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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

  
    De 22 a 28 de setembro de 2024


«Nuno Júdice – O Prazer das Imagens» é uma exposição que tem lugar no Museu de Portimão com curadoria de José Gameiro, Manuela Júdice e Filipa Leal e evoca a relação entre o poeta os Museus e as grandes obras de arte. A mostra foi inaugurada no sábado dia 20 com a presença de Guilherme d’Oliveira Martins.


© Luísa Ferreira


Graça Morais, Júlio Pomar, Jorge Martins, Rui Chafes, Manuel Amado, Duarte Belo e os franceses Bernard Cornu, Colette Deblé e Julie Ganzin, são alguns dos artistas presentes nesta exposição, que inclui poemas inéditos de Nuno Júdice e depoimentos do ator e encenador Luís Miguel Cintra ou de Donatien Grau, Conselheiro da Presidência do Museu do Louvre, para os programas contemporâneos. Igualmente serão exibidos os filmes - documentários “Eco, Nuno Júdice”, de Rita Féria e Teresa Júdice da Costa e “Nuno Júdice, 3”, do Arquivo-RTP, gravado no Programa “Com Todas as Letras”, de agosto de 1975 coordenado por Eduardo Prado Coelho, Manuel Alberto Valente e Manuel Costa Silva.


Ao regressar de Portimão de um encontro fugaz com tantos amigos, recordo o poema “Estrelas”, publicado em Pedro Lembrando Inês, que exprime um sentimento de gratidão para com o Algarve, a saudosa terra que Nuno definia como o lugar que afirma as pequenas marcas do seu carácter único. “Desfaço nas mãos, os figos / fugazes de setembro, enquanto o seu leite / escorre pelas folhas verdes que / os envolvem. Esses figos, que me traziam / em cestos de vime, eram mel na boca / que os saboreava. Secos iam parar / aos frascos fechados para o inverno, de onde / os tirava para meter no bolso, / antes de sair. ‘O que tens aí?’, perguntavas-me. E /eu passava-te para a mão um desses figos, e via / como o abrias, chupando os seus grânulos, / e passeando na boca a amêndoa que / o recheava. Onde estarás ?, pergunto. Poderia / ainda hoje partilhar, contigo, um / desses figos do inverno? Ou o seu leite secou, / nos cantos dos lábios, roubando-te / as palavras, e o húmido murmúrio / do amor?”. Num tema aparentemente tão simples, está toda a grandeza do poeta e da sua atenção. Nuno Júdice seguiu o melhor lirismo, que vem dos trovadores, que se desenvolve nos grandes cancioneiros e culmina na herança inesgotável de Camões e em tudo quanto se lhe seguiu. Um pormenor do quotidiano, o figo, maduro e seco, e o diálogo da amizade e do amor são ingredientes indispensáveis à compreensão da vida. António Carlos Cortez publicou Um Canto na Espessura dos Textos – Leituras da Poesia de Nuno Júdice (D. Quixote, 2024). Encontramos aí a expressão viva, do que para o poeta é mais do que um balanço ou do que uma homenagem. Trata-se da demonstração da relevância de uma figura maior da nossa literatura, em confronto com os nossos maiores. Afinal, a justa projeção internacional que Nuno Júdice alcançou corresponde a muito mais do que uma afirmação individual, tratando-se de uma fecunda manifestação da cultura da língua portuguesa além-fronteiras.


UMA POESIA BEM VIVA! 
Ouvimos o discurso direto do poeta: “Quando começo um poema nunca sei para onde estou a ser conduzido. Há muitas formas de encontrar linha de desenvolvimento, umas vezes lógica, outras mais contraditória ou paradoxal, mas o que é comum é o modo como o poema se fecha a si próprio, quase sempre de uma forma inesperada que surpreende através de várias formas, desde a ironia até esse encontro como o que posso chamar uma transcendência que obriga a ler o poema e a reinterpretá-lo. O que importa é a surpresa no final, que subverte ou transforma o que vinha antes”. De facto, para o autor não pode haver Poesia sem passado e sem memória. Todavia, a memória não vem apenas da experiência pessoal, mas de uma poesia perene, dos poemas lidos, das situações próprias, mas também da partilha de experiências. E então a memória reinventa-se, como na genial lição de Eduardo Lourenço, na revisitação de Fernando Pessoa sobre a falsa influência de Walt Whitman na “Ode Triunfal” e a verdadeira repercussão do americano em Caeiro, numa inversão de termos, que reinventa a unidade da criação poética de Pessoa…


“O título é a última coisa que aparece quando estou a compor um livro (diz ainda Nuno). Tem de conter em simultâneo uma síntese, mas também a forma como vou distinguir um livro de outro, encontrando essa ‘personalidade’ que o distingue”. E se falamos de passado e de memória, importa enfatizar o necessário diálogo com as diversas artes. As experiências de Berna e de Paris, presentes nesta mostra, permitiram ao poeta desenvolver uma relação forte com a pintura, os museus, os artistas com quem conviveu, os livros de arte que escreveu, de Manuel Amado a Graça Morais, de Jorge Martins a Júlio Pomar, que conferiram à poesia de Nuno Júdice um lado visual, que se tornou paradigmático. Como disse ainda: “Não há poesia sem imagem, tal como não há poesia sem ideia (embora no meu caso a filosofia seja algo mais interrogativo do que explicativo)”. No fundo, para Eduardo Prado Coelho, estamos perante um poeta da imaginação, não se considerando neorromântico nem surrealizante. É verdade que há, sem dúvida, a imaginação, mas também “uma razão que inscreve essa imaginação não num plano delirante (…), mas numa dimensão que vai buscar uma lógica nem sempre previsível no início do poema para criar uma surpresa e uma transformação na forma de ver a realidade”.


O CULTO DA PALAVRA POÉTICA
“Desde o início que o poema longo faz parte da minha poesia. Isso deve-se à leitura de Campos, de Caeiro, de um Eliot ou de um Pound, mas também de poetas franceses como Saint-John Perse. E resulta de uma necessidade que, nesses anos 60, senti de transformar a escrita poética numa forma de narrativa, ou conto (o Jorge Luís Borges é essencial nesse processo)”. Há aí, assim, a rejeição da poesia formalista, que se empobrece e esgota no processo da sua invenção…  Nesse ponto Antero de Quental e Fernando Pessoa têm um papel fundamental. Antero reconcilia-o com o soneto, e reforça a força da ideia e do pensamento que sempre atraiu Nuno Júdice.  Pessoa transforma a poesia em ficção e o final de Antero corresponde a uma transformação ficcional “naquele banco onde se suicida de uma forma perfeitamente encenada”. Deste modo, “memória, imaginação e ficção são partes essenciais da criação poética, mas se na sua origem não se encontra uma experiência, uma relação próxima com a realidade, o poema soa a vazio, a falso”. E o certo é que a poesia se torna não só uma forma de resistência, mas também de sobrevivência. E Nuno Júdice considera-se beneficiário de um privilégio – “nasci em Portugal e o país pese a essa tendência masoquista da nossa ‘inteligência’ para nos autodestruir, é uma exceção que permite respirar um pouco melhor quando olhamos o mundo. E tem uma grande história literária e paisagens e espaços únicos”… Essa é a natureza viva que constitui matéria-prima de um autor de exceção, cuja descoberta é ainda inesgotável.  


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença