Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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Maria Barroso e Augusto de Figueiredo em "Benilde ou a Virgem Mãe" de José Régio (in site da C.M. de Vila do Conde)
ATORES, ENCENADORES (XIX) REFERÊNCIAS A MANOEL DE OLIVEIRA, JOSÉ RÉGIO, MARIA BARROSO por Duarte Ivo Cruz
Fazemos aqui uma abordagem global a três nomes exponenciais da cena portuguesa – e cada um deles, a seu modo e na biografia respetiva, em muito transcendeu a abordagem específica da arte do espetáculo. Referimos Manoel de Oliveira, na sequência da publicação anterior, mas também, pelas razões que adiante se explicam, José Régio e Maria Barroso.
Como bem sabemos, cada um transcendeu em muito a expressão dramática, aliás, também cada um deles, assumindo-a num nível de qualidade excecional. Mas é o teatro e o espetáculo que aqui os relaciona – e a partir da peça “Benilde ou a Virgem Mãe”, peça escrita por José Régio em 1947, estreada no Teatro Nacional de D. Maria II em 1947-1948 com Maria Barroso na protagonista, e filmada por Manoel de Oliveira em 1975 com Maria Barroso no papel de Genoveva.
Maria Barroso termina o curso de teatro do então Conservatório Nacional em 1943 e no ano seguinte ingressa na Companhia do TMDM II dirigida, como se sabe, por Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro. Prossegue estudos na Faculdade de Letras de Lisboa, enquanto assume diversos papéis de protagonista no Nacional, com destaque para a Maria de Noronha do “Frei Luís de Sousa” em 1946. No ano seguinte estreia-se no cinema com “Aqui Portugal” de Armando Miranda: mas mais importante do que isso, nessa mesma temporada de 47-48, fará a protagonista da “Benilde” no D. Maria, com Augusto de Figueiredo no papel de Eduardo.
António Braz Teixeira assinala que «tal como o rei de “Jacob e o Anjo”, também a protagonista de “Benilde”, porque foi escolhida por Deus, só na morte serenamente aceite ou desejada (…) alcança a verdadeira liberdade redentora» (in “Teatro I” ed. INCM-2005 pág. 22). E o próprio Régio destacará esta interpretação, quase a última que Maria Barroso assume no Teatro Nacional antes de ser afastada em 1948. A crítica da época é aliás unânime em reconhecer a notável interpretação de Maria Barroso. “É o reconhecimento do seu talento. É a consagração do seu nome. É o ponto iluminado do seu palco” escreverá, meio século decorrido, Leonor Xavier, que reproduz um conjunto relevante de críticas da época. (in “Maria Barroso – Um Olhar Sobre a Vida”, ed. Difusão Cultural - 1995 pág. 98).
Maria Barroso afasta-se dos palcos. Mas em 1965, retoma a carreira em duas interpretações notáveis que marcaram o início de atividade do Teatro Villaret: “O Segredo” de Henry James e a “Antígona” de Jean Anouille, que já evocamos nesta série de artigos.
Ora bem: em 1975 estreia em Lisboa o filme de Manoel de Oliveira precisamente denominado “Benilde ou Virgem-Mãe”. Aqui, a protagonista é Maria Antónia Mata, e Maria Barroso assume o papel de Genoveva “velha criada da casa”. O texto teatral articula-se na expressão cinematográfica: diz João Bénard da Costa que “é o cinema que invade o teatro, num jogo de alçapões e sótãos, como se sob a profundidade do primeiro se escondesse o espaço do segundo”… (in “Histórias do Cinema” ed. Europália e INCM 1991 pág. 153).
E Eduardo Prado Coelho: «Em primeiro lugar, o filme nunca pretende figurar, melhor ou pior, uma realidade, mas sim registar uma peça de teatro. Quer dizer que, com “Benilde”, Manoel de Oliveira avança sim pouco mais na sua conceção sobre a passividade do cinema. Em segundo lugar, opera-se, neste movimento de câmara, uma passagem para um espaço deliberadamente fechado, onde o exterior adquire uma força simbólica desmesurada (…). Em terceiro lugar, este espaço fechado é o espaço maldito que, na sua velha clausura, assistiu ao enlouquecimento da mãe de Benilde, ao bizarro comportamento do pai, e serve agora como explicação para o mistério que envolve o estado de Benilde”. (in “Vinte Anos de Cinema Português – 1962-1982” ed. ICLP pág. 58).
Entretanto, quero aqui frisar a expressão dramática e a qualidade do texto em si, e a sua “adaptabilidade” digamos assim, a formas de espetáculo em si mesmas distintas: o que em rigor se deve ao extraordinário talento de José Régio, que como sabemos não esteve, ao longo da vida, especialmente ligado aos meios teatrais e/ou cinematográficos…
Maria Barroso faria pequenas intervenções em dois filmes de Manoel de Oliveira: “Amor de Perdição” (1977) e “Le Soulier de Satin” (1984).
E seja-me permitido terminar com uma citação de texto de minha autoria, a propósito da “Benilde” - peça:
“Luta Benilde pela sua verdade. E só a morte evidente mostra a verdade essencial e subjetiva das suas vozes. (…) Teatro e grande teatro é a tensão doseada e progressiva de «Benilde ou a Virgem-Mãe», o seu remate inesperado, a dúvida que sempre subsiste”… (in “História do Teatro Português”- Verbo ed. 2001, pág.296).
DUARTE IVO CRUZ
Obs: Reposição de texto publicado em 15.04.15 neste blogue.
“A razão do papel maior desempenhado pela tradução literária é evidente: foi graças às traduções que o checo se constituiu e aperfeiçoou como língua europeia de corpo inteiro, terminologia europeia incluída. Enfim, foi através da tradução literária que os checos fundaram a sua literatura europeia em língua checa e que a literatura formou os leitores europeus que leem checo”. Milan Kundera
Sobressai a ideia de que uma nação só sobrevive culturalmente se deixar de ter uma visão paroquial, meramente utilitária e só centrada no seu umbigo, em benefício de critérios importantes para o mundo e toda a humanidade, onde o tradutor, como ator literário maior ou principal, tem o protagonismo.
As palavras de Kundera, inseridas num discurso ao Congresso dos Escritores da Checoslováquia, em 1967, sobre “A Literatura e as pequenas nações”, exclui o pensar de que uma germanização teria simplificado a vida dos checos, dado que a pertença a uma nação maior oferecia melhores oportunidades e alargava o alcance a todo o trabalho do espírito, incluindo a ciência.
Preserva-se e reafirma-se a identidade de um povo, atualizando-a, quando e se necessário, dando-a a conhecer ao Outro e recebendo, desse encontro, em reciprocidade, valores que os povos possam acolher, em igualdade, rumo à construção de um caminho em dignidade e humanidade.
Entre nós, por exemplo, refere-se como forte razão para o défice de apenas um escritor de língua portuguesa ter sido premiado com o Nobel da literatura, a pouquidade de tradução para sueco (principal idioma escandinavo, sendo a Suécia patrocinadora do prémio), a que se soma a insuficiência de tradução para o inglês, hoje a língua global por excelência (o que foi atempadamente suprido por Saramago).
Há também o perigo da globalização, inclusive em termos culturais quando, em rigor, deve ser a cultura o derradeiro abrigo que justifica e preserva a identidade e singularidade que nos autonomiza e diferencia, contrariando perspetivas estritamente hegemónicas e integracionistas. Só assim os pequenos povos conseguem defender a sua língua e a sua soberania, através do peso cultural do seu idioma e a natureza dos valores gerados com a sua ajuda.
Mesmo Portugal, que tem, através da lusofonia, uma das línguas mundiais maiores, não está imune ao fenómeno mundial de massas, dada uma intelectualizada, gradual e lamentável tendência de começar a priorizar o inglês à sua língua natal, a pretexto de facilitar o contacto com a ciência e o cosmopolitismo internacional, sem reciprocidade, o que pode e deve ser suprido, sempre que necessário, pela tradução para português (em sentido inverso), enriquecendo-o em termos de valor acrescentado e linguísticos.
Entrou com a poesia numa nova corrente de vida e levou-a para um local desconhecido. Antes e depois envolveu-se com as rochas e sobre muitos marulhos pousou-se e disse:
Quando partires se partires terei saudades e quando ficares se ficares terei saudades
Nestes tempos confusos em que se admira mais a bravura física do que a coragem moral há um mundo que visa criar o caos adubando o medo. Um mundo absolutamente consciente da sua mentira; um mundo de insignificância que troça dos pensadores que teme; um mundo que promete segurança, abrigo, justiça e prosperidade, no maior desprezo pela verdade do que é humano; um mundo que só lhe interessa não valorizar o que até hoje se alcançou para em tudo semear ambiguidade e incerteza, utilizando as redes sociais num obsceno jogo de comando, através do qual a liberdade vai sendo eliminada e os seres semelhantes a térmitas, mil vezes multiplicados.
É um mundo que nenhuma cultura merece.
Um mundo bruto que defende os muros farpados, o não entendimento da diferença, um mundo que compra com alegria a ignorância a preços baixos.
Chegaram estes tempos confusos com a ajuda do culto do eu, e dentro desse eu, cada um, supostamente sacerdote de si, aprisionado na era dos meios digitais, e como se já antes desta era, por cima do ombro, estes eus se tivessem compreendido nas suas pequenas verdades; como se o narcisismo dos eus não fosse tóxico e capaz de contar apenas a história que desejam ouvir e transmitir.
Na verdade, aqui chegados, muitos ambicionam entrar em cena na procura do poder a fim de concretizarem a sua única vontade, inclusive, tripulando naves que só eles conhecem destino, colapso ou emergência.
Entretanto invoca-se a criatividade, e as start-ups prometem também a ressurreição!, qual falácia agitada e organizada da nova termiteira.
E encontramo-nos quando tiramos a máscara que usamos diante de todos?
O que encontramos por trás da máscara?
Um somos ninguém? ou um pouco do alguém?
Quando criámos uma alternativa de soluções eficazes aos desafios que encontrámos?
Quando?, quando ideias materializáveis foram contributo às perguntas sem resposta?
Quando a aventura humana se confundiu?
E hoje, hoje temos convicções suficientemente sólidas para lutarmos contra quem quer destruir a capacidade delas se formarem?
Está a chegar um novo ano e já vimos demasiadas coisas.
O herói de uns é o vilão de outros, e anda muita gente desorientada sobre o que significa ser bom ou ser melhor.
Até já se desconfia daqueles que tomam posições contra o abuso de poder ou de dogmas.
E nem sempre foi assim.
E nem sempre foi assim.
E muitas vezes já foi assim.
E muitas vezes já foi assim.
As ondas da história fazem-se sempre ao redor de uma rotunda, mas também podemos ser, de repente, algo poderoso que acontece:
Volto a recordar o jovem rebelde que ficou em pé frente aos tanques na Praça Tiananmen.
E desde então nada se compreendeu?
Não estar morto não é tudo o que há a celebrar!
Fará sempre parte da nossa tragédia apenas colocar as culpas nos outros, minimizar os perigos reagindo demasiado tarde, ridicularizar a ciência, politizar doenças, relativizar a não-vida enquanto por entre tudo, uma primitiva manipulação já obteve êxito na criação de abismos de ódio entre os homens.
E não é fácil descortinar como esses abismos serão ultrapassados.
Quem toma por garantido deseja que nada aconteça depois disso: que não exista um tu vivo, um tu que sinta, pense e fale.
E não é fácil explicar o facto de não se saber coisas e é inexequível exprimir o facto de se não saber o que é saber.
Nas grandes tragédias humanas sempre esteve o comportamento do pior da nossa natureza, esse mesmo que se expande no obscurantismo das multidões fanáticas, na crueldade como seu traço distintivo.
Há de novo um mundo que pretende reinar destruindo tudo o que existe para dar início às versões dos messias titânicos que já vestem o nanismo do futuro do outrora.
Mas recuperadas forças e estupefações, a luta pela vida digna provará que o rugido de um mundo não ensurdece o de um outro onde vive um azul superior.
Na época de Natal, as principais revistas internacionais apresentam números especiais com reflexões aprofundadas sobre as realidades do mundo. Dentro de tal espírito, permito-me recensear um livro da maior oportunidade – Atlas Estratégico – Da hegemonia ao Declínio do Ocidente, de Gérard Chaliand, Nicolas Rageau e Roc Chaliand (Guerra e Paz, 2024). A sua consulta é indispensável para compreendermos os acontecimentos do momento e as perplexidades que geram. Sendo meu avô professor de História e Geografia, sempre me entusiasmaram os Atlas, e tratando-se deste pequeno livro, distante dos grandes monumentos conhecidos, vejo-me perante um excelente instrumento capaz de fazer entender muitos dos mistérios que nos assaltam quanto aos acontecimentos do presente e do passado. O momento que atravessamos é especialmente complexo. Da bipolaridade da Guerra Fria, passámos a um sistema de “polaridades difusas”, que deixa em aberto a previsibilidade quanto ao tempo futuro. Os cerca de cinquenta mapas que constituem o livro começam por acompanhar, desde a revolução francesa, o balanço da hegemonia da Europa sobre a Ásia e a África até ao início do grande século XX, no dealbar da Primeira Guerra Mundial. As potências europeias, lideradas pela Grã-Bretanha, e menos pela França, dominaram a cena internacional. Cerca de meia dúzia de Estados europeus, incluindo a Rússia czarista, imperaram sobre o continente asiático e repartiram entre si a África.
O domínio dos povos europeus foi ajudado pela revolução industrial e pelos grandes progressos militares. O conceito de Estado-nação substituiu progressivamente a noção de Império e a Europa foi a matriz da inovação científica e técnica. Os Estados Unidos mantiveram, porém, o velho continente fora do seu hemisfério. O Império Otomano, o grande doente da Europa, preservou-se após a guerra da Crimeia, graças à tensão anglo-russa, mas caiu inexoravelmente, pela dependência económica dos Estados mais influentes. O Imperio czarista expandiu-se na Ásia e a imensa região que se estendia do Turquestão até ao norte da Índia, de língua e cultura persas, ficou sob domínio russo e a sul sob controlo dos ingleses. A revolução bolchevique (1917) abriu, como sabemos, um novo caminho. A China dominada pelos Manchus desde 1644 foi o último dos impérios da Ásia oriental a cair.
No fim da Segunda Guerra, em 1945, a Europa dividiu-se entre os dois vencedores: os Estados Unidos da América e a URSS. Os povos colonizados tentam emancipar-se, a revolução chinesa avança, a libertação da Índia leva à separação entre indianos e muçulmanos, a Guerra da Coreia (1950-53) termina sem a vitória dos EUA – e de 1947 a 1991 desenvolvem-se as guerras frias sem confronto direto das duas superpotências e a Guerra do Vietname abriu uma mudança essencial. Foi o tempo da “paz impossível, guerra improvável” de Raymond Aron e da lógica de contenção de George Kennan, que culminou no colapso, fragmentação e destruição da ex-União Soviética. Mas continuou a Guerra Fria, nas Fases 2 e 3 (1991-2022). O panorama geopolítico apresenta a região do Indo-Pacífico como centro de gravidade do grande conflito entre a China e os EUA e seus aliados. Putin sofre do erro de avaliação de atacar a Ucrânia e procura minorar estragos. E para a Europa, o plano Draghi é de sobrevivência, em nome da confiança e da relevância.
