Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
O adjectivo ‘cidadão’ é de atestação recente. O substantivo ‘cidadão’ tinha demorado tempo a tornar-se um nome comum; só adquiriu família muito tarde. Dessa família faz parte a palavra ‘cidadania’, que é usada nas autarquias e nas universidades em locuções como ‘os grandes valores da –‘, ‘os principais deveres da –‘ e ‘o maior exemplo de –.‘
Como um sistema de águas quentes e frias ou uma toga, ‘cidadão’ e ‘cidadania’ prometem a harmonia de um mundo clássico. Os pormenores desse mundo são difusos. Não será a Grécia Antiga: um cartão de cidadão não ajuda a distinguir os seus possuidores de quem tem um cartão de bárbaro, composto numa língua incompreensível; e muito menos de quem tem um cartão de escravo, ou uma licença de centauro. Também não é concebível que uma loja do cidadão seja uma alusão à Roma republicana: quem lá vai sabe que não pode presumir obter contratos de cavaleiro, atestados de megera ou uma posição de cônsul.
A palavra ‘cidadão’ refere-se à Revolução Francesa, limite e expoente da imaginação política e administrativa. Trata-se também de uma revolução francesa genérica, que inclui Terror e Termidor, e outros avanços civilizacionais. A palavra sugere por implicação duas grandes ideias: a de que os portugueses vivem em cidades; e também a de que são extraordinariamente parecidos uns com os outros. O arranjo verbal parece apropriado. Mesmo no interior mais remoto e deserto de Portugal, e sobretudo nesses casos, nunca estamos a menos de quatrocentos metros de uma cidade; e mesmo numa cidade nunca estamos a menos de dez palmos de duas pessoas quase iguais. Tal como não há taiga sem tigre, ou tigre sem outros tigres, assim não parece imaginável que haja cidades sem cidadãos; ou que haja cidadãos que não sejam indiscerníveis de outros cidadãos.
Este mundo habitado por cidadãos, cuja principal expressão arquitectónica é o pavilhão multiusos, foi no entanto alterado pelo aparecimento do adjectivo ‘cidadão’. Ao princípio ninguém reparou. Os substantivos que o acompanhavam eram todos masculinos (‘movimento’, ‘empenhamento’, ‘enriquecimento’, ‘tratamento’). Como o substantivo ‘cidadão’ também o era, imaginou-se durante algum tempo que se tratasse de um nome composto; ‘movimento cidadão’ era afinal pouco diferente de ‘couve-flor’, ‘pata choca’, ou ‘Luís Filipe.’
As dificuldades acentuaram-se porém quando o adjectivo ‘cidadão’ começou a ocorrer com substantivos femininos. Passou a ouvir-se “participação cidadã”, “convenção cidadã”, ou mesmo “iniciativa cidadã.” O problema não foi com essas coisas, visto que a elas, como a um centauro, nunca ninguém viu. Tratou-se antes de um problema de morfologia. O cientistas debatem hoje por isso a forma correcta do feminino do adjectivo ‘cidadão.’ Deverá seguir o modelo de ‘temporã’ ou, pelo contrário, o caminho de ‘lambona’? Vários pressentem neste debate uma questão de regime. Os mais pessimistas adivinham o regresso do Terror no conceito de iniciativa cidadona.
Miguel Tamen Escreve de acordo com a antiga ortografia
Vale! era a saudação latina: Saúde, passa bem, passai bem! Aliás, a própria palavra saudação tem também a ver com saúde e com salvação (salus, salutis). Saudar vem do latim: salutem dare (dar, desejar saúde). Ainda se diz nas aldeias: 'negar a salvação a alguém', com o sentido de recusar-se a cumprimentar uma pessoa. Saudade tem aqui igualmente o seu étimo. Veja-se, por exemplo, a expressão: mandar muitas saudades. A saudade é aquele sentimento de solidão que tem na sua base a falta da pessoa querida. Ter saudades e enviar saudades é aquele desejo de que quem partiu e anda longe, esteja onde estiver, passe bem... Por sua vez, saúde refere-se sempre àquela situação em que o ser humano na sua totalidade está bem. A saúde tem a ver com o todo holisticamente considerado, numa situação de integração e equilíbrio harmoniosos: saúde somática, saúde psíquica, saúde social, saúde ecológica, saúde espiritual, implicando, portanto, uma relação sã consigo, com os outros, com a natureza, com Deus...
Tudo isto por causa do dia 1 de Novembro. É possível que muitos portugueses pensem que esse dia é feriado nacional por causa dos mortos. Mas não é verdade: é feriado nacional por causa da celebração da Festa de Todos os Santos.
Aí está algo que praticamente ninguém que alguma vez tenha pensado nisso (mas quantos pensaram?) quereria ser: santo. Até porque os santos com os quais habitualmente contactamos julgamos que são aquelas figuras geralmente pouco belas, torcidas e até por vezes ridículas que vemos em muitos altares das igrejas e que são levadas a “passear” pelas ruas uma vez por ano nas procissões das romarias. Mesmo quando nos reportamos àqueles homens e àquelas mulheres reais de carne e osso, que aquelas figuras quereriam representar, vemo-los a maior parte das vezes como beatos, tristes, a bichanar orações, desagradados com a vida, deprimidos, ascetas a quem não é permitido apreciar as coisas boas e belas da existência...
