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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  

De  30 de junho a 6 de julho de 2025


É tempo de recordar que a Constituição da República fará em breve cinquenta anos, e que celebrámos meio século das primeiras eleições com sufrágio universal, pelo que importa tirar lições no sentido de aprofundar o compromisso democrático.


O segundo Pacto MFA-Partidos foi assinado em 26 de fevereiro de 1976. Era uma nova solução e não uma simples modificação do primeiro Pacto. Como reconheceu Miguel Galvão Teles, os nossos militares conseguiram fazer uma coisa extraordinária: cumpriram rigorosamente a sua missão de fazer sair as Forças Armadas da cena política. Os militares conseguiram preparar a sua saída do palco no sentido do normal jogo democrático, deslocando a legitimidade para os partidos políticos e para o Presidente da República. O compromisso constitucional de 1976 procurou, assim, ser coerente com o conceito de democracia representativa pluralista, limitada pela competência revolucionária militar e jurisdicional do Conselho da Revolução, semipresidencial ou de parlamentarismo racionalizado, descentralizada, participativa, no âmbito de um Estado de Direito. Marcam-no a tentativa de fazer uma síntese original entre a democracia representativa tradicional e a formulação de um programa de transformação económica. A articulação entre os direitos, liberdades e garantias fundamentais e os direitos económicos e sociais consignavam uma autêntica liberdade económica que devia gozar de proteção idêntica a qualquer outra das liberdades previstas na Lei Fundamental. Aliás, a definição do setor privado da economia por exclusão de partes levava, por exemplo, António Sousa Franco a considerar tal setor como regra, segundo a noção de uma Constituição material consagradora da liberdade do mercado.

O carácter compromissório da Constituição é assim evidente. Veja-se que os direitos, liberdades e garantias e a democracia política resultam da convergência PS, PPD e CDS; o socialismo, da confluência do PS, PPD e PCP; os aspetos coletivistas do entendimento PS-PCP; o sentido personalista – PPD-CDS; os direitos sociais, a autogestão e o planeamento foram defendidos pelo PS; as autonomias regional e local e as garantias jurisdicionais pelo PPD; a defesa das nacionalizações, a reforma agrária e as organizações populares de base pelo PCP; e a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a iniciativa privada pelo CDS, como salientou Jorge Miranda. Os diversos contributos são nítidos e dão ao texto constitucional de 1976 uma configuração poliédrica e aberta, que se tem adaptado bem à evolução da realidade. Num primeiro período que podemos autonomizar na vigência constitucional (1976-1982), verifica-se uma separação de esferas de competência entre as instituições militares e as civis – sequela do período revolucionário. Após a revisão constitucional de 1982 dar-se-ia início ao segundo período de vigência da Constituição, já numa lógica europeia, tendo sido extinto o Conselho da Revolução e institucionalizada a subordinação das FA ao poder civil democrático, procedendo-se a uma redistribuição das competências do órgão extinto. Foi então criado o Tribunal Constitucional e na Constituição Económica procedeu-se à atenuação das fórmulas ideológicas unilaterais. Já com a revisão constitucional de 1989 deu-se início a um terceiro período de vigência constitucional, dominado pela abertura económica, pelo fim do princípio da irreversibilidade das nacionalizações (graças à interpretação segundo a qual a dupla revisão constitucional permitia superar a “irreversibilidade”) e pela abertura da possibilidade de reprivatizações a cem por cento de empresas nacionalizadas após 25 de abril de 1974.

No domínio cultural, importa recordar o que afirmou a deputada constituinte Sophia de Mello Breyner Andresen sobre as liberdades de criação cultural e de aprender e ensinar. “A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar – para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça. E, se o homem é capaz de criar a revolução é exatamente porque é capaz de criar a cultura”. A luta fundamental não deveria ser por uma “liberdade especializada”, mas pela liberdade do povo – liberdade de expressão e de cultura. “Queremos uma relação limpa e saudável entre a cultura e a política” – insistiu a deputada. “Não queremos opressão cultural. Também não queremos dirigismo cultural. A política sempre que dirigir a cultura engana-se. Pois o dirigismo é uma forma de anti cultura e toda a anti cultura é reacionária”. Premonitoriamente, contra todos os dirigismos e totalitarismos, a poeta deixava claro um sentido essencial para a interpretação da nova Constituição – sendo a liberdade a pedra angular, contra os referidos dogmatismos indiscutíveis e os maximalismos irreais. Por isso, atacava o “poder totalitário”, que persegue o intelectual e manipula a cultura. “Nenhuma forma de cultura se pode atribuir o direito de destruir ou menorizar outras formas de cultura”. Mas havia que considerar a educação como objetivo essencial. “Ensinar é pôr a cultura em comum e não apenas a cultura já catalogada e arrumada do passado, mas também a cultura em estado de criação e de busca”. Que melhor forma poderíamos encontrar para falar do tema da Educação? E que deve ser a liberdade de aprender e ensinar senão a procura de “novas formas de ensino que possam procurar, ensaiar e inventar”? Tudo, em nome de um “ensino livre onde nenhuma iniciativa seja desperdiçada”, sendo a escola vista como lugar de liberdade e de justiça, de participação e de solidariedade.

O compromisso complexo alcançado em 1976 correspondeu, pois, ao culminar de um processo de construção democrática marcado não só pela história constitucional inaugurada em 1820, mas também pela longa experiência de uma nação antiga fundada no que Jaime Cortesão designou como fatores democráticos. Assim, o compromisso assumido em 25 de abril de 1974 pelo Movimento das Forças Armadas pôde ser cumprido pela convergência entre os poderes militar e civil, e pelo acordo político estabelecido entre as forças políticas com assento na Assembleia Constituinte.

O processo complexo de génese do compromisso constitucional corresponde à convergência entre o impulso insubstituível do Movimento das Forças Armadas e a capacidade alcançada pelos partidos políticos e movimentos sociais no sentido de gerarem um documento marcado pelo tempo em que foi elaborado, mas suficientemente flexível para se adaptar às novas circunstâncias, em especial da integração europeia e da relação com o mundo da língua portuguesa, no âmbito da CPLP. O Movimento das Forças Armadas soube, assim, superar naturais vicissitudes internas, e as forças políticas e sociais democráticas puderam preservar o pluralismo e a legitimidade representativa dos interesses e valores da sociedade e da cidadania. Na história constitucional portuguesa temos hoje um período singularmente longo de permanência do sistema, graças às suas virtualidades, suscetíveis de aperfeiçoamento até pela previsão (ainda não concretizada) de um círculo nacional (artigo 149º), introduzido na revisão constitucional de 1997. Importa assim salvaguardar momento a momento “o respeito da vontade do povo português”.   


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

 

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE NUNO BRITO 

  


Spritz


Aconteceu a uma irmã de Medusa cortar
os dois pulsos com vidro e esperar assustada em frente ao espelho,
Percebeu que não era sangue que lhe saía dos pulsos mas musgo,
Dos pulsos lácteos nascia-lhe musgo verde e fresco, que torneava o azul
das veias mais pequenas, musgo verde e fresco como das fontes de
Minos, então voltou a olhar-se ao espelho e percebeu que não podia morrer
Não por já estar morta, mas por estar condenada à mais doce pena, a
de renascer sem dar conta disso;
o que a olhava no espelho beijou-lhe os pulsos,
lambeu o fresco musgo cheio de vida;
ela deitou a cabeça no peito do que faz adormecer e
sentiu o seu batimento cardíaco.
Beijou-o e lambeu-lhe os pulsos frescos e quentes,
Então ela riu-se e bebeu vinho de Marsala e com vinho de Marsala
desenhou nas costas do que faz adormecer,
uma letra e outra letra e outra letra – Mandou que lhe
trouxessem papoilas e margaridas, algumas comeu, com outras decorou
o cabelo.


in Crème de la Crème, 2011


Spritz


It happened that one of Medusa’s sisters cut
both wrists with glass and then stood, frightened, at the mirror.
She realised it wasn’t blood pouring out but moss,
From her milky wrists green and fresh moss was trickling around the bluish
thinner veins, green and fresh moss like the one from Minos’
fountains, then she looked again in the mirror and realised she could not die
Not because she was dead already, but because she had been given the sweetest
of sentences, that of being reborn without noticing;
the one who looked at her in the mirror kissed her wrists,
licked the fresh moss full of life;
she lay her head on the chest of the one who sends her to sleep and
felt his heartbeat.
She kissed him and licked his fresh warm wrists,
And then she smiled and drank the Marsala wine and with the Marsala wine
drew on the back of the one who sends her to sleep
one letter, and another and another – ordered
poppies and daisies to be brought to her, ate some, and with the others decorated
her hair.


© Translated by Ana Hudson, 2011
in Poems from the Portuguese

 

PATRIOTISMO PROSPETIVO

  
    Portal Sul do Mosteiro dos Jerónimos © DGPC/ADF


A celebração dos quinhentos anos do nascimento de Camões permitiu relembrar a complexa personalidade do maior dos nossos poetas e compreender a noção de patriotismo, enquanto conceito prospetivo, longe de qualquer entendimento fechado e ilegítimo sobre a nossa identidade, aberta e plural, segundo uma História antiga muito rica e de uma memória viva “pelo mundo em pedaços repartida”. E recordo a intervenção de Lídia Jorge em Lagos no dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, que nos relembra a de Jorge de Sena em 1977, a falar de “Camões profundo, um Camões dramático e dividido, um Camões subversivo e revolucionário, em tudo um homem do nosso tempo” – “com as angústias e as dúvidas do homem moderno que não obedece a nada nem a ninguém senão à sua própria consciência”. Também Camões, lembrou a oradora, “queixava-se da degradação moral, mencionava “o vil interesse e sede imiga / Do dinheiro a que tudo nos obriga”, e evocava, entre os vários aspetos da degradação, o facto de sucederem aos homens da coragem que tinham enfrentado um mar desconhecido, homens novos, venais que só pensavam em fazer cultura”. Que é, afinal, o patriotismo dos nossos maiores senão a consciência serena dos claros e escuros de que a História se faz? E é essa capacidade de ver tudo que Camões nos lega, em lugar de uma suposição idílica onde ninguém verdadeiramente cabe. “Cada um de nós é uma soma. Tem sangue do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que os escravizou. Filhos de piratas e do que foi roubado. Mistura daquele que punia até à morte e do misericordioso que lhe limpava as feridas”. Não por acaso o símbolo da nossa pátria é, caso único, um poeta de vida aventurosa. Este é o sinal evidente de que sem ilusões a ligação à terra e às suas gentes se faz com as diferenças, com a glória e os erros e também com o quotidiano e com as provações.

Façamos um exercício prático. Num tempo em que há muita desatenção relativamente aos problemas essenciais, prevalecendo a ignorância, merece leitura atenta a importante reflexão de Cavaco Silva, feita em Toledo sobre os quarenta anos da entrada de Portugal e Espanha na hoje União Europeia. Aí o antigo Presidente defende, como necessária, “uma frente europeísta, com convicção, que contrarie os movimentos eurocéticos e populistas em alguns Estados-membros da União”. Daí referir o elenco de prioridades europeias, como a União Bancária, a União dos Mercados de Capitais, a diversificação de fontes de financiamento das empresas, a criação de uma função orçamental comum para a estabilização macroeconómica, a transparência nas contas públicas, o reforço do poder geopolítico, económico e tecnológico, que recupere o atraso relativamente aos EUA e à China, a exigência de investimento em investigação e inovação, designadamente nas áreas da eletrónica, das telecomunicações e farmacêutica, a aposta na União Europeia da Energia, a política da Defesa, com recurso à mutualização da dívida europeia, como ensinam os clássicos, e a reposição da verdade quanto à real situação do comércio externo com os Estados Unidos. Eis a distinção entre a superfície das coisas e o fundo das mesmas. Procurando a verdade, mesmo incómoda, só realçamos o que temos de mais positivo e perene.


GOM

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  
    A Bíblia de Gutenberg, foto de Peter Horree/Alamy 


219. HÁ SEMPRE UM LIVRO QUE NOS PODE TORNAR LEITORES


Entre a enciclopédia de livros que há, em que a literatura não é serva de nada, é difícil perceber porque há poucos leitores.       

