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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CULTURA HOJE

 

BARCAROLA PARA UM PINTOR
 
     Passaram dez anos sobre a morte de António Palolo - 29 de Janeiro de 2000. (Nasceu em Évora, em 5 de julho de 1946.) Pedem-me para evocar o João - os mais íntimos trataram-no sempre pelo primeiro dos seus nomes -, com quem tanto aprendi e com quem largamente convivi. É como se me pusesse a mexer numa ferida, depois de reerguer a crosta de sangue que há muito deixara sobre a pele e que se transformou numa leve mancha. E de novo fazer surgir o movimento de toda a sua arte. Um tempo em forma de polifonia de cor. Desde o seu início de repente se inscreve, como secção principal, o enlevo lento de mínimas cores, suaves geometrias. Toda a sua obra (pictórica e fílmica) guarda uma energia e uma exuberância de elementos contrastantes, que sempre encontraremos em permanente renovação.
 
 
     É comum ligarem-no a um conjunto de pintores seus contemporâneos em Évora. Todos mais velhos. Admito que o seu convívio tenha sido importante, mas não ao ponto de terem sido fonte de aprendizagem e informação. Apenas de convívio, numa cidade opressora no seu viver quotidiano, fechada, classista e provinciana. De todos com quem conviveu nos seus anos de rapaz, sempre me disse considerar Joaquim Bravo de um modo particular. Nos meus contactos com Bravo, sempre vi neste um respeito de camaradagem e uma atenção mais de discípulo para mestre, do que sinal contrário. Mas nesta relação entraria, de certo, a delicadeza de que se revestia a amizade de ambos. Palolo foi entre nós um caso, não digo que único, mas bem raro, de aprendizagem a partir de si mesmo, numa captação directa do mundo da imagem. De início, o entusiasmo que encontrou nos poucos livros sobre arte que o pai possuía ou nas aulas de desenho dos primeiros anos do ensino técnico. Depois, um impulso único para prender à sua sensibilidade o desenho do mundo. Uma intuição — quase do nada, senão mesmo do nada, pois de muito pouco terá sido —, de resquícios de imagens, tê-lo-á levado aos primeiros desenhos, nos começos dos anos 60. Submergir num espaço de ficção imagética a que não seria estranha a visualização da banda-desenhada e uma entrada fulgurante, a partir desta, no universo co-existente da Pop Art. E, posteriormente, uma partida para a contemporaneidade da arte mundial.
 
 
     Em dezembro de 2009, o então director do Museu de Évora, Joaquim de Oliveira Caetano, mostrou-me uma fotografia, que tinha no seu gabinete. «Sabes quem é este miúdo?» Perguntou-me.
     Era uma fotografia de uma visita oficial, com a gente soturna dos anos 50. Pelos fins de 50. «Não.» E fiquei a olhar para aqueles homens de estado, onde acabei por reconhecer o Dr. Azeredo Perdigão. Quanto ao rapazinho, que se encontrava no meio, coisa alguma me levou a reconhecê-lo. De configuração nervosa, rosto inteligente, sorriso tímido e feliz. Óculos que revelavam uma miopia aos 10, 11 anos. Tinha umas mãos bonitas. Era um menino. Não estava a perceber porque motivo, tão à queima roupa, teria de reconhecer aquele rapaz. «Não, não sei quem é.»
     «É o Palolo. Numa visita a Évora, Azeredo Perdigão acabara de lhe comprar um desenho.» Provavelmente o que importaria sublinhar na fotografia seria o gesto, apesar da soturnidade dos anos 50, o presidente da única instituição cultural do país com carácter de continuidade reparou no trabalho de um miúdo e comprou-lho. Fá-lo-ia hoje alguém em idêntica posição, rodeado de um ambiente ilusoriamente bem menos taciturno? Deixemos a pergunta sem resposta. Palolo, que tratava quase todos os amigos por você, havia de tirar esta fotografia das mãos de Joaquim Oliveira Caetano, com um «Deixe-me ver» e ficaria a olhar para os seus tempos de quase infância, num misto de «Emílio» de Rousseau e de «Robinson» de Defoe. Aquele rapaz, ele próprio, havia de lhe falar com claridade — a claridade com que sempre pintou —, da memória das coisas. Da memória das cores que começou a encontrar por esses anos juvenis no grande livro da natureza. Da memória que espreitava por detrás das lentes, no olhar arguto, que lhe diria, se acaso o visse desde a distância: «Toma as cores nos teus sentidos e de seguida terás o desenho da cor.» Também António Palolo, que cresceu em Évora, o vejo como Robinson Crusoe. A sua história é a de um homem que criou o seu próprio mundo na arte sem ajuda de nada. (Dir-me-ão que não: um ou outro galerista, um ou outro amigo. É mentira. A ele chegaram de facto. A ele chegaram porque a sua arte era muito grande e já existia quer em acto quer em potência antes da interferência, e por vezes tão negativa, de qualquer. E foi a sua existência, no desenvolvimento da sua arte, quem de facto os ajudou; e não o contrário.) Évora foi para Palolo a ilha deserta de Robinson. De onde partiu para a sua vida de aventura, fértil de estímulo interior. De onde partiu para correr o seu caminho, fechado na singularidade da sua própria força.
     Depois de ter visto aquela fotografia passei ao terraço do Museu. Duvido que alguma vez Palolo tivesse tido aquele confronto tão próximo e tão cimeiro com as alturas da Sé. Era um fim de tarde de dezembro, de neblina; e a torre lanterna, quase ao tocar da minha mão. Tão próxima, quase, como a imagem daquele menino pintor que me fora mostrado. Estava por de cima da planície eborense, sobre a sua cidade, pela qual Palolo tinha mais desprezo do que amor, apesar da extensão, do silêncio da terra e das pedras de sacrifício que se elevavam no vazio dos campos que, de facto, a esses, sempre quis. Évora foi para ele, como sempre me disse, uma cidade morta, um chão de mortos. Onde acabou por repousar. Enquanto estive ali, naquele reduzido plaino do terraço do Museu, senti-o próximo, senti a sua mão apertar o meu braço. E as gralhas, em voo curto, entre os pináculos da torre lanterna, gritavam ao nevoeiro que descia a dor e a alegria da sua arte. Com emoção e suavidade, o coração sereno das cores de Palolo descia nas listas, barras e volumetrias geometrizantes das suas telas, nos desenhos e guaches purificantes, nas transparências dos planos, na acalmia e profundidade dos corpos, no vórtice da imagem fílmica — e as gralhas, negras, saudavam em homenagem, no enredado voo, ao redor da torre lanterna da Sé, a arte maior de António Palolo.
      Em muitos locais, em livros, em catálogos e na imprensa, deixei testemunho crítico sobre a sua obra. Não me importa aqui sublinhar nenhum desses aspectos. Barcarola, entendo-a somente como uma pequena música. E as gralhas na torre lanterna da Sé de Évora bem a executaram nesse final de tarde de dezembro de 2009. Barcarola de palavras, no meu caso, em memória. Mas o que importa sublinhar, é no momento em que tantos falsos e tantas dúvidas surgem acerca de pinturas e desenhos seus, que cada vez mais será urgente a realização de um catalogue raisonné sobre a obra de um dos artistas mais cimeiros da segunda metade do século XX.
 
