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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PÁRA E PENSA

  
    D. António Ferreira Gomes


Perigo maior: a agitação paralisante e a paralisia agitante


A questão que o ser humano é para si mesmo mostra-se paradoxal. Por um lado, é inevitável: o abismo insuperável entre o que espera e quer ser e o que realmente alcança, obriga-o a perguntar: o que sou?  Que ser é esse que é entre ser e não ser e que nunca é plenamente? Por outro lado, a questão é insolúvel, porque, para conhecer-se, ele precisava de saltar para fora de si em ordem a poder ver-se de fora, objectivamente. Ora, precisamente este salto é impossível.

Depois, o ser humano vive-se a si mesmo em processo e em tensão. E são muitas as suas tensões. Lá está sempre a pulsão e a lógica, a afectividade e o pensamento, o inconsciente e o consciente, a emoção e o cálculo, o impulso e a razão. Aliás, essa tensão inscreve-se  numa base neurofisiológica — há o cérebro que funciona holisticamente, mas com três níveis: o paleocérebro, o cérebro arcaico, reptiliano, o mesocéfalo, o cérebro da afectividade, e o córtex com o neocórtex, em conexão com as capacidades lógico-racionais. Não é sabido, até por experiência própria, que muitas vezes as respostas emocionais escapam ao controlo racional por causa do chamado “atalho neuronal” e do “sequestro emocional”, como mostrou Paul D. Mac Lean? De repente, demos uma resposta a alguém de que depois nos arrependemos,  a pulsão sobrepôs-se à razão...

É verdadeiramente paradoxal a constituição humana. Somos constituídos e vamo-nos constituindo a partir de uma herança genética e de uma história, numa determinada cultura. É próprio do Homem não ter uma natureza fixa e imóvel, porque é histórico e cultural.

Somos afectivos e racionais. Ninguém começa com a inquirição racional do mundo. Primeiro, o ser humano sentiu o mundo e foi afectado por ele, positiva ou negativamente. É muito lentamente que a razão se vai erguendo no seu uso teórico-prático.

O Homem é situado, sumamente concreto: resulta daquele óvulo fecundado por aquele espermatozóide, naquele instante, e, sempre, com uma história concreta — esta e não outra. Ao mesmo tempo é aberto: ao presente, ao passado e ao futuro, a todos os outros seres humanos, à realidade toda, ao que há e ao que não há, pois é também o ser da utopia e do sonho e do ilimitadamente possível. A pergunta vai até ao infinito...

Por isso, é único. Nunca houve nem haverá outro como eu. Lá está o grito de Unamuno: “Cada um de nós é único e insubstituível. Não há outro eu no mundo! Não há outro eu! Havê-los-á mais velhos e mais novos, melhores e piores, mas não outro eu. Eu sou algo inteiramente novo. Eu não quero deixar-me classificar, porque eu, Miguel de Unamuno, como qualquer outro homem que aspire à consciência plena, sou espécie única”. Ao mesmo tempo, o Homem é relacional e, precisamente porque é relação sem limites, aberto a tudo, vem a si mesmo como único, pessoal e comunitário.

Na gigantesca História do universo e da evolução, sabemos que há Homem, quando aparecem rituais funerários. Como os outros animais, o Homem também morre, mas, ao contrário dos outros, sabe que é mortal e angustia-se com a morte.

O Homem sabe que é finito, mas essa consciência da finitude é-lhe dada na abertura ao Infinito. Esta  abertura é condição de possibilidade da consciência do finito enquanto finito. É nela que se enraíza a condição da pergunta religiosa enquanto tal.

O ser humano é festivo e sério, condicionado e livre, é homo sapiens e também homo demenssapiens sapiens e demens demens (sapiente  sapiente e demente demente). E homo dolens (sofredor) e homo sperans (esperante).

Assim, precisamos de reflectir sobre nós mesmos. Os fins de semana e as próprias férias não precisam de ser agitação constante. Também podem ser e deveriam ser tempo de meditação.

É muito interessante a constatação do vínculo entre meditação, medicina e moderação. As três têm como étimo o verbo latino mederi, que tem o sentido de medir, pensar, curar, restabelecer o equilíbrio. Cá está! É sempre a medida e a justeza que estão em causa. Porque a saúde resulta do equilíbrio e da harmonia. A moderação tem a ver com a medida justa. A meditação é ponderação e pesagem para o equilíbrio harmónico.

Precisamos de viver reconciliados/reconciliadas, em harmonia. Para evitar perigo maior, de que falava D. António Ferreira Gomes, o famoso bispo do Porto: a agitação paralisante e a paralisia agitante.


Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Sábado, 5 de Julho de 2025

A VIDA DOS LIVROS

  

De  7 a 13 de julho de 2025


Passam 50 Anos depois da Independência de Cabo Verde e relemos “A Construção da Identidade Nacional – Análise da Imprensa entre 1877 e 1975” (Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, Praia, 2006) de Manuel Brito-Semedo.


UMA IDENTIDADE ESPECIAL
Sentimos o pulsar de uma sociedade que se afirma e de uma nação que nasce. “A identidade cabo-verdiana não poderia ter sido decretada por nenhum poder: foi, como aconteceu com todos os povos, o resultado final de muitas interações…”. E é muito cativante poder seguir a evolução do pensamento da elite intelectual, através de um processo de aumento progressivo dos níveis de instrução, sem o qual não é possível entender a riqueza e a singularidade da cultura cabo-verdiana. Os nativistas da passagem do século XIX para o XX, da geração de Eugénio Tavares (1867-1930), sobretudo autodidatas, passaram o testemunho aos regionalistas, de 1930 e 1940, já formados no Liceu e alguns com o ensino superior, que abriram caminho aos nacionalistas, formados nas Universidades da Metrópole. Houve, assim, uma continuidade que definiu um processo de maturação, que permite hoje entender a consolidação de uma identidade cultural complexa. Saliente-se, em especial, o papel desempenhado pelo magistério pedagógico de Baltasar Lopes da Silva (S. Nicolau, 1907-1989) e de António Aurélio Gonçalves (S. Vicente 1901-1984) que permitiu uma sólida transmissão da mensagem identitária aberta e culta de Cabo Verde. Enquanto no tempo de Eugénio Tavares prevaleceu o combate contra as leis discriminatórias que afetavam o nativo, reivindicando um estatuto semelhante ao que vigorava para os habitantes dos Açores e da Madeira, o período sob influência de Baltazar Lopes pretendeu definir Cabo Verde como um caso de “regionalismo europeu”, cuja identidade singular mereceria a consideração como ponto de encontro e força criadora.


UMA GERAÇÃO MODERNA
Depois, a geração de Amílcar Cabral, com Gabriel Mariano, Manecas e Abílio Monteiro Duarte, José Leitão da Graça, José Araújo, Corsino Fortes e Onésimo Silveira enalteceu a componente cultural africana, como um caso de “regionalismo africano”. A dialética afirmação / negação marcou, assim, o século passado, o que permitiu enriquecer a “identidade complexa”, e abrir o caminho da independência e da abertura cultural. De facto, uma síntese pressupõe sempre que se afirmem e, num dado momento, até se extremem, os diversos polos em presença, o que permite o enriquecimento do resultado do que podemos designar hoje como “caboverdianidade” contemporânea. E assim o homem crioulo, resultado e síntese de um encontro de quantos aportaram às ilhas, afirmou-se em diálogo e em confronto – que envolveu o sobressalto nativista, que valorizou os valores originais, e que evoluiu, naturalmente, para a tomada de consciência regionalista e nacionalista, que conduziu à identidade nacional. As três gerações marcantes representaram, deste modo, uma continuidade, com conflitos e as aproximações inerentes às difíceis relações inter-geracionais. A reclamação de um estatuto de igualdade, a reivindicação da diferenciação regional e a exigência de uma autonomia política surgiram, deste modo, imbuídos de uma coerência que foi concretizando a construção da identidade nacional e a compreensão das especificidades que correspondem às dimensões cultural e político-ideológica a considerar.


O CASO DA REVISTA “CLARIDADE” 
Saliente-se o caso da revista “Claridade”, de Baltazar Lopes, Jorge Barbosa, Manuel Lopes e Aurélio Gonçalves, publicada em S. Vicente, entre 1936 e 1960, por entre muitas dificuldades e vicissitudes materiais, considerando a dispersão de colaborações. O programa, no dizer de Manuel Lopes (1907-2005), era “fincar os pés na terra cabo-verdeana” e que teve uma influência muito significativa no sentido de uma autêntica impregnação cívica e da procura das raízes mais fundas da cultura cabo-verdeana – “em contacto com a terra os pés se transformaram em raízes e as raízes se embeberiam no húmus autêntico das nossas ilhas”. Aí esteve a modernidade crioula, ligada ao que era próprio e genuíno e ao que era universal na busca da emancipação… “Você Brasil, é parecido com a minha terra. / As secas do Ceará sãos nossas estiagens, / com a mesma intensidade de dramas e renúncias” – disse Jorge Barbosa. E é muito estimulante verificar a interdependência entre o conteúdo da imprensa cabo-verdiana e a construção paulatina da identidade nacional, bem como o facto de o discurso jornalístico ter funcionado como expressão e fonte de influencia no processo de construção da identidade crioula de Cabo Verde. E se falamos de identidade crioula, não podemos esquecer a raiz etimológica dessa palavra que tem exatamente a ver com um permanente ato de criação. Se referimos a geração da “Claridade” e a importância do movimento, muito para além de qualquer circunstância temporal ou política, temos ainda de aludir a outras influências: a Academia Cultivar, ainda na senda do movimento claridoso (tendo como órgão de imprensa “Certeza – Folha da Academia”, 1944, S. Vicente), a “Nova Largada” (Praia, 1958, com o Suplemento Cultural do “Cabo Verde”, com Aguinaldo Brito Fonseca, Gabriel Mariano, Francisco Lopes da Silva…) e do Seló (Praia, Folha de Novíssimos, 1962). “Perante os discursos totalizantes europeísta e africanista, provámos (diz Brito-Semedo) que uma posição rígida e extremada (…) não é senão uma visão enviesada de um todo, que surgiu como resultado de um processo histórico-político-social que fez a elaboração dessas duas componentes, a africana e a europeia, e que levou à integração destas duas posições, que hoje constituem a vivência cabo-verdiana”. Construção gradual, a cultura cabo-verdiana  afirma-se em cada dia que passa quer nas suas características originais, quer nos elementos específicos que resultam de uma rica complementaridade de diferentes perspetivas. Como um património cultural vivo, Cabo Verde constitui um Caleidoscópio que nos permite compreender o potencial universalista da cultura da língua portuguesa. 


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

 

ANTOLOGIA

  


ATORES, ENCENADORES (XXVI)
OS 140 ANOS DE PALMIRA BASTOS
por Duarte Ivo Cruz


Há meses, fiz aqui uma referência a Palmira Bastos, no contexto da evocação de atores e encenadores da transição do século. Sucede que no dia em que escrevo esta crónica (30 de maio de 2015) decorrem exatos 140 anos do nascimento de Palmira: e no passado dia 10 deste mesmo mês, decorreram 92 anos da sua morte. As datas são em si mesmas de assinalar, na perspetiva da referência a atores que marcaram pela sua qualidade o teatro português.

Mas neste caso concreto de Palmira, a evocação é ainda mais abrangente. Em primeiro lugar, pelo talento que, durante toda a longa carreira, sempre manifestou, a julgar pelas críticas de épocas sucessivas e pelo testemunho direto de sucessivas gerações, entre as quais me incluo: e isto porque, Palmira Bastos manteve-se em cena, é caso para assim dizer, desde 1890: estreou-se com efeito com 15 anos num pequeno papel da peça “O Reino das Mulheres” de Ernesto Blum, no então Teatro da Rua dos Condes, em 1 de julho de 1890. E manteve-se em cena até 15 de dezembro de 1966, no último espetáculo em que participou, agora no Teatro São Luis, com a peça “Ciclone” de Somerset Maugham, que tinha aliás estreado no Teatro Nacional de D. Maria II em 1932.