No entanto, se pensássemos bem, é mesmo isso que queremos ser: santos. Porque santo, também etimologicamente, tem a ver com saúde. E o que é que nós fazemos sem saúde? Santo e são têm a mesma raiz. E isso tanto nas línguas latinas como nas anglo-saxónicas — dizemos: aquele homem está são e também dizemos São João; em inglês: holy (santo), health (saúde), em conexão com the whole (o todo harmónico já apontado)... Há sempre essa conexão entre saúde, santidade, salvação e totalidade harmónica. Só estamos sãos, se tudo em nós estiver bem: uma dor da alma ou uma simples unha encravada colocam-nos em desequilíbrio. Ser santo significa, repito, harmonia toda: estar de bem consigo, com os outros, com o mundo, com a natureza, com o divino... Assim, por exemplo, quem despreza o mundo não é santo. O desequilíbrio é o contrário da santidade, que consiste precisamente na plenitude harmónica e expansiva.
De qualquer modo, nos dias 1 e 2 de Novembro, o que, de facto, lembramos mais são os mortos. Nas nossas sociedades, urbanas, científicas e técnicas, onde o que mais se valoriza é o aparecer, o parecer, o dinheiro, a eficácia, a juventude, o light, o ter, o poder, o êxito, e onde, por isso mesmo, a morte é tabu e sobre a morte se mente às crianças e mentimos a nós mesmos e uns aos outros, permite-se até certo ponto que os mortos, os defuntos, surjam dois dias por ano no convívio dos vivos. Os cemitérios enchem-se, embora cada vez menos. Aí, há uma lembrança, uma recordação. Talvez se erga, sem palavras, uma prece. E surge uma inquietação: o que é o Homem? O padre António Vieira respondeu: “pó levantado”. Com isso, ele queria apelar à humildade, aquela humildade que não anula a dignidade. Pelo contrário: o ser humano humilde é o ser humano (homem ou mulher) bom, digno e verdadeiro. E precisamente a bondade, a dignidade e a verdade no combate pela justiça, a fraternidade e a paz, pertencem ao núcleo do que se chama santo, também em ligação constituinte com a esperança: no meio das dúvidas, perplexidades, injustiças e horrores, a esperança da plenitude da vida eterna em Deus...
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia 1 de Novembro de 2025
No âmbito da reflexão serena e fundamentada sobre os 900 Anos de Portugal, publicamos hoje um texto sobre as nossas raízes mais antigas, publicado há dias pelo “Observador”.
D. Afonso Henriques
Para compreendermos o período da formação de Portugal devemos não só ter presente as raízes antigas (de um complicado cadinho ou melting pot), nas quais geografia e história se associam, mas também a chave cronológica apresentada por José Mattoso para o momento crucial da formação da nacionalidade, onde encontramos seis períodos, ao longo dos quais vamos verificando a consolidação gradual da identidade política social e cultural portuguesa, enquanto realidade una e múltipla. No primeiro momento, 1096-1131, o poder condal começou a organizar-se à semelhança das monarquias com o estabelecimento de uma relação direta e estável com a aristocracia senhorial e as comunidades municipais, criando-se uma nova instância política que reunia os condados de Portucale e de Coimbra (tendo este último sido aliado dos reinos muçulmanos desde as invasões de Almançor – c. 938-1002; e governado pelo moçárabe Sisnando – Sisnando Davidis, falecido em 1091). Entre 1131 e 1190, D. Afonso Henriques, vencedor de D. Teresa em S. Mamede (1128), à frente dos barões portucalenses, estabeleceu a sua sede estratégica em Coimbra e ampliou o território português para mais do dobro, sofrendo, no entanto, a forte pressão das invasões almorávidas, na tentativa de recuperação dos territórios perdidos. De 1190 a 1223 houve a ocorrência da crise económica em resultado dos maus anos agrícolas, tendo D. Afonso II lançado medidas de centralização do poder real, com reforço da aliança aos concelhos, opondo-se à influência fragmentária do alto clero e da nobreza. Em relação ao período 1223-1248, houve uma fase muito difícil, pelas repercussões de uma nova crise económica e da peste, pela eclosão da guerra civil, caracterizada pela extrema fragilidade do poder de D. Sancho II e pelas contradições no seio da nobreza senhorial. Relativamente aos anos 1248-1279, D. Afonso III, o conde de Bolonha, emergiu fortalecido da guerra civil e prosseguiu, com muita determinação e sistematicamente, a ação centralizadora do Estado contra a afirmação dos senhores da terra e do clero - ao lado dos concelhos -, completando a conquista do território até ao Al-Gharb. Por fim, de 1279 a 1325, desenvolveu-se a ação de D. Diniz, desde a continuidade centralizadora do poder real e da fixação de fronteiras (Tratado de Alcanizes, de 1297) até ao reforço do poder militar e naval com a nomeação do genovês Manuel Pessanha como Almirante das Armadas, passando pela adoção da língua portuguesa na chancelaria, pela fundação da Universidade Portuguesa (o Estudo Geral), pela afirmação da influência do Direito Romano, pelo entendimento de que os habitantes do Reino são vassalos naturais do rei, sem intermediações (como defendera já Afonso X), pela proibição dos nobres armarem os cavaleiros vilãos dos concelhos ou ainda pela criação da Bolsa de Mercadores e pela intensificação do comércio com a Flandres, Inglaterra e França.
Através deste caminho, de afirmação muito segura do Reino, fica bem explícito o risco acrescido das missões cometidas aos Condes de Portucale na conquista e consolidação de posições, em confronto direto com as forças muçulmanas. E assim o Conde D. Henrique e os seus sucessores garantiram, através da reunião dos poderes locais, um fator de segurança e de continuidade com resultados positivos na consolidação do poder, de que beneficiaram os reinos cristãos, em contraste com as divisões e o descontentamento existentes sob o domínio almorávida… Importa lembrar, aliás, que a criação do condado portucalense destinou-se "não só a criar uma instância de comando militar capaz de fazer frente às investidas almorávidas, que se tornaram especialmente perigosas nos anos de 1093 e 1094, mas também a vencer a resistência regional à autoridade de Afonso VI. De facto, a entrega do condado a um francês protegido por Cluny e a nomeação de vários bispos franceses, logo de seguida, para as dioceses de Braga e de Coimbra, constituíram um conjunto de medidas com propósitos políticos intimamente relacionados entre si!". O sucesso militar e político do Conde veio, deste modo, a criar uma autoridade indiscutível que permitiu ao Reino de Portugal surgir ao lado de Leão e Castela e de Aragão como protagonista na segunda vaga das autonomias dos reinos cristãos. Recorde-se que a primeira tinha ocorrido entre 950 e 1050, tendo como atores fundamentais Castela, Aragão e Navarra.
Compreende-se a importância de o Norte Atlântico ser "a região por excelência do regime senhorial" e de as áreas mais montanhosas do Norte Interior e do Sul Mediterrânico coincidirem com a "implantação maciça das comunidades organizadas em concelhos". Afinal, a receita para o sucesso político de Henrique de Borgonha e dos reis portucalenses advém da arguta compreensão desta diferença e desta complementaridade. Há, de facto, uma "dialética constante entre os vetores da divergência e os movimentos da integração". E a integração acaba por prevalecer, por força das migrações, do progresso económico ou da organização social e do poder político. Eis como José Mattoso, com base numa investigação essencial que articula os diversos elementos já conhecidos, faz a ponte entre as duas influências portuguesas - superando, assim, o velho entendimento dos Nobiliários, sobretudo preocupados com o nexo gótico e com o predomínio exclusivo dos reinos cristãos. O Estado, que precedeu a Nação, progrediu para além desse entendimento - compreendendo os mais influentes monarcas portugueses a importância das diferenças sociais e étnicas, do moçarabismo, da fragmentação dos reinos taifas e do descontentamento crescente que ia germinando no sul.
O papel da guerra externa foi, assim, fundamental para a consolidação da nacionalidade. E o facto de o reino ser de fronteira pesou fortemente na relação exigente entre o estímulo e a resposta. Além disso, a expansão para sul permitiu resolver a conflitualidade entre os membros da nobreza, dando-lhes novos espaços de influência. Os excedentes demográficos de Entre-Douro-e-Minho puderam ser absorvidos e as importantes cidades conquistadas (nas quais avultam Santarém e Lisboa) tornaram-se centros económicos muito relevantes e novos mercados para a sociedade agrícola e comercial. O facto dos concelhos moçárabes (base do municipalismo, segundo Herculano) se terem deixado encabeçar por D. Afonso Henriques tornou-se, por outro lado, garantia de estabilidade e de uma boa defesa fronteiriça - baseadas na cedência ao rei de prerrogativas na justiça e no fisco, em troca de não terem de se submeter aos poderes senhoriais e da Igreja. Em bom rigor, o Estado nasceu, porém, apenas com Afonso II, e com o seu chanceler Julião, sendo ameaçado pela expansão senhorial do reinado de Sancho II, a que Afonso III pôs cobro. É a consciência nacional que surge, encontrando as suas fronteiras e os seus símbolos - que deixam de significar a identificação de um poder real, para representar a identidade dos portugueses… O método de Identificação de um País recusa as explicações tradicionais ou mitológicas. As características da "portugalidade" são vistas como fenómenos complexos que não podem resumir-se a um dilema estreito entre os que "tendem a estreitar os laços com a Europa" e os que projetam "Portugal para fora dela". Os traços da nossa identidade baseiam-se num equilíbrio ou numa síntese que exige a compreensão das diferentes raízes e de um percurso histórico longo e multifacetado.
