A VIDA DOS LIVROS
De 30 de junho a 6 de julho de 2025
É tempo de recordar que a Constituição da República fará em breve cinquenta anos, e que celebrámos meio século das primeiras eleições com sufrágio universal, pelo que importa tirar lições no sentido de aprofundar o compromisso democrático.
O segundo Pacto MFA-Partidos foi assinado em 26 de fevereiro de 1976. Era uma nova solução e não uma simples modificação do primeiro Pacto. Como reconheceu Miguel Galvão Teles, os nossos militares conseguiram fazer uma coisa extraordinária: cumpriram rigorosamente a sua missão de fazer sair as Forças Armadas da cena política. Os militares conseguiram preparar a sua saída do palco no sentido do normal jogo democrático, deslocando a legitimidade para os partidos políticos e para o Presidente da República. O compromisso constitucional de 1976 procurou, assim, ser coerente com o conceito de democracia representativa pluralista, limitada pela competência revolucionária militar e jurisdicional do Conselho da Revolução, semipresidencial ou de parlamentarismo racionalizado, descentralizada, participativa, no âmbito de um Estado de Direito. Marcam-no a tentativa de fazer uma síntese original entre a democracia representativa tradicional e a formulação de um programa de transformação económica. A articulação entre os direitos, liberdades e garantias fundamentais e os direitos económicos e sociais consignavam uma autêntica liberdade económica que devia gozar de proteção idêntica a qualquer outra das liberdades previstas na Lei Fundamental. Aliás, a definição do setor privado da economia por exclusão de partes levava, por exemplo, António Sousa Franco a considerar tal setor como regra, segundo a noção de uma Constituição material consagradora da liberdade do mercado.
O carácter compromissório da Constituição é assim evidente. Veja-se que os direitos, liberdades e garantias e a democracia política resultam da convergência PS, PPD e CDS; o socialismo, da confluência do PS, PPD e PCP; os aspetos coletivistas do entendimento PS-PCP; o sentido personalista – PPD-CDS; os direitos sociais, a autogestão e o planeamento foram defendidos pelo PS; as autonomias regional e local e as garantias jurisdicionais pelo PPD; a defesa das nacionalizações, a reforma agrária e as organizações populares de base pelo PCP; e a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a iniciativa privada pelo CDS, como salientou Jorge Miranda. Os diversos contributos são nítidos e dão ao texto constitucional de 1976 uma configuração poliédrica e aberta, que se tem adaptado bem à evolução da realidade. Num primeiro período que podemos autonomizar na vigência constitucional (1976-1982), verifica-se uma separação de esferas de competência entre as instituições militares e as civis – sequela do período revolucionário. Após a revisão constitucional de 1982 dar-se-ia início ao segundo período de vigência da Constituição, já numa lógica europeia, tendo sido extinto o Conselho da Revolução e institucionalizada a subordinação das FA ao poder civil democrático, procedendo-se a uma redistribuição das competências do órgão extinto. Foi então criado o Tribunal Constitucional e na Constituição Económica procedeu-se à atenuação das fórmulas ideológicas unilaterais. Já com a revisão constitucional de 1989 deu-se início a um terceiro período de vigência constitucional, dominado pela abertura económica, pelo fim do princípio da irreversibilidade das nacionalizações (graças à interpretação segundo a qual a dupla revisão constitucional permitia superar a “irreversibilidade”) e pela abertura da possibilidade de reprivatizações a cem por cento de empresas nacionalizadas após 25 de abril de 1974.
No domínio cultural, importa recordar o que afirmou a deputada constituinte Sophia de Mello Breyner Andresen sobre as liberdades de criação cultural e de aprender e ensinar. “A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar – para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça. E, se o homem é capaz de criar a revolução é exatamente porque é capaz de criar a cultura”. A luta fundamental não deveria ser por uma “liberdade especializada”, mas pela liberdade do povo – liberdade de expressão e de cultura. “Queremos uma relação limpa e saudável entre a cultura e a política” – insistiu a deputada. “Não queremos opressão cultural. Também não queremos dirigismo cultural. A política sempre que dirigir a cultura engana-se. Pois o dirigismo é uma forma de anti cultura e toda a anti cultura é reacionária”. Premonitoriamente, contra todos os dirigismos e totalitarismos, a poeta deixava claro um sentido essencial para a interpretação da nova Constituição – sendo a liberdade a pedra angular, contra os referidos dogmatismos indiscutíveis e os maximalismos irreais. Por isso, atacava o “poder totalitário”, que persegue o intelectual e manipula a cultura. “Nenhuma forma de cultura se pode atribuir o direito de destruir ou menorizar outras formas de cultura”. Mas havia que considerar a educação como objetivo essencial. “Ensinar é pôr a cultura em comum e não apenas a cultura já catalogada e arrumada do passado, mas também a cultura em estado de criação e de busca”. Que melhor forma poderíamos encontrar para falar do tema da Educação? E que deve ser a liberdade de aprender e ensinar senão a procura de “novas formas de ensino que possam procurar, ensaiar e inventar”? Tudo, em nome de um “ensino livre onde nenhuma iniciativa seja desperdiçada”, sendo a escola vista como lugar de liberdade e de justiça, de participação e de solidariedade.
O compromisso complexo alcançado em 1976 correspondeu, pois, ao culminar de um processo de construção democrática marcado não só pela história constitucional inaugurada em 1820, mas também pela longa experiência de uma nação antiga fundada no que Jaime Cortesão designou como fatores democráticos. Assim, o compromisso assumido em 25 de abril de 1974 pelo Movimento das Forças Armadas pôde ser cumprido pela convergência entre os poderes militar e civil, e pelo acordo político estabelecido entre as forças políticas com assento na Assembleia Constituinte.
O processo complexo de génese do compromisso constitucional corresponde à convergência entre o impulso insubstituível do Movimento das Forças Armadas e a capacidade alcançada pelos partidos políticos e movimentos sociais no sentido de gerarem um documento marcado pelo tempo em que foi elaborado, mas suficientemente flexível para se adaptar às novas circunstâncias, em especial da integração europeia e da relação com o mundo da língua portuguesa, no âmbito da CPLP. O Movimento das Forças Armadas soube, assim, superar naturais vicissitudes internas, e as forças políticas e sociais democráticas puderam preservar o pluralismo e a legitimidade representativa dos interesses e valores da sociedade e da cidadania. Na história constitucional portuguesa temos hoje um período singularmente longo de permanência do sistema, graças às suas virtualidades, suscetíveis de aperfeiçoamento até pela previsão (ainda não concretizada) de um círculo nacional (artigo 149º), introduzido na revisão constitucional de 1997. Importa assim salvaguardar momento a momento “o respeito da vontade do povo português”.
Guilherme d'Oliveira Martins
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