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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE PEDRO SENA-LINO

  


todas as cidades estão ancoradas…


todas as cidades estão ancoradas num verso
que alguém deixou aceso na boca de um morto
há pedaços de sol que o deitam à distância
de um coração instável sugando a cada passo
a morte e as suas levíssimas esquinas
constatações ruínas de estar vivo

fiz do livro um corpo bíblico de mim
e do Deus vulgar por minha causa
penetrei o corpo à esquina do calvário
e jerusalém nem por isso ficou presa à minha língua


in biofagia, 2003


all cities are anchored…


all cities are anchored on a verse
someone left ablaze in a dead man’s mouth
there are bits of sun leaving it within reach
of an unsteady heart that at every step sucks
death and its most subtle edges
the ruined realisations of being alive

i made the book a biblical body of myself
and turned God ordinary for my sake
i pierced my body next to the calvary
and yet Jerusalem did not stick to my tongue


© Translated by Ana Hudson, 2010
in Poems from the Portuguese 

 

 

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
OS MEUS SETE PAPAS (II) 


1. Como alguns se lembrarão, estava perto do Taj Mahal quando, tarde e a más horas, soube da morte de João Paulo I, por tão pouco tempo meu quinto Papa.


De lá segui para as Pirâmides e para o Egipto, mas não foi entre faraós que soube do Papa posto em vez do Papa morto. Já tinha regressado à pátria, findo o meu mês de orientes, quando apareceu fumo branco por Karol Wojtyla, que, como o seu efémero predecessor, escolheu dois nomes e os mesmos dois nomes: João Paulo II. Tinha 58 anos e era o mais novo Papa desde 1846 e desde a eleição de Pio IX com 54 anos. Esse Pio IX que morrera cem anos antes da eleição de João Paulo II (a 7 de fevereiro de 1878) e fora o pontífice de mais longo reinado na história da Igreja (32 anos), se não contar a incerta duração do papado de S. Pedro. João Paulo II, que reinaria 27 anos, seguiu-os de perto.


Mas, em 1978, a grande novidade não foi a "tenra" idade do novo Papa, mas a sua nacionalidade. Pela primeira vez, desde 1523, ou seja, durante 455 anos, o Papa não era italiano e pela primeira vez, em quase dois mil anos de Igreja, o Papa era polaco. Com Wojtyla acabou uma era, que, em categorias adaptadas da história geral para a história da Igreja por Cristiani, no monumental Tu Es Petrus, correspondem à Idade Moderna (1447-1870) e à Idade Contemporânea (1870-1978). Desde o fim do Cisma do Ocidente até ao "ano dos três papas", dos 55 pontífices que se sentaram no trono de S. Pedro durante cerca de 540 anos, apenas dois não foram italianos: o aragonês Calisto III (Papa de 1455 a 1458, que, apesar das suas origens, gerou os italianíssimos Borgia) e o holandês Adriano VI, o tal que pontificou entre 1522 e 1523 e que tanto contrastou com os Medici que o precederam e lhe sucederam (Leão X e Clemente VII) em desgosto pelas artes e pelos ofícios. Mas isso já são outras conversas, pois que nenhum deles foi Papa das minhas vidas, embora nos renascentistas me tenha ficado muito da melhor parte delas. Das outras e desta.


2. "O ano dos três papas" (Paulo VI, João Paulo I e João Paulo II) foi expressão corrente para o ano de 1978. Às vezes, penso em como teria vivido esse ano um amadíssimo amigo meu, poeta de 35 Poemas, que partiu deste mundo e destes papas em 1968, dez anos antes do ano trino. Digo-o porque, em 1963, quando morreu João XXIII, ele viveu premonitoriamente a febre papal que em 78 já subira uns pontinhos e em 2005 entrou no delírio a que se assistiu. Foi ele o primeiro a inventar a expressão "totopapa", enviando-me, e a outros amigos comuns, antes e durante o conclave, listas de probabilidades com os nomes que os eleitos escolheriam, caso viessem a ser os contemplados.


Dentre os inúmeros cartões retangulares que me mandou, escritos a tinta encarnada, copiei estes: Probabilidades (Flos Florum)


1 - Siri (Pio XIII, de que Deus nos guarde)
2 - Montini (Pio XIII, João XXIV ou Leão XIV que: vá lá com Deus)
3 - Lercaro (João XXIV - Deus queira)
4 - Confalonieri (João XXIV, Bento XVI ou Clemente XV, que talvez Deus queira)
Hipóteses desvairadas más
1 - Ottaviani (Alexandre IX, Calisto IV, Anastácio V ou Júlio IV)
2 - Larraona (Anastácio V)
3 - Marella (Bonifácio X)
4 - Cerejeira (Urbano IX)


Na altura, todos nos ríamos com estes totopapas, que ele corrigia, emendava e voltava a enviar. Mas a realidade excede sempre a ficção: tanto na morte de João Paulo II, como na eleição de Bento XVI, televisões e jornais ultrapassaram em excentricidade e delírio o meu amigo das "profundidades intactas". Muitos dos cardeais já nem sei quem são, como esse Lercaro que, pelos vistos, era o favorito dele. Não previu nenhum Paulo VI, mas previu um Bento XVI, que seria - se tivesse sido - o cardeal Confalonieri, "que talvez Deus queira".


