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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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QUO VADIS?...

 

Minha Princesa de mim:

 

Limpando caixas e gavetas, vou percorrendo papelada amarelecida, coisas que ficaram, por esquecimento umas, para lembrança outras. Todas já sem importância alguma, nem sei se jamais a tiveram: apontamentos de reuniões talvez discutidas e sábias,sentimentos deixados nos papéis delas  --  que nem só do ganhapão vive o homem  --  crónicas impressas em jornais vários, entrevistas conversadas e fotografadas. E muito relatório, Deus meu, tanto relatório, com avisos, alvitres e outras opiniões e sugestões de que poucos se deram conta... Foram, por três décadas, mil e quinhentas páginas metodicamente escritas em cada ano. Enterro-as. Sorrio. Haveria razão em muitas, mas eu não quero ter razão. Menos ainda quero tê-la tido, se acaso a tivesse. O que foi deitado fora, fora também ficou de mim. Quero morrer pobre, sem nada ganho. Feliz como um lírio. Respigo apenas, aqui e ali, coisas mais íntimas, talvez pobremente ditas, mas por isso mesmo mais cheias de mim. Andei pelo mundo, estive diferentemente, mas coisas houve que me calaram fundo e não desminto. Somos, misteriosamente, o que nos chamámos, essa vocação que nos foi desenhando e sedimentou, no íntimo pensar do nosso coração, tudo o que, no nome único que Deus nos deu, Deus nos deixou dar.

   Cheguei à idade de amar a minha imperfeição, como quem se aceita. Não sou melhor nem pior. Sou a graça que Deus me deu e a graça que não vi ou não soube aceitar. Do mérito ou desmérito não sou nem serei juíz. Tudo é graça. De meu, se algo tenho, é só a minha limitação. E nem essa posso descontar-me. Seja eu feliz assim, e é meio caminho andado. Busquei-me sempre. Errei muito, talvez também tenha acertado. Não me repreendo, só espero que Deus me tenha encontrado. Assim, minha Princesa de mim, me confio nestas vagas saudades que guardei do que sou ainda. Foram escritas há meio século,e mais,quase todas. Fui obedecendo a um impulso secreto,que empurrava o meu pensarsentir para o manuscrito. Nunca me inclinei a publicar o que me tomava todo, tampouco alguma vez o confidenciei. Destruo esta tarde umas folhas redigidas na caligrafia ainda legível dos meus quinze anos,quando começava a ler filósofos. Estas traduziam o meu entusiasmo por Espinosa e Ortega y Gasset,que nessa idade eu lia, arrumando-me com eles pelo princípio tomista de ser necessário distinguir para compreender... Já cheio dos Pessoa, de Mauriac, Bernanos, Camus, Graham Greene,e dos grandes mestres russos. E ainda Simone Weil, ou José Régio. Fascinava-me a imensidão e o silêncio de Deus, o mal presente e a harmonia prometida. O pecado e a graça, o misterioso caminho da misericórdia. Brincava muito, militava, lutava, namorava, era social. Mas era eu e a minha circunstância. Nela estava, diferentemente sendo, afinal, sempre o mesmo. De tudo isso me disse, no longo apontamento que hoje rasgo. Começava assim: só no silêncio somos verdadeiros...  E terminava: como palavra sigo, sem morada... Pelo meio, ambíguo, palavra e gesto me descubro, ia escrevendo, em francês, um romance, cujo protagonista se chamaria Jerónimo: Jerónimo tinha uma particularidade curiosa: era sem recordações. O passado, para ele, não existia, a não ser enquanto presente, ou talvez sempre no futuro. As suas sensações não eram novidade e, todavia, eram sempre novas. Delas tirando prazer ou sofrimento, assim as reconhecia no mais antigo de si mesmo. E nunca se surpreendia por ser presa inteira de tal encanto. Encantador seria ele também, por sempre ser um estrangeiro. Não lhe escapavam pormenores,mas acontecia-lhe que,ao concentrar-se no objecto da sua atenção,se perguntasse: "Comment n´avais-je pas remarqué que Thérèse a les yeux bleus?" Não era um libertino, muito pelo contrário: era a personificação do pudor. Simplesmente, como amava tudo e todos,tinha um coração transparente como aquele dia de sol com que sonhamos. Descobri-lhe o coração: era uma praia onde o mar vai deixando conchas que já foram cheias, e onde nos sentamos na areia, a falar sozinhos... Sete anos depois, quando saiu da vida do mundo para um convento, esse garoto escreveu:

        Entre duas esperanças,

        meu coração diz que não.

        Mas pensando,diz que sim.

        E é com saudade de mim

        que parte meu coração.

        Se ficasse não veria

        nem sequer a luz do dia

        quando varre enfim a noite.

        Não há vida que perdure

        nem há bem que sempre dure

        para quem nunca se afoite...

        Entre duas esperanças,

        meu coração diz que sim.

        E assim brincam as crianças

        que moram dentro de mim!

O velho que esse garoto foi (ou que foi esse garoto?) hoje ainda vai sentindo muito próximo o estranho Deus que sempre se anuncia. Que Ele te guarde, Princesa de mim.

           Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira