AINDA EU SOU NA MINHA CIRCUNSTÂNCIA…
Minha Princesa de mim:
O tempo não tem ajudado, aumentam as dores que me tolhem. Alarga-se-me o olhar pelos campos que se alagam. No cinzento das águas caídas, que sobre os campos ficam, quietas até que nova chuva as mova, tornam-se, penso, grisalhos também os meus olhos. Hoje, o céu e a terra têm a mesma cor. Será melancólico e inútil este sentimento, lembrança apenas de brincadeiras de criança, quando a nossa prima Teresa apostava que adivinharia sempre a cor dos meus olhos: mais azuis se os levantasse ao céu, mais verdes se gozassem a terra... Em bilhetes de identidade me registaram olhos de cor azul, verde ou cinzenta. Por isso me ative a pensar que os nossos olhos serão da cor de quem neles se vê. E que Don Juan eu teria sido se os meus fossem arco-íris! E assim sendo, se na altura houvesse televisão para todos, talvez eu tivesse sido uma dessas estrelas que de estrela nada têm!... Pois cada estrela vive só da sua própria, única, luz. E cada planeta tem a sua cor. No espaço infinito, só os distinguimos porque os procuramos, só os reconhecemos porque lhes démos um nome. O Petit Prince tinha o seu planeta, de nome algébrico. Eu tenho uma estrela, onde não vivo mas sonharia viver. Chamo-a Minha Princesa de Mim. É um segredo cósmico: não chego lá, não posso viver nela; mas ela habita-me, é essa luz que me acende a lareira do coração. Não sei se pensa: as mulheres pensarão? Não sei se cura: será remédio a religião? Para que não me repitas que não gosto de dançar, acabo de dar uns passos (de fox trot? de cha cha cha?, sei lá,com esta ciática idade seriam ché ché ché gágá! ). Mas foi, tão só, para voltar ao Nishitani, lembras-te? Recordo bem ele dizer que a salvação, salvar alguém, é assunto para a religião. E a religião não é pensamento. O pensamento, pensar, é muito mais prático, socialmente prático. O pensamento serve para abrir uma possibilidade de viver na sociedade, viver nas relações com os outros, num campo aberto, não num círculo fechado, numa comunidade fechada. A salvação espiritual, a salvação religiosa, é uma satisfação num meio fechado, num mundo separado, comunitariamente reagrupado, mas essa comunidade é restrita. Isso facultará então um certo conforto à existência, mas, no fundo, funciona como rejeição. Pensar é muito mais aberto. Pensar é arriscar. Não é, portanto, uma salvação, não é safar as pessoas de sofrimentos ou becos. Antes será fazê-las caminhar de modo diferente, ajudá-las a encontrar um caminho...um caminho de quando em vez mais perigoso... Neste discorrer de Nishitani, algo me alumia a busca de outras razões para a incompreensão da mensagem cristã pelo poder japonês no sec. XVI/XVII, para além das políticas. Ou da propensão habitual das gentes para o pacífico sincretismo religioso e filosófico: não sei se o taoísmo chino terá, vindo do Celeste Império nos primeiros séculos do nosso primeiro milénio, "organizado", para as elites autóctones, representações do animismo shintoísta indígena; mas sei que este sobreviveu numa amálgama com o budismo que, pela Coreia, lá terá chegado no sec. VII. Com códigos de pensamento e de conduta confucionistas. Se o cansaço da mão que me segura a caneta - ia escrever a pena, mas pena, hoje, quer dizer desgosto - me permitisse continuar , iria por aí fora... Mas quedar-se-á o tema, para outra carta. Por esta, percorrerei, com o conforto possível da mão que tenho, a actualidade dessa intuição do meu amigo japonês: porque pensará ele que o recurso à religião é sectário, como um conforto oposto à vida da gente? Será mais refúgio do que procura? É curioso verificar como um pensador japonês, que chegou a dizer que, para o seu desterro numa ilha do sul, levaria apenas Dostoievsky e a Bíblia, faz estas afirmações: No cristianismo, Jesus é uma figura médica. É alguém que salva, que dá um remédio, é um médico. Deus é médico. Mas um pensador não é um médico... ...Pensar não é para encontrar soluções... ...Quando se fala do pensamento como algo