 
     Uns dias antes de morrer o João (já disse que era assim que o tratava) mostrou-me um livro que acabara de comprar. Pinturas de Masaccio. Combinámos, mal melhorasse, uma viagem a Florença, para vermos os frescos de Santa Maria del Carmine.
     Transcrevo, de seguida, o que sobre esse nosso último encontro, escrevi para o catálogo de uma sua exposição em 2005, na Galeria 111 (texto recolhido em Processo Em Arte, Lisboa, 2008): «Estou a ver os seus dedos passarem sobre a imagem do fresco que representa ‘O pagamento do tributo’ e suspenderem-se na assimétrica divisão, como se quisesse ele mesmo isolar do grupo que rodeia Cristo as duas figuras que já se encontram separadas: o apóstolo, suponho, que entrega o pagamento ao jovem cobrador de impostos. Perdeu-se, enleou-se, deixou ir os sentidos e o imaginar nas imagens de outros frescos; e todas elas se perdiam na transparência de folhas separadoras [...] voltou-me à ideia este nosso último encontro e o tempo em que estivemos sentados ao lado um do outro a folhear o livro de Masaccio. Um dos seus gatos brancos, enormes, assistia ao passar das folhas e das mãos. Era janeiro. A luz do candeeiro (os gatos gostam de ficar exactamente debaixo das lâmpadas, mesmo quando elas são somente a ilusão fria do aquecimento) intensificava o branco do pêlo. O fumo do chá muito quente de salva erguia-se das chávenas. Os frescos de Santa Maria del Carmine seguiam a sua liberdade de folhas que caíam umas sobre as outras, num lento passar; uma liberdade totalmente limitada pelo destino, a atadura das folhas de um livro. Não andava longe o fim da liberdade que o destino atribuíra à duração perceptível da nossa amizade.»
     Nesse mesmo final de último encontro o João deu-me o seu cartão de identidade da Sociedade Nacional de Belas Artes. Tem o nº 360, de sócio correspondente. Não se percebe a assinatura do presidente da direcção, mas percebe-se a do 1º secretário, Eduardo Nery, que assinou pelo director. O retrato é o de um rapaz de dezassete anos, a idade que tinha quando foi admitido sócio, a 27 de novembro de 1963. O cartão foi passado a 29 de janeiro de 1964. Morreu 36 anos depois. A assinatura é ainda a de um puto adolescente, mas já lá está o risco firme que manteve sobre as telas e de que se terão servido Caronte e os seus companheiros de trabalho, para na barca o levarem. E passarem o Styx, numa sucessão rápida de variações sobre a cor.
 
João Miguel Fernandes Jorge