Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  
    Nick Bostrom © The Washington Post/Getty Images


233. UM “HOMO DEUS” LIMITADO


Os clássicos Homo economicus, Homo sociologicus e Homo Sapiens estão em expansão permanente, num processo sempre aberto e contínuo, em busca do infinito, agora com o advento do Homo digitalis e da inteligência artificial.   

Novos desafios emergem com a cibernética, digitalização, algoritmos, manipulação genética, novos fármacos, transplantes, próteses, a inteligência artificial, ajudando-nos a interpelar um futuro que já existe, surgindo toda uma variedade de inovações que  adicionam artificialidade ao natural, obrigando-nos a perguntar: onde acaba a máquina e começa o humano? Ou: onde acaba o humano e começa a máquina?   

O que se pode processar à revelia da nossa sensibilidade emocional e espiritual, em que o critério é o da eficácia, da operacionalidade e utilidade, atuando o nosso cérebro segundo uma programação de algoritmos sem consciência, espírito ou sentimentos, pondo em causa a nossa própria subjetividade e anulando gradualmente, cada um de nós, como cidadão.

Para Nick Bostrom, filósofo e pensador sueco, o objetivo da inteligência artificial é o desemprego total, interpretado no sentido de que ninguém precisaria de trabalhar para ganhar dinheiro, a que acresce um “mundo resolvido”, uma utopia segundo a qual é exequível uma maturidade tecnológica suficientemente adequada se usada, em termos gerais, para fins benéficos, em vez de nos oprimirmos e matarmos uns aos outros, libertando-nos da governação e do labor diário. Fica a questão: o que poderá dar um propósito à nossa vida num “mundo resolvido” em que tudo é feito por máquinas? Sabendo-se que “não fazer nada” é o mais difícil, exigindo toda a nossa energia?     

O progresso científico processa-se a um ritmo tão vertiginoso, que há quem acredite na criação de um processamento de dados - “a Internet-de Todas-as-Coisas” - que dará ao Homo Sapiens tamanha abrangência que o levará à ascensão de uma nova espécie humana, ora divinizada e há muito ansiada: o “Homo Deus”.   

Só que sendo o ser humano finito, com limites naturais intrínsecos (desde logo com um cérebro humano estruturalmente finito, mesmo que com capacidade para imaginar o infinito), não se vislumbra que, algum dia, pelo que racionalmente sabemos, possa ter a veleidade de ser sacralizado como uma alegada divindade do “Homo Deus”, podendo ser vítima da sua própria e inegável mestria.   

Nem se pode falar de um “Homo Deus” que desconhece o que há para além da morte, quando morremos, finda o universo e a infinitude do que nos transcende. São mínimos que se exigem a um Deus.  


07.11.25
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

Uma esperança é algo que se passa no presente e prova que já estamos a viver uma coisa melhor

  
    “The Dynamic Eye”


A proposta é a de que talvez possamos deitar mão de uma realidade que compreenda o que está completo e em aberto ao mesmo tempo.

Nada é idílico. Tudo sai de tudo, mas é preciso ver o que sai de importante quando há desejo, e esse desejo inclui a liberdade e a imaginação.

Os movimentos de superestruturas e o dos grupúsculos que se querem fazer passar por mundo, não são desejos enquanto elementos culturais – o próprio entendimento da sexualidade, a liberdade, a misericórdia, a empatia, o cumprimento do melhor e mais justo bem-estar, sim, são desejos, trazem novas realidades que acossam o que a maioria desejaria viver.

Por aí um caminho!

Um caminho dificílimo que só um bom violino sabe tocar.

E os políticos saberão que um bom violino escapa a qualquer IA?

E se aproveitarmos as reflexões quando tudo pode estar num aberto que não estamos a ver, e do qual não estamos a valer-nos no tempo certo para uma remodelação que arrisque propostas?

Propostas de se viver com menos mitos e menos dogmas e com a possibilidade de mais realidades incodificáveis que não tenham no dinheiro o discurso paranóico da obediência?

E nada resulta no idílico, mas pode-se fazer ainda imensas coisas que noutras situações não estávamos suficientemente atentos e motivados para compreender a sua urgência.

O tempo não é o das gentes se deixarem abafar, nem é tempo de nos deixarmos aborrecermos com tudo.

Que tal operar uma descontinuidade no que de facto estava errado?

Que tal acarinhar o que de facto estava a melhorar as condições de vida dos povos?

Que tal as magias serem uma especial atenção para as realidades-evidência que tanto expõem o quanto há que melhorar face à infelicidade dos mundos dos gritos e dos silêncios?

Por aí um caminho!

Um caminho dificílimo que só um bom violino sabe tocar.

E os políticos saberão que um bom violino escapa a qualquer IA?


Teresa Bracinha Vieira

O ADJECTIVO ‘CIDADÃO’

  


O adjectivo ‘cidadão’ é de atestação recente. O substantivo ‘cidadão’ tinha demorado tempo a tornar-se um nome comum; só adquiriu família muito tarde.  Dessa família faz parte a palavra ‘cidadania’, que é usada nas autarquias e nas universidades em locuções como ‘os grandes valores da –‘, ‘os principais deveres da –‘  e ‘o maior exemplo de –.‘

Como um sistema de águas quentes e frias ou uma toga, ‘cidadão’ e ‘cidadania’ prometem a harmonia de um mundo clássico. Os pormenores desse mundo são difusos. Não será a Grécia Antiga:  um cartão de cidadão não ajuda a distinguir os seus possuidores de quem tem um cartão de bárbaro, composto numa língua incompreensível; e muito menos de quem tem um cartão de escravo, ou uma licença de centauro. Também não é concebível que uma loja do cidadão seja uma alusão à Roma republicana: quem lá vai sabe que não pode presumir obter contratos de cavaleiro, atestados de megera ou uma posição de cônsul.

A palavra ‘cidadão’ refere-se à Revolução Francesa, limite e expoente da imaginação política e administrativa. Trata-se também de uma revolução francesa genérica, que inclui Terror e Termidor, e outros avanços civilizacionais. A palavra sugere por implicação duas grandes ideias: a de que os portugueses vivem em cidades; e também a de que são extraordinariamente parecidos uns com os outros. O arranjo verbal parece apropriado. Mesmo no interior mais remoto e deserto de Portugal, e sobretudo nesses casos, nunca estamos a menos de quatrocentos metros de uma cidade; e mesmo numa cidade nunca estamos a menos de dez palmos de duas pessoas quase iguais. Tal como não há taiga sem tigre, ou tigre sem outros tigres, assim não parece imaginável que haja cidades sem cidadãos; ou que haja cidadãos que não sejam indiscerníveis de outros cidadãos.

Este mundo habitado por cidadãos, cuja principal expressão arquitectónica é o pavilhão multiusos, foi no entanto alterado pelo aparecimento do adjectivo ‘cidadão’. Ao princípio ninguém reparou. Os substantivos que o acompanhavam eram todos masculinos (‘movimento’, ‘empenhamento’, ‘enriquecimento’, ‘tratamento’). Como o substantivo ‘cidadão’ também o era, imaginou-se durante algum tempo que se tratasse de um nome composto;  ‘movimento cidadão’ era afinal pouco diferente de ‘couve-flor’, ‘pata choca’, ou ‘Luís Filipe.’

As dificuldades acentuaram-se porém quando o adjectivo ‘cidadão’ começou a ocorrer com substantivos femininos.  Passou a ouvir-se “participação cidadã”, “convenção cidadã”, ou mesmo “iniciativa cidadã.” O problema não foi com essas coisas, visto que a elas, como a um  centauro, nunca ninguém viu. Tratou-se antes de um problema de morfologia. O cientistas debatem hoje por isso a forma correcta do feminino do adjectivo ‘cidadão.’ Deverá seguir o modelo de ‘temporã’ ou, pelo contrário, o caminho de ‘lambona’? Vários pressentem neste debate uma questão de regime. Os mais pessimistas adivinham o regresso do Terror no conceito de iniciativa cidadona.


Miguel Tamen
Escreve de acordo com a antiga ortografia

CRÓNICAS PÁRA E PENSA

  
    Fotograma de D. Camilo


Alguém quer ser santo?


