DEMOCRACIA EUROPEIA NÃO PODE SER ILUSÃO
por Guilherme d’Oliveira Martins
José Manuel Fernandes (JMF) escreveu há dias sobre «a loucura suicidária do ‘mais Europa’» (Público, 19.6.10) e referiu uma prosa minha de há alguns dias, dizendo que alguns, como seria o meu caso, “procuram superar a dificuldade que levanta a necessidade de os cidadãos terem representação e voz activa falando de um ‘consentimento complexo’ que os actuais tratados permitiriam conseguir». E acrescentava ser tal entendimento uma ilusão – por duas razões, “porque não existe coincidência entre o espaço em que os cidadãos sentem que têm alguma coisa a dizer – que, goste-se ou não, ainda é e será o espaço dos Estados nacionais – e o espaço onde se tomam cada vez mais decisões e decisões mais impopulares”. E ainda porque não seria “dando mais protagonismo aos actores europeus” que se criaria “essa identidade”, uma vez que na União Europeia não haveria possibilidade de substituir “de forma pacífica o seu governo”. Por fim, JMF lembra que “pode demitir-se a Comissão no Parlamento, mas não só não se pode demitir o Conselho, como nenhum eleitor europeu elege o PE a pensar em quem será o próximo presidente da Comissão. E, amavelmente, aconselha os que duvidam desta asserção a ler Karl Popper e Ralf Dahrendorf. Este seria um ponto central “porque não há mais união política sem mais transferências de soberania nem haverá ‘governo económico’ digno desse nome sem um verdadeiro orçamento europeu”.
Todos estes argumentos são conhecidos e não beliscam minimamente o meu ponto essencial (a partir das considerações de Jürgen Habermas). E qual é esse meu ponto? É o da necessidade da democracia supranacional europeia, que tem de ser prosseguida, preservada e aprofundada. Mas vamos por partes. Sabe JMF que há muito insisto na necessidade de considerar a construção europeia não como o resultado de um processo tendente à criação de um Estado europeu, mas como um caminho de criação de uma verdadeira união de Estados e Povos livres e soberanos – e aqui está toda a diferença. Por isso, na Europa temos duas legitimidades: dos Estados e dos cidadãos; só podendo a União ter sucesso se garantir o equilíbrio entre a afirmação da democracia supranacional e a consolidação das democracias nacionais, através de uma complementaridade efectiva entre a consciência cívica nacional e a consciência cívica europeia. Uma e a outra têm de ir a par. Daí a necessidade de assumirmos a subsidiariedade com todas as suas consequências. O Estado nacional é uma peça fundamental, mas deixou, há muito, de ser o alfa e o ómega do direito público, tornando-se cada vez mais mediador entre os planos infra-estadual e supranacional. Afinal, a globalização exige a coordenação de políticas económicas nos grandes espaços de integração económica, em nome da concorrência, de competitividade, da inovação e da coesão económica e social. Se queremos evitar a lógica de um Directório, precisamos de encontrar novos mecanismos de legitimação democrática que envolvam a participação dos cidadãos. Isto é fundamental e tem menos a ver com qualquer voluntarismo do que com a compreensão de uma tendência actual. E a questão da legitimidade obriga a apresentar resultados aos cidadãos. A União Europeia, como democracia, precisa de se aproximar dos cidadãos – no completar do mercado interno, na superação da crise financeira, na concepção da política macro-económica, na sustentabilidade da moeda e na melhor regulação, bem como nas reformas do modelo social europeu. Ora nada disto pode ser feito numa lógica puramente nacional. Como afirmou Francisco Seixas da Costa, o que deve preocupar-nos é que “toda esta aparente ‘federalização’ da gestão financeira europeia começa a assentar já não nas instituições regulares, mas apenas nos arranjos, um tanto ad hoc, impostos pela Alemanha e aceites pelos restantes parceiros como inevitáveis, cujo controlo democrático, a nível europeu, é hoje mais do que discutível”. Afinal, a democracia “não é um conceito instrumental, mas sim uma condição sine qua non para aceitação das soluções pelas pessoas” (Público, 19.6.10). Ora, é exactamente esta a minha questão. Não ponho em causa o que ensinaram Popper e Dahrendorf, com os quais concordo (tendo-os conhecido pessoalmente) – o que digo hoje é que a democracia não pode ficar-se apenas nas fronteiras nacionais, tem de chegar também aos espaços supranacionais. De nada nos valerá dizermos que é difícil aprofundar a democracia europeia. O que importa é encontrar vias para dar voz aos cidadãos. E essa voz tem de ser defendida e salvaguardada. De facto, quanto às Finanças Públicas, é preciso um orçamento europeu que se veja, mas antes disso é essencial que as competências dos parlamentos nacionais sejam preservadas, sob pena de deixarem de ter importância efectiva. Precisamos de parlamentos que de facto decidam em nome dos cidadãos. Daí que o reforço dos parlamentos nacionais e a necessidade de articulação com o Parlamento Europeu e os órgãos comunitários esteja na ordem do dia. O Tratado de Lisboa obriga a que os Parlamentos nacionais intervenham activamente, ao abrigo do novo sistema de controlo da subsidiariedade. Esse acompanhamento torna-se crucial, devendo os cidadãos perceber que tal controlo pode interromper o curso de iniciativas que se revelem desadequadas. Não se trata de discutir se é Bruxelas (ou Berlim) que define critérios de disciplina orçamental, mas de construir um processo democrático que leve à definição de objectivos e interesses comuns europeus – em que a estabilidade de preços tem de se ligar à criação de empregos ou à produção de riqueza e em que moeda e economia real, concorrência e coesão, competitividade e justiça se liguem de facto. Responsabilidade, representação e participação são questões que se põem hoje no Estado-nação, mas também na democracia supranacional. Eis por que razão, em vez da diluição do projecto europeu devemos apostar na clarificação de objectivos comuns e na concretização das duas legitimidades (dos Estados e dos cidadãos). E quando falo de “consentimento complexo” digo-o pois a única maneira de evitar a tentação do Directório é criar um sistema de freios e contrapesos institucionais no seio da União, que os cidadãos compreendam e sintam como seus. Caso contrário, serão os valores democráticos e a eficiência económica a perder… A sociedade aberta precisa da tentativa e do erro, mas não pode parar, e necessita sobretudo da persistência das pessoas para que a responsabilidade cívica não seja ideia vã.