curta duração, mas foi muito importante uma auspiciosa “Exposição de Arte Moderna” com Almada, António Dacosta, Eduardo Viana, Carlos Botelho, António Lino e Cândido Costa Pinto... Nesta primeira fase, o Centro andará com a casa às costas, sucessivamente na Rua da Horta Seca, na Rua do Ataíde e na Rua do Loreto 42-1º andar, até 1952, altura em que assenta armas e bagagens na Rua António Maria Cardoso, nº 68. Era presidente da direção João Camossa Saldanha. São aprovados os estatutos com Gonçalo Ribeiro Telles. Têm lugar cursos sobre a Saudade, com Afonso Botelho, a que se seguem conferências marcantes de Delfim Santos e Gabriel Marcel. Presidem aos destinos do CNC Adriano Vaz Pinto e António Seabra. Até que, a partir de 1957 a figura marcante passará a ser Francisco Sousa Tavares, que se afirma contra todo o conformismo. Foi ele quem primeiro definiu o Centro como humanista e um lugar de autonomia e de criação, de liberdade e de inteligência. E Gonçalo Ribeiro Telles ligou a revista “Cidade Nova” à natureza e à terra. Para a realização de sessões e conferências, à falta de cadeiras, usavam-se cestos de vime… Em 1954 o grupo de teatro leva à criação da Casa da Comédia, centrada no grupo Fernando Pessoa, com «O Marinheiro», que realiza em 1962 a memorável tournée no Brasil, onde encontrou Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Vinicius de Moraes e Cecília Meireles. Sousa Tavares e António Alçada Baptista marcam por essa altura decisivamente o CNC, num sentido personalista, democrático e constitucional. Lourdes de Castro faz com José Escada a sua primeira exposição organizada pelo Centro. No CNC reúnem-se os fundadores do jornal “57”, José Marinho, Álvaro Ribeiro, Afonso Botelho, Orlando Vitorino e António Quadros, num tempo em que também se ouve a «Heterodoxia» de Eduardo Lourenço. Dos debates monárquicos, bastante acesos, passa-se à ideia democrática, com a candidatura de Humberto Delgado (1958), o apoio ao Bispo do Porto, a reflexão sobre o “dever social dos cristãos”, em que pontua o facto de António Alçada Baptista ter comprado uma pequena livraria jurídica que se abalança a ganhar dimensão. A aventura da Livraria Moraes e do Círculo do Humanismo Cristão. O Concílio Vaticano II e o tema da abertura democrática põem o Centro no coração dos temas atuais e necessários. Em 1961 realizam-se as conferências de quinta-feira, sob impulso da nova presidente da direção, Helena Cidade Moura. São convidados como oradores o Padre Manuel Antunes, Joel Serrão, Virgínia Rau, Vitorino Magalhães Godinho, Ruy Belo, Adérito Sedas Nunes, David Mourão-Ferreira, Luís Francisco Rebelo. Alçada Baptista cria a partir de 1963 as revistas «O Tempo e o Modo» e «Concilum». «A ação começa na consciência. A consciência pela ação insere-se no tempo. Assim a consciência procurará o moo de influir no tempo. Por isso se a consciência for atenta e virtuosa, assim será o tempo e o modo» - proclama a fórmula de Pedro Tamen. João Bénard da Costa, Alberto Vaz da Silva e Nuno Bragança apontam caminhos novos na criação e na crítica literárias. De Agustina a Jorge de Sena há novos valores a considerar. Nasce a Resistência Cristã com Nuno de Bragança, José Pedro Pinto Leite e João Bénard da Costa. O início da Guerra de África e invasão de Goa suscitam reações contraditórias, mas a exigência de liberdade torna-se premente. Depois do fecho da Sociedade Portuguesa de Escritores, pela atribuição do prémio a Luandino Vieira pelo romance “Luuanda”, Sophia de Mello Breyner assume a presidência e torna o Centro um lugar de resistência intelectual. «Perfeito é não quebrar / A imaginária linha // Exata é a recusa / E puro é o nojo». Henrique Martins de Carvalho exerce as funções de Presidente da Assembleia Geral, onde se manterá até 1974. Coincidindo com as crises académicas e com a presença marcante no CNC de Sophia de Mello Breyner e Francisco de Sousa Tavares, jovens universitários tornam-se presença assídua – Jorge Sampaio, António Reis, Jaime Gama, José Luís Nunes, Eduardo Prado Coelho, Gastão Cruz, Fiama Hasse Pais Brandão, Nuno Júdice, Jorge Silva Melo, Luís Miguel Cintra. Com a presidência de Francisco Lino Neto, realiza-se o 1º Encontro Nacional de Críticos de Arte. Contesta-se a guerra do Vietnam. José Manuel Galvão Teles preside ao Centro e Joana Lopes é membro da direção. É o marcelismo. Jorge de Sena vem falar. Na Sociedade Nacional de Belas Artes organiza-se o ciclo “Lusitânia, Quo Vadis?”. Há cargas policiais e detenções. Há dirigentes presos e o debate democrático é vivo e intenso, com Sousa Tavares a regressar à presidência. «Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar» - diz Sophia numa vigília de cristãos na igreja de S. Domingos, e nada pode ficar como dantes. Em 1970, António Alçada Baptista e Nuno Teotónio Pereira trazem para o Centro a “Associação para a Liberdade da Cultura”, presidida por Pierre Emmanuel. Entre nós, sob a designação de Comissão Portuguesa para as Relações Culturais Europeias tem um papel muito importante, tendo sido constituída por António Alçada Baptista, Padre Manuel Antunes, S.J., João Bénard da Costa; Nuno de Bragança; José Cardoso Pires; José-Augusto França; João de Freitas Branco; Luís Filipe Lindley Cintra; Maria de Loures Belchior; João Pedro Miller Guerra; Mário Murteira; José Palla e Carmo; José Ribeiro dos Santos; Rui Grácio; João Salgueiro; Adérito Sedas Nunes; Joel Serrão e Nuno Teotónio Pereira. António Alçada Baptista (1971-72); José Cardoso Pires (1972-73); João de Freitas Branco (1973-74) assumem rotativamente a Presidência do Centro Nacional de Cultura, cabendo a João Bénard da Costa a função de Secretário Permanente (1970-74). É um momento de contradições e perplexidades – se Nuno Teotónio Pereira é preso, Veiga Simão, o novo Ministro da Educação, constitui uma Comissão de Cultura onde se encontram membros do CNC. Mas a Comissão Nacional de Apoio aos Presos Políticos também aqui funciona clandestinamente... Um dia, Frei Bento Domingues é convocado para a PIDE e diz que na rua só conhece o Centro Nacional de Cultura… É a democracia que começa a afirmar-se. A liberdade de imprensa é defendida como essencial. Há cursos livres sobre temas proibidos, realizam-se os jornais falados. Uma sessão com José Afonso é proibida e acaba em carga policial. Em 25 de Abril de 1974, chega a democracia. Sophia escreve. «Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial, inteiro e limpo, / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo». Francisco Sousa Tavares está em 25 de Abril de 1974 no Largo do Carmo, como sempre estivera, na primeira linha da defesa da liberdade. É o primeiro civil a falar publicamente. A legalização dos partidos políticos faz o CNC interrogar-se. José-Augusto França à frente dos destinos do Centro instala aqui o departamento de História de Arte da Universidade Nova – e permite a sobrevivência. José Régio inspira o novo tempo. «Davam grandes passeios aos domingos». Helena Vaz da Silva assume a presidência do CNC com a direção da “Raiz e Utopia” (1977-2002), plena de entusiasmo e de novíssimas ideias. Inicia-se uma nova fase de debates, de percursos, de mil projetos sobre o Património Cultural e sobre a presença portuguesa no mundo… António José Saraiva e Eduardo Lourenço fazem da liberdade de pensamento um exercício de crítica e de recusa de lugares comuns – a psicanálise mítica do destino português e «Os Filhos de Saturno» desenvolvem-se como sinais de controvérsia e diálogo. A educação, a ciência, a cultura, as artes são poderosos fatores mobilizadores. Jovens cidadãos sobre rodas, “Os Portugueses ao Encontro da sua História”, o património cultural como realidade viva… As bolsas de jovens criadores e criar lusofonia ligam-se ainda à formação nos temas europeus, no turismo cultural e nos roteiros patrimoniais. “Os Caminhos de Fátima” constituem uma iniciativa no âmbito dos roteiros do turismo religiosos que o CNC tem coordenado, sob a inspiração de Gonçalo Ribeiro Telles. O Centro teve ainda a responsabilidade das Jornadas Europeias do Património do Conselho da Europa e aqui nasceu e concretizou-se a Convenção de Faro do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea, assinada em 2005, ratificada e em vigor desde 2011… Guilherme d’Oliveira Martins (2002-2016) e Maria Calado (2016) assumiram a Presidência do CNC. A partir de 2012, aquando da realização do Congresso da Europa Nostra em Lisboa no Mosteiro dos Jerónimos, com a presença dos Príncipes das Astúrias, foi instituído com a Europa Nostra o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva para a divulgação do Património Cultural, cuja lista de premiados é a seguinte: Claudio Magris (2013); Orhan Pamuk (2014); Jordi Savall (2015); Eduardo Lourenço e Jean Plantureux – Plantu (2016); Wim Wenders (2017); Bettany Hughes (2018); Fabiola Gianotti(2019); José Tolentino Mendonça (2020); Anne Teresa De Keersmaeker (2021); Oksana Lyniv (2022); Jorge Chaminé (2023) e Thomas Struth (2024). Em 2025 teve lugar a décima terceira edição do Disquiet, encontros internacionais organizados em parceria com a Dzanc Books do Michigan (EUA) com uma centena de escritores norte-americanos em diálogo com escritores portugueses. A iniciativa nasceu sob a inspiração da memória do poeta Alberto Lacerda, invocando o Livro do Desassossego de Fernando Pessoa / Bernardo Soares. Ao celebrar oitenta anos de vida, o Centro Nacional de Cultura constitui, pela continuidade e pela presença marcante, um exemplo que merece evocação.
A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA PARA AS BANDAS DA “PLAYBOY”
1 - Uns artiguitos, por aqui e por acolá, informaram-me que a "Playboy" fez 50 anos. Primeiro pensei: "Meu Deus, como o tempo passa!" Depois, melancólico, realizei que as mais tenrinhas das "bunnies" de há 50 anos têm hoje a minha idade. Marilyn - na celebérrima foto nua do número 1 - era bastante mais velha. O que vale (vale a quem?) é que o tempo não corre à mesma velocidade para os homens e para as mulheres. Marilyn morreu, ainda quase todas vocês nem nascidas eram. As coelhinhas desmamadas de 1953 têm agora idades assustadoras. Mas aquele que, ainda hoje, continua a ser tratado por Hef (Hugh Hefner, o patrão), nascido no mesmo ano de Marilyn (1926) continua, aos 77 anos, mais Viagra menos Viagra, a "dating" três coelhinhas em simultâneo e a ter um harém permanente de vinte e tal. A acreditar em Pedro Rolo Duarte, Sting, que entre parêntesis já vai nos cinquenta e picos, compara-o "a uns daqueles imperadores romanos decadentes, cercados pelos bárbaros da Internet, que estão a acabar com o seu império". Mas as fotos da festa das bodas de ouro, que se podem ver na "Playboy" de fevereiro de 2004, já à venda por aí, mostram-no em bastante boa forma e excecionalmente num impecável "tuxedo". Duvido que os bárbaros, quando lá chegarem e se lá chegarem, consigam o mesmo estardalhaço.
2 - Em 1953, ano XVIII da Revolução Nacional, indecências como a "Playboy" não chegavam a Portugal, mesmo se, vistos de hoje, esses números de antanho nos apareçam tão puros e castos. Foi na maluca década seguinte que comecei a ouvir falar dela e a comprá-la às escondidas em Paris, usando do álibi de tantos "intelectuais" da época: nela colaboravam nomes maiores da literatura americana. A quem nos apanhava com a boca na botija, respondíamos que a tínhamos nas mãos por causa de Norman Mailer e não das mulheres nuas. A partir daí, não me lembro bem. Começou a haver coisas bem mais escandalosas ou já nada escandalizava ninguém, como se lamentava o velho Breton, de barbas até ao umbigo. Mas o mito permaneceu e pelos vistos permanece, já que, desse tempo, só a "Playboy" subsiste. E não conheço ninguém que, pelo menos de nome, ou de escaparate, a não conheça. E ainda há quem tenha pudor de a comprar seja a quem for. Mas isso são outras histórias e eu venho hoje para contar a minha.
3 - Foi em Los Angeles. Primavera de 1995. Estava por lá num congresso das Cinematecas, desses que há todos os anos nas sete partidas do mundo. Quem chega a esses congressos recebe sempre, entre uma data de papelada, vários convites, qual deles o mais chato. Ou é o ministro ou é o presidente da câmara ou é o diretor de uma instituição cultural, que convida para um "cocktail", geralmente precedido por infindáveis discursos, em que os retardatários já não acham nada de beber nem nada de manjar. Daí o meu espanto, quando, entre vários envelopes, achei um com a inconfundível "trade-mark" e em que Hugh Hefner requestava o prazer da minha companhia para uma receção em casa dele (a lendária Mansão) dia tal às tantas horas. Apressei-me a confirmar, sem perceber a razão do convite. Embora se anunciasse uma sessão de cinema. Na tarde aprazada, meti-me num táxi com uns colegas (em Los Angeles, o táxi é o único transporte possível para quem não dispõe de carro próprio) Sunset Boulevard acima ou Sunset Boulevard abaixo. O cinema preparara-me para muito, mas não para a verificação experimental de que ser bi ou tri milionário na América ou na Europa é coisa distintíssima. O táxi parou à porta de um enorme portão de aço, entre altíssimos e irídicos muros. O motorista tocou em intocáveis botões e, com os nossos convites na mão, respondeu a uma voz de oz com os nomes que os nossos pais nos deram. Os portões abriram-se à sésamo e o táxi entrou, após cuidada contagem dos ocupantes. Seguiram-se três quilómetros de subida (não exagero) por uma estrada ladeada por árvores soberbas, com inscrições em latim. Fosse eu minimamente botânico (desgraçadamente não o sou) e esmagaria os peritos com nomes venerandos. A certa altura, lembrei-me da Rebecca de Hitchcock e do susto da Joan Fontaine da primeira vez que entrou em Manderley. Lembranças não eram lembradas e achei-me diante de uma mansão que parecia a do Senhor de Winter. O táxi contornou-a e descemos num jardim de buxos a perder de vista. Em pequeno, a minha mãezinha ensinou-me que, quando se é convidado, a primeira coisa a fazer é ir falar aos donos da casa. As regras ali eram diferentes. Numa vasta varanda, inconfundível na "silk red robe" e no "silk red pijama", Hugh Hefner conversava com uns íntimos e com umas íntimas. Nem pensar em lá chegar. Para o impedir, existiam uns polidos e corpulentos guarda-costas que nos saudavam em nome do mestre, enquanto conferiam discretamente o nome que lhes dizíamos com uma lista que tinham. E logo chegaram as coelhinhas, servindo copos, louramente insinuantes. Andando, tremiam-lhes as mesmas coisas que tremeram a Vénus quando subiu ao Olimpo para interceder pelo Gama. Qualquer coisa entre o jardim de Klingsor e o Venusberg.
Depois que de nós afastaram o desejo de comida e bebida, propuseram-nos uma voltinha. Começou pelo muito celebrado Grotto, que, ao princípio, parece a ribeira misteriosa da antiga feira popular e, a pouco e pouco, recorda os lagos e as grutas do rei-virgem da Baviera. Música afrodisíaca, estalactites e estalagmites a que só extremos de boa educação podem chamar símbolos fálicos ou vaginais. Por aqui me fico na descrição, que estas coisas mais vale imaginá-las do que nomeá-las. Após as vinte mil léguas submarinas, a Arca de Noé. Quero eu dizer, um jardim zoológico a perder de vista, onde não vi feras, mas muitas girafas, zebras, avestruzes e cangurus. O luxo da coleção era a morada dos répteis e o espaço dos aquários. A coleção de peixes do Pacifico era particularmente prodigiosa.
4 - A essas horas, começava a anoitecer, as coelhinhas prometeram o resto para logo e levaram-nos para dentro. Era tempo de cinema. A sala privativa de Hugh Hefner cumulou os meus sonhos. Madeira escura, grandes maples de couro, mesinhas para o cinzeiro e para o copo, ecrã imenso. À frente, cadeirão especial para o anfitrião, que entrou por outra porta e nos introduziu, numa longa preleção, ao filme que escolhera: a versão de 1939 de "The Hunchback of Notre Dame", realizada por William Dieterle, com Charles Laugthon e Maureen O'Hara. Bem ao meu estilo, contou de como amara o filme aos 13 anos e de como a seguir o foi amando vida fora. Nunca vi mais bela cópia dele.
Finda a sessão, alguns voltaram aos prazeres da mesa, enquanto outros (foi o meu caso) preferiram continuar a explorar os jardins. Não me arrependi, pois que as nossas guias nos levaram ao "santo dos santos", a peculiaríssima "garçonnière" de Hef.
Na sala de entrada, aquela versão da "Última Ceia", onde Clark Gable, James Dean, Marlon Brando, Elvis e sete outros bebem néctar e comem ambrósia. Uma parafernália erótica preenchia cada canto e cada recanto, até nos mostrarem os quartos e as casas de banho. As posições do "Kama-Sutra" ilustravam as portas, sugerindo a especialidade de cada câmara, como parece que foi de uso nos lupanares do século XIX. Entrado no primeiro quarto, fui-me abaixo das pernas, não por culpa delas, mas por culpa do chão, almofadado e elástico e não propriamente destinado à parte do corpo humano conhecida pelo nome de pés. Paredes e tetos de espelhos. Cada quarto cada cor, qual delas mais "kitsch" e mais berrante. Uma rampa de igual moleza levava às casas de banho, muito escuras e subterrâneas. Mas a luz, como tudo o resto, dependia do gosto de cada qual. Também se podiam iluminar feericamente as casas de banho e escurecer os quartos. Ideal para jogar às brincadeiras às escuras, à cabra-cega ou à linda barquinha do lindo luar.
5 - Quando voltei à Mansão, já havia poucos convidados, entretanto saídos ou entretanto recolhidos. Comecei a admirar a coleção de pintura de Hefner, sobretudo os seus Fragonard. Foi nessa altura que o homem de pijama de seda se aproximou de mim e a conversa voltou ao corcunda. Contou-me ele então que sempre gostara tanto de ver filmes como de falar sobre eles. Mas, outrora, os amigos fugiam a sete pés dessas conversas intermináveis, sobretudo do seu requinte supremo que era contar um filme tintim por tintim. Por isso, quando ficou rico e famoso, resolveu organizar aquelas sessões. Eram sobretudo um pretexto para ele falar, demasiado sabendo que os agradecidos convidados não ousariam pateá-lo ou virar-lhe as costas. "Agora, como viu" (e fora bem verdade) "ouvem-me em religioso silêncio e, no fim, dão-me muitas palmas. All that money can buy". "All", depois de tudo o que eu vira, era um exagero. Mas ficou-me a sensação (talvez errada) de que, pelo menos em 1995, ele se divertia bastante mais com essas cinéfilas palestras do que com as coelhinhas. Pelo menos, quando nos despedimos, já não havia coelhinhas nenhumas e ele estava a meio de me contar a versão de Lon Chaney (1923) do romance de Victor Hugo. As almas têm, às vezes, encontros singulares.
por João Bénard da Costa 30 de janeiro de 2004, in Público
Pierre Nora (1931-2025) foi um incansável mobilizador de ideias. Com Jacques Le Goff lançou o projeto editorial “Faire l’Histoire” de boa memória, fundou em 1980 a revista “Le Débat” com Marcel Gauchet e foi o grande animador de “Les Lieux de Mémoire” (1984). Todas as iniciativas que animou foram marcantes em vários domínios, no mundo do pensamento, na História, na vida política, na atenção à memória e ao património cultural, como realidades vivas. Foi um grande editor, primeiro na Julliard e fundamentalmente na Gallimard. Quando em 2020 foi anunciado o fecho de “Le Débat”, encerrou-se um ciclo não apenas no mundo das ideias, mas com repercussões na vida cívica. Ficou então um espaço em aberto, num tempo em que há um evidente vazio de valores e de ideais. Pierre Nora, membro da Academia Francesa, foi um cidadão ativo, com um pé nos livros e outro na vida política, um democrata para quem o pensamento e a ação vivem sempre juntos. Preocupou-se, por isso, com a perda de relevância das humanidades e do conhecimento da sociedade. “A História é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que já não existe. A memória é um fenómeno sempre atual, um elo vivido com o presente eterno; a história é uma representação do passado. A memória, porque é afetiva e mágica, apenas se acomoda aos pormenores que a confortam; alimenta-se de recordações vagas, distantes, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensíveis a todas as transferências, écrans, censuras e projeções”.
Foi este confronto que suscitou a iniciativa dos “lugares da memória”, como sinal de abertura, como antídoto ao fechamento dos nacionalismos e protecionismos. Assim, o estado da educação preocupava-o intensamente. Uma escola desfalecida, complacente com a fragmentação dos saberes e com a ilusão dos especialistas deveria ser objeto de uma ação capaz de fazer compreender o diálogo entre as raízes da memória e os desafios da mudança. Contra “o fim das humanidades”, importaria considerar a exigência da curiosidade e do conhecimento, para que a civilização da leitura não seja posta em causa e para que o encontro entre as culturas e civilizações não se faça de culpabilidades ou de ressentimentos e de análises anacrónicas, mas com o estudo rigoroso das diferentes circunstâncias históricas, seja na relação com o Islão, seja no colonialismo e na escravatura ou no caso da resistência arménia. Em vez de uma história global desenraizada, importaria considerar a complexidade dos diferentes fenómenos e comunidades. Daí Nora ter lançado a diversos historiadores, como Pierre Chaunu, Georges Duby, Jacques Le Goff e René Rémond, o desafio de se fazerem historiadores deles mesmos, em lugar de se apagarem diante do seu trabalho. Como disse Mário Mesquita, haveria que assegurar a transição entre as grandes narrativas, tantas vezes erigidas na pseudociência, e uma nova perspetiva assente no diálogo efetivo entre história e memória. Longe de uma ciência do passado, havia que considerar a História uma ciência do presente. “A História não deveria ser escrava da atualidade nem escrita sob o efeito de memórias concorrentes”. Em vez de um debate funesto sobre as identidades nacionais, importaria olhar a realidade humana como produto de diversas influências e não de qualquer exclusivismo, consciente das raízes históricas, da identidade e da diferença. “A História pertence a todos e a ninguém, o que lhe concede uma vocação universal”.
Cada um de nós, como indivíduo ou pessoa, é um complexo de eus.
Pode haver uma versão idealizada de nós mesmos, que promovemos e queremos que se veja, e outra menos desejável que, no fundo, ocultamos e mantemos escondida. Ou, por exemplo, uma versão que somos obrigados a ter, em termos profissionais ou por dever de ofício. Pode haver duas ou mais versões distintas da mesma pessoa.
Não era incomum, na época inaugural e áurea dos retratos, quando em andamento ou finda a sua feitura, o retratado, após o analisar, pedir uma versão mais elogiosa e lisonjeira de si mesmo, acabando o pintor por pintar outra versão por cima da inicial, o que é conhecido por pentimento. Quando aplicado a manuscritos, fala-se em palimpsesto. Há quem defenda que parte de quem somos está sempre perdida, quem replique que é uma escolha, quem triplique que pode ser um dever, que todos fazemos sacrifícios e expurgamos algo de quem somos e, por mais que representemos um ideal, somos sempre seres humanos comuns.
E há os heterónimos literários, os perfis e retratos imaginários de amizades epistolares e virtuais, em que quem escreve, leia ou veja, à distância, é visto num plano espiritual, imaginário, que cada um fantasiou do outro. A haver contacto pessoal, um dia, que não corresponda aos imaginários espirituais da personalidade idealizada, há um choque, dado haver pessoas que virtualmente e ao escrever são encantadoras, reforçando a aproximação, enquanto outras são aborrecíveis e desagradáveis no falar, esfriando e morrendo o relacionamento.
Li, algures, que um alto privilegiado adorava estar só e que o seu maior amigo, Beltrano, nunca o vira, pelo que, inquirido do porquê de tão estranha omissão, respondeu ter medo, apesar de inúmeras vezes ter sido convidado. - Medo de quê? perguntaram-lhe. - Medo de ter uma deceção, que seria mais uma, respondeu, preferindo continuar a idealizá-lo como um ser superior.
Nem sempre, na verdade, o contacto presencial corresponde àquilo que idealizámos espiritualmente, virtualmente e vice-versa.
Nós, seres humanos, somos uma complexidade de eus que importa compreender.
Contaram-me em pequeno a história de um senhor que tinha mandado fazer cartões de visita em que, por baixo do nome, se lia: “Antigo Passageiro do Paquete Império”. Ter sido passageiro no barco era-lhe motivo de orgulho visível. O cartão estabelecia uma relação por afinidade entre o seu possuidor e um grande paquete; e o nome do paquete estabelecia uma segunda relação de afinidade com um império. O cartão intimava assim que o seu possuidor tinha sido uma espécie de imperador; e, melhor ainda, ou mais dignificado, que era um antigo imperador. Em Portugal nunca houve tecnicamente imperadores; as afinidades visam remediar essa deficiência. Onde em Portugal não há uma coisa pode sempre por afinidade arranjar-se alguma.
Tome-se o caso da pintura. Considera-se por vezes que o pintor inexplicavelmente conhecido por Diego Velázquez devia antes ter no seu cartão de visita “Filho de João Rodrigues da Silva, natural do Porto.” Velázquez com efeito é um português por afinidade, e Portugal tem-por-afinidade um grande, porventura o maior, pintor do século XVII. Onde falta a pintura há-por-afinidade pintores e quadros. O quadro mais conhecido de Velázquez, “Las Meninas”, é praticamente português. Se Velázquez fosse espanhol decerto ter-lhe-ia chamado, mais idiomaticamente, “Las Chicas”.
Ocorre também o exemplo da filosofia portuguesa, inexistente. O filósofo holandês Baruch, desejavelmente Bento, Spinoza, que integra a primeira divisão filosófica, e para alguns é o maior filósofo do século XVII, deveria em boa justiça ter mandado imprimir cartões de visita com a indicação “Filho de Miguel Spinoza, natural da Vidigueira.” Comentadores portugueses observaram com argúcia a respeito de Spinoza que só a alguém nascido-por-afinidade na Vidigueira poderia ocorrer a ideia, tão caracteristicamente alentejana, de que Deus e a natureza são a mesma coisa.
Mas o caso mais lisonjeiro é o do teatro. É opinião geral que o maior dramaturgo de todos os tempos foi William Shakespeare. A investigação não mostrou cabalmente que fosse um descendente da família Pires ou Peres; e por isso o processo usado a respeito de Velázquez e Spinoza não pode ainda em boa consciência ser aplicado. Acontece porém felizmente que Shakespeare dedicou uma tetralogia a portugueses por afinidade. Trata-se das quatro peças protagonizadas respectivamente por Ricardo II, Henrique IV (partes 1 e 2) e Henrique V. De facto, estes três heróis eram respectivamente primo direito por afinidade de D. João I, tio de D. Duarte, e primo direito de D. Duarte. É um grande, e porventura o maior, título de honra para o teatro português que a três portugueses-por-afinidade tenha sido dada a atenção do Bardo; embora poucos portugueses se ufanem disso. Não haver teatro português é um preço razoável que vale a pena pagar. De facto, como se observa numa dessas peças, “a discrição é a parte mais importante do mérito.”
Miguel Tamen Escreve de acordo com a antiga ortografia
Vivemos imersos em crises que nos desumanizam, mas a maior, no meu entender, é vivermos mergulhados no ter, no prazer, no poder pelo poder, nas redes sociais, nas tecnologias, no imediatismo, na vertigem da pressa, esquecendo o ser, o parar para pensar, a pergunta por Deus... Enredamo-nos assim no sem sentido...
Com razão, perguntava Karl Rahner, talvez o maior teólogo católico do século XX — tenho a honra de ter sido aluno: O que aconteceria, se a simples palavra “Deus” deixasse de existir? E respondia: “A morte absoluta da palavra ‘Deus’, uma morte que eliminasse até o seu passado, seria o sinal, já não ouvido por ninguém, de que o Homem morreu.”
Václav Havel, o grande dramaturgo e político, pouco tempo antes de morrer, surpreendeu muitos ao declarar que “estamos a viver na primeira civilização global” e “também vivemos na primeira civilização ateia, numa civilização que perdeu a ligação com o infinito e a eternidade”, temendo, também por isso, que “caminhe para a catástrofe”.
Há uma correlação íntima entre a concepção de Deus e a concepção do Homem. Com o eclipse de Deus é o sentido do mundo que desaparece e o próprio Homem perde orientação. George Minois conclui a sua História do Ateísmo: se, independentemente da sua resposta, positiva ou negativa, o Homem já não vir necessidade de colocar a questão de Deus, isso significa que, pela primeira vez na sua História, a Humanidade sucumbe ao imediatismo, a uma visão fragmentária do aqui e agora e “abdica da sua procura de sentido”.
No contexto de uma crise global — crise financeira, económica, social, política, moral —, é preciso decisivamente perguntar se a crise de Deus não ocupa lugar central.
De qualquer modo, a quem não quiser ficar na pura imediatidade empírica — será isso possível? — impõe-se a questão do mistério último da realidade. A pergunta essencial é então se se opta pela Natureza impessoal ou pelo Deus transcendente, pessoal e criador.
Compreende-se o fascínio em permanecer na afirmação da Natureza como força geradora divina de tudo. Esta concepção é bem resumida pelo filósofo Marcel Conche, ao escrever que Deus é inútil, pois a Natureza cria seres que podem ter ideias de todas as coisas, inclusive da própria Natureza. Está a referir-se não à Natureza “oposta ao espírito ou à história ou à cultura ou à liberdade”, mas à “Natureza omni-englobante, a physis grega, que inclui nela o Homem. Essa é a Causa dos seres pensantes no seu efeito.”
Esta concepção confronta-se, porém, com objecções de fundo. Por um lado, ao divinizar a Natureza, põe em causa a secularização e, consequentemente, a liberdade. Por outro, tem dificuldades em explicar como é que a Natureza, que é impessoal, dá origem à pessoa, como é que mecanismos da ordem da terceira pessoa acabam por dar origem a alguém que se vive a si mesmo como eu irredutível na primeira pessoa.
Neste domínio, houve um debate significativo entre o matemático P. Odifreddi e o Papa emérito Bento XVI. Na sua resposta ao livro de Odifreddi, Caro Papa, ti scrivo, Bento XVI escreveu uma longa carta, em parte publicada no jornal “La Repubblica” de 24 de Setembro de 2013, referindo precisamente este debate. Textualmente: “Com o 19º capítulo do seu livro, voltamos aos aspectos positivos do seu diálogo com o meu pensamento. Mesmo que a sua interpretação do Evangelho segundo São João 1, 1 — “No princípio era o Logos e o Logos estava com Deus e o Logos era Deus” — esteja muito longe do que o evangelista pretendia dizer, existe, no entanto, uma convergência que é importante. Mas se o senhor quer substituir Deus por ‘A Natureza’, fica a questão: quem ou o que é essa natureza. O senhor não a define em lugar nenhum e, portanto, ela parece ser uma divindade irracional que não explica nada. Mas eu quereria sobretudo fazer notar ainda que, na sua religião da matemática, três temas fundamentais da existência humana não são considerados: a liberdade, o amor e o mal. Espanta-me que o senhor, com uma única referência, liquide a liberdade que, contudo, foi e é o valor fundamental da época moderna. O amor, no seu livro, não aparece, e também não há nenhuma informação sobre o mal. Independentemente do que a neurobiologia diga ou não diga sobre a liberdade, no drama real da nossa história ela está presente como realidade determinante e deve ser levada em consideração. Mas a sua religião matemática não conhece nenhuma informação sobre o mal. Uma religião que ignore essas questões fundamentais permanece vazia.”
Evidentemente, quem acredita no Deus transcendente, pessoal e criador sabe que Deus não é pessoa à maneira das pessoas humanas, finitas. Deus também não é um Super-homem. O que se quer dizer é que Deus não é um Isso, uma Coisa. Como escreveu o teólogo Hans Küng, “Deus, que possibilita o devir da pessoa, transcende o conceito do impessoal: não é menos do que pessoa”. Não esquecendo que Deus é e permanece o Inabarcável, o Indefinível, o Inominável — Gregório de Nazianzo (330-390) perguntava: “Ó Tu, o para lá de tudo, não é tudo o que se pode dizer de Ti?” —, pode dizer-se que é “transpessoal”.
Só nEle pode o ser humano encontrar sentido, Sentido último.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Sábado, 14 de Junho de 2025
A publicação do Dicionário da “Geração de 70”, em coedição da Imprensa Nacional e da Presença, constitui um momento especialmente importante no panorama cultural, sobretudo graças à extraordinária colaboração que foi possível reunir, numa ação que durou cerca de trinta anos, envolvendo os melhores especialistas sobre o século de oitocentos.
A minha homenagem vai, antes de mais, para as minhas colegas Ana Maria Almeida Martins e Manuela Rego, sem cuja determinação e conhecimento não teria sido possível chegarmos a bom porto. E se falo de quem hoje merece homenagem, começo por referir o saudoso editor Francisco Espadinha, que, desde a primeira hora, esteve de acordo em lançar a iniciativa, sendo sucedido por Manuel Aquino e pela equipa da Presença. Duarte Azinheira na Imprensa Nacional compreendeu o caráter de serviço público do Dicionário e garantiu que o mesmo pudesse ser concretizado em condições de qualidade. Não podemos esquecer Eduardo Lourenço, autor da Introdução, que sempre incentivou esta obra que envolveu sessenta e oito colaboradores. Infelizmente, muitos desses autores não puderam chegar connosco ao termo da jornada e salientamos os seus nomes: A. H. de Oliveira Marques, António Machado Pires, António Monteiro Cardoso, Afonso Praça, António Pedro Vicente, Embaixador Dário Castro Alves, Eugénio Lisboa, Joaquim-Francisco Coelho, José-Augusto França, José Augusto Seabra, João Bigotte Chorão, Joel Serrão, Luís Francisco Rebelo, Luís Sá, Raul Rego e Rui Feijó. A sua presença física faz-nos muita falta, mas fica a sua afetuosa recordação pela memória que nos deixaram e pelos textos impressivos que estão connosco.
Chamámos a esta geração paradoxal e simbolizámo-lo no diálogo final de “Os Maias” entre Carlos e João da Ega. “A poesia e a reflexão de Antero de Quental apontam num sentido de uma liberdade estoica, mobilizadora de vontades. O diálogo entre Carlos da Maia e João da Ega tem contornos paradoxais, pois o pessimismo não impedia que ainda desejassem correr para apanhar na Rampa de Santos o Americano como símbolo do progresso, e Jacinto e Zé Fernandes ou Gonçalo Mendes Ramires não desistiam de vislumbrar um outro futuro; o mesmo se diga de As Farpas de Ramalho e Eça ou do Portugal Contemporâneo de Oliveira Martins finalizando com a metáfora entre o sono e a capacidade de despertar, ou do Zé Povinho de Rafael Bordalo Pinheiro, disposto a largar a albarda, com Ramalho a dizer: ‘um dia virá em que ele mude de figura e mude também de nome, para, em vez de se chamar Zé Povinho, se chamar simplesmente Povo’. O sopro mítico e simbólico deixado pela Geração de 70 é o do sentido crítico, da dureza sem apelo nem agravo, da mobilização de vontades e da recusa da oscilação entre a glória e a vergonha. Sermos nós obriga a recusar a ilusão”.