ONDE HABITARÁ O SEGREDO?... por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim:
Cheguei a esta idade em que dizer "lembro-me de que...quando...etc..." já não será garantia de qualidade e origem, e até talvez tenha ultrapassado o prazo de validade. Mas, decrépito reacionário que seja, talvez por isso goste sempre muito deste recordar que é viver, e, mais ainda, do avivar da memória que só a confiança da nossa confidência (perdoa-me o aparente pleonasmo) pode oferecer-nos. Pois que, na verdade, do que lá vai não será nunca a memória intelectual - que é seletiva - o mais verdadeiro testemunho. Antes permanece o que o nosso coração guardou. E bem percebeu Pascal as razões do coração. E sábia era minha Mãe ao pedir para este filho um coração puro, pois só um coração assim quanto possível guardará na memória o trigo - que é, singelamente, o bem que outros nos quiseram e o bem que mesmo a inimigos conseguimos desejar. Esquecendo o joio. Passadas sete décadas, todos os dias recorro, apesar de muitos fracassos, a esse exercício de limpeza do olhar íntimo, pois só no coração nos é legítimo pensarsentir. Hoje ainda, uma amiga, pessoa de curiosas sintonias, me desejou um dia com a cor que eu desejasse. Não lhe respondi, mas dir-lhe-ia que todos os dias quero o arco-íris. Não como Calígula a pedir a lua a sua mãe, mas para sentir as cores de todos. Como Noé viu a paz universal num feixe de tons. A harmonia não tem sentido possível na uniformidade, mas só no acontecimento das diferenças que unem a terra ao céu. Quando, depois da tempestade, a incidência da luz reúne as cores numa aliança. Falava-te de lembranças? Talvez dessa, de um encontro com Stravinsky e Cocteau, por via dos Maritain (há quantos anos?), em Paris, por ocasião de um "Oedipus Rex". Escrevi-te a referi-lo e, rio-me eu agora, já não te lembras? Desde que conheço a sua música, ouço, escuto, Stravinsky com atenção indivisa. Os primeiros discos que comprei, daqueles que facilmente se riscavam e partiam, foram, um de Beethoven, outro de Stravinsky. Do primeiro, a 5ª e a 8ª sinfonias (que ainda hoje, em silêncio, canto de cor, imitando instrumentos). Do russo, "O Pássaro de Fogo" e a "Sagração da Primavera". Se tivesse ensurdecido, como Beethoven, Stravinsky teria deixado de compor. Era um artesão, precisava de martelar e ouvir o piano, o instrumento produtor de sons, para trabalhar com eles. O que verdadeiramente o prendia ao exercício de fazer música era, não só o gosto inato pela organização matemática dos sons, mas sobretudo a massa sonora, como o barro para o oleiro ou o metal para ourives ou ferreiro. Ter-lhe-á sido certamente útil o rigor técnico obrigado pela sua professora de piano, mas foi crescendo pelo seu gosto da procura dos sentidos possíveis dos sons, através das improvisações a que se entregava. E deve muito ao acolhimento que o grande orquestrador que Rimsky-Korsakov era lhe reservou, com paternal amizade. Gosto de pensar na música como peregrinação por caminhos desconhecidos e, todavia, tão percorríveis no íntimo de nós. O coração da música não está tanto nessas melodias divertidas e fáceis, que superficialmente captamos, por qualquer reflexo nervoso (como, aliás, nos, também necessários, copito a mais ou anedota pícara). Estará mais nessa atenção à possibilidade de tirar, das matérias que compõem as coisas várias deste mundo, um som inesperado, revelador da milagrosa essência do ser. Recolhi-me há pouco, por uns nove minutos, com as sinfonias para instrumentos de sopro, compostas por Stravinsky aos 38 anos (em 1920). Chamam-se sinfonias, com sentido etimológico: fonemas que soam simultaneamente (e perdoa-me mais um pleonasmo...). Foram compostas em homenagem a Debussy, mas são "vintage Stravinsky", e do mais puro. Tocam vinte e três sopros (doze madeiras e onze metais), a sinfonia é compacta, estruturante, nada há nela de estridente ou vadio, é intimamente hierática, mas para reunir. Dez anos mais tarde, ainda em movimento místico que o trouxe de regresso à Igreja Ortodoxa Russa, para celebrar o 50º aniversário da Boston Symphony Orchestra , Igor Stravinsky apresenta a Sinfonia dos Salmos, composta com textos em latim, tirados da tradução "vulgata" de S. Jerónimo. Diz-se que a ideia lhe teria ocorrido em Pádua, em 1926, quando ali assistia às comemorações dos 700 anos de Sto. António de Lisboa. Mas, Princesinha, disso e mais te escreverei se me refrescar a memória. Por agora, vou escutar o "Oedipus Rex", com texto francês, para o narrador, que Jean Cocteau foi buscar a Sófocles, e traduções latinas, para o recitativo e canto da ópera-oratório, devidas ao padre jesuíta Jean Daniélou, mais tarde teólogo no Vaticano II e cardeal. Olha: talvez te fale também dos (des)entendimentos de Stravinsky com Cocteau, e sobretudo com André Gide (no caso da "Perséphone"): ou de como nem sempre é imediato o acordo das palavras e da música. Será que vou escutar o Édipo, só porque te falei na memória e penso que o nosso maior enigma é o esquecimento? Dás cabo de mim, Princesa.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 22.11.13 neste blogue.
José Afonso Furtado foi um exemplo de inteligência e entrega plena ao serviço público da cultura. Foi um estudioso e um militante sereno e determinado da promoção do livro e da leitura, para além do prazo curto. O produto do seu labor e talento está bem vivo, e todos quantos lidam com o mundo dos livros e do conhecimento sabem o muito que beneficiaram do seu contacto. O trabalho que realizou na Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian (1992-2012) foi notável, na modernização tecnológica e na criação do serviço de referência, completando o que também fez na rede nacional de bibliotecas públicas municipais. Lembramo-nos da sua obra fundamental A Edição de Livros e a Gestão Estratégica, que continua ser um livro referencial. Quem o conheceu, sabe quanto era entusiasta, generoso, disponível e exaustivo no estudo e compreensão daquilo que o interessava. A partilha de conhecimentos era motivo de genuíno prazer, e todos quantos beneficiaram do saber que cultivava não podem esquecer o que lhe devem. Mas, além, da entrega à causa do livro e da leitura, José Afonso Furtado foi um artista, um criador, com provas dadas no domínio da fotografia. A sua obra põe-no no centro da melhor criação do seu tempo. As suas paisagens serenas e rigorosas permitem uma inevitável ligação à terra e ao tempo. Cada fotografia sua obriga-nos à observação atenta do conjunto e do pormenor. Dir-se-á que uma paisagem ganha, assim, todo o esplendor, tornando-se verdadeiro diálogo entre humanidade e natureza.
Ao seguirmos o seu caminho profissional, encontramos a presidência do Instituto Português do Livro e da Leitura (1987-91), a participação no Conselho Superior das Bibliotecas, a docência nos cursos de ciências documentais e de técnicas editoriais e na disciplina de Sociologia do Livro e da Leitura. Participou na Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses e fazia parte da Comissão de Honra do Plano Nacional de Leitura. Como prova da profunda atenção que dava á evolução do mundo digital e da comunicação cultural, foi referido em 2011 na revista “Time” como um dos mais influentes utilizadores do Twitter (hoje X). Na vasta bibliografia que nos deixou conta-se O Que é o Livro (1995), Os Livros e as Leituras. Novas Ecologias da Informação (2000) ou Uma Cultura e Informação para o Universo Digital (2012), além de Canção das Crianças Mortas (com Clara Pinto Correia, 1989). Sobre fotografia são inesquecíveis Das Áfricas (com Maria Velho da Costa); Os Quatro Rios do Paraíso (com Clara Pinto Correia e Cristina Castel-Branco); Mundos da Fotografia – Orientações para a Constituição de uma Biblioteca Básica (com Ana Barata); Contaminações. Minas Abandonadas – Fotografias 1994-2009 (2019). De modo emblemático, sobre o Livro, a sua importância e fragilidade, José Afonso Furtado disse de modo sublime: “Nestes momentos de turbulência muitas predições já falharam, muitos fenómenos vertiginosos surpreenderam a comunidade dos especialistas. (…) As verdades inquestionáveis mais não seriam do que um compêndio de banalidades. Tal como outros, em outros tempos, ‘navegavam sem o mapa que faziam’, também agora ‘os homens sábios tinham concluído / que só podia haver o já sabido: / para a frente era só o inavegável’, como escreveu, admiravelmente, Sophia de Mello Breyner Andresen. Resta-nos, então, navegar os novos espaços”.
Na medida em que o desejo também nos puxa para o desconhecido, a curiosidade, os mistérios da vida, nos transforma e tira da inércia, do ócio, do tédio, programando o que poderá ou poderia ser, acaba por ser, de igual modo, uma manifestação de liberdade de expressão que se quer livre.
Se não reconhecido fica censurado, se reprimido torna-se silencioso, desembocando a ausência (de desejo), nesse contexto, em angústias, silêncios e numa previsível “infalibilidade” de quem reprime e não se assume como falível.
Contentando-se com o que é repudiado e o que poderia ser, a ausência de desejo apela, num certo enquadramento, à segurança, ao mito da normalidade, ao estabelecido e não questionado, ao não querer correr riscos, à arrogância de querer ter sempre resposta conhecida para o desconhecido.
O reconhecimento da nossa própria falibilidade, refutando a infalibilidade, faz parte do que faz alguém ter um desejo sério, fazendo progredir o conhecimento humano.
O desejo, como a liberdade, é inerentemente antiautoritário, autocorrigindo-se, ao invés da sua omissão.
Mas também é ambíguo, luz ou sombra, solar ou escuridão, de bom ou mau gosto, sendo o seu significado determinado pelo seu contexto de apresentação ou de expressão. Desejar é viver em estado de incerteza e de inquietação, é ser liberal, estar aberto à experimentação, à tolerância, à dúvida, à mudança, à refutação, ao erro, à diversidade, em conjugação com o facto de o ser humano ser, por natureza, incompleto ou imperfeito.
Há desejos que nos libertam e os que nos amarram, e os que reconhecem o mistério da vida a que não cede quem ousa pensar (ingloriamente) que tem resposta para tudo.
O QUE HÁ A GANHAR AINDA NÃO FOI PESADO CONTRA O QUE SE PODERÁ PERDER
Nas palavras de Naomi Baron, a grande questão reside em saber o quanto a memória, a concentração, as reflexões serão parcialmente perdidas pela leitura no ecrã que nos tem conduzido a um novo normal.
Existem sinais de desincentivo à leitura graças às máquinas que invadem as vidas na era digital e assim os cérebros se vão remodelando. Receia-se mesmo que a inovação digital esteja a avançar muito mais depressa do que a nossa capacidade de entender os efeitos dessas inovações nos nossos cérebros.
O que há a ganhar ainda não foi pesado contra o que se poderá perder.
Há uma base sólida para estes receios, para a falta de substancialidade. Desde logo, a distração por ecrãs, torna o tempo dedicado a qualquer novidade conceptual imoderadamente escasso para o integrarmos no nosso conhecimento.
A leitura induzida é superficial, o que pressupõe um pensamento igualmente superficial, o que nos faz recear que na era digital, possamos perder a leitura profunda bem como o próprio processamento profundo, aquele que é conhecedor da luz que ilumina.
De registar que se assim for, a própria política, bem cheia desta mudança decisiva - e se a mesma continuar a ser fragmentada e descontextualizada-, só conduz a uma exacerbação da polarização o que só contribui para a mentalidade de soma zero e alimenta o sentimento de "nós versus eles".
Na verdade, a informação curta e imediata funciona como custo de oportunidade, confundindo informação com conhecimento.
Esta mentalidade gera hostilidade e impede a cooperação, a própria colaboração entre indivíduos, dificultando o próprio desenvolvimento económico já que um país que impõe tarifas a mercadorias estrangeiras, protege as economias domésticas, mas limita a inovação e o crescimento.
O novo pensamento gerado pelo digital-humano não interioriza, pois não existe contexto, tudo se pode consultar imediatamente no computador, o que pode tornar extremamente difícil um pensamento credível sobre a ordem mundial.
Mas ainda vamos a tempo de impedir que o santuário solitário que nos chega com a leitura, seja despromovido a solidão.
Mas ainda vamos a tempo de não acabarmos como Eloi no livro A Máquina do Tempo (1895), de H.G. Wells.
O que acontece quando nos chega correio (por exemplo uma carta dos impostos) para o anterior inquilino do sítio onde moramos? Com probabilidade deitamo-lo fora; nalguns casos, devolvêmo-lo ao carteiro, para que se descubra o anterior inquilino. As coisas estão bem feitas; os inquilinos sucessivos de um mesmo local têm normalmente nomes diferentes; não achamos que as cartas destinadas aos anteriores ocupantes da nossa casa nos sejam dirigidas.
Algumas pessoas no entanto acham também que as cartas que chegam à sua actual morada e em seu nome não são necessariamente para si. Trata-se de pessoas que gostam de se referir a si próprias como o actual inquilino do seu corpo; que falam com desembaraço das várias pessoas que têm sido ao longo da vida; que acreditam que não têm nada a dizer sobre as várias coisas que na vigência do seu corpo disseram, pensaram ou fizeram. Quando chega uma carta declaram ao carteiro que o destinatário já não mora ali.
A ideia parece excêntrica; mas nalguns casos pode ter vantagens. Uma lei sensata sobre falências, para dar um exemplo, é uma lei que se dispõe a considerar que em certas circunstâncias deixa de haver continuidade entre uma certa pessoa e quem no passado ocupou o mesmo corpo. O inquilino actual escusa por isso de responder às cartas que foram mandadas ao inquilino anterior do seu corpo (com quem também partilha normalmente o nome).
Em diferentes lugares do mundo as leis e os costumes tratam de modo diferente a possibilidade de uma pessoa ser o inquilino temporário de um corpo. Nalguns países uma pessoa cujo negócio faliu será toda a vida olhada como uma pessoa cujos negócios irão falir; e quem em pequeno roubou peras do pomar do vizinho será para sempre um ladrão. Noutros entende-se que uma vez não são vezes; e que quem roubou as peras não prosseguirá necessariamente uma carreira de crime. A ideia de regeneração tem à primeira vista um certo parentesco com a ideia de inquilinato de um corpo.
A diferença entre os casos sensatos e a ideia excêntrica é a diferença entre existirem leis ou costumes partilhados sobre maneiras de tratar pessoas, e imaginar que quem eu sou depende apenas de mim. Quando acho que quem eu sou depende apenas de mim acredito que posso despejar os anteriores inquilinos do meu corpo com liberalidade, e substituí-los por quem acho que actualmente sou.
Como as minhas opiniões sobre o meu actual inquilino são quase sempre favoráveis, o único resultado desta lei do inquilinato é gerar propaganda a favor de quem actualmente sou. Quem actualmente sou é como a última ideia que tive: sempre melhor que a penúltima. Parece pois prudente não deixar aos interessados a determinação de quem realmente são. Não me deve caber a mim estipular quem é o actual habitante do meu andaime biológico. Não somos os senhorios do nosso actual inquilino.
Miguel Tamen Escreve de acordo com a antiga ortografia
O que é a religião? O que deve entender-se por pessoa religiosa? Onde se fundamenta a religião? Qual é o dinamismo que está na base das religiões? Porque há religião/religiões?
Toda a religião tem a ver com a ética e também com a estética. Hegel viu bem, quando afirmou que a arte, a religião e a filosofia estão referidas ao Absoluto. A pergunta é, como escreveu o filósofo J. Gómez Caffarena, se a ética, a estética e a filosofia acabarão por absorver a religião, como já insinuava Goethe: “quem tem arte (e moral e filosofia) tem religião; quem a não tem que tenha religião”.
Segundo Lucrécio, “o medo criou os deuses”. Desde então, isso tem sido repetido, acrescentando a ignorância e a impotência, de tal modo que, com o avanço da ciência e da técnica, a religião acabaria por ser superada e desaparecer. Será, porém, verdade que na génese da religião estão o medo, a ignorância e a impotência? Ninguém poderá negá-lo. A questão é saber se esses são os únicos e decisivos factores e de que modo actuam. De facto, não é a limitação enquanto tal que está na base da religião, mas a consciência da limitação. Na consciência da finitude, que tem a sua máxima expressão na consciência da mortalidade, o Homem transcende o limite e articula um mundo simbólico de esperança de sentido último e salvação. Como disse Hegel, a verdade do finito encontra-se no Infinito, e Kant viu bem, ao referir a religião à esperança de um sentido final. Segundo ele, o interesse da filosofia pode reduzir-se às seguintes perguntas: “O que posso saber? O que devo fazer? O que me é permitido esperar? O que é o Homem? À primeira pergunta responde a metafísica, à segunda a moral, à terceira a religião e à quarta a antropologia”. Assim, é possível que a ciência e a técnica obscureçam a força do apelo religioso. Mas, permanecendo a finitude e a sua consciência, há-de erguer-se sempre a pergunta pelo Fundamento e Sentido últimos.
Como disse E. Ciorán, “tudo se pode sufocar no Homem, salvo a necessidade do Absoluto, que sobreviverá à destruição dos templos e mesmo ao desaparecimento da religião”. Na mesma linha, afirmou L. Rougier: “A Igreja pode declinar. O sentimento religioso grávido de um impulso para o ideal, de uma sede do Absoluto, de uma necessidade de superar-se, que os teólogos chamam Transcendência, subsistirá.” O que, do ponto de vista biológico, une a Humanidade é a interfecundidade. Do ponto de vista espiritual, o que a une é a pergunta radical pela totalidade e o seu sentido, o Sentido último.
O Homem é o animal que pergunta pelo seu ser e pelo ser. A razão humana não cria a partir do nada. Na base do ser humano, há uma “passividade originária”, como repetia o meu saudoso mestre e amigo Miguel Baptista Pereira: quando damos por nós, já lá estamos, ninguém foi consultado nem decidiu vir a este mundo e ser quem é; depois, um dia, a morte chega e leva-nos. A razão humana constrói, portanto, a partir do dado e, feito todo o seu percurso, sabe que acende a sua luz na noite do Mistério. Se pergunta, é porque ela própria é perguntada pela realidade, que é ambígua. Precisamente na sua ambiguidade, provocando, por isso, espanto positivo e negativo, a realidade e a existência convocam para a pergunta radical: o que é o Ser?, o que é o Homem? Quando, no processo evolutivo, se deu a passagem do animal ao homem, apareceu no mundo uma forma de vida inquieta que leva consigo constitutivamente a pergunta pelo Sentido de todos os sentidos, portanto, a pergunta pelo Sentido último. A dinâmica religiosa deriva da experiência de contingência radical e da esperança num sentido final. A mesma experiência tem um duplo pólo: a radical problematicidade do mundo e da existência e a referência em esperança a uma resposta de Sentido último, plenitude, felicidade, orientação, identidade, salvação. Este domínio da busca de sentido aparece de modo tão central na vida humana que a História da Humanidade não se compreende sem a história da consciência religiosa, não sendo de esperar o fim da religião e das religiões. Neste contexto, não é ousado afirmar que todo o ser humano é religioso, na medida em que é confrontado com a pergunta pela Ultimidade. Só poderíamos falar de irreligiosidade, no caso de alguém se contentar com a imediatidade empírica, recusando todo e qualquer movimento de transcendimento, o que não é possível, pois isso é contraditório.
É inevitável a pergunta: Sem Deus, que sentido teria a vida?
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Sábado, 25 de Outubro de 2025
«Novas Fases da Lua» de João de Melo (D. Quixote) é um diário dos anos de 2017 a 2024 (com exceção de 2020 e 2022) no qual encontramos o pulsar da vida cultural pela pena de um grande escritor.
O diário de um escritor é sempre a revelação apetecível de um retrato do mundo através do testemunho de quem procura ir além das aparências e do prazo curto. João de Melo é um excelente cicerone, que nos conduz por caminhos muito sedutores que nos ajudam a compreender o tempo e as pessoas. A cada passo encontramos autores e acontecimentos que seguimos com um incontido prazer, pois além da sedução da escrita podemos usufruir de uma leitura qualificada da realidade cultural que nos cerca. Em 17 de fevereiro de 2019, ouvimos o autor: “Ponho-me a imaginar a minha biblioteca sem mim, ou seja, depois de mim. Todos estes livros têm a marca das minhas mãos, uma história silenciosa que um dia se calará comigo. Dói-me imaginar o destino que os levará a outros olhos e a mãos diferentes das minhas. Perder-se-ão as dedicatórias dos autores, a minha leitura deles, os milhares de livros lidos sobre os quais se apagará a luz e a gratidão dos meus olhos. Houve um tempo em que as bibliotecas representavam pequenos tesouros familiares que os filhos herdavam com proveito e alegria. Hoje ninguém quer bibliotecas particulares: todos os lugares estão cheios e saturados delas – acabarão num sótão ou numa cave escura e coberta de pó, ou nas mesas de rua dos vendilhões de livros em segunda mão, comprados a pataco como pechinchas de ocasião. (…) Toda a vida a comprar e trazer livros para casa, e depois este logro, esta inutilidade alheia”. Estamos aqui no coração deste diário, de modo a que possamos usufruir da essência da memória, para além do desaparecimento do tempo. Olhe-se a lembrança de “Ana Karénina”, aprendendo “com os mestres a simplicidade profunda, o segredo discreto do génio, a linguagem natural da literatura. A grande literatura faz-se com a paciência laboriosa do inventário, com atenção e rigor máximo no pormenor”. Eis como um livro se mistura com a vida do leitor, e a biblioteca é a grande representação do mundo em que cada um de nós se insere. Tolstoi torna-se, assim, nosso companheiro. E lembramos Vargas Llosa a ensinar-nos que “devemos organizar a vida como se fossemos viver indefinidamente. De maneira que a morte seja como um acidente”. Assim a literatura e os livros tornam-nos participantes de um tempo eterno… “A literatura mudou o curso dos meus dias. Deu-me no mundo um conhecimento bem mais vasto do que as minha origens. Nem eu sei que espécie de vertigem explica a minha necessidade vital de cultura, dos livros próprios e alheios, do que mim se irmana ao ler e amar os livros dos outros e de ser lido e amado por eles”. E assim nos deparamos com a fascinante leitura de “Astronomia” de Mário Cláudio, em que as personagens não têm nomes: são os Pais, os Tios, as Criadas, o Menino, o Rapaz e o Velho. Assim, o leitor descrê do teor pessoal da leitura e fixa-se na ficção biográfica. A realidade e a imaginação misturam-se, e entramos de pleno no mundo de uma realidade que nos faz assumir a transição entre o sonho e o mundo concreto, como sombra de várias sombras.
E de súbito encontramos a criada de Herculano, convencida de que o historiador era um preguiçoso, por levar os dias sentado a escrever. Assim convivia com essas sombras míticas, projetando-as para além do tempo. No diário os temas sucedem-se, e o memorialista depara-se num passeio ao Sol de Inverno com um bairro novo cujas ruas têm nomes de escritores. Rua Vitorino Nemésio é paralela à de Jorge de Sena, e perpendicular à Alameda António Sérgio. Numa bela metáfora, os habitantes das estantes de uma biblioteca ocupam os espaço público. Tudo a partir da recordação do “poeta preclaro e secreto no seu género miúdo, prosador de luxo em várias frentes de escrita”. Temos, pois, o genial autor de “Mau Tempo no Canal” e dos contos magistrais de “O mistério do Paço do Milhafre”. E a escrita do diário flui, rápida e apaixonante. Depois de Nemésio, vamos ter com Raul Brandão e as suas “Memórias”. “Vê-se quando se fixa em testemunhos de bastidores. Não faltam motivos de interesse a prenderem-me à leitura desta obra sintomática: lá está o prosador emérito, tão subtil como expressivo, com uma linguagem dúctil e surpreendente, que nunca nos deixa indiferentes. Às vezes diz mais uma frase isolada do que alguns de nós em longos e amargos parágrafos”. E não se esconde a admiração por Aquilino, o sábio criador verbal que remexer fundo na linguagem e traz a superfície a nova língua portuguesa”.
Lembrando o seu tempo em terras de Espanha, o cronista afirma: “Pudesse eu ter meios para tanto, vinha viver aqui, podendo em Barcelona ser português, espanhol e catalão, em simultâneo, desde sempre, para sempre”. Há um sentido especial de grandeza, na arquitetura e no urbanismo, que nos aproxima de sermos ibéricos. Eu conheci melhor João de Melo nas andanças da Educação. Tive grande gosto em contar com a sua colaboração numa ideia com virtualidade indiscutíveis – usufruir da experiência dos escritores e artistas em itinerância nas escolas. Diz-nos João de Melo: “Fui um professor seguro da sua competência e dos seus deveres. E dos seus afetos. Revi nos alunos não a minha juventude mas a deles num país a abrir-se a novas práticas pedagógicas, novos direitos no exercício da experiencia escolar e democrática. A vida dividiu-me entre a docência e a literatura. Passei a ser o ‘escritor da Escola’”. A escola primária da Achadinha não se esquece e as raízes estão sempre presentes, entre mil afetos. Essa ligação à terra e à casa que o viu nascer e crescer é muito forte. A cada passo vem essa recordação intensa. Mas o escritor não esquece a imposição consumista do público e a influência desse modismo nos editores. “As editoras pedem-nos romances, só romances e nada mais que romances. Instalou-se de tal ordem esta ditadura do gosto sobre a condição literária, que tudo parece adverso e exige coragem, afinco, resistência ao lado da pequena minoria que frequenta a chamada short story e ainda dela se orgulha. Como eu”. E ainda esta mentalidade resistente sente-se quando o autor se rebela quanto ao conselho de poupar por não adquirir livros em papal, em benefício de obras no império digital. João de Melo partilha connosco pertinentes reflexões sobre o mundo contemporâneo. Não esconde preocupações com as tergiversações do Presidente Trump, com as estranhas cumplicidade com Putin e com a evolução da China: “Converteu-se o PC em conquistador do capitalismo dos outros. Não se percebe o que vai lá dentro, que regime é o deles com o partido único, um regime pouco ou nada comunista que catapulta sobre nós um imperialismo económico, algo de obscuro que nos vem de longe e de cima, lá de um alto a que não chega o orgulho europeu de cada pais, e menos ainda a união da velha Europa”. O Médio Oriente é também motivo de atenção. “Em Gaza morre-se por tudo e por nada. Morrem crianças, mulheres e gente velha só por isso: por existirem”. Por outro lado, “Ninguém sabe até onde irá Putin na sua sanha antieuropeia. O déspota do Kremlin começo a ameaçar-nos com as suas bombas atómicas. E com uma terceira guerra mundial. Morre gente tão boa, dia a dia – e o escroque sempre tão cheio de saúde e de veneno”. O perigoso mundo continua a rodar e as perplexidades vão-se acumulando, ao ritmo de um diário… É tempo de atenção e cuidado.