Acresce que a leitura não é um mero prazer estético, é um privilégio que nos leva a toda a parte, é o centro do infinito, é a nossa imaginação ocupando-nos completamente a cabeça, é a nossa memória, a nossa projeção no que lemos e o modifica em sucessivas metamorfoses transformadoras.     

É uma maneira de conseguirmos estar sós, um reino nosso, em que somos reis, donos e senhores, ouvindo-nos a nós mesmos e em silêncio, interagindo com o mundo e os outros, bailando com o cérebro, sabendo que o que lemos tem milhões de leituras e pensamentos diferentes se o dermos a ler a outros milhões de pessoas.

Ao ler há liberdade de pensar, de idealização, de invenção, um espaço libertário, vivendo hipóteses de leitura que interessem a todos e a cada um, evitando o medo, sem machado que ampute a raiz ao pensamento. 

Há livros transformadores, que deixamos de ler porque não há vontade para continuar, em que saltamos as páginas, que devoramos ou não conseguimos parar ficando-nos, no fim, uma alegria gratificante que quereremos voltar a sentir.     

E há os grupos de leitores, que se reúnem voluntariamente, em que se convencionou uma determinada leitura sobre um livro e tudo o que daí possa resultar em termos de convívio, tertúlias, em associação livre de interpretação, ideias e conteúdo, num diálogo e debate que se quer construtivo, enriquecedor, de partilha e plural. 

Há as edições de autor, pagas por conta própria, em que existe o prazer de deixar um testemunho em livro, para os familiares, amigos e quem o queira. 

Mesmo assim, há quem não leia. Será responsabilidade dos livros? 

Culpabilizá-los parece sem sentido, dada a sua variedade e quantidade para todos os gostos (por maioria de razão numa democracia pluralista), não sendo justificação, só por si, o preço, pois são cada vez mais as casas de gente com património e rendimentos elevados onde não se vislumbra um livro, ou os há como ornamento, mais por uma questão de pressão social/profissional e menos de preferências literárias, havendo lojas que negoceiam falsas lombadas para preencher estantes desprovidas. 

Apurar o gosto é o caminho certo para encontrar o livro adequado para ler, descobrindo o que se gosta e não se gosta, naquele tempo e circunstâncias, excluindo liminarmente o livro que se tem como errado, sem esquecer que há muitos livros, mudando as nossas preferências de leitura consoante a idade e outras contingências.

Há quem prefira o livro clássico ao digital ou eletrónico, pelo seu prazer estético e, sobretudo, tátil, felicitando-me pelo engano dos que declararam a sua morte às mãos do e-book.     

Há os que navegaram de vez para a net, os que recuaram e fazem ambas as coisas, oxalá haja sempre um livro (ou livros) que nos faça leitores, entre tantas e tantas escolhas. 


27.06.25   
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

 

A incapacidade de pensar conduz à questão do errado que é de julgamento moral e não legal

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A incapacidade de pensar também conduz à questão do errado que é de julgamento moral e não legal.

Arendt estabelecia uma diferença entre as questões legais e morais, mas admitindo sempre que ambas pressupõem o poder do julgamento.

Na verdade, pode-se estar a obedecer à lei e não se ser acusado de nada, o que não impede que o que se tenha feito não esteja absolutamente errado.

E como consideramos absolutamente responsável alguém que violou um código moral e não um código legal?

Na verdade, pode-se rebentar qualquer categoria do julgamento moral, e a diferença entre quem nela participa sem resistir, e quem decide resistir, assenta numa única resposta: capacidade de pensar.

De registar que os crimes que desafiam a possibilidade de julgamento humano são exatamente os que estoiram com qualquer organização das instituições legais que os tenham em mira de responsabilidade.

O julgamento-espetáculo, a torpeza política, as falsas verdades, as hediondas desumanidades, também assentes no simplificador sim ou não, no branco ou preto, expõem a natureza do mal profundo sem que quem o pratique sinta culpa alguma, já que quem o exerce não se pergunta até onde é capaz de viver consigo depois de provocar e mesmo cometer atos terríficos.

A verdade da enormidade do mal instigado por grupos, sem pensamento autoanalítico, manietam gente e mercadoria, movendo milhões ao escrutínio, num sem contorno na radical desigualdade da lei perante os cidadãos.

O mal extremo continua a renascer para destruir o que resta de humano nos homens, experiência recapturada e reatualizada como se esta herança nos tivesse sido deixada em testamento a cumprir.

Quem está preparado para responder pelo que considera justo, nunca será aquele que conduzido por “notáveis” sem pensamento, é, na verdade, incapaz de entender a sua falência no aceitar-se neste contexto; no não percecionar que a importância da luta pelo que é positivo reside no não esquecimento do que é negativo; que a incapacidade de pensar conduz igualmente à questão do errado que é de julgamento moral e não legal.

Teresa Bracinha Vieira

PELA ÚLTIMA VEZ

  
    Raul Solnado


“Nunca mais,” prometeu o fadista, “vou a Cacilhas / Mais o Chico Maravilhas / Comer uma caldeirada.” A promessa conclui uma descrição de incidentes ocorridos da última vez que lá estivera. Percebe-se: todos na vida já prometemos que não voltaríamos a fazer certas coisas. Quando isso depende de nós basta um bocadinho de força de vontade, constância e sorte, e a última vez é mesmo a última vez. É relativamente fácil não voltar a Cacilhas.

Mais difícil é o caso do conhecido bolero em que o cantor tenta convencer quem o ouve a beijá-lo, beijá-lo muito, “como se fosse esta noite a última vez.” A proposta tem boa reputação; o seu atractivo principal vem de o cantor recomendar que façamos as coisas pela última vez com grande intensidade, que as façamos “muito.” Suscita no entanto um problema prévio:  apesar de geralmente sabermos que fizemos uma coisa pela primeira vez, nunca nos é evidente quando a estamos a fazer pela última. Só mais tarde, e às vezes tarde demais, é que percebemos que aquela vez era afinal a última.

Por via das dúvidas o cantor do bolero parece defender que em matéria de beijos façamos sempre tudo com grande intensidade. O processo é porém cansativo e incerto. Corremos o risco de nos enganar nas despedidas; de sufocar com beijos pessoas, animais ou coisas que vamos voltar a ver dali a dois dias. Pior ainda, este tom de grande intensidade é o de quem imagina que as coisas desaparecem quando se veste luto por elas; é o tom daqueles que confundem o que lhes acontece com o que resolvem fazer; daqueles para quem a morte de uma pessoa é igual a decidir não voltar a vê-la, e para quem tudo na vida é como decidir não voltar a pôr os pés em Cacilhas.

A recomendação do cantor levanta também problemas técnicos. Mesmo que soubessemos que não voltaríamos a beber café, a entrar numa certa casa, ou a ver uma certa pessoa, não saberíamos como bebê-lo “muito”, entrar “muito” nessa casa, ou como ver “muito” essa pessoa pela última vez. Como se bebe “muito” uma chávena de café? Também não se pode ver “muito” uma pessoa, ou entrar “muito” numa casa.

Quando a nossa ideia de café é beber café, a nossa despedida do café só lhe fará justiça se fizermos o que sempre fizemos, isto é, se o bebermos nas quantidades e com a importância que sempre teve para nós. A melhor maneira de fazer as coisas pela última vez é portanto fazê-las como as fizemos pela penúltima. Beber um café como sempre bebemos, e entrar numa casa onde não vamos voltar a entrar como sempre entrámos; e mesmo despedirmo-nos de alguém que achamos que não vamos voltar a ver usando o nosso modo normal de despedida.


Miguel Tamen
Escreve de acordo com a antiga ortografia

CRÓNICAS PÁRA E PENSA

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   "O Sepultamento de Cristo" de Caravaggio

 

Celebrar a Ceia de Jesus e o Reino da Filadélfia

 

Quantos portugueses e portuguesas saberão que o feriado de anteontem, Quinta-Feira, é por causa de um banquete: a festa do Corpo de Deus, precisamente lembrando a última Ceia de Jesus!

Os primeiros cristãos reuniam-se nas suas casas, e, recordando essa Ceia e os banquetes de Jesus na sua vida terrena enquanto sinal da chegada do Reino da Filadélfia (Reino dos amigos e irmãos, que é isso que quer dizer filadélfia), celebravam um ágape em sua memória - uma refeição festiva e fraterna.

Foi só mais tarde que a missa começou a ser concebida como sacrifício. Com essa perspectivação cultual sacrificial, apareceu o sacerdote, e, com a sua celebração diária, a obrigação do celibato, pois o sacerdote está separado, à parte: tocando no Corpo do Senhor não pode tocar a profanidade impura do corpo da mulher. Na missa, havia uma imolação e matação de Cristo, embora se discutisse se essa imolação era real, moral, mística, ou sacramental.

O sacerdote tinha o poder de "trazer Cristo à Terra", realizando o milagre da transubstanciação do pão e do vinho, que deixavam, por isso mesmo, de ser pão e vinho.

Esta concepção arrastou consigo vários equívocos. Em primeiro lugar, uma concepção substancialista e coisista da presença de Cristo. O filósofo Hegel viu bem o perigo desta coisificação: referindo-se à celebração da Eucaristia, escreveu que, segundo a representação católica, "a hóstia - essa coisa exterior, sensível, não espiritual - é, mediante a consagração, o Deus presente - Deus como coisa."

Deste modo, a Eucaristia deixou de ser a celebração festiva em que todos participavam activamente, para tornar-se sacrifício objectivo autónomo, que o padre até podia celebrar sozinho e que oferecia pelas almas do purgatório e muitas outras intenções, com uma remuneração monetária... De agora em diante, era, portanto, possível ir à missa - repare-se nas expressões “ir à missa”, “assistir à missa” - e não comungar: está-se na missa, mas de fora, ignorando que a celebração da memória de Jesus implica uma real e autêntica conversão, que consiste na entrada activa na dinâmica do seu Reino: Reino da paz, da reconciliação, do amor, da fraternidade e da verdade. Chegou-se a esta distorção: é-se convidado para um banquete, mas é de fora que se assiste à festa. Por isso é que há o sem-sentido das "missas oficiais" a que assistem agnósticos, ateus e indiferentes...

Paradoxalmente, com a interpretação coisista da presença de Cristo, contra o sentido profundo do que São Paulo escreve aos Coríntios - "quem come do pão e bebe do cálice do Senhor indignamente torna-se réu do corpo e do sangue do Senhor" -, muitos cristãos, indo à missa e não comungando, vêem-se libertos da urgência da conversão ao projecto da vida de Jesus. Ora, precisamente nesta não conversão, é que, segundo São Paulo, nos tornamos réus do corpo e do sangue do Senhor, isto é, culpados da sua morte: de facto, o que São Paulo condena na comunidade de Corinto são as suas divisões e que, enquanto uns comem lautamente, outros passam fome.

É, pois, urgente e necessário ser consequente: uma vez que se deve partir do pressuposto de que quem vai à missa - a própria expressão “ir à missa” diz bem a passividade do acto - é porque quer sinceramente entrar no espírito de Jesus, não se compreende que não comungue. Nesta mesma dinâmica, a comunhão também não deveria ser negada às crianças, que, à sua maneira, participam, com a família, na celebração da Ceia do Senhor: nas nossas festividades familiares, também as não excluímos.

Quando os cristãos se reúnem em Eucaristia, celebram festivamente o que Jesus foi e é, a sua vida, a sua morte, a sua ressurreição e o seu Reino - o seu Reino já presente, mas anunciando e esperando a sua consumação.

 

P. S.: Amanhã, Domingo, realiza-se o funeral do bom amigo Padre José Martins Júnior. Evidentemente, causa sempre tristeza a partida de um amigo. Mas o cristão crê com confiança radical racional que, na morte, ele não caiu no nada mas entrou na plenitude da vida em Deus e que havemos de reencontrar-nos.
As celebrações eucarísticas a que presidia ficam na memória pela alegria e a participação viva, activa, de todos, incluindo os mais jovens. Cristão convicto, Martins Júnior combateu sempre pela promoção das pessoas, a justiça social e a fraternidade.
Tenho muita satisfação em ter contribuído para a revogação em 2019 pelo bispo da Diocese do Funchal, Nuno Brás, da sua suspensão ‘a divinis’ (proibição de exercer funções sacerdotais).
Continuará a ecoar aquela sua palavra: “Servi o Povo de Deus e não a Igreja Católica”.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Sábado, 21 de Junho de 2025

A VIDA DOS LIVROS

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   De 23 a 29 de junho de 2025

 

Foi há 80 anos! Em 1945, a 13 de maio, o Centro Nacional de Cultura foi fundado por Afonso Botelho, António Seabra e Gastão da Cunha Ferreira, vindos de uma peregrinação a Fátima.