Onde está o paradoxo? No contraponto entre a crítica severa e inexorável e a determinação em querer tornar melhor a sociedade mercê de um espírito saudavelmente reformista. E como Eduardo Lourenço refere, trata-se de compreender o carácter precursor de quem acreditava não ser possível viver sem ideias. Lembremo-nos, por isso, do momento crucial em que se realizaram as Conferências do Casino Lisbonense, em maio de 1871, enquanto em Paris, na sequência da Guerra Franco-Prussiana, a cidade estava a ferro e fogo a viver os dias da Comuna. “O que é novo na Geração de 70 é que ela começa como manifestação literária que toma rapidamente – talvez por causa da consciência que já tinha Antero de Quental, de uma espécie de missão – um carácter de intervenção com características que ultrapassam a literatura para se tornarem um acontecimento de natureza cultural. Logo nas primeiras manifestações adivinha-se que está em curso uma espécie de revolução cultural, coisa que o Romantismo só o é a título literário; e mesmo se o é no plano político, os dois estão separados”. Eis a originalidade do que designamos como “geração”, que marcou decisivamente o país, muito para além do tempo fugaz que lhes foi dado viver. E o que é extraordinário tem a ver com a independência de cada um dos seus membros e a complementaridade dos respetivos contributos. Nas suas diferenças, há um pensamento comum, que se torna perene, e que permite uma influência transversal nas gerações que se seguiram, quer no tempo, quer nas diversas famílias de ideias. Essa é a razão que explica ter chegado a sua influência até aos nossos dias, independentemente de vogas e de tónicas, para além da literatura.
Em vez da futilidade das circunstâncias, podemos encontrar a arguta consideração dos problemas essenciais. Os temas do atraso e da decadência ocuparam especialmente esta geração. E o certo é que, como Eduardo Lourenço salienta, o tempo foi temperando as análises e a questão da decadência tornou-se mais nuancée do que foi apresentada por Antero no Casino Lisbonense. “A verdade é que esse mito criado pela ideia de um atraso objetivo de Portugal manifesta-se não apenas naquilo que nós chamamos a vida material da sociedade, que era visível em relação a outros paradigmas, mas em relação áquilo que eram as expressões mais avançadas do progresso material noutros países da Europa, sobretudo nos países de ponta. A comparação é sempre feita não com aquilo que eram as condições de vida da sociedade, mas com a imagem que aqui havia dessas sociedade mais avançadas”. Tratava-se de recusar o fatalismo do atraso, buscando as razões objetivas para essa distância, no sentido de as superar através de medidas concretas, capazes de obter resultados positivos. A ligação aos primeiros românticos, de que o contacto direto com Herculano foi um exemplo, e a herança transmitida do século XX, envolvendo a Renascença Portuguesa, a Seara Nova até ao Orpheu permite entender que pôr Portugal ao ritmo do progresso constituiu uma marca indelével de quem manteve um sentido de atualidade e pertinência que nos conduz à importância do papel dos clercs na sociedade contemporânea. Eis por que razão este Dicionário se revelou como paradigmático, na sua conceção e na sua execução. A mobilização de um conjunto tão diversificado de colaboradores e o próprio tempo de execução correspondem a uma preocupação de abrangência e abertura, que poderia ter ficado pelo caminho, mas que foi possível completar. Estamos perante uma obra de análise e de síntese, que os leitores e a posteridade julgarão, sendo evidente que a diversidade de pontos de vista pode ajudar-nos a compreender o carácter inequivocamente paradoxal de uma Geração claramente influente, ainda hoje.
O AMOR NÃO INVESTIGA CULPAS… por Camilo Martins de Oliveira
Meu Caro José Saramago:
São suas "As Pequenas Memórias", essas que nos contam como, menino e moço, pelas férias de verão em casa dos seus avós Josefa e Jerónimo, metia "um bocado de pão de milho e um punhado de azeitonas e figos secos no alforge" (tal como o Jesus do seu romance "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", que não é evangelho nem pretende sê-lo) e saía para o campo, por onde pouco tinha para escolher: "ou o rio, e a quase inextricável vegetação que lhe cobre e protege as margens, ou os olivais e os duros restolhos do trigo já ceifado, ou a densa mata de tramagueiras, faias, freixos e choupos que ladeia o Tejo para jusante, depois do ponto de confluência com o Almonda, ou, enfim, na direção do norte, a uns cinco ou seis quilómetros da aldeia, o Paul do Boquilobo, um lago, um pântano, uma alverca que o criador das paisagens se tinha esquecido de levar para o paraíso. Não havia muito por onde escolher, é certo, mas, para a criança melancólica, para o adolescente contemplativo e não raro triste, eram estas as quatro partes em que o universo se dividia, se não foi cada uma delas o universo inteiro"... Por longa que fosse a aventura, ou penoso o esforço que o levasse além dos obstáculos, até novas descobertas, "o rapazinho da Azinhaga só teria para apresentar a sua ascenção à ponta extrema do freixo de vinte metros, ou então, modestamente, mas com maior proveito degustativo, as suas subidas à figueira do quintal, de manhã cedo, para colher os frutos ainda húmidos da orvalhada noturna e sorver, como um pássaro guloso, a gota de mel que surdia no interior deles"... No fim do séc.II, Santo Ireneu de Lyon, na esteira de tradições ainda mais antigas no convívio e na pregação evangélica da Igreja, afirma a autoridade canónica de quatro evangelhos. Sabemos que, em tempos sem imprensa nem televisão, etc., a comunicação em sociedade se fazia por transmissão oral - designadamente em assembleias e reuniões - que era muitas vezes registada em