Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  
    Milan Kundera, ca. 1980. Photograph by Elisa Cabot


227. UMA NOÇÃO ESPIRITUAL EUROPEIA


“Com efeito, o que é a Europa para um húngaro, um checo, um polaco? Desde o começo que estas nações pertenciam à parte da Europa enraizada na cristandade romana. (…) A palavra “Europa” não representa para eles um fenómeno geográfico, mas sim uma noção espiritual que é sinónimo da palavra “Ocidente”.

“A Europa geográfica (aquela que vai do Atlântico aos Urais) foi sempre dividida em duas metades que evoluíam separadamente: uma ligada à antiga Roma e à Igreja Católica (…); a outra ancorada em Bizâncio e na Igreja Ortodoxa (…). Depois de 1945, a fronteira entre estas duas Europas deslocou-se para Oeste, e algumas nações que se tinham sempre considerado como ocidentais acordaram um belo dia e constataram que se encontravam a Leste.         

Na sequência disso tomaram forma na Europa três situações fundamentais: a da Europa Ocidental, a da Europa Oriental e, a mais complicada, a da parte da Europa situada geograficamente ao centro, culturalmente a Oeste e politicamente a Leste”. Milan Kundera     

Kundera, em 1983, num artigo célebre denominado Um Ocidente sequestrado ou a tragédia da Europa Central, defendia que os países do centro europeu tinham sido raptados e “anexados” pela Rússia, passando a ser seus satélites. Tratava-se, segundo ele, de uma violação, dado que fazendo parte, pelos seus valores, da constelação cultural ocidental, foram raptados, sequestrados e violentados à força, através da lei do mais forte, pelo espaço gigantesco, neoimperial e poderoso da Rússia, após a segunda grande guerra.     

Interesses políticos e geoestratégicos russos e da União Soviética prevaleceram sobre os do ocidente europeu, nomeadamente os culturais, ficando este amputado de uma parte de si mesmo, estando-se perante um “ocidente raptado”, nas palavras de Kundera.   

Após a queda do muro de Berlim e da União Soviética, a maioria dos países da Europa central e de leste regressaram ao ocidente, integrando um número significativo a União Europeia, num momento em que os acontecimentos relacionados com a guerra na Ucrânia têm gerado uma desconfiança quanto aos dirigentes políticos russos, o que não pode confundir-se com uma errada descrença no que toca à cultura russa que faz parte da História cultural do nosso continente, incluindo o ocidente, quando a Europa culta e civilizada ia de São Petersburgo a Paris e Londres.   

A condenação da invasão da Ucrânia não pode confundir o povo russo, a alma russa, a arte e a sua cultura com as tentações megalómanas dos seus dirigentes políticos, pois o povo, a arte e a cultura russa antepõem-se-lhes e são-lhe anteriores.

Não há dúvidas sobre a importância de Dostoievsky, Tolstoi, Tchekhov, Pushkin, Pasternak, Gogol, Tchaikovsky, Stravinsky, Chestov, Berdiaev, Mandelstam, Akhmatova, Chagall ou Kandinsky na alma e cultura europeia. Toda a grande literatura, artes em geral, música e ópera russa fazem parte de uma noção espiritual europeia (incluindo o cristianismo), que é transversal a toda a Europa, desde o Atlântico aos Urais. 

Se assim é, há que chamar a cultura para a construção de uma Europa do futuro em que a ocidentalidade se complemente com as nossas raízes euroasiáticas, em que a palavra Europa não é um mero fenómeno geográfico, mas, antes de mais, uma noção espiritual e um fator essencial de paz, sem os pensamentos de sequestro belicista da Budapeste de 1956, da Praga de 1968 e da Ucrânia de 2022. 


26.09.25
Joaquim M. M. Patrício