Há regiões em que na noite de passagem de ano tudo o que é velho - roupas, pratos, mobília... - vai pela janela fora para a rua. E também é sabido que na noite de passagem de ano há licenças ao nível do álcool e até com a sexualidade que normalmente não são permitidas. É um pouco como se, retomando agora de modo secularizado os mitos cosmogónicos, se instalasse o caos primitivo, para, em seguida, como fizeram os deuses in illo tempore, ser reposta a ordem do cosmos.
Perante um ano novo que está aí à nossa frente, os sentimentos misturam-se: perplexidade, entusiasmo, dúvida, expectativa, temor, esperança... Que é que nos reserva o novo ano: para mim, para a minha família, para os meus amigos, para o país, para a Europa, para o mundo? Será melhor, será pior que o ano que passou? É preciso pensar, pois a perplexidade é gigantesca — pense-se nas guerras em curso e a ameaça nuclear, pense-se na situação periclitante da Europa no contexto da nova geoestratégia global, pense-se na crise climática mortal, pense-se, sem excluir as suas vantagens, nos perigos da inteligência artificial, do trans- e pós-humanismo...
Por vezes, somos tentados a pensar que é tudo igual, que tudo se repete: morre um ano, surge outro ano, na roda eterna do mesmo... Mas não é assim. Nunca houve na história de cada um de nós, na história do país, na história da Europa, na história da humanidade, na história do mundo, com cerca de quinze mil milhões de anos, um ano como esse que está a chegar. Ele aí vem, novo, pela primeira vez, como criança acabada de nascer. E exactamente como a criança vem aí com confiança. Todos nós, individual e colectivamente, enfrentamos, apesar de tudo, o novo ano essencialmente com confiança: se reflectirmos bem, esperamos, evidentemente com realismo, também com temor, mas essencialmente esperamos confiadamente. Porque o ser humano é um ser constitutivamente esperante, apesar da dureza toda com que a vida nos vai confrontando.
Porque é que os homens e as mulheres, apesar de todos os fracassos, horrores, sofrimentos e cinismos, ainda não desistiram de lutar e de esperar? Porque é que continuamos a ter filhos? Porque é que depois de guerras destruidoras e terramotos devoradores, recomeçamos sempre de novo? Perguntava, com razão, o célebre teólogo Johann Baptist Metz: "Porque é que recomeçamos sempre de novo, apesar de todas as lembranças que temos do fracasso e das seduções enganadoras das nossas esperanças? Porque é que sonhamos sempre de novo com uma felicidade futura da liberdade", embora saibamos que os mortos não participarão nela? Porque é que não renunciamos à luta pelo homem novo? Porque é que o ser humano se levanta sempre de novo, "numa rebelião impotente", contra o sofrimento que não pode ser sanado? "Porque é que o ser humano institui sempre de novo novas medidas de justiça universal, apesar de saber que a morte as desautoriza outra vez" e que já na geração seguinte de novo a maioria não participará nelas? Donde é que vem ao ser humano "o seu poder de resistência contra a apatia e o desespero? Porque é que ele se recusa a pactuar com o absurdo, presente na experiência de todo o sofrimento não reparado? Donde é que vem a força da revolta, da rebelião?" Neste movimento incontível, ilimitado, do combate da esperança, pode ver-se um aceno do Infinito, um sinal de Deus. E um propósito: em cada dia de 2025 dedicar alguns minutos de silêncio à meditação sobre o essencial.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 30 de dezembro de 2024
Assinalamos hoje, no termo do ano 2024, o centenário de António Ramos Rosa (1924-2013), um grande poeta que marcou a tradição do Algarve na cultura da língua portuguesa.
No último número dos “Anais do Município de Faro” recordei Nuno Júdice, como companheiro inesquecível. E nada melhor para o fazer do que lembrar o belo poema, que há um ano citei, sobre o silêncio das palavras. “Escuto o silêncio das palavras. O seu silêncio / suspenso dos gestos com que eles desenham / cada objeto, cada pessoa, ou as próprias ideias / que delas dependem. Por vezes, porém, as / palavras são o seu próprio silêncio. Nascem / de uma espera, de um instante de atenção, da / súbita fixidez dos olhos amados, como se / também houvesse coisas que não precisam / de palavras para existir.” (Pedro, Lembrando Inês, 2001). As palavras nascem da espera, da atenção - de realidades e acontecimentos que não precisam de palavras para existir. Sem palavras há coisas que não poderiam ter vida, porque o presente projeta-se no tempo que passou, no tempo atual e no futuro – para lembrarmos a expressão de Santo Agostinho. Melhor do que ninguém, o poeta põe-nos perante o insondável mistério do ser. Na sua ausência, não esquecemos a serena reflexão, que consideramos profética e que nos leva ao centenário de António Ramos Rosa, cujo espírito aqui está bem presente.