Vale!
era a saudação latina: Saúde, passa bem, passai bem! Aliás, a própria palavra saudação tem também a ver com saúde e com salvação (salus, salutis). Saudar vem do latim: salutem dare (dar, desejar saúde). Ainda se diz nas aldeias: 'negar a salvação a alguém', com o sentido de recusar-se a cumprimentar uma pessoa. Saudade tem aqui igualmente o seu étimo. Veja-se, por exemplo, a expressão: mandar muitas  saudades. A saudade é aquele sentimento de solidão que tem na sua base a falta da pessoa querida. Ter saudades e enviar saudades é aquele desejo de que quem partiu e anda longe, esteja onde estiver, passe bem... Por sua vez, saúde refere-se sempre àquela situação em que o ser humano na sua totalidade está bem. A saúde tem a ver com o todo holisticamente considerado, numa situação de integração e equilíbrio harmoniosos: saúde somática, saúde psíquica, saúde social, saúde ecológica, saúde espiritual, implicando, portanto, uma relação sã consigo, com os outros, com a natureza, com Deus...

Tudo isto por causa do dia 1 de Novembro. É possível que muitos portugueses pensem que esse dia é feriado nacional por causa dos mortos. Mas não é verdade: é feriado nacional por causa da celebração da Festa de Todos os Santos.

Aí está algo que praticamente ninguém que alguma vez tenha pensado nisso (mas quantos pensaram?) quereria ser: santo. Até porque os santos com os quais habitualmente contactamos julgamos que são aquelas figuras geralmente pouco belas, torcidas e até por vezes ridículas que vemos em muitos altares das igrejas e que são levadas a “passear” pelas ruas uma vez por ano nas procissões das romarias. Mesmo quando nos reportamos àqueles homens e àquelas mulheres reais de carne e osso, que aquelas figuras quereriam representar, vemo-los a maior parte das vezes como beatos, tristes, a bichanar orações, desagradados com a vida, deprimidos, ascetas a quem não é permitido apreciar as coisas boas e belas da existência...

No entanto, se pensássemos bem, é mesmo isso que queremos ser: santos. Porque santo, também etimologicamente, tem a ver com saúde. E o que é que nós fazemos sem saúde? Santo e são têm a mesma raiz. E isso tanto nas línguas latinas como nas anglo-saxónicas — dizemos: aquele homem está são e também dizemos São João; em inglês: holy (santo), health (saúde), em conexão com the whole (o todo harmónico já apontado)... Há sempre essa conexão entre saúde, santidade, salvação e totalidade harmónica. Só estamos sãos, se tudo em nós estiver bem: uma dor da alma ou uma simples unha encravada colocam-nos em desequilíbrio. Ser santo significa, repito, harmonia toda: estar de bem consigo, com os outros, com o mundo, com a natureza, com o divino... Assim, por exemplo, quem despreza o mundo não é santo. O desequilíbrio é o contrário da santidade, que consiste precisamente na plenitude harmónica e expansiva.

De qualquer modo, nos dias 1 e 2 de Novembro, o que, de facto, lembramos mais são os mortos. Nas nossas sociedades, urbanas, científicas e técnicas, onde o que mais se valoriza é o aparecer, o parecer, o dinheiro, a eficácia, a juventude, o light, o ter, o poder, o êxito, e onde, por isso mesmo, a morte é tabu e sobre a morte se mente às crianças e mentimos a nós mesmos e uns aos outros, permite-se até certo ponto que os mortos, os defuntos, surjam dois dias por ano no convívio dos vivos. Os cemitérios enchem-se, embora cada vez menos. Aí, há uma lembrança, uma recordação. Talvez se erga, sem palavras, uma prece. E surge uma inquietação: o que é o Homem? O padre António Vieira respondeu: “pó levantado”. Com isso, ele queria apelar à humildade, aquela humildade que não anula a dignidade. Pelo contrário: o ser humano humilde é o ser humano (homem ou mulher) bom, digno e verdadeiro. E precisamente a bondade, a dignidade e a verdade no combate pela justiça, a fraternidade e a paz, pertencem ao núcleo do que se chama santo, também em ligação constituinte com a esperança: no meio das dúvidas, perplexidades, injustiças e horrores, a esperança da plenitude da vida eterna em Deus...


Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
1 de Novembro de 2025

A VIDA DOS LIVROS

  

De 3 a 9 de novembro de 2025


No âmbito da reflexão serena e fundamentada sobre os 900 Anos de Portugal, publicamos hoje um texto sobre as nossas raízes mais antigas, publicado há dias pelo “Observador”.

 

 D. Afonso Henriques


Para compreendermos o período da formação de Portugal devemos não só ter presente as raízes antigas (de um complicado cadinho ou melting pot), nas quais geografia e história se associam, mas também a chave cronológica apresentada por José Mattoso para o momento crucial da formação da nacionalidade, onde encontramos seis períodos, ao longo dos quais vamos verificando a consolidação gradual da identidade política social e cultural portuguesa, enquanto realidade una e múltipla. No primeiro momento, 1096-1131, o poder condal começou a organizar-se à semelhança das monarquias com o estabelecimento de uma relação direta e estável com a aristocracia senhorial e as comunidades municipais, criando-se uma nova instância política que reunia os condados de Portucale e de Coimbra (tendo este último sido aliado dos reinos muçulmanos desde as invasões de Almançor – c. 938-1002; e governado pelo moçárabe Sisnando – Sisnando Davidis, falecido em 1091). Entre 1131 e 1190, D. Afonso Henriques, vencedor de D. Teresa em S. Mamede (1128), à frente dos barões portucalenses, estabeleceu a sua sede estratégica em Coimbra e ampliou o território português para mais do dobro, sofrendo, no entanto, a forte pressão das invasões almorávidas, na tentativa de recuperação dos territórios perdidos. De 1190 a 1223 houve a ocorrência da crise económica em resultado dos maus anos agrícolas, tendo D. Afonso II lançado medidas de centralização do poder real, com reforço da aliança aos concelhos, opondo-se à influência fragmentária do alto clero e da nobreza. Em relação ao período 1223-1248, houve uma fase muito difícil, pelas repercussões de uma nova crise económica e da peste, pela eclosão da guerra civil, caracterizada pela extrema fragilidade do poder de D. Sancho II e pelas contradições no seio da nobreza senhorial. Relativamente aos anos 1248-1279, D. Afonso III, o conde de Bolonha, emergiu fortalecido da guerra civil e prosseguiu, com muita determinação e sistematicamente, a ação centralizadora do Estado contra a afirmação dos senhores da terra e do clero - ao lado dos concelhos -, completando a conquista do território até ao Al-Gharb. Por fim, de 1279 a 1325, desenvolveu-se a ação de D. Diniz, desde a continuidade centralizadora do poder real e da fixação de fronteiras (Tratado de Alcanizes, de 1297) até ao reforço do poder militar e naval com a nomeação do genovês Manuel Pessanha como Almirante das Armadas, passando pela adoção da língua portuguesa na chancelaria, pela fundação da Universidade Portuguesa (o Estudo Geral), pela afirmação da influência do Direito Romano, pelo entendimento de que os habitantes do Reino são vassalos naturais do rei, sem intermediações (como defendera já Afonso X), pela proibição dos nobres armarem os cavaleiros vilãos dos concelhos ou ainda pela criação da Bolsa de Mercadores e pela intensificação do comércio com a Flandres, Inglaterra e França.

Através deste caminho, de afirmação muito segura do Reino, fica bem explícito o risco acrescido das missões cometidas aos Condes de Portucale na conquista e consolidação de posições, em confronto direto com as forças muçulmanas. E assim o Conde D. Henrique e os seus sucessores garantiram, através da reunião dos poderes locais, um fator de segurança e de continuidade com resultados positivos na consolidação do poder, de que beneficiaram os reinos cristãos, em contraste com as divisões e o descontentamento existentes sob o domínio almorávida… Importa lembrar, aliás, que a criação do condado portucalense destinou-se "não só a criar uma instância de comando militar capaz de fazer frente às investidas almorávidas, que se tornaram especialmente perigosas nos anos de 1093 e 1094, mas também a vencer a resistência regional à autoridade de Afonso VI. De facto, a entrega do condado a um francês protegido por Cluny e a nomeação de vários bispos franceses, logo de seguida, para as dioceses de Braga e de Coimbra, constituíram um conjunto de medidas com propósitos políticos intimamente relacionados entre si!". O sucesso militar e político do Conde veio, deste modo, a criar uma autoridade indiscutível que permitiu ao Reino de Portugal surgir ao lado de Leão e Castela e de Aragão como protagonista na segunda vaga das autonomias dos reinos cristãos. Recorde-se que a primeira tinha ocorrido entre 950 e 1050, tendo como atores fundamentais Castela, Aragão e Navarra.

Compreende-se a importância de o Norte Atlântico ser "a região por excelência do regime senhorial" e de as áreas mais montanhosas do Norte Interior e do Sul Mediterrânico coincidirem com a "implantação maciça das comunidades organizadas em concelhos". Afinal, a receita para o sucesso político de Henrique de Borgonha e dos reis portucalenses advém da arguta compreensão desta diferença e desta complementaridade. Há, de facto, uma "dialética constante entre os vetores da divergência e os movimentos da integração". E a integração acaba por prevalecer, por força das migrações, do progresso económico ou da organização social e do poder político. Eis como José Mattoso, com base numa investigação essencial que articula os diversos elementos já conhecidos, faz a ponte entre as duas influências portuguesas - superando, assim, o velho entendimento dos Nobiliários, sobretudo preocupados com o nexo gótico e com o predomínio exclusivo dos reinos cristãos. O Estado, que precedeu a Nação, progrediu para além desse entendimento - compreendendo os mais influentes monarcas portugueses a importância das diferenças sociais e étnicas, do moçarabismo, da fragmentação dos reinos taifas e do descontentamento crescente que ia germinando no sul.

O papel da guerra externa foi, assim, fundamental para a consolidação da nacionalidade. E o facto de o reino ser de fronteira pesou fortemente na relação exigente entre o estímulo e a resposta. Além disso, a expansão para sul permitiu resolver a conflitualidade entre os membros da nobreza, dando-lhes novos espaços de influência. Os excedentes demográficos de Entre-Douro-e-Minho puderam ser absorvidos e as importantes cidades conquistadas (nas quais avultam Santarém e Lisboa) tornaram-se centros económicos muito relevantes e novos mercados para a sociedade agrícola e comercial. O facto dos concelhos moçárabes (base do municipalismo, segundo Herculano) se terem deixado encabeçar por D. Afonso Henriques tornou-se, por outro lado, garantia de estabilidade e de uma boa defesa fronteiriça - baseadas na cedência ao rei de prerrogativas na justiça e no fisco, em troca de não terem de se submeter aos poderes senhoriais e da Igreja. Em bom rigor, o Estado nasceu, porém, apenas com Afonso II, e com o seu chanceler Julião, sendo ameaçado pela expansão senhorial do reinado de Sancho II, a que Afonso III pôs cobro. É a consciência nacional que surge, encontrando as suas fronteiras e os seus símbolos - que deixam de significar a identificação de um poder real, para representar a identidade dos portugueses… O método de Identificação de um País recusa as explicações tradicionais ou mitológicas. As características da "portugalidade" são vistas como fenómenos complexos que não podem resumir-se a um dilema estreito entre os que "tendem a estreitar os laços com a Europa" e os que projetam "Portugal para fora dela". Os traços da nossa identidade baseiam-se num equilíbrio ou numa síntese que exige a compreensão das diferentes raízes e de um percurso histórico longo e multifacetado. 


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

ANTOLOGIA

  


ONDE HABITARÁ O SEGREDO?...
por Camilo Martins de Oliveira


Minha Princesa de mim: 


Cheguei a esta idade em que dizer "lembro-me de que...quando...etc..." já não será garantia de qualidade e origem, e até talvez tenha ultrapassado o prazo de validade. Mas, decrépito reacionário que seja, talvez por isso goste sempre muito deste recordar que é viver, e, mais ainda, do avivar da memória que só a confiança da nossa confidência (perdoa-me o aparente pleonasmo) pode oferecer-nos. Pois que, na verdade, do que lá vai não será nunca a memória intelectual - que é seletiva - o mais verdadeiro testemunho. Antes permanece o que o nosso coração guardou. E bem percebeu Pascal as razões do coração. E sábia era minha Mãe ao pedir para este filho um coração puro, pois só um coração assim quanto possível guardará na memória o trigo - que é, singelamente, o bem que outros nos quiseram e o bem que mesmo a inimigos conseguimos desejar. Esquecendo o joio. Passadas sete décadas, todos os dias recorro, apesar de muitos fracassos, a esse exercício de limpeza do olhar íntimo, pois só no coração nos é legítimo pensarsentir. Hoje ainda, uma amiga, pessoa de curiosas sintonias, me desejou um dia com a cor que eu desejasse. Não lhe respondi, mas dir-lhe-ia que todos os dias quero o arco-íris. Não como Calígula a pedir a lua a sua mãe, mas para sentir as cores de todos. Como Noé viu a paz universal num feixe de tons. A harmonia não tem sentido possível na uniformidade, mas só no acontecimento das diferenças que unem a terra ao céu. Quando, depois da tempestade, a incidência da luz reúne as cores numa aliança. Falava-te de lembranças? Talvez dessa, de um encontro com Stravinsky e Cocteau, por via dos Maritain (há quantos anos?), em Paris, por ocasião de um "Oedipus Rex". Escrevi-te a referi-lo e, rio-me eu agora, já não te lembras? Desde que conheço a sua música, ouço, escuto, Stravinsky com atenção indivisa. Os primeiros discos que comprei, daqueles que facilmente se riscavam e partiam, foram, um de Beethoven, outro de Stravinsky. Do primeiro, a 5ª e a 8ª sinfonias (que ainda hoje, em silêncio, canto de cor, imitando instrumentos). Do russo, "O Pássaro de Fogo" e a "Sagração da Primavera". Se tivesse ensurdecido, como Beethoven, Stravinsky teria deixado de compor. Era um artesão, precisava de martelar e ouvir o piano, o instrumento produtor de sons, para trabalhar com eles. O que verdadeiramente o prendia ao exercício de fazer música era, não só o gosto inato pela organização matemática dos sons, mas sobretudo a massa sonora, como o barro para o oleiro ou o metal para ourives ou ferreiro. Ter-lhe-á sido certamente útil o rigor técnico obrigado pela sua professora de piano, mas foi crescendo pelo seu gosto da procura dos sentidos possíveis dos sons, através das improvisações a que se entregava. E deve muito ao acolhimento que o grande orquestrador que Rimsky-Korsakov era lhe reservou, com paternal amizade. Gosto de pensar na música como peregrinação por caminhos desconhecidos e, todavia, tão percorríveis no íntimo de nós. O coração da música não está tanto nessas melodias divertidas e fáceis, que superficialmente captamos, por qualquer reflexo nervoso (como, aliás, nos, também necessários, copito a mais ou anedota pícara). Estará mais nessa atenção à possibilidade de tirar, das matérias que compõem as coisas várias deste mundo, um som inesperado, revelador da milagrosa essência do ser. Recolhi-me há pouco, por uns nove minutos, com as sinfonias para instrumentos de sopro, compostas por Stravinsky aos 38 anos (em 1920). Chamam-se sinfonias, com sentido etimológico: fonemas que soam simultaneamente (e perdoa-me mais um pleonasmo...). Foram compostas em homenagem a Debussy, mas são "vintage Stravinsky", e do mais puro. Tocam vinte e três sopros (doze madeiras e onze metais), a sinfonia é compacta, estruturante, nada há nela de estridente ou vadio, é intimamente hierática, mas para reunir. Dez anos mais tarde, ainda em movimento místico que o trouxe de regresso à Igreja Ortodoxa Russa, para celebrar o 50º aniversário da Boston Symphony Orchestra , Igor Stravinsky apresenta a Sinfonia dos Salmos, composta com textos em latim, tirados da tradução "vulgata" de S. Jerónimo. Diz-se que a ideia lhe teria ocorrido em Pádua, em 1926, quando ali assistia às comemorações dos 700 anos de Sto. António de Lisboa. Mas, Princesinha, disso e mais te escreverei se me refrescar a memória. Por agora, vou escutar o "Oedipus Rex", com texto francês, para o narrador, que Jean Cocteau foi buscar a Sófocles, e traduções latinas, para o recitativo e canto da ópera-oratório, devidas ao padre jesuíta Jean Daniélou, mais tarde teólogo no Vaticano II e cardeal. Olha: talvez te fale também dos (des)entendimentos de Stravinsky com Cocteau, e sobretudo com André Gide (no caso da "Perséphone"): ou de como nem sempre é imediato o acordo das palavras e da música. Será que vou escutar o Édipo, só porque te falei na memória e penso que o nosso maior enigma é o esquecimento? Dás cabo de mim, Princesa.


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 22.11.13 neste blogue.  

O AMOR DOS LIVROS E DA CULTURA

  
    José Afonso Furtado © Fundação Calouste Gulbenkian


José Afonso Furtado foi um exemplo de inteligência e entrega plena ao serviço público da cultura. Foi um estudioso e um militante sereno e determinado da promoção do livro e da leitura, para além do prazo curto. O produto do seu labor e talento está bem vivo, e todos quantos lidam com o mundo dos livros e do conhecimento sabem o muito que beneficiaram do seu contacto. O trabalho que realizou na Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian (1992-2012) foi notável, na modernização tecnológica e na criação do serviço de referência, completando o que também fez na rede nacional de bibliotecas públicas municipais. Lembramo-nos da sua obra fundamental A Edição de Livros e a Gestão Estratégica, que continua ser um livro referencial. Quem o conheceu, sabe quanto era entusiasta, generoso, disponível e exaustivo no estudo e compreensão daquilo que o interessava. A partilha de conhecimentos era motivo de genuíno prazer, e todos quantos beneficiaram do saber que cultivava não podem esquecer o que lhe devem. Mas, além, da entrega à causa do livro e da leitura, José Afonso Furtado foi um artista, um criador, com provas dadas no domínio da fotografia. A sua obra põe-no no centro da melhor criação do seu tempo. As suas paisagens serenas e rigorosas permitem uma inevitável ligação à terra e ao tempo. Cada fotografia sua obriga-nos à observação atenta do conjunto e do pormenor. Dir-se-á que uma paisagem ganha, assim, todo o esplendor, tornando-se verdadeiro diálogo entre humanidade e natureza.

Ao seguirmos o seu caminho profissional, encontramos a presidência do Instituto Português do Livro e da Leitura (1987-91), a participação no Conselho Superior das Bibliotecas, a docência nos cursos de ciências documentais e de técnicas editoriais e na disciplina de Sociologia do Livro e da Leitura. Participou na Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses e fazia parte da Comissão de Honra do Plano Nacional de Leitura. Como prova da profunda atenção que dava á evolução do mundo digital e da comunicação cultural, foi referido em 2011 na revista “Time” como um dos mais influentes utilizadores do Twitter (hoje X). Na vasta bibliografia que nos deixou conta-se O Que é o Livro (1995), Os Livros e as Leituras. Novas Ecologias da Informação (2000) ou Uma Cultura e Informação para o Universo Digital (2012), além de Canção das Crianças Mortas (com Clara Pinto Correia, 1989). Sobre fotografia são inesquecíveis Das Áfricas (com Maria Velho da Costa); Os Quatro Rios do Paraíso (com Clara Pinto Correia e Cristina Castel-Branco); Mundos da Fotografia – Orientações para a Constituição de uma Biblioteca Básica (com Ana Barata); Contaminações. Minas Abandonadas – Fotografias 1994-2009 (2019). De modo emblemático, sobre o Livro, a sua importância e fragilidade, José Afonso Furtado disse de modo sublime: “Nestes momentos de turbulência muitas predições já falharam, muitos fenómenos vertiginosos surpreenderam a comunidade dos especialistas. (…) As verdades inquestionáveis mais não seriam do que um compêndio de banalidades. Tal como outros, em outros tempos, ‘navegavam sem o mapa que faziam’, também agora ‘os homens sábios tinham concluído / que só podia haver o já sabido: / para a frente era só o inavegável’, como escreveu, admiravelmente, Sophia de Mello Breyner Andresen. Resta-nos, então, navegar os novos espaços”.   


GOM