 

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Passava uma semana sob o fim da Segunda Guerra Mundial na Europa. Desde o primeiro momento, as ideias novas e a modernidade estiveram bem presentes no CNC. E o Centro tornou-se, no Largo de S. Roque, ponto de encontro pioneiro de jovens artistas, escritores, pessoas do teatro, defensores avant-la-lettre do meio ambiente e da fidelidade às raízes, com os olhos postos no futuro. Sarah Afonso foi a primeira mulher no Centro, graças à participação de Almada Negreiros. Este e Fernando Amado fizeram do tempo novo a regra e o princípio. E, sem cuidar das naturais vicissitudes de um grupo que ganhou direitos de alforria sonhando uma «Cidade Nova», notamos que depressa foi o desejo de ar fresco e de liberdade de espírito que prevaleceu neste grupo de jovens monárquicos que desejavam usufruir de uma necessária liberdade. Tudo começou logo em 1946 com um grupo de teatro que levou à cena “A Caixa de Pandora” com Fernando Amado, Ruy Cinatti, João Maria Bravo e Vasco Futscher Pereira. Houve uma rádio de curta duração, mas foi muito importante uma auspiciosa “Exposição de Arte Moderna” com Almada, António Dacosta, Eduardo Viana, Carlos Botelho, António Lino e Cândido Costa Pinto... Nesta primeira fase, o Centro andará com a casa às costas, sucessivamente na Rua da Horta Seca, na Rua do Ataíde e na Rua do Loreto 42-1º andar, até 1952, altura em que assenta armas e bagagens na Rua António Maria Cardoso, nº 68. Era presidente da direção João Camossa Saldanha. São aprovados os estatutos com Gonçalo Ribeiro Telles. Têm lugar cursos sobre a Saudade, com Afonso Botelho, a que se seguem conferências marcantes de Delfim Santos e Gabriel Marcel. Presidem aos destinos do CNC Adriano Vaz Pinto e António Seabra. Até que, a partir de 1957 a figura marcante passará a ser Francisco Sousa Tavares, que se afirma contra todo o conformismo. Foi ele quem primeiro definiu o Centro como humanista e um lugar de autonomia e de criação, de liberdade e de inteligência. E Gonçalo Ribeiro Telles ligou a revista “Cidade Nova” à natureza e à terra. Para a realização de sessões e conferências, à falta de cadeiras, usavam-se cestos de vime… Em 1954 o grupo de teatro leva à criação da Casa da Comédia, centrada no grupo Fernando Pessoa, com «O Marinheiro», que realiza em 1962 a memorável tournée no Brasil, onde encontrou Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Vinicius de Moraes e Cecília Meireles. Sousa Tavares e António Alçada Baptista marcam por essa altura decisivamente o CNC, num sentido personalista, democrático e constitucional. Lourdes de Castro faz com José Escada a sua primeira exposição organizada pelo Centro. No CNC reúnem-se os fundadores do jornal “57”, José Marinho, Álvaro Ribeiro, Afonso Botelho, Orlando Vitorino e António Quadros, num tempo em que também se ouve a «Heterodoxia» de Eduardo Lourenço. Dos debates monárquicos, bastante acesos, passa-se à ideia democrática, com a candidatura de Humberto Delgado (1958), o apoio ao Bispo do Porto, a reflexão sobre o “dever social dos cristãos”, em que pontua o facto de António Alçada Baptista ter comprado uma pequena livraria jurídica que se abalança a ganhar dimensão. A aventura da Livraria Moraes e do Círculo do Humanismo Cristão. O Concílio Vaticano II e o tema da abertura democrática põem o Centro no coração dos temas atuais e necessários. Em 1961 realizam-se as conferências de quinta-feira, sob impulso da nova presidente da direção, Helena Cidade Moura. São convidados como oradores o Padre Manuel Antunes, Joel Serrão, Virgínia Rau, Vitorino Magalhães Godinho, Ruy Belo, Adérito Sedas Nunes, David Mourão-Ferreira, Luís Francisco Rebelo. Alçada Baptista cria a partir de 1963 as revistas «O Tempo e o Modo» e «Concilum». «A ação começa na consciência. A consciência pela ação insere-se no tempo. Assim a consciência procurará o moo de influir no tempo. Por isso se a consciência for atenta e virtuosa, assim será o tempo e o modo» - proclama a fórmula de Pedro Tamen. João Bénard da Costa, Alberto Vaz da Silva e Nuno Bragança apontam caminhos novos na criação e na crítica literárias. De Agustina a Jorge de Sena há novos valores a considerar. Nasce a Resistência Cristã com Nuno de Bragança, José Pedro Pinto Leite e João Bénard da Costa. O início da Guerra de África e invasão de Goa suscitam reações contraditórias, mas a exigência de liberdade torna-se premente. Depois do fecho da Sociedade Portuguesa de Escritores, pela atribuição do prémio a Luandino Vieira pelo romance “Luuanda”, Sophia de Mello Breyner assume a presidência e torna o Centro um lugar de resistência intelectual. «Perfeito é não quebrar / A imaginária linha // Exata é a recusa / E puro é o nojo». Henrique Martins de Carvalho exerce as funções de Presidente da Assembleia Geral, onde se manterá até 1974. Coincidindo com as crises académicas e com a presença marcante no CNC de Sophia de Mello Breyner e Francisco de Sousa Tavares, jovens universitários tornam-se presença assídua – Jorge Sampaio, António Reis, Jaime Gama, José Luís Nunes, Eduardo Prado Coelho, Gastão Cruz, Fiama Hasse Pais Brandão, Nuno Júdice, Jorge Silva Melo, Luís Miguel Cintra. Com a presidência de Francisco Lino Neto, realiza-se o 1º Encontro Nacional de Críticos de Arte. Contesta-se a guerra do Vietnam. José Manuel Galvão Teles preside ao Centro e Joana Lopes é membro da direção. É o marcelismo. Jorge de Sena vem falar. Na Sociedade Nacional de Belas Artes organiza-se o ciclo “Lusitânia, Quo Vadis?”. Há cargas policiais e detenções. Há dirigentes presos e o debate democrático é vivo e intenso, com Sousa Tavares a regressar à presidência. «Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar» - diz Sophia numa vigília de cristãos na igreja de S. Domingos, e nada pode ficar como dantes. Em 1970, António Alçada Baptista e Nuno Teotónio Pereira trazem para o Centro a “Associação para a Liberdade da Cultura”, presidida por Pierre Emmanuel. Entre nós, sob a designação de Comissão Portuguesa para as Relações Culturais Europeias tem um papel muito importante, tendo sido constituída por António Alçada Baptista, Padre Manuel Antunes, S.J., João Bénard da Costa; Nuno de Bragança; José Cardoso Pires; José-Augusto França; João de Freitas Branco; Luís Filipe Lindley Cintra; Maria de Loures Belchior; João Pedro Miller Guerra; Mário Murteira; José Palla e Carmo; José Ribeiro dos Santos; Rui Grácio; João Salgueiro; Adérito Sedas Nunes; Joel Serrão e Nuno Teotónio Pereira. António Alçada Baptista (1971-72); José Cardoso Pires (1972-73); João de Freitas Branco (1973-74) assumem rotativamente a Presidência do Centro Nacional de Cultura, cabendo a João Bénard da Costa a função de Secretário Permanente (1970-74). É um momento de contradições e perplexidades – se Nuno Teotónio Pereira é preso, Veiga Simão, o novo Ministro da Educação, constitui uma Comissão de Cultura onde se encontram membros do CNC. Mas a Comissão Nacional de Apoio aos Presos Políticos também aqui funciona clandestinamente... Um dia, Frei Bento Domingues é convocado para a PIDE e diz que na rua só conhece o Centro Nacional de Cultura… É a democracia que começa a afirmar-se. A liberdade de imprensa é defendida como essencial. Há cursos livres sobre temas proibidos, realizam-se os jornais falados. Uma sessão com José Afonso é proibida e acaba em carga policial. Em 25 de Abril de 1974, chega a democracia. Sophia escreve. «Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial, inteiro e limpo, / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo». Francisco Sousa Tavares está em 25 de Abril de 1974 no Largo do Carmo, como sempre estivera, na primeira linha da defesa da liberdade. É o primeiro civil a falar publicamente. A legalização dos partidos políticos faz o CNC interrogar-se. José-Augusto França à frente dos destinos do Centro instala aqui o departamento de História de Arte da Universidade Nova – e permite a sobrevivência. José Régio inspira o novo tempo. «Davam grandes passeios aos domingos». Helena Vaz da Silva assume a presidência do CNC com a direção da “Raiz e Utopia” (1977-2002), plena de entusiasmo e de novíssimas ideias. Inicia-se uma nova fase de debates, de percursos, de mil projetos sobre o Património Cultural e sobre a presença portuguesa no mundo… António José Saraiva e Eduardo Lourenço fazem da liberdade de pensamento um exercício de crítica e de recusa de lugares comuns – a psicanálise mítica do destino português e «Os Filhos de Saturno» desenvolvem-se como sinais de controvérsia e diálogo. A educação, a ciência, a cultura, as artes são poderosos fatores mobilizadores. Jovens cidadãos sobre rodas, “Os Portugueses ao Encontro da sua História”, o património cultural como realidade viva… As bolsas de jovens criadores e criar lusofonia ligam-se ainda  à formação nos temas europeus, no turismo cultural e nos roteiros patrimoniais. “Os Caminhos de Fátima” constituem uma iniciativa no âmbito dos roteiros do turismo religiosos que o CNC tem coordenado, sob a inspiração de Gonçalo Ribeiro Telles. O Centro teve  ainda a responsabilidade das Jornadas Europeias do Património do Conselho da Europa e aqui nasceu e concretizou-se a Convenção de Faro do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea, assinada em 2005, ratificada e em vigor desde 2011… Guilherme d’Oliveira Martins (2002-2016) e Maria Calado (2016) assumiram a Presidência do CNC. A partir de 2012, aquando da realização do Congresso da Europa Nostra em Lisboa no Mosteiro dos Jerónimos, com a presença dos Príncipes das Astúrias, foi instituído com a Europa Nostra o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva para a divulgação do Património Cultural, cuja lista de premiados é a seguinte: Claudio Magris (2013); Orhan Pamuk (2014); Jordi Savall (2015); Eduardo Lourenço e Jean Plantureux – Plantu (2016); Wim Wenders (2017); Bettany Hughes (2018); Fabiola Gianotti(2019); José Tolentino Mendonça (2020); Anne Teresa De Keersmaeker (2021); Oksana Lyniv (2022); Jorge Chaminé (2023) e Thomas Struth (2024). Em 2025 teve lugar a décima terceira edição do Disquiet, encontros internacionais organizados em parceria com a Dzanc Books do Michigan (EUA) com uma centena de escritores norte-americanos em diálogo com escritores portugueses. A iniciativa nasceu sob a inspiração da memória do poeta Alberto Lacerda, invocando o Livro do Desassossego de Fernando Pessoa / Bernardo Soares. Ao celebrar oitenta anos de vida, o Centro Nacional de Cultura constitui, pela continuidade e pela presença marcante, um exemplo que merece evocação.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

 

 

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
PARA AS BANDAS DA “PLAYBOY”


1 -
 Uns artiguitos, por aqui e por acolá, informaram-me que a "Playboy" fez 50 anos. Primeiro pensei: "Meu Deus, como o tempo passa!" Depois, melancólico, realizei que as mais tenrinhas das "bunnies" de há 50 anos têm hoje a minha idade. Marilyn - na celebérrima foto nua do número 1 - era bastante mais velha. O que vale (vale a quem?) é que o tempo não corre à mesma velocidade para os homens e para as mulheres. Marilyn morreu, ainda quase todas vocês nem nascidas eram. As coelhinhas desmamadas de 1953 têm agora idades assustadoras. Mas aquele que, ainda hoje, continua a ser tratado por Hef (Hugh Hefner, o patrão), nascido no mesmo ano de Marilyn (1926) continua, aos 77 anos, mais Viagra menos Viagra, a "dating" três coelhinhas em simultâneo e a ter um harém permanente de vinte e tal. A acreditar em Pedro Rolo Duarte, Sting, que entre parêntesis já vai nos cinquenta e picos, compara-o "a uns daqueles imperadores romanos decadentes, cercados pelos bárbaros da Internet, que estão a acabar com o seu império". Mas as fotos da festa das bodas de ouro, que se podem ver na "Playboy" de fevereiro de 2004, já à venda por aí, mostram-no em bastante boa forma e excecionalmente num impecável "tuxedo". Duvido que os bárbaros, quando lá chegarem e se lá chegarem, consigam o mesmo estardalhaço.


2 -
 Em 1953, ano XVIII da Revolução Nacional, indecências como a "Playboy" não chegavam a Portugal, mesmo se, vistos de hoje, esses números de antanho nos apareçam tão puros e castos. Foi na maluca década seguinte que comecei a ouvir falar dela e a comprá-la às escondidas em Paris, usando do álibi de tantos "intelectuais" da época: nela colaboravam nomes maiores da literatura americana. A quem nos apanhava com a boca na botija, respondíamos que a tínhamos nas mãos por causa de Norman Mailer e não das mulheres nuas. A partir daí, não me lembro bem. Começou a haver coisas bem mais escandalosas ou já nada escandalizava ninguém, como se lamentava o velho Breton, de barbas até ao umbigo. Mas o mito permaneceu e pelos vistos permanece, já que, desse tempo, só a "Playboy" subsiste. E não conheço ninguém que, pelo menos de nome, ou de escaparate, a não conheça. E ainda há quem tenha pudor de a comprar seja a quem for. Mas isso são outras histórias e eu venho hoje para contar a minha.


3 -
 Foi em Los Angeles. Primavera de 1995. Estava por lá num congresso das Cinematecas, desses que há todos os anos nas sete partidas do mundo. Quem chega a esses congressos recebe sempre, entre uma data de papelada, vários convites, qual deles o mais chato. Ou é o ministro ou é o presidente da câmara ou é o diretor de uma instituição cultural, que convida para um "cocktail", geralmente precedido por infindáveis discursos, em que os retardatários já não acham nada de beber nem nada de manjar. Daí o meu espanto, quando, entre vários envelopes, achei um com a inconfundível "trade-mark" e em que Hugh Hefner requestava o prazer da minha companhia para uma receção em casa dele (a lendária Mansão) dia tal às tantas horas. Apressei-me a confirmar, sem perceber a razão do convite. Embora se anunciasse uma sessão de cinema. Na tarde aprazada, meti-me num táxi com uns colegas (em Los Angeles, o táxi é o único transporte possível para quem não dispõe de carro próprio) Sunset Boulevard acima ou Sunset Boulevard abaixo. O cinema preparara-me para muito, mas não para a verificação experimental de que ser bi ou tri milionário na América ou na Europa é coisa distintíssima. O táxi parou à porta de um enorme portão de aço, entre altíssimos e irídicos muros. O motorista tocou em intocáveis botões e, com os nossos convites na mão, respondeu a uma voz de oz com os nomes que os nossos pais nos deram. Os portões abriram-se à sésamo e o táxi entrou, após cuidada contagem dos ocupantes. Seguiram-se três quilómetros de subida (não exagero) por uma estrada ladeada por árvores soberbas, com inscrições em latim. Fosse eu minimamente botânico (desgraçadamente não o sou) e esmagaria os peritos com nomes venerandos. A certa altura, lembrei-me da Rebecca de Hitchcock e do susto da Joan Fontaine da primeira vez que entrou em Manderley. Lembranças não eram lembradas e achei-me diante de uma mansão que parecia a do Senhor de Winter. O táxi contornou-a e descemos num jardim de buxos a perder de vista. Em pequeno, a minha mãezinha ensinou-me que, quando se é convidado, a primeira coisa a fazer é ir falar aos donos da casa. As regras ali eram diferentes. Numa vasta varanda, inconfundível na "silk red robe" e no "silk red pijama", Hugh Hefner conversava com uns íntimos e com umas íntimas. Nem pensar em lá chegar. Para o impedir, existiam uns polidos e corpulentos guarda-costas que nos saudavam em nome do mestre, enquanto conferiam discretamente o nome que lhes dizíamos com uma lista que tinham. E logo chegaram as coelhinhas, servindo copos, louramente insinuantes. Andando, tremiam-lhes as mesmas coisas que tremeram a Vénus quando subiu ao Olimpo para interceder pelo Gama. Qualquer coisa entre o jardim de Klingsor e o Venusberg.


Depois que de nós afastaram o desejo de comida e bebida, propuseram-nos uma voltinha. Começou pelo muito celebrado Grotto, que, ao princípio, parece a ribeira misteriosa da antiga feira popular e, a pouco e pouco, recorda os lagos e as grutas do rei-virgem da Baviera. Música afrodisíaca, estalactites e estalagmites a que só extremos de boa educação podem chamar símbolos fálicos ou vaginais. Por aqui me fico na descrição, que estas coisas mais vale imaginá-las do que nomeá-las. Após as vinte mil léguas submarinas, a Arca de Noé. Quero eu dizer, um jardim zoológico a perder de vista, onde não vi feras, mas muitas girafas, zebras, avestruzes e cangurus. O luxo da coleção era a morada dos répteis e o espaço dos aquários. A coleção de peixes do Pacifico era particularmente prodigiosa.


4 -
 A essas horas, começava a anoitecer, as coelhinhas prometeram o resto para logo e levaram-nos para dentro. Era tempo de cinema. A sala privativa de Hugh Hefner cumulou os meus sonhos. Madeira escura, grandes maples de couro, mesinhas para o cinzeiro e para o copo, ecrã imenso. À frente, cadeirão especial para o anfitrião, que entrou por outra porta e nos introduziu, numa longa preleção, ao filme que escolhera: a versão de 1939 de "The Hunchback of Notre Dame", realizada por William Dieterle, com Charles Laugthon e Maureen O'Hara. Bem ao meu estilo, contou de como amara o filme aos 13 anos e de como a seguir o foi amando vida fora. Nunca vi mais bela cópia dele.