LEMBRAR A POESIA 61
Este foi um ano de diversas partidas. Além de Nuno Júdice, deixou-nos Casimiro de Brito, cuja obra merece atenção. Foi uma presença da “Poesia 61” que seguiu Gastão Cruz e Manuel Baptista. E essa experiência continua presente entre nós, já que esses ecos do Sul correspondem não a uma escola, mas à compreensão da Arte e da Cultura como fatores inesgotáveis de criatividade e de inovação. Recordo, por isso, António Ramos Rosa, que não tendo participado na “Poesia 61” foi, podemos dizê-lo, um inspirador e uma referência. E se dúvidas houvesse descobrimos que a atenção à realidade, o não alinhamento e a recusa de uma atitude de grupo foram uma marca seguida pela geração mais nova de Gastão Cruz, Fiama Hasse Pais Brandão, Luíza Neto Jorge, Maria Teresa Horta e Casimiro de Brito. De facto, para António Ramos Rosa “a poesia distingue-se da mística na medida em que constrói um corpo e reconstrói o ser na própria linguagem. A palavra do poeta é comparável à força muscular na sua extrema intensidade. Ela é uma descida iniciática à matéria. Por isso, podemos considerá-la uma espécie de densidade, de música. Não há diferenças entre a criação do sentir poético e o amor da terra. Afinal, no corpo da linguagem encontra-se a luz da terra”. E foi Eduardo Lourenço quem disse: “o coração é a essência da poesia de Ramos Rosa vertiginosamente ocupada pelos mistérios da realidade – de toda, da mais trivial à mais enigmática. Em suma, toda ela não foi mais do que uma conversa sem fim com o poema como esfinge do real”.
O GRITO CLARO!
Em homenagem a António Ramos Rosa, o referido número dos “Anais” publicou cinco poemas do livro inédito “A Duração do Gérmen”, escrito nos anos 90. São poemas que nos levam ao encontro do Mar e de uma ilha. A nudez pressupõe a pureza essencial da atenção, em vez dos “volúveis arabescos do desejo”. E assim o poeta privilegia a “obstinada avidez de compreender”. Como ir além da superfície? E só o silêncio pode permitir que se desvende a “inteligência do vento”, capaz de nos levar à necessidade de “separar a presença da ausência”. Com efeito, a alma assemelha-se a uma ilha que é “feita de acolhimento”, mas que também se define pela ausência. E é o silêncio que marca a sua existência, num desejo intenso de ir ao encontro do mistério insondável das diferenças, que nos completam e da palavra essencial que faz nascer o mundo. E oiçamos: “Ilha / uma pedra mais silenciosa do que as pedras / a plenitude de estar perante ti / com a fronte lavada / pelo teu silêncio / que é só o teu silencio nu / através da monotonia de um mar / que não quebra o teu silêncio / que o acentua / /que o prolonga / e o faz respirar / Cessaram as imagens / os volúveis arabescos do desejo / a obstinada avidez de compreender / Estou perante a nudez / e estou nu / Tenho a inteligência do vento e estou presente / sem separar a presença da ausência…”
A DURAÇÃO DO GÉRMEN
É esse mistério essencial da palavra que faz nascer o mundo que revela a um hóspede silencioso como só a palavra pode abrir horizontes. E se há palavras que têm dificuldade em fazer mover o mundo, há sempre a possibilidade de abrir novas oportunidades para entender melhor o imutável. E a palavra, sempre ela, torna-se a memória do murmúrio, que enche o silêncio do universo, enquanto marca da humanidade. Afinal, perante um poeta, apenas podemos aspirar a compreender-nos melhor. E António Ramos Rosa ajuda-nos a desvendar o mistério insondável das raízes do tempo e das coisas, já que “o ato poético é um ato de concentração, porque o poema se separa do mundo quotidiano, do mundo objetivo, de um mundo que está dividido e, portanto, mutilado. O poema busca uma realidade perdida e a sua integração nas palavras e nos objetos que são sensibilizados pela impulsão poética”. Nesta afirmação feita na entrevista concedida a Francisco Bélard, em 1988, por ocasião da atribuição do Prémio Pessoa está contida uma revelação importante, que permite compreender o coração aberto à terra, que singulariza o poeta. Ao tentar responder quem era verdadeiramente esse poeta, retratado no ocaso da existência, José Tolentino Mendonça aproximou-o dos místicos – “esses que se confundem facilmente com peregrinos, estrangeiros e deslocados ou com mendigos. Não têm dono, não são heraldo de ninguém, não convergem para uma meta precisa. São frugais e leves. São abertos e vigilantes. Preservam a sua humildade com mansidão. A sede de absoluto e a nostalgia dos grandes espaços que preservam é um espelho da imensidão interior que obstinadamente cultivam. Definem-se como errantes, hóspedes habituais da natureza e só eventualmente dos homens, vivem a itinerância como pátria espiritual. Se suprimirmos o que eles não veem, suprimimos também o que veem. Eles sabem que silêncios, solidões e desertos não são necessariamente lugares, mas estados do coração a percorrer sem fim, e tornam-se mestres porque antes se tornaram justos” (Prefácio a Poesia Presente – Antologia, Assírio e Alvim, 2014). É Pascal que regressa com verdadeiro “esprit de finesse”. E razão tem Maria Filipe Ramos Rosa (a quem renovo os agradecimentos pela confiança em permitir a revelação do projeto inédito) quando diz que nos anos 90 o caráter repetitivo do poeta lembra “exercícios diários de sobrevivência”. Mas, mais do que isso, são glosas de temas fundamentais, que encontramos desde o “boi da paciência” ou do “funcionário cansado de um dia exemplar”, sem esquecer as magníficas traduções de Foucault, Éluard ou Mounier. E ouvimos: “Quem escreve / quer juntar-se / à pedra, / à árvore // E ser através delas /o tranquilo sopro / do inominável” (A Intacta Ferida, 1991).
