A VIDA DOS LIVROS
de 11 a 17 de Julho 2011
«Peregrinação às Fontes» de Lanza del Vasto (Edições Sempre em Pé, 2010) é um clássico da espiritualidade e das viagens. A belíssima tradução agora publicada em Portugal da autoria de Helena Langrouva, tornou-se possível graças a um grupo de amigos portugueses, que subscreveram esta edição. Significativamente, o editor dedica a publicação à memória de Manuela Bio Lourenço, que animou, desde os anos setenta até à sua morte (1998), a difusão do conhecimento sobre o pensamento e obra de Lanza del Vasto. De facto, Manuela Lourenço, casada com M.S. Lourenço, «animou em Sintra, com representação noutros pontos do país, um Grupo de Amigos da Arca».
QUEM É LANZA DEL VASTO?
Lanza del Vasto nasceu em 1901, no Sul da Itália, filho de mãe belga e de pai siciliano. Fez estudos clássicos em Paris e filosóficos em Pisa, dedicando-se ainda à poesia, à pintura e à música. Em 1936 decidiu partir para a Índia em peregrinação, facto que constitui motivo para esta obra. O ponto alto desta viagem é o encontro com Gandhi (antes da ida ao Ganges), e a descrição desse momento é um dos aspectos mais fortes deste livro. «Já desponta o clarão da aurora. O nosso caminho é ainda pouco firme, nos campos escurecidos. Encontramos um grupo de discípulos que voltam de lá: saudamo-los com as mãos juntas sobre a boca fechada. O Mahatma já falou com eles. Somos os últimos a chegar». Pode dizer-se que esse apelo e esse encontro mudaram a existência de Lanza del Vasto. E é emocionante lermos a descrição desse homem de excepção, que um jovem europeu do sul desejava conhecer: «Um velhinho seminu está sentado no chão, diante da entrada debaixo do telhado de colmo que forma o alpendre: é ele. Faz-me um sinal – sim, a mim -, senta-me ao lado dele e sorri-me. Começa a falar – só fala de mim – perguntando quem sou, o que faço, o que desejo. E eu descubro imediatamente que não sou nada, nunca fiz nada, não desejo nada senão ficar ali à sombra dele». De regresso ao velho continente, não esquece a mensagem espiritual que Gandhi lhe transmitiu, o apelo recebido nas fontes e na experiência indiana. O método da não-violência e a desobediência civil tornam-se o seu próprio programa de acção. Casa em 1948 com Simone Gebelin (Chanterelle) (na foto) e lança as bases de uma comunidade, L’Arche, que visa a defesa da Paz, a denúncia do perigo nuclear e a protecção da natureza. Em 1972, manifesta-se contra a extensão do campo militar de Larzac, numa acção de grande projecção mediática. Em 1978 e 1979 vem a Portugal onde profere conferências, que constituem um sucesso. Idealismo, realismo, vontade, humanismo eram características do pensamento do autor – baseado no conceito hindu e gandhiano de «satyagraha», no sentido de força da verdade e de adesão à verdade. António Alçada Baptista visitou-o, relatando essa experiência no seu livro de crónicas «O Tempo nas Palavras». «Conversámos muito. Eu, a olhar para aqueles setenta e dois anos secos, limpos, serenos, e para aquele seu extraordinário olhar azul de amor e de paz». Em 1981, faleceria na sua comunidade, deixando muitos discípulos, que têm a «Peregrinação às Fontes» como um guia marcante. Não se trata de um conjunto de conselhos, mas do relato de uma caminhada – e, como lembra a tradutora: «o peregrino tem o objectivo de se purificar, de se deixar transformar interiormente, de encontrar ou reencontrar um sentido para a vida». Lanza del Vasto disse: «Tornei-me um peregrino propriamente dito, ou seja, alguém que tem uma finalidade e vai a algum sítio para se santificar, para corrigir a sua vida». O sentido fundamental desta obra é esse mesmo – pelo que o acto de peregrinar funciona em si mesmo como um acto libertador que conduz «ao encontrar o encanto de ser pobre por se viver do essencial, o gosto de se desprender, de se descentrar, de aprender o essencial para a paz» (prefácio).
TOMAR CONSCIÊNCIA, CAMINHANDO
Caminhar e perceber que precisamos de ir ao encontro do Outro, que é afinal a outra metade de nós mesmos – eis a chave de qualquer peregrinação. O livro foi escrito pelo autor de 1936 a 1938, datando a primeira edição do original francês de 1943. O percurso é fascinante. Tudo começa em Ceilão (Sri Lanka, a nossa Taprobana), onde se sente o espanto do recém-chegado. «Aqui está aquele que acaba de desembarcar sozinho, branco, envergonhado, desamparado, perseguido pelos que vendem, pelos que prometem, pelos que imploram, pelos que querem levá-lo ao templo de Buda ou a um prostíbulo». Depois, já no subcontinente, é Madurai que acolhe o viajante. É aí que encontra um brâmane ocioso com quem dialoga abundantemente sobre o sentido das tradições hindus e dos seus símbolos e mistérios. «O divino Ganesh é o patrono dos homens de espírito, dos que não formulam sobre as aparências juízos grosseiros. O seu pequeno olho é uma jóia de malícia e de crítica. A poderosa tromba insufla o saber aos poetas e pensadores». Em Srirangam o caminhante continua a descobrir os segredos da religião hindu e o seu carácter sincrético. E Lanza del Vasto, leitor atento de Santo Agostinho e seguro conhecedor da teologia cristã, clarifica aquilo a que assiste: «Quanto à associação de Brama, Xiva e Vixnu, a que no Ocidente chamam a “Trindade Hindu”, ao passo que os hindus lhe chamam mais propriamente “Tripla Forma”, não tem nada em comum com a Santíssima Trindade do dogma católico». E o pensador acrescenta: «os três deuses tanto servem de forma uns para os outros, como servem os três de forma de Deus escondido que não tem forma». E, para explicar como a verdade habita o interior do homem, tenta compreender aquele monge hindu «dispensado de qualquer obrigação mundana e das práticas do culto», que «fixa o seu pensamento numa imagem de Deus único, e, quando chega a dar vida a essa imagem, rejeita-a para se fixar ele próprio no próprio Deus, Deus sem limite e sem imagem, absolutamente interior, absolutamente uno».
FINALMENTE GANDHI
Depois, em Wardha, Lanza del Vasto encontra, finalmente, Gandhi, com quem está três meses. O momento é decisivo. Estamos no coração do livro. «O meu amor à verdade absoluta, foi ele que me ensinou a beleza do compromisso». A partir de agora Lanza del Vasto passa a designar-se Shantidas, que quer dizer, «servidor da paz». E segue os ensinamentos do Mestre sobre a necessidade de desenvolver um trabalho manual e de pôr em prática os exercícios de domínio de si. Para além do trabalho intelectual, é fundamental o uso das mãos. «Sim, o trabalho das mãos é a aprendizagem da honestidade. A honestidade é uma certa igualdade que se estabelece entre o que se toma e o que se dá. Ninguém está dispensado do trabalho manual». Gandhi usa o seu pequeno tear para tecer a sua túnica. Afinal, «a máquina encadeia e a mão liberta». Esse tempo é libertador. Lanza percebe que só aquele conhecimento próximo lhe permitiu a compreensão melhor da importância do diálogo das pessoas, das culturas e das religiões. Após essa experiência inolvidável, parte em direcção às fontes do Ganges. Tratava-se de ir até ao berço das civilizações indo-europeias. «A descida precipitada leva às fontes do Ganges. A largura do rio reduziu-se a metade desde Rishikesh. Em contrapartida o seu rugido dobrou. A cor perturbou-se por causa da fusão da neve que marca este mês mais quente do ano. A margem encaixada crepita toda de cactáceas e de insectos. Borboletas grandes como a mão e pássaros de diversas cores respondem ao calor do sol. De todas as partes erguem-se encostas rochosas e arborizadas: perdeu-se por muito tempo a vista dos cumes nevados. A tempestade que pesou todo o dia, à noite, tendo rompido os seus apoios, rebenta». Ao lermos o relato de Lanza, percebemos que essa viagem alterou profundamente a sua relação com o Outro e abriu caminho ao reconhecimento da importância fundamental do diálogo entre religiões. O projecto da Arca nasce do apelo que recebe nas fontes do Ganges. Pode dizer-se que Lanza del Vasto veio diferente, depois de ter encontrado o que procurava… E o relato é apaixonante!
Guilherme d'Oliveira Martins
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