Finda a sessão, alguns voltaram aos prazeres da mesa, enquanto outros (foi o meu caso) preferiram continuar a explorar os jardins. Não me arrependi, pois que as nossas guias nos levaram ao "santo dos santos", a peculiaríssima "garçonnière" de Hef.


Na sala de entrada, aquela versão da "Última Ceia", onde Clark Gable, James Dean, Marlon Brando, Elvis e sete outros bebem néctar e comem ambrósia. Uma parafernália erótica preenchia cada canto e cada recanto, até nos mostrarem os quartos e as casas de banho. As posições do "Kama-Sutra" ilustravam as portas, sugerindo a especialidade de cada câmara, como parece que foi de uso nos lupanares do século XIX. Entrado no primeiro quarto, fui-me abaixo das pernas, não por culpa delas, mas por culpa do chão, almofadado e elástico e não propriamente destinado à parte do corpo humano conhecida pelo nome de pés. Paredes e tetos de espelhos. Cada quarto cada cor, qual delas mais "kitsch" e mais berrante. Uma rampa de igual moleza levava às casas de banho, muito escuras e subterrâneas. Mas a luz, como tudo o resto, dependia do gosto de cada qual. Também se podiam iluminar feericamente as casas de banho e escurecer os quartos. Ideal para jogar às brincadeiras às escuras, à cabra-cega ou à linda barquinha do lindo luar.


- Quando voltei à Mansão, já havia poucos convidados, entretanto saídos ou entretanto recolhidos. Comecei a admirar a coleção de pintura de Hefner, sobretudo os seus Fragonard. Foi nessa altura que o homem de pijama de seda se aproximou de mim e a conversa voltou ao corcunda. Contou-me ele então que sempre gostara tanto de ver filmes como de falar sobre eles. Mas, outrora, os amigos fugiam a sete pés dessas conversas intermináveis, sobretudo do seu requinte supremo que era contar um filme tintim por tintim. Por isso, quando ficou rico e famoso, resolveu organizar aquelas sessões. Eram sobretudo um pretexto para ele falar, demasiado sabendo que os agradecidos convidados não ousariam pateá-lo ou virar-lhe as costas. "Agora, como viu" (e fora bem verdade) "ouvem-me em religioso silêncio e, no fim, dão-me muitas palmas. All that money can buy". "All", depois de tudo o que eu vira, era um exagero. Mas ficou-me a sensação (talvez errada) de que, pelo menos em 1995, ele se divertia bastante mais com essas cinéfilas palestras do que com as coelhinhas. Pelo menos, quando nos despedimos, já não havia coelhinhas nenhumas e ele estava a meio de me contar a versão de Lon Chaney (1923) do romance de Victor Hugo. As almas têm, às vezes, encontros singulares.


por João Bénard da Costa
30 de janeiro de 2004, in Público 

SOB O SIGNO DA MEMÓRIA E DA HISTÓRIA

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   Pierre Nora © C.Hélie/Editions Gallimard

 

Pierre Nora (1931-2025) foi um incansável mobilizador de ideias. Com Jacques Le Goff lançou o projeto editorial “Faire l’Histoire” de boa memória, fundou em 1980 a revista “Le Débat” com Marcel Gauchet e foi o grande animador de “Les Lieux de Mémoire” (1984). Todas as iniciativas que animou foram marcantes em vários domínios, no mundo do pensamento, na História, na vida política, na atenção à memória e ao património cultural, como realidades vivas. Foi um grande editor, primeiro na Julliard e fundamentalmente na Gallimard. Quando em 2020 foi anunciado o fecho de “Le Débat”, encerrou-se um ciclo não apenas no mundo das ideias, mas com repercussões na vida cívica. Ficou então um espaço em aberto, num tempo em que há um evidente vazio de valores e de ideais. Pierre Nora, membro da Academia Francesa, foi um cidadão ativo, com um pé nos livros e outro na vida política, um democrata para quem o pensamento e a ação vivem sempre juntos. Preocupou-se, por isso, com a perda de relevância das humanidades e do conhecimento da sociedade. “A História é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que já não existe. A memória é um fenómeno sempre atual, um elo vivido com o presente eterno; a história é uma representação do passado. A memória, porque é afetiva e mágica, apenas se acomoda aos pormenores que a confortam; alimenta-se de recordações vagas, distantes, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensíveis a todas as transferências, écrans, censuras e projeções”.

Foi este confronto que suscitou a iniciativa dos “lugares da memória”, como sinal de abertura, como antídoto ao fechamento dos nacionalismos e protecionismos. Assim, o estado da educação preocupava-o intensamente. Uma escola desfalecida, complacente com a fragmentação dos saberes e com a ilusão dos especialistas deveria ser objeto de uma ação capaz de fazer compreender o diálogo entre as raízes da memória e os desafios da mudança. Contra “o fim das humanidades”, importaria considerar a exigência da curiosidade e do conhecimento, para que a civilização da leitura não seja posta em causa e para que o encontro entre as culturas e civilizações não se faça de culpabilidades ou de ressentimentos e de análises anacrónicas, mas com o estudo rigoroso das diferentes circunstâncias históricas, seja na relação com o Islão, seja no colonialismo e na escravatura ou no caso da resistência arménia. Em vez de uma história global desenraizada, importaria considerar a complexidade dos diferentes fenómenos e comunidades. Daí Nora ter lançado a diversos historiadores, como Pierre Chaunu, Georges Duby, Jacques Le Goff e René Rémond, o desafio de se fazerem historiadores deles mesmos, em lugar de se apagarem diante do seu trabalho. Como disse Mário Mesquita, haveria que assegurar a transição entre as grandes narrativas, tantas vezes erigidas na pseudociência, e uma nova perspetiva assente no diálogo efetivo entre história e memória. Longe de uma ciência do passado, havia que considerar a História uma ciência do presente. “A História não deveria ser escrava da atualidade nem escrita sob o efeito de memórias concorrentes”. Em vez de um debate funesto sobre as identidades nacionais, importaria olhar a realidade humana como produto de diversas influências e não de qualquer exclusivismo, consciente das raízes históricas, da identidade e da diferença. “A História pertence a todos e a ninguém, o que lhe concede uma vocação universal”.

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