Começam o dia louvando o imperfeito O tempo que se inclina para o lado partido as escassas laranjas que se tornam amarelas no meio da palha as talhas sem vinho
Olham por dentro a brancura da manhã e em tudo quanto auxilia um homem no seu ofício louvam o vulnerável e o inacabado
Estão sentados á soleira dos espaços trabalhados devagar pelo silêncio
Quando Deus voltar não terá de arrombar todas as portas
in Estação Central, 2012
The just
They begin the day extolling imperfection time that leans towards the broken side the few oranges that turn yellow amidst the straw the wine-emptied amphorae
They look into the white innocence of the morning and in everything that helps a man with his trade they praise the vulnerable and the unfinished
They are sitting on the thresholds of spaces slowly being worked by silence
When God comes back he won’t have to break down every door
A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA A BÍBLIA DOS JERÓNIMOS
1. "Sometimes, there is God. But so quickly", diz Blanche DuBois na peça de Tennessee Williams "A Streetcar Named Desire", da única vez que lhe parece acontecer uma coisa boa. No meio de todas estas coisas tão pretas, tive essa sensação, na semana passada, na Torre do Tombo, quando fui assistir ao lançamento de "A Bíblia dos Jerónimos", edição da Bertrand e da Franco Maria Ricci. Assim, caída do céu aos trambolhões, apareceu naquele espaço uma obra magnífica, que só de ouvido ouvira e em que nunca tinha posto os olhos em vida minha. Os meus exageros habituais? Já vamos conversar, mas deixem-me que vos diga que o próprio cardeal-patriarca, que presidiu à sessão, foi o primeiro a falar de "êxtase". E certamente pesou bem a palavra e certamente não a empregou em vão. Se o quiserem comprovar, aproveitem o Natal para pedir ao Menino Jesus que vos ponha o livro no sapatinho, passe a publicidade com que neste caso posso bem.
Por falar em publicidade, é bem possível que algumas mentes maledicentes reparem, ou vos façam reparar, que, nestas minhas casas encantadas, já me encantei cinco vezes com Franco Maria Ricci, proporção que nem Manoel de Oliveira bate. Sosseguem que tenho os bolsos vazios e não é por usar fato novo. Da revista - "FMR", como bem saberão os meus mais fiéis leitores - sou apenas um simples assinante e nem sempre bem tratado, pois que, se há crítica a fazer-lhe, é o tempo que demora a cá chegar e os frequentes atrasos na expedição. Das duas co-edições com a Bertrand - os "Presépios de Machado de Castro" no ano passado, "A Bíblia dos Jerónimos" neste - não receio que me desmintam ou que achem que estou a fazer fretes a alguém (para os favores que lhe devo, como dizia a outra, ainda mais desgraçada do que a Blanche DuBois) se disser que são os dois mais belos livros de arte algumas vez publicados em Portugal. Nada fazia prever que o fossem, o que dilata a minha sensação de milagre e a minha convicção de que às vezes - raríssimas é certo - há divinas surpresas neste país. Neste caso, tão inesperado que, ainda há pouquíssimo tempo, confundi nesta coluna a Bíblia em causa com um hipotético Atlas de D. Manuel que só existiu na minha imaginação. Corrigido o erro, já posso passar ao assunto sem mais preâmbulos.
2. O que é "A Bíblia dos Jerónimos"? Se comprarem o livro, terão muito mais informação do que a que vou resumir, pois não lhe faltam eruditos ensaios que são a única fonte do meu saber. Mas estou aqui para vo-la anunciar e não para fazer de sabichão, que, na matéria, estou longe de ser. "A Bíblia dos Jerónimos" é uma série de sete livros de iluminuras - "in hoc ornatissimo volumine" - (oito, se lhe acrescentarmos as "Sentenças" de Pedro Lombardo, que a completam artística e historicamente) em que, em 3060 folhas de pergaminho, um vasto número de copistas inscreveu o texto bíblico, acompanhado por "postilhas" ou "explanações" de Nicolau de Lira (1270?-1349) que passa por ser "o comentador da Sagrada Escritura mais importante do seu tempo e aquele que maior influência exerceu nos dois séculos posteriores" (cito Arnaldo Pinto Cardoso no estudo "Texto, conteúdo e decoração", inserido na edição de que vos falo).
Se é enorme o valor histórico e exegético desta "Bíblia" (escrita em latim), o que mais deslumbra quem lhe deite a vista são as iluminuras que a ilustram, obra do florentino Vante Gabriel d'Attavante (1452-1517), um dos mais famosos - senão o mais famoso - dos miniaturistas daquela cidade. "Da oficina de Attavante" - cito agora o Prof. Martim de Albuquerque, autor de outro grande estudo da obra agora editada - "saíram as realizações mais sumptuosas da iluminura renascentista italiana - a Bíblia do Duque de Urbino e dos Jerónimos, o Missal de Thomas James, Bispo de Dol, e numerosas obras para o rei da Hungria Mathias Corvino. Attavante, ele próprio, tem sido apontado como fazendo parte da escola de Verrochio e influenciado por Ghirlandaio". Vasari gabou-lhe a "graziosissima grazia" e o prodigioso colorido ("i colori non possono essere piúi belli"). Ao que aprendi, discute-se ainda quem encomendou à oficina de Attavante a fabulosa "Bíblia", mas o que é certo é que ela foi manuscrita e iluminada para D. Manuel I, entre 1495 e 1497. Além das armas portuguesas e das múltiplas referências ao rei Venturoso, a esfera armilar é um dos ícones da obra. Na posse de D. Manuel se conservou até à sua morte, tendo sido legada por testamento de 1517 (D. Manuel morreu em 1521) ao Convento dos Jerónimos. "Item mando que se de ao Mosteiro de N. Senhora de Bellem a Custódia que fez Gil Vicente para a dita Caza, e a Cruz Grande, que esta em meu thesouro, que fez o dito Gil Vicente, e asyi as Bíblias escritas de pena, que andam em minha guardaroupa as quais são guarnecidas de prata e cobertas de veludo carmesim." Nos Jerónimos, jazeu a Bíblia de Jerusalém, de 1521 a 1807. Não se conhecem muitos encómios acerca dela (as exceções são Francisco de Holanda e D. António Caetano de Sousa) e tudo o que sabe, pelo último, é que, antes de 1737, foi a obra reencadernada, substituindo-se o veludo pelo marroquim. Mas muita gente devia saber que um tal tesouro estava nesta Lisboa, a que, no mesmo século XVIII, o Cavaleiro de Oliveira chamava "fermosa estrebaria". D. João VI não achou azado levá-la para o Brasil, quando nos despojou de muito mais do que o terramoto das costas largas. Mais informado foi Junot, que, mal chegado a Lisboa, pediu logo para ver a "Bíblia". Recusou-a o Dom Abade. Mas se não cedeu às boas, cedeu às más. Em agosto de 1808 já a tinha, e com ele a levou para França. De Junot passou à viúva, a célebre Duquesa de Abrantès e esta recusou-se a restituí-la, alegando que eram bens dos filhos. Valeu-nos a monarquia de julho e os favores de Luís XVIII, que a comprou a Laura Junot pela soma - à época fabulosa - de 80.000 francos e a devolveu a Portugal, em 1815. Mas os Jerónimos, que tinham guardado a "Bíblia" por quase trezentos anos e que, por isso, justamente lhe deram o nome por que é e foi conhecida, não a chegaram a conservar sequer por mais vinte. Em 1833, chegada a hora do Mata-Frades e da extinção das ordens religiosas, passou a "Bíblia" para as mãos do Estado, que, com a Custódia e outras iguarias, a guardou na Casa da Moeda. Em 1839, aportou por fim à Torre do Tombo, já sem as guarnições nem a prata, provavelmente fundidas como moeda para os liberais. Na segunda metade do século XIX, e no principio do século XX, começaram os eruditos e os curiosos a estudá-la e a manuseá-la e espalhou-se pelo mundo (muito menos por Portugal) a fama que possuíamos um livro de iluminuras "ao qual nenhum outro se pode comparar". Estabeleceu-se o juízo que a "Bíblia dos Jerónimos", com a de Frederico de Montefeltro (esse Frederico do nariz adunco, terror da Mónica e amor de Piero Della Francesca) eram "as duas obras mais monumentais da oficina de Attavante" (Peragallo).
3. Mas livros - sobretudo desta qualidade e deste valor - têm sorte muito mais ingrata do que estátuas, quadros, desenhos ou pinturas. Compreensivelmente, não se põem obras destas nas mãos das turbas, nem mesmo dos filhos de algo, sem boas qualificações profissionais. Assim, a lenda e os factos misturavam-se num juízo sobre a lendária "Bíblia". Acresce que somos bastante desconfiados de valores próprios, mais propensos a minimizá-los ou a esquecê-los que a acreditarmos em esmola grande. Ao longo da vida, ouvi, de tempos a tempos, loas sobre o preciosíssimo incunábulo. Mas, mais que as nozes, foram as vozes de quem dizia que o manto diáfano também cobria uma realidade mais crua, ou pelo menos relativamente vulgar face a obras congéneres. O grande mérito desta edição é acabar com essa lenda invertida. Pela primeira vez, mais de cinco séculos depois de ter sido copiada e miniaturada, a "Bíblia dos Jerónimos" está acessível, senão, como é evidente, na sua integralidade, através das suas páginas mais belas, sobretudo das oito páginas de grandes iluminuras com que abre cada volume (os "incipit"). E, como Franco Maria Ricci não deixa créditos por mãos alheias e Massimo Listri, que fotografou as iluminuras, é um génio, a obra agora editada, com grande profusão de pormenores e ampliação de muitas das imagens, permite uma visão que nem os próprios originais nos dão com igual esplendor. Pude fazer a experiência: durante alguns dias, coincidindo com o lançamento do livro, a Torre do Tombo expôs os oito volumes aos olhos dos simples mortais. Aberta nalgumas páginas mais esplendorosas, e convenientemente protegidas por vitrinas resistentes, eram fabulosas de ver, mas não nos davam (pelo menos a mim não me deram) a fulgurante beleza das reproduções da edição. Quem quiser "ver" (no mais amplo sentido do mais amplo verbo) as iluminuras florentinas de "A Bíblia dos Jerónimos", "vê-as" melhor no livro de 2004 do que nos fólios de 1495. Às vezes, a reprodutibilidade das obras de arte permite milagres destes.
4. Para acabar, fico-me com o frontispício direito do volume V (Livro do Profeta Ezequiel e Livro dos Macabeus) "S. Jerónimo no estúdio entre dois frades". O chapéu cardinalício pendurado na parede. O quadro que representa a Virgem e o Menino, rodeados por um anjo verde e por um anjo branco. O leão sossegadíssimo e silentíssimo aos pés do Santo e fronteiro a ele. O relógio e a ampulheta. A janelinha entreaberta para uma paisagem meiguíssima e azul. A parede cobáltica contra o encarnado do manto de Jerónimo. A concentração do escriba, cinzelando e escrevendo. Ghirlandaio? Pollaiuollo? Verrochio? Filippino Lippi? Mais belos não são certamente. O apogeu do Renascimento está também nestes oito volumes, sem dúvida a única obra de arte que o representa em Portugal.
por João Bénard da Costa 17 de dezembro 2004, Público
Joshua Cohen, foto de David Shankbone CC BY 3.0 - Wikimedia Commons
193. DECLÍNIO LITERÁRIO
“A literatura é um espaço de liberdade por causa do abandono a que foi votada. Acho que hoje em dia os únicos sítios onde há liberdade são aqueles que são negligenciados. A literatura, neste momento, beneficia de uma falta de santidade, uma falta de estar no centro da conversa cultural”. Joshua Cohen (JC), (entrevista ao Público, 05.07.24).
No século XIX o prestígio literário era associado ao sucesso que o autor tinha nos bastidores, nos seus conhecimentos e privacidades com os jornalistas, no meio da imprensa.
No século XX havia páginas e suplementos culturais em que as querelas literárias eram apelativas. No Estado Novo, entre nós, a censura imposta ao debate político jogava-se na literatura, vindo a público através de polémicas entre os comunistas, via neorealistas, e os democratas, via presencistas ou independentes.
Até então os escritores eram uma espécie de consciência moral do mundo.
Agora é crescentemente reduzido o espaço literário na imprensa e redes sociais em geral, ao que não será alheio, por um lado, o crescente relevo cultural do cinema, das artes cénicas, performativas e da música e, por outro, a ascensão do visual, do imediato, em desfavor de horas a ler, quando o que se quer é que seja rápido.
A glória literária aprendeu que é mortal, ao mesmo tempo que o aprenderam os jornais com a digitalização, sem ter havido óbito do papel, dos livros, da literatura e das publicações impressas.
Mas hoje, segundo JC, se há espaço onde se pode dizer tudo é na literatura. Porquê? Porque não se lê. E se tempos houve em que os escritores eram a consciência do mundo, isso acabou. O que é extensivo a uma pretensa superioridade moral dos intelectuais.
Se assim é, pode dizer-se que a não leitura do que se escreve é um exercício máximo da liberdade de expressão em absoluto, por maioria se for uma literatura sem filtros.
Há também o outro lado da moeda, o dos escritores cancelados, vítimas do politicamente e moralmente correto, porque inconvenientes e, quando lidos, a pretexto de um olhar ideológico mais adequado, são proibidos ou reescritos.
E há quem diga que para escrever nos pode ajudar o não ler (o que não significa excluir, de todo, a leitura), dado que ler nos torna passivos, ocupa-nos o tempo e leva-nos a reboque de quem escreveu.
Contudo, há leitores. Que continuam a comprar livros e a ler, interagindo com a escrita e a literatura como todas as gerações fizeram, adaptando-se às circunstâncias, mesmo que agora também leiam no computador ou no kindle.
O leitor, ao ler, dá vida ao que foi escrito e ao seu autor, mesmo que a escrita e o autor tenham centenas ou milhares de anos.
O que é cada vez mais questionável é que o escritor seja uma figura de referência a quem se pede explicações acerca do mundo, dado não ser a consciência ideológica ou moral (ou qualquer outra) do universo, mesmo que tenha de escrever tudo o que quer na sua excelsa liberdade de expressão, por mais incorreto que seja, exigindo a sua leitura, para os leitores, disponibilidade de tempo e de reflexão. O que se tem como inadequado para os velocistas que têm como modelo dominante e futurista a internet, interpelando os demais sobre uma inevitável melancolia invasiva e para a abertura de novas fronteiras.