manuscritos, então copiados para serem lidos de forma a darem alguma consistência e uniformidade aos relatos e teses que se iam difundindo. Houve assim várias narrativas da vida e dos ensinamentos de Jesus e, embora todas fossem autorizadas em privado, sentiu-se a necessidade de reter, como corpo autêntico de futuras leituras, um pouco como o José memorizou percursos e paisagens da sua infância, quatro delas, "como partes em que o universo se dividia, se não foi cada uma delas o universo inteiro". Assim escreveu Santo Ireneu: "Não pode haver nem maior nem menor número de evangelhos. Na verdade, porque existem quatro regiões do mundo em que estamos e quatro ventos principais, e posto que, por outro lado, a Igreja se dispersou por toda a Terra e tem por coluna e suporte o Evangelho e o Espírito de vida, é natural que tenha quatro colunas que de todos os lados soprem a incorruptibilidade e deem vida aos homens. Por isso nos deu o Verbo um evangelho em quatro formas, ainda que alimentado por um único espírito..." Leio, com alguma regularidade, os apócrifos cristãos antigos, até porque neles encontro essas memórias do imaginário cristão de antanho, que tantas vezes serviram - e ainda hoje servem - de tema e inspiração para a arte religiosa ou a simples representação de cenas bíblicas mais familiares: o Presépio é disso belo exemplo. Também me aconteceu ler romances ou outras fantasias da vida de Jesus, nada aprendi para além do que já sabia sobre o gostinho que alguém possa ter em meter sexo em tudo ou escandalizar crentes. Nunca me escandalizei, pareceu-me tudo isso pouco interessante. Mas cada qual sabe como se trata. No seu romance, José, há todavia aquela insistência na culpa de Deus, ao ponto de querer confundi-lo com o diabo. Penso que, hoje em dia (para mim, não para si, que já saiu do tempo), o José terá esclarecido a questão. O que a seguir direi é, portanto, mero desabafo, seria estultícia pensar agora convencê-lo, a si, fosse do que fosse. São José, pai de Jesus, é culpado da morte das inocentes crianças que Herodes mandou ceifar, pois apenas pensou em salvar o seu filho e se esqueceu de avisar as famílias de Belém. Será castigado, crucificado pelos romanos por conspiração em que não entrou: "Deus não perdoa os pecados que manda cometer." Mais tarde, no seu romance, Jesus descobrirá que "nunca houve no mundo gente mais inocente que aquela de Belém, os meninos que morreram sem culpa e os pais que essa culpa não tiveram, nem gente mais culpada terá havido que meu pai, que se calou quando deveria ter falado, e agora este que sou, a quem a vida foi salva para que conhecesse o crime que lhe salvou a vida, mesmo que outra culpa não venha a ter, esta me matará". E nessa revelação do mal intrínseco ao ser e à vida surge, como força telúrica, quase sem idade, como Deus, o anjo, mendigo na anunciação, pastor na natividade, Pastor dos fantasmas que, depois, perseguirão Jesus, aquele a quem "não fazemos as perguntas porque ainda não estávamos preparados para ouvir as respostas, ou por termos, simplesmente, medo delas. E, quando encontramos coragem para as lançar, não é raro que não nos respondam, como virá a fazer Jesus quando um dia lhe perguntarem, Que é a verdade. Então se calará até hoje." Não sei se Pilatos encontrou resposta, tampouco sei se a pergunta que fez era já a sua resposta, é por vezes mais cómodo duvidar do que procurar. Perante a ordem aparente do mundo, que não esconde um caos eminente, vivemos esta condição de pressentimento contínuo. Poderei não saber a verdade do que vejo, ou encontrar uma verdade em várias fórmulas apresentada e discutida, ou, ainda, ir ou não descobrindo um pouco mais desta ou daquela verdade. Todas essas verdades, com mais ou menos lógica e aceitação, são meras representações. Mas acredito numa Verdade. Inscrita no coração dos homens. O menino que sou aventura-se pelos quatro evangelhos, como o menino da Azinhaga, pelas quatro partes do mundo, trepa por freixos acima quando encontra frases misteriosas ou afirmações estranhas, que deverá avistar lá de cima, para não se deixar enredar por arbustos e silvas, nem travar por muralhas de trepadeiras. Percorro narrativas singelas, cheias de amor pelas crianças e outros pequenos, de segredos guardados no coração, porque só aos que têm a humildade de aceitar que não sabem muito, e nem tudo poderão perceber, é dada a revelação negada aos sábios e poderosos. Os evangelhos por onde me passeio falam-me de culpa mas a pretexto de perdão, de falta como porta aberta à misericórdia. E da única Verdade que posso, em vida, e devo, conhecer: amai-vos uns aos outros. Nenhuma demonstração teológica, nenhum martírio, nem manifestação pessoal ou coletiva de fé ou de sagacidade filosófica, é isenta de contestação. A Verdade, a única, essa que cada um de nós deve descobrir no íntimo do coração, é o amor. Que vai criando o mundo e revelando Deus. A verdade que me cabe, a única de que tenho absoluta certeza, é o amor de cada dia, como se, ao dá-lo, Deus esteja comigo na construção da paz. Escuto muitas vezes os 4º e 5º andamentos da 3ª sinfonia do Mahler. O 4º, como sabe, é um solo para contralto: "O Canto da Meia-Noite" de "Also sprach Zarathustra" do Nietzsche. "Ó Homem, tem cuidado! Que diz a meia-noite profunda?... ...Profunda é a sua dor!" Mas logo se inicia o 5º andamento, com o "bim-bam" do coro de crianças e mulheres e esse poema tradicional que Mahler foi buscar ao "Knaben Wunderhorn", anunciando que a Pedro foram perdoados os pecados: "A alegria celeste é uma cidade feliz / a alegria celeste não tem fim./ A alegria celeste foi dada a Pedro/ por Jesus, e a nós para felicidade nossa!". O amor não investiga culpas, alegra-se na misericórdia.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 08.11.13 neste blogue.