O incêndio do D. Maria, ocorrido em 1964, obrigou a empresa Rey Colaço-Robles Monteiro a mudanças: foi pois com o “Ciclone” no São Luís que Palmira Bastos se despediu do público - com 91 anos de idade e 76 anos de carreira, aliás devidamente assinalada em comemorações ocorridas quando completou 90 anos. E ainda ficaria em cena mais um ano, ou quase!

A colaboração de Palmira no Teatro Nacional  alternou com participações sucessivas nas grandes companhias do meio teatral português, e isto, tanto no teatro declamado como na revista e no teatro musicado, em quase  todos os palcos e companhias relevantes: assim, para além de Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro, com quem ficaria a partir do início dos  anos 30 com uma breve  interrupção,  Palmira Bastos integra elencos diversos e espetáculos dirigidos ou integrando os grandes nomes da  época: Augusto Rosa,  Eduardo Brazão, Taveira, Ilda Stichini, Luis Galhardo…

Mas vimos que Palmira se estreou no teatro musicado com “O Reino das Mulheres” de Blum. E no que respeita ao teatro musicado e à revista, Luis Francisco Rebello assinala ainda intervenções em “Tam-Tam” de Sousa Bastos, com quem Palmira viria a casar: e a esta intervenção na opereta e na revista seguiram-se “Fim de Século”, “O Sarilho”, e outras peças de teatro ligeiro, alguma de grandes autores, designadamente “O Burro do Senhor Alcaide” de D. João da Câmara e Gervásio Lobato ou, deste último, “O Solar dos Barrigas”. Cfr. l. F. Rebello, “História do Teatro de Revista em Portugal” vol. 1 - 1984).

E vem a propósito referir um comentário de D. João da Câmara acerca da então incipiente mas já notável carreira de Palmira Bastos: “Foi brilhante a sua aurora. Era atriz na idade em que outras mal começavam a balbuciar os papéis”. E Eduardo Schwalbach: “é uma grande atriz, sem sobra de dúvida, na opereta, na comédia, no drama” (in Sousa Bastos, “Diccionário do Theatro Português” 1908).

A longevidade fez com que Palmira Bastos surja ligada a numerosíssimas produções da grande dramaturgia portuguesa e mundial, em centenas de estreias em Portugal e no Brasil, revelando, ao longo de décadas, sucessivas peças e autores de destaque, desde clássicos (Gil Vicente, Shakespeare, Molière, Schiller, Garrett) até estreias de autores que à época constituíam verdadeiras revelações junto do público português. Lembro, entre centenas de nomes, autores na época pouco conhecidos entre nós, mas de qualidade hoje indiscutível: por exemplo Bernestein, O'Neill, Oscar Wilde, Lorca, Pirandello, Alexandre Casona, George Bernanos…

Mas no que diz respeito ao teatro português, encontramos um repertório que, ao longo de décadas, por mérito próprio ou dos responsáveis pelas companhias - e aí, é justo valorizar a Empresa Rey Colaço-Robles Monteiro no Teatro Nacional - revelou toda uma geração de dramaturgos que, a partir do início do século, constitui, com as oscilações que hoje se impõe reconhecer, muito do que de melhor se fez no teatro português.

E aí cito peças de Marcelino Mesquita, Henrique Lopes de Mendonça, Carlos Malheiro Dias, Julio Dantas, Ramada Curto, Alfredo Cortez, Olga Alves Guerra, Virgínia Vitorino, Vasco Mendonça Alves, Eduardo Schwalbach, Augusto de Castro, Joaquim Paço d'Arcos, Costa Ferreira, Leitão de Barros, Luis Francisco Rebello…

E tudo isto em 76 anos de carreira.


Duarte Ivo Cruz


Obs: Reposição de texto publicado em 03.06.15 neste blogue.

JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS


«Foi nos começos da República, e eu, de calção, com os sapatos nas poças de água, tratava os primeiros corpo a corpo com a gramática latina e o verbo Amar. A Avenida era então novinha em folha, como o regime. Começava lá em baixo num boqueirão sinistro, um rio de lama onde às vezes havia inundações e gritos, entre ribanceiras e prédios esguios, e ia-se perder ao alto, nas quintas e azinhagas. As casas, modestas e limpinhas, tinham fachadas de azulejo de mau gosto, outras eram pintadas a cor. Havia as “terras”, lotes vagos de barro viscoso onde a gente ia “reinar” e as carroças se atolavam até aos eixos, com muitas pragas dos carroceiros. As árvores eram frágeis e verdes, de mocidade e esperança. Que sossego o desses dias agitados! Isto não era Avenida, era a Rua do Lá-Vai-Um…»


Rodrigues Miguéis (1901-1980) regressa aos escaparates das livrarias, para gáudio dos seus leitores. É um prazer poder voltar à língua certa da grande escrita, que exprime de modo soberbo a vida vivida. Reencontramos “Léah e Outras Histórias” e “Um Homem Sorri á Morte – Com Meia Cara”, na Assírio e Alvim, e podemos contar com a indispensável biografia, da autoria de Teresa Martins Marques – “Nos Passos de José Rodrigues Miguéis – Uma Biografia Como Um Romance” (edições Âncora). A lembrança de uma presença discreta no panorama português (pela distância) obriga a reconhecer uma singularidade especial que o futuro reconhecerá por certo como da maior valia. Se os ideais democráticos que o escritor defendeu tivessem prevalecido, o lugar que teria ocupado dar-lhe-ia maior visibilidade sem sombra de dúvida. À medida que o tempo corre, há personagens que se agigantam, e esse é o caso de Miguéis. Muito jovem, evidenciou-se pelo brilhantismo e pela argúcia. Licenciou-se em Direito na jovem Universidade de Lisboa, foi bolseiro da Junta de Educação Nacional em Bruxelas, onde se graduou em Ciências Pedagógicas. Teve uma importante intervenção na “Seara Nova”, de que se afastou em 1930, por considerar que não bastariam as ideias para combater a ditadura. Mas foi um seareiro emblemático e um republicano dos quatro costados. Constrangido pela censura e pelo Estado policial, exilou-se nos Estados Unidos em 1935, onde viveria durante quarenta anos. Além de diretor assistente das “Seleções do Reader’s Digest”, foi professor universitário e tradutor, membro efetivo da Hispanic Society e correspondente da Academia das Ciências. Páscoa Feliz, Léah e Outras Histórias e O Milagre Segundo Salomé são obras fundamentais que demonstram uma qualidade única na escrita e no sentido crítico, capazes de fazer compreender a sociedade autêntica na sua diversidade. “Saudades para Dona Genciana” constitui um exemplo comovedor da cidade em movimento. Ela vivia na Almirante Reis desde o tempo das hortas, e ouvem-se os pregões, o elétrico a ranger nos carris, as tosses aflitivas dos tísicos, a vida e a morte, os protestos e as risadas. Quando o Epaminondas não apareceu, logo correu que estava à sombra no Limoeiro. “Até que um dia, pela primeira vez ao fim de tantos anos, me atrevi a pisar a soleira daquela porta: para ver Dona Genciana. Estava uma sombra, quase irreconhecível, o cabelo todo branco e ralo, os olhos fechados. Entreabriu-os para me ver, agarrou-me a mão com veemência, quis dizer qualquer coisa e as lágrimas correram-lhe pela cara. Daí a dias foi a enterrar”. Assim se desvanecem as memórias.


GOM

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  
    Amin Maalouf © Loic Vennace/AFP


220. 1. O EQUILÍBRIO ENTRE O UNIVERSALISMO E AS DIFERENÇAS


Amin Maalouf (AM), escritor de origem libanesa, aquando do lançamento, entre nós, do seu livro Um Mundo sem Regras, numa entrevista onde questionado sobre o que é, para ele, uma cultura global, respondeu:

“Aquela em que cada elemento importante de cada cultura se tornaria global. Onde ninguém sentiria que o principal elemento da sua cultura só seja conhecido pelo seu povo, seja arte, música, literatura. Acredito num mundo em que as nações lidem principalmente com estas expressões culturais. E onde todos os comportamentos de estados e nações ao longo da História - lutar por territórios - desapareçam”.

Prosseguindo, acrescenta:

“Seria o fim da Pré-História. A História que conhecemos, de luta entre tribos, deveria acabar, para entrar numa História em que se partilhem valores comuns. E não me importo que sejam sobretudo valores ocidentais. Penso que, na sua maioria, são aceites, embora muitas vezes se diga o contrário. (…) Mas o Ocidente deveria tornar-se menos orientado para si mesmo no que respeita à cultura. Precisamos de ir em direção a um mundo em que os valores sejam comuns, mas em que exista um verdadeiro florescimento de linguagens, literatura, arte, ciência. Isto é o futuro da humanidade”.

Sobre saber se o futuro só é possível através da cultura, diz estar convicto de não poder existir de outro modo: “Qual a razão de ser da civilização se não for a cultura e o conhecimento? Para mim a cultura não é um aspeto da civilização, mas a sua finalidade”, complementando que ter esperança no futuro é uma necessidade (JL n.º 1014).  

Esta noção de cultura tem a sua particularidade, dado não prescindir de traçar uma nítida distinção entre civilização e cultura, ao invés de muitos autores que a usam indistintamente, defendendo uma identidade de princípios entre os dois conceitos.     Entre os vários critérios de distinção, o mais universalizado está associado à doutrina sociológica alemã, ao identificar a civilização com o substrato técnico e organizacional das sociedades, incluindo não apenas as técnicas e os instrumentos materiais, mas também os sistemas de organização política e social, adaptando a natureza às necessidades humanas.

No seu oposto e numa relação de complementaridade, está a cultura, compreendida como a reunião dos valores morais e espirituais. Institui-se um entendimento redutor da civilização que a torna subordinada da cultura. Mais importante que a técnica (que é apenas um meio ao dispor dos indivíduos), são as manifestações do espírito, de que depende o desenvolvimento das forças interiores da humanidade.

O conceito de civilização emerge como um estádio embrionário do aperfeiçoamento humano, que só será finalizado quando atingido o nível superior da cultura. Cabe à cultura a primazia, integrando os ideais, os valores, os princípios normativos, o espírito das sociedades humanas. 

Intui-se, assim, ser esta a doutrina que agarra mais de perto o entendimento de cultura defendido por AM, dado que o futuro da humanidade só é, então, possível através da cultura, não sendo esta um aspeto da civilização, mas o seu fim. 

Uma cultura que será apologista da dignidade humana, o que nos remete para a problemática do universalismo dos direitos humanos e as diferentes diferenças que nos individualizam.


04.07.25
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

Entre a imaginação e o real 

  


A nossa espécie, desde o início, tem usado as histórias para se explicar a ela mesma.

A partir das lendas e dos mitos criámos mundos fantásticos e neles os nossos pensamentos acerca da nossa própria natureza.

Na caverna de Platão, as sombras adivinhavam o mundo fora dela.

Na verdade, os nossos medos, as nossas dúvidas, as nossas formas de alcançar as verdades inventando coisas e dando-lhes significados, têm sido uma constante.

Os homens também criaram deuses para aclararem a sua origem e por linguagens e silêncios chegaram a respostas às perguntas e de novo as perguntas e de novo as possibilidades.

Na verdade, embora seja irreal que os tapetes voem, a clareza desta ideia pode virar muitos percursos e incutir a muitos encontros.

Numa viagem sem canoa as histórias estabelecem uma relação entre o mundo da imaginação e o denominado mundo real, e também desafiam a criar o juiz do próprio homem nele mesmo.

Todos gostamos de viajar na nossa imaginação ainda que não vivamos nela na totalidade, mas ela explica-nos muitas razões da necessidade de criarmos os nossos protetores, os nossos pais invisíveis.

Na verdade, muitos contos nem sempre foram originalmente escritos para crianças e muitos deles dizem de nós verdades bem amargas, e outros esclarecem-nos, sobretudo, quando ficamos por nossa conta.

O mundo das histórias da imaginação, diga-se, tem a sua própria lógica interna: tem as regras de um mundo que também não tem como conhecer certezas; tem a não inocência, e pode até ser tão falhado quanto o mundo denominado verdadeiro, mas trata de coisas reais como o amor, a morte, o ódio, o medo, o poder, chegando até todos os sentires por caminhos diferentes.

O mundo das histórias é assim, mesmo que saibamos que não é assim, nem diferente, antes de outro modo, daquele mesmo indizível que vai deixando pegadas ao tempo para que os nossos passos de adultos se não esqueçam de coisas fundamentais.


Teresa Bracinha Vieira

O CIRCO MAU

  


Os circos bons não têm qualquer interesse, e aliás os circos maus também não. No entanto, seguir um número de acrobacia num circo mau é uma experiência emocional muito mais complexa que num circo bom. Enquanto no circo bom temos uma confiança fundada na eventualidade de os acrobatas fazerem mais ou menos aquilo que tencionam, e tudo se parece com patinagem artística (a actividade mais engenhosa, com excepção do genocídio, a que um ser humano se pode dedicar), num circo mau a emoção consiste em temer que o inevitável aconteça, e depois assistir à concretização dos nossos piores receios. Seguimos assim com piedade e horror os acrobatas, e é com alívio que, depois de um tempo infindo em que se despenharam com método, os vemos levantar-se do chão uma última vez. Podemos voltar para casa.

A única outra actividade que suscita emoções tão extremas por parte dos espectadores é o debate público em Portugal. Aqueles que apreciam o género deleitam-se e horrorizam-se com o modo como a cada frase, a cada alternativa, a cada ligação entre frases, a cada razão apresentada, os oradores escrupulosamente acabam por ir atrás de trapézios que não existem e aterrar exactamente onde não querem. A exibição de argumentos em público, oral ou escrita, pode ser caracterizada, por analogia com o circo, do seguinte modo: os escritores ou os falantes dão saltos e caem do alto dos seus próprios saltos.

Bem entendido, a ausência de progressão, se por um lado os coloca nos antípodas da patinagem artística, por outro é duramente compensada pela duração do espectáculo. Nenhum argumento é menos que eterno, nenhum artigo ou nenhuma imagem suscita menos de mil palavras, nenhuma intervenção breve dura menos de vinte minutos. Durante esses períodos, em que se pode ouvir os continentes a mudar de posição, os artistas esforçadamente dão pinotes e despenham-se. Compensam o pouco que sabem com o mal que fazem.

Partilham com os acrobatas do circo mau não apenas o modo como as suas desgraças são largamente auto-inflingidas como sobretudo uma grande indiferença por quem possa estar a assistir. Não agem contudo por sobranceria mas por ansiedade. A sua ansiedade, que é verbal, lógica e intelectual, é grande demais para lhes permitir imaginar que quem os ouve ou lê tenha mais que fazer. Nunca conseguem fazer nada à primeira e por isso tentam uma segunda e uma décima-terceira vez. As suas opiniões, espasmos, desabafos e discursos são assim ensaios constantes das ideias que não tiveram, das relações que não perceberam e de tudo o que não escreveram.

Alguns, em boa verdade, apresentam-se cheios de lantejoulas e plumas, e com as sobrancelhas arranjadas; durante alguns segundos julgar-nos-íamos numa matinée em Moscovo. Mas, passada essa decepção inicial, e ao seu primeiro salto, o universo reconstrói-se-nos sem ideal nem esperança e o debate público, como um circo mau, prossegue o seu curso.


Miguel Tamen
Escreve de acordo com a antiga ortografia

CRÓNICAS PÁRA E PENSA

  
    S. Pedro de Grão Vasco


As ‘sopas’ do Espírito Santo


Quero voltar ao Espírito Santo e às festas do Divino Espírito Santo, nos Açores, que são uma das festas mais humanistas e solidárias do mundo. Ah! aquela coisa dos “impérios”! Chegue quem chegar, senta-se e come e bebe fartamente, sem que alguém lhe pergunte quem é, donde é, o que faz. De graça. Quando lá fui, no “império” a que me acolhi, lá estava o espírito: “A hora de repartir/Que a gente tanto gosta. /Pão, carne, massa e vinho/Temos sempre a mesa posta.” Ali, foram servidas mais de 600 “sopas” (um ensopado de carne excelente).

Se formos à procura da origem destas festas, encontraremos um monge célebre do século XII, Joaquim de Fiore, que deu origem ao joaquimismo. Segundo ele, a História do mundo está dividida em três Idades: a Idade do Pai ou da Lei, que é a idade da servidão e do medo; a Idade do Filho, que é a idade da submissão filial; a Idade do Espírito Santo, na qual se ia entrar, e que é a idade do Amor, da Liberdade e da Fraternidade.

Houve sempre, ao longo da História da Igreja, um conflito entre os que acentuam o lado visível, institucional, hierárquico, e os que sobrepõem à Igreja visível uma Igreja espiritual, carismática, fraterna. O joaquimismo constituía uma mensagem revolucionária de contestação de uma Igreja pecaminosamente mundana; os franciscanos “espirituais” — fraticelli (irmãozinhos) — desgostosos com os Papas que abafavam o Espírito, aderiram à inspiração carismática, espírito-santista do joaquimismo.

Em 1282, D. Dinis casa com D. Isabel de Aragão, a futura Rainha Santa. O casamento realizou-se em Trancoso, que, significativamente, havia de ser a terra do sapateiro Bandarra, profeta do Quinto Império, tão querido do Padre António Vieira e Fernando Pessoa. Toda a família da nova rainha de Portugal era partidária dos frades espirituais, e a própria rainha possuía um conceito franciscano da vida: simplicidade, desapego dos bens terrenos, amor aos pobres e fracos. Santa Isabel protegia os franciscanos, e foi por seu intermédio que entrou um culto especial ao Espírito Santo. Fundaram-se confrarias do Espírito Santo, irmandades de socorro mútuo, e instauraram-se as Festas do Império do Espírito Santo, nas quais se celebrava o Pentecostes, comemorando a descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos.

A principal cerimónia desse culto, durante a semana do Pentecostes, realizada por um franciscano, constava da coroação com três coroas, uma imperial e duas reais, do Imperador e dois Reis, geralmente na pessoa de uma criança e dois homens do povo pertencentes à Confraria do Espírito Santo. O Imperador, um menino, símbolo da humanidade renovada, religada às verdades básicas da pobreza evangélica e do amor ao próximo, empunhava o ceptro com que, tocando na fronte, se significava a bênção do Espírito Santo, e, depois de ter recebido as homenagens da população e das autoridades civis, militares e religiosas “fora” da igreja, procedia à libertação dos presos e à distribuição do pão, não como esmola, mas como preâmbulo da instauração na Terra da era da fraternidade profetizada.

Esta Festa dos Imperadores generalizou-se e encontramo-la em muitos pontos do País, mas de modo especial em Tomar e a sua Festa dos Tabuleiros ou do Divino Espírito Santo. Aqui, no fim da procissão, há a distribuição do bodo aos pobres.

Mas as festas do Divino Espírito Santo enraizaram sobretudo nos Açores e, por causa da emigração, em vários núcleos portugueses dos Estados Unidos e do Canadá. Nos Açores, temos as chamadas Igrejas “paralelas”, de que ainda hoje é possível encontrar vestígios. No quadro das celebrações religiosas, continuam com lugar destacado as Festas do Divino Espírito Santo e do “Império”, procedendo-se à coroação de uma criança, que segue na procissão com o ceptro, sendo igualmente de destacar as referidas “sopas”.

A soçobrar na crise, num mundo louco de ódio e de guerras, é bom lembrar estas Festas da Fraternidade universal. A utopia tem duas funções essenciais: criticar o presente e obrigar a transformá-lo. Outro mundo é possível.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Sábado, 28 de Junho de 2025