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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  

De 6 a 12 de outubro de 2025


A Escritaria de Penafiel homenageia este ano Maria do Rosário Pedreira e a sua obra.


«Os meus livros são quase sempre terapêuticos. Quer os romances quer os livros de poesia correspondem sempre a momentos em que preciso tirar de dentro de mim coisas que me estão a fazer bem. O romance “Alguns Homens, duas Mulheres e Eu” (1993) correspondeu a uma morte na minha família, a primeira ‘importante’ e pesada. Acho que precisei escrever esse livro para poder falar dessa morte com outras pessoas, que também não eram capazes de falar. Um romance é uma coisa muito exigente. Como dizia uma famosa escritora, num romance os personagens levantam-se connosco de manhã e deitam-se connosco à noite. Eles não nos abandonam um único minuto do romance, enquanto estamos a escrever o romance. O mesmo não acontece com a poesia. Um poema pode-nos ocupar uma semana, mas nunca ocupará três anos”. Quem o diz é Maria do Rosário Pedreira dando-nos um sinal de sinceridade, de exigência e de rigor não só na criação literária, mas também numa espécie de cidadania cultural, que nos obriga a olhar a literatura como um modo de participar na emancipação da humanidade. De facto, quando se recria a vida participamos num esforço vital de nos assemelharmos ao Criador das religiões. Fazemos reviver o “Deus ex Machina” que nos coloca na situação singular de encararmos o mundo da vida não como um lugar de determinismos, mas como um horizonte de liberdade em que cada um de nós procura encenar condições para podermos ser melhor libertando-nos de um cego fatalismo.


Vivendo numa sociedade imperfeita, temos sempre a nosso cargo a tarefa de nos tornarmos melhores, através do respeito mútuo e da liberdade. O livre arbítrio é assim a matéria-prima do romancista mesmo que condene as suas personagens a seguir um qualquer determinismo. Com efeito, o romancista tem a possibilidade de recompor a realidade num diálogo entre ele, as pessoas que cria e o mundo que o cerca. Todos estes ingredientes estão sempre presentes na criação romanesca. Considerando o caso de Maria do Rosário Pedreira, a obra da poeta, da romancista, da ensaísta e da editora, ou seja, descobridora de novos talentos literários, liga-se intimamente à capacidade de desassossegar os espíritos em nome da atenção e da aprendizagem da vida. Ouvindo-a, cada passo, a autora apresenta uma coerente preocupação com o superar da mediocridade e da indiferença. Assim afirmou há pouco: “as redes sociais, como dizia Umberto Eco, deram voz a todos os imbecis e portanto hoje toda a gente acha que pode publicar um livro”. Ora, deste modo, torna-se fundamental considerar a necessidade de ultrapassar o corriqueiro. Para tanto, importa ler, e ler melhor. Só poderemos ser anões aos ombros de gigantes, se soubermos considerar a qualidade da diferença. Compreendemos que a leitura significa o contacto e o conhecimento de quem nos antecedeu – a memória significa entender o movimento da vida, o que recebemos e o que transformamos, naquilo que Edgar Morin considera ser a metamorfose como a ligação complexa entre a raiz e a utopia. Desde onde provimos até ao horizonte de exigência para sejamos melhores.


«Desde muito cedo que escrevo poesia (diz-nos a escritora) e, portanto, diria que é a minha forma presencial de comunicar as coisas que preciso tirar de dentro de mim. Devo dizer que me sinto muito mais criadora a partir do que me é dado, do que uma criadora a partir do zero». No entanto essa tábua rasa não existe. Daí recordar que a literatura em todos os tempos “fala basicamente de duas coisas: o amor e a morte”. Por isso, não seria precisa muita coragem para falar de amor, que engloba todos os desejos… Há um poema, em “Nenhum Nome Depois” (2004), que é bem revelador do grande mistério da comunicação poética de Maria do Rosário Pedreira – o encontro entre a memória e o desejo. Dir-se-ia que a solidão reclama o encontro impossível.  “Pai, dizem-me que ainda te chamo, às vezes, durante / o sono – a ausência não te apaga como a bruma / sossega, ao entardecer, o gume das esquinas. Há nos / meus sonhos um território suspenso de toda a dor, / um país de verão onde não chegam as guinadas da morte e todas as conchas da praia trazem pérola. Aí / nos encontramos para dizermos um ao outro aquilo que pensámos ter, afinal, a vida toda para dizer; aí te / chamo, quando a luz me cega na lâmina do mar, com / lábios que se movem como serpentes, mas sem nenhum / ruído que envenene as palavras: pai, pai …”. É o grande enigma da memória que aqui se apresenta. A solidão e o amor reclamam que a impossibilidade do encontro dê origem à revelação pela palavra da grande ausência, pois “o pesadelo é a vida onde já não posso dizer o teu nome”.

 

Escritora multifacetada e fecunda, encontramo-la na literatura juvenil, que captou muitos novos leitores, mas também na pedagogia, até na divulgação científica, e em tudo o que os livros podem revelar. Aliás, ao ouvirmos as suas palavras cantadas na boca de Carlos do Carmo, de Aldina Duarte, de Ana Moura, de Carminho, de António Zambujo ou de Salvador Sobral, podemos entender que elas vão-nos ensinando sobre a essência lírica do fado de Lisboa, que com o tempo deixou de recordar desventuras, para poder ir ao encontro da lírica ancestral…   


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença