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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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O «VIRA» NÃO É SÓ MINHOTO…

 

Minha Princesa de mim:

 

Minha de mim não é fórmula, muito menos enfática ou pleonástica. É, ousarei dizê-lo?, a expressão aparentemente contraditória do amor que te tenho: pois te chamo minha e sei que não te possuo, nem possuir desejo, e logo digo de mim, porque de ti sou. Possuído não, mas descoberto, encontrado pela ternura que te achei. Nem há aí desejo, nem direitos, nem qualquer precedência. É um encontro, há uma companhia. Um segredo partilhado, quiçá exclusivo, não por egoísmo, mas por haver assim mistérios em que só os seus íntimos podem comungar. Silenciosos entendimentos que são fidelidades inabaláveis. O coração humano pode ser generoso e discreto. Sobre um amor fundo assenta a fortaleza donde estenderemos aos outros todos a mão fraterna e o amigo abraço. Nenhuma generosidade se aguenta sem um coração ancorado. E a âncora do coração é discreta, submersa aos olhos do mundo. Menino não direi, era já moço, escutava, como já te disse, de alma aberta e ouvido atento, Beethoven e Stravinsky. A 5ª e a 8ª de um, a "sagração" e o "pássaro" do outro, foram os primeiros discos que comprei. Fui depois crescendo pelos outros todos, alemães, russos e franceses... Custou-me entrar por Wagner, mais tarde por Messiaen. Tive entusiasmos fáceis, acabei apaixonado pelos caminhos todos da música, pela inesperada matemática das mais variadas associações de sons. Creio que, para entendermos (como ouvir e perceber, no duplo sentido do "entendre" francês) música, é necessário repetirmos compassos de espera, pois que sem momentos de silêncio facilmente a música será tomada por ruído. Como nesses estádios de hoje, onde se escravizam multidões a uma barulheira infame. O barulho não pensassente, nem revela verdades sólidas do coração. Disfarça e esconde. Por isso gritam tanto os políticos, e todos os que discutem sem razão. A música medita e abre-nos; o ruído ensurdece-nos. Tenho amigos que detestam Bach por achá-lo repetitivo (?). Que diriam eles desta peça de música chinesa, transcrita no século XVIII pelo padre jesuíta Joseph-Marie Amiot, em Beijing, e que com tanto gosto escuto agora: "Hua yinyue jing yinyue pu", ou seja "À sombra das flores sob a lua silenciosa"? Acho-a muito bonita, sinto nela as flores que perfumam a lua e esse silêncio manso que nos sossega a alma. Mas para cá chegar tive de me calar e dar tempo ao tempo. E essa ascese foi já o meu primeiro benefício. Porque será que o "premier divertissement chinois", do Padre. Amiot, o "Tsien fung yun" ou harmonia dos ventos que sopram pela frente,aqui me lembra quase Haydn, e ali umas melopeias mouras que ouvi, ao ar livre de noites cálidas, em Fez e Marraquexe? E porque será que essa ocorrência  -  que me poderia levar ao flamenco andaluz ou ao cante alentejano  -  me traz tão vivamente à memória do coração dias de comunhão silenciosa e musical com fulas e malinké em aldeias distantes, no Senegal e na Guiné? Ao som das korá, segréis cantavam epopeias guerreiras e lamentos de amor... Sem perceber palavra alguma, nem sempre entendi se estava no amor ou na guerra,em ambos se manifesta o choro e a fúria. Ou não fosse Cupido, esse menino que de amor nos fere com sua flecha, filho de Vénus e de Marte... Com tudo isto, enquanto vou escutando, tocada por músicos chineses, uma sonata "sino-barroca" do setecentista Pedrini  -  padre missionário tão italiano em Beijing  -  volto ao começo desta carta, mas para que não seja eu, seja sim o árabe Djamil, poeta nómada dos finais do século VII, a dizer-te como há sempre vida num coração que morre:

          "Antes de mim morreu

          o irmão do leopardo;

          e o que foi seu dono,

          garridamente vestido,

          se desfaz em discursos fúteis:

          contenta-se com ter,

          por única posse,

          essa tristeza.

          Julgava eu,

          ou talvez o soubesse
          quase,

          que ela me levaria
          até

          à nascente de água fresca

          em que outros se saciaram.

          Àquele que já se chega à noite

          da sua vida,

          pouco lhe importa

          não ter bordão algum

          por entre os bens deste mundo,

          se tu lhe fores sua.

   E hoje, assim, Alteza, por aqui me fico. Noutro dia te direi da Senhora Murasaki e da sua "Lenda de Genji". Ou de como, no Japão do século XI, uma mulher escreveu sobre o tempo que passa e as marcas que nos faz. Como, oito séculos mais tarde, Marcel Proust em "À la Recherche du Temps Perdu"... Mas não será o tempo que se perde. Perdemo-nos nós, tantas vezes. E todavia, nunca desistimos de procurar a tal estrelinha do norte. Essa a que o Alberto, cantando, dizia: "Ó estrelinha do norte, espera por mim, que eu já vou. Alumia o meu caminho, pois que o luar me enganou!" Dou-te a mão.

Camilo Martins de Oliveira