que tem um objectivo para realizar,eu não tenho a certeza de que haja um objectivo ou um fim para o pensamento. No discurso ocidental, que tem por hábito enquadrar-se sempre na dupla postulação do sujeito e do objecto,quando se fala de pensamento propõe-se um objectivo para um sujeito pensante, um fim para esse sujeito pensante na sua práctica de pensar. Mas talvez pensar não tenha objectivo. Pensar é um processo de vida... ...Desde que estou aí, ou desde que fui apanhado na rede comunicacional pela palavra ,já falo, já penso. E não sou responsável por essas coisas. Em certo sentido,talvez,os Ocidentais diriam que essa é uma situação de abandono. Mas respondo: quem nos abandonou? Não digo que é uma situação de abandono. O abandono é uma noção do monoteísmo. Todos os monoteísmos começam pela verificação da situação original da humanidade como abandonada. - Os judeus sentem-se abandonados, exilados no deserto. Jesus abandonado, mesmo por Deus. Maomé é um órfão,enjeitado na Terra... - A nossa existência na terra não é coisa nossa, é sem intervenção da nossa vontade. Portanto, estar aqui é, antes de mais, passivo. Mas não vejo razão para que se tome essa situação como um abandono. Sempre fomos já postos no caminho de pensar, de falar, e esse é o destino dos vivos falantes. E portanto não temos qualquer relação com o nosso ponto de partida,quero dizer que o nosso ponto de partida foi sempre já efetuado. Pisamos assim terrenos onde nem sempre é fácil encontrar caminhos confluentes. Este homem descobre-se como existente, na condição humana, que é a de todos,como dado de facto,e o exercício de pensar surge-lhe como procura das relações de si com a sua circunstância cósmica, ecológica, humana e, quiçá, transcendente. Mas aqueloutro descobre-se abandonado, e vai à procura do remédio que o alivie ou cure esse enjeitamento. Encontra-se com o conforto que lhe traz uma crença em algo ou alguém que o acolha. E com outros comungará na mesma fé, e se reunirá numa comunidade que tenderá a preservar essa aquisição. Então, simultaneamente, surgirão aí a tentação da consolidação do adquirido - com a concomitante vigilância sobre o que possa parecer heresia - e também o desejo de proselitismo, de afirmação universal da bondade encontrada e sentida... A tentação do encerramento é poderosa, vocaciona ao ensimesmamento e à rejeição do que, por ser estranho, será talvez ou certamente adverso e perigoso. Já o desejo de divulgar o que se crê verdadeiro e bom poderá seguir dois caminhos diferentes: o da afirmação erga omnes da crença possuída, procurando assimilar-se os outros mesmo pela conquista (vg. cruzadas ou djihad), ou o da partilha pelo diálogo, pela vontade de se percorrer um caminho em comum, em que ambas as partes vão conversando e descobrindo-se, cada uma sendo o que é, ambas sabendo que o misterioso olhar de Deus se alegrará, acima de tudo com a fraternidade. Só aqui o homem religioso poderá encontrar-se com o pensador, pensandossentindo o trilho do relacionar-se. Eu, que, acredito, sou um homem de fé, creio que Deus misericordioso nos espera na porta final desse esforço. Pessoalmente, penso que foi no século XIII que, apesar de todas as limitações do tempo e do modo - e sem menosprezo pelos progressos subsequentes, também com percalços e fraquezas - a civilização europeia se desenhou, na economia, na sociedade, na ciência, na polis. A Suma Teológica de S.Tomás de Aquino é uma síntese do pensamento filosófico e teológico desse tempo. É, em muitos pontos, hoje em dia, um tratado datado. Noutros não será. Sobretudo é um monumento de homenagem ao diálogo entre a fé e a razão: um frade mendicante, dominicano, procurou a síntese da tradição judaica, evangélica e patrística da cultura cristã com o racionalismo grego que descobrira através da herança dos muçulmanos Avicena e Averroes. Pensar é relacionarmo-nos. O dia continua cinzento. Mas sabemos que o céu está para além da nuvem. Dou-te a mão.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira