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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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NATAL E COSMOGÉNESE…

 
Ainda Meu Caro José Saramago:
No seu Caderno , o José reproduz a abjuração de Galileu aos seus "erros", feita sob pressão da Inquisição. O sábio, cuja injusta condenação seria anulada pela Igreja quase quatro séculos depois (!), teria todavia murmurado a certeza da sua evidência: E pur si muove... Com essa confidência abre Teilhard de Chardin o seuL´Avenir de l´Homme, cujo editor, aliás, lhe pôs, como cabeçalho, um passo de uma carta do autor à Senhora Georges-Marie Haardt: Todo o porvir da Terra,como da Religião, me parece suspenso no despertar da nossa fé no futuro...Como vê, nem todo o pensamento cristão, católico, apesar do peso de uma certa inércia "conservadora" e "beata", é necessariamente um "arrumar de botas".Conta o jesuita Pierre Teilhard de Chardin que, menino ainda, procurava pelos campos circundantes, até vasculhando a terra, objetos e fragmentos perdidos de ferro, desde chaves de charrua a pedaços de obus. Eram-lhe tanto mais interessantes e agradáveis quanto mais duros e maciços fossem, sugerindo inalterabilidade e duração. Sorrindo dessas buscas e descobertas da infância,confessou mais tarde que, afinal, procurava a consistência: A Consistência: tal foi, indubitavelmente, para mim, o atributo fundamental do Ser. Diz o mesmo Teilhard em L´Avenir de l´Homme: É evidente que o Mundo, no seu estado atual,é o resultado de um Movimento. Quer olhemos para a posição das camadas rochosas que envolvem a Terra, ou para o agrupamento das formas vivas que a povoam, ou para a variedade das civilizações que dela partilham o domínio, ou para a estrutura das línguas que aí se falam, a mesma conclusão se impõe: em cada ser se apanha um passado, -  nada é compreensível a não ser pela sua história. "Natureza" equivale a "devir" , fazer-se: eis o ponto de vista para onde a experiência irresistivemente nos empurra. Que poderemos dizer senão que o Universo teve de, pelo menos dantes, mexer; - que foi plástico; -  que adquiriu progressivamente, não só em pormenores acidentais, mas na sua própria essência, as perfeições que hoje o coroam. Nada há, nem mesmo o psiquismo mais elevado que conhecemos, a alma humana, que não entre na lei comum. Também ela, essa alma, ocupa um lugar perfeitamente definido na ascenção gradual dos vivos à consciência; em consequência, também ela teve, de uma ou doutra maneira, de aparecer por virtude da mobilidade geral das coisas. Desta génese progressiva do Universo se apercebem todos os que olham de frente para a Realidade, numa claridade que torna impossível qualquer hesitação. Digam o que disserem os adversários que ainda se agitam num Mundo imaginário, o Cosmos moveu-se dantes, todo ele, não só "localiter" mas "entitative". Isto é indubitável e não voltarei a discuti-lo.  - Mas será que ainda mexe?  -  Abordamos aqui a verdadeira questão, a questão viva e ardente da Evolução. Há quem diga que Teilhard seria um dos pensadores visados pela encíclica Humani Generis de Pio XII  -  que foi detonadora das medidas de interdição impostas pelos superiores gerais dos jesuítas (Jansens) e dominicanos (Browne) aos teólogos das escolas de Fourvière (Henri de Lubac) e Le Saulchoir (Chenu e Congar), todos, uma década mais tarde, teólogos do Concílio Vaticano II  -  no caso de Teilhard talvez mais por precaução relativa ao recurso às ciências "profanas", do que por razões teológicas. Aliás, este jesuíta não era nem filósofo nem teólogo. Foi paleoantropólogo, um dos descobridores do sinantropo ouhomem de Pequim. Quanto ao mais, definia-se por uma visão espiritual do mundo e da matéria,era um místico. O seu "evolucionismo" é essa visão de um processo crescentemente complexo que vai construindo o real desde a matéria inorgânica até à noosfera (ou reino do espírito), passando pela biosfera. Tal evolução conduzirá tudo ao ponto ómega, ao en pâsi panta Theos, de que fala S. Paulo na 1ª Carta aos Coríntios: Erit in omnibus omnia Deus,Deus tudo em todos. Aí surge uma suspeita de panteísmo, como aquela que condenou à fogueira da Inquisição,no século XVI, o dominicano Giordano Bruno, que aliás perfilhava as teses da "nova astronomia", as tais que Galileo Galilei também defendeu. Frei Giordano foi, primeiro, excomungado, não só pela heresia que era considerar o Sol, não a Terra, o centro do nosso sistema astral, mas pelas suas teses evolucionistas (?) e panteístas (?):
( 1.) O Universo é infinito em extensão e diversidade,e em lado algum há permanência,pois tudo é vida,de que a mudança é condição necessária; ( 2.) Deus é simultaneamente transcendente e imanente, fonte do Universo, e nele sempre presente; (3.) Assim, o Universo é um vai e vem da natureza divina, sendo que o espírito humano, no seu exercício de procura da unidade, simplicidade,imutabilidade e eternidade na complexa mutação das coisas temporais, vai desenhando o seu regresso a Deus; ( 4.) Através do progresso da sua razão e inspirado pelo amor poderá finalmente o homem unir-se eternamente a Deus. No opúsculo Le Christique, sua última obra, Teilhard fala da Amorização do Universo...  ...e lá,sob as espécies de um Divino incarnado,uma Presença tão íntima que exigia, para se satisfazer e me satisfazer, ser,por natureza,universal. Duplo sentido (e sentimento) de uma Convergência cósmica e de umaEmergência crística que, cada uma a seu modo, me invadiam inteiramente... Em 2012, neste mesmo período do Natal, escrevi, para o blogue do Centro Nacional de Cultura, umas crónicas acerca do sermão sobre a Natividade do Senhor, que Frei Tiago Voragino, dominicano do século XIII e arcebispo de Génova,publicou na sua Legenda Aurea. Ali, a manifestação do Natal de Jesus é feita por cinco ordens de seres ou criaturas: os que são puramente materiais (corpos opacos, transparentes ou translúcidos, e corpos luminosos como as estrelas), que só têm existência; em seguida, por criaturas que têm existência e vida, como as plantas e as árvores; depois, por seres com existência, vida e sensações, como os animais; e ainda pelos que, além da existência, vida e sensações, são dotados de razão, como os seres humanos; finalmente, a incarnação de Deus foi proclamada pelos anjos, que,além dessas quatro qualidades dos homens, possuem também o intelecto. Na altura, lembrei-me de chamar Cósmico a esse Presépio de Voragino. E assim o sinto hoje,nesta manhã luminosa em que, a exemplo de S. Francisco de Assis, chamo meu irmão ao sol...  E anda por aí outro Francisco que, sendo Papa e não sendo marxista, não se ofende quando disso o apelidam. Diz que, embora pense que a doutrina marxista está errada, tem conhecido muitos marxistas que são homens bons. Eu também. E pensossinto que o José poderia ter sido  -  e talvez até fosse  -  melhor homem do que parecia ou quis parecer. Foi, por vezes,empedernido, propositadamente desagradável até. Mas também praticou o bem. E escreveu coisas muito lindas, e outras que me interrogaram e fizeram pensar. Parafraseando uma quadra do Fernando Pessoa, dir-lhe-ia, a si, lembrado da gralha do seu Cerco de Lisboa, e trocando eu um não por um só: Pouco importa de onde a brisa traz o olor que nela vem: o coração só precisa de saber o que é o bem.
   
Camilo Martins de Oliveira