Em 1963, no interior de círculos muito restritos e - vá lá - muito especiais, vivia-se assim a eleição de um papa, guardando segredo para os não iniciados que já suspeitavam da nossa sanidade mental, mesmo sem saberem destes desvarios. Quem nos diria - quem me diria? - que 42 anos depois, milhões viveriam momentos desses em delírio ainda maior, imaginando papas hindus, argentinos, chineses e até (como sempre) portugueses?


Tudo - tamanha mudança! - talvez se deva a esse Papa polaco que, entre 1978 e 2005, fez mais pelo pope system do que todos os seus antecessores reunidos. E volto a 1978.


3. Estou a começar a dizer mal de João Paulo II, ou, como alguns já lhe chamam, de S. João Paulo Magnus? Não estou. Quando foi do Jubileu dele, escrevi, neste mesmo jornal, um artigo em que disse o que pensava e penso dele, exaltando sobretudo o homem da fé.


Escrevi então e mantenho: "Não é o "Papa da minha vida", no sentido em que o foram, dos que conheci, João XXIII ou João Paulo I. Não é o Papa que me dê mais esperança ou que eu ame mais do que os outros. Mas tudo o que me separa dele de nada conta quando o vejo - sobretudo nos últimos anos - dar um tamanho testemunho que só consigo explicar pelo inexplicável mistério da Fé." Acima citei a idade com que foi entronizado. Mas parecia muito mais novo, respirando saúde física por todos os poros, o que muitos atribuíam a um passado de desportista. Três anos depois - apenas três anos dessa imagem pletórica - o atentado da Praça de São Pedro fez esse Papa de 60 anos envelhecer 20 em poucos meses. De então para cá, a pujança original quase que se esqueceu e o "atleta" deu lugar a um velhinho, atacado por mil doenças, até, no fim, mal se conseguir mexer ou falar.


Alguns lhe censuraram - velada ou abertamente - o lugar que deu, na sua própria biografia, ao dia 13 de maio de 1981, em que quase se realizou a sarcástica profecia de Buñuel no filme La Voie Lactée. Mas não é muito fácil compreender como é que se deu tal mudança num homem. Não é a questão da sobrevivência, pois que outros têm recuperado de coisas ainda piores. É a consciência, não proclamada, mas crescentemente interiorizada, de que a sua salvação teve e tem um sentido e que esse sentido só podia ser desvelado com a crescente transfiguração do corpo quebrado num corpo oferecido. Muito e muito se há-de escrever - pressinto-o - sobre os vários sentidos a dar a essa maceração. Por um lado, há a "papolatria" ou os riscos dela, tão temida nos anos 60 e tão escancaradamente recuperada nesta viragem de séculos. Mas reduzir à papolatria o calvário de João Paulo II é perder a dimensão fundamental dele. Falou-se do seu imenso carisma, do seu imenso magnetismo. Que querem dizer essas palavras? Quem saiba que explique e João Paulo II nunca explicou. Acreditou, não só com toda a sua alma (expressão já de si incompreensível), mas com todo o seu corpo e, como só este lhe podia ser imagem, fez dele o grande plano para um mistério insondável. Por agora - e por mais algum tempo - se falará ainda e muito do Papa que venceu o comunismo, sob o qual viveu desde os 25 anos. Mas não faltam nos textos papais - antes e depois da queda do Muro - advertências ainda mais graves contra a sociedade permissiva e libertária que era, aparentemente, a grande inimiga dos chamados "socialismos reais". Qual o significado da sua presença junto a Fidel em Cuba, tão estranho, por parte de um, como por parte de outro? Qual o sentido das suas mil viagens? Qual o sentido dos "estádios cheios e das igrejas vazias"? Qual o sentido do seu altivo moralismo? Porque o aplaudiam milhões de jovens que depois não fundavam famílias de 14 filhos, como nos tempos de Maria Teresa da Áustria, ou nem sequer se precipitavam para os ter, como nos tempos da geração dele? Quanto mais medito na ação deste Papa, mais ela me parece paradoxal, mas de um paradoxo que não desafia a razão, antes a busca. Por isso, grande parte do mistério de João Paulo II só será percebido com a passagem do tempo e com os pontificados que se seguirem ao deste Papa tão tirolês quanto carpático ou, se se preferir, tão terra a terra, como céu a céu.


4. Sabe-se como foi recebida a eleição de Bento XVI, conhecem-se os juízos que já se fizeram. Mas não se tem reparado muito (ou então sou eu que tenho andado muito distraído) que ao turbilhão de abril (velório e exéquias de João Paulo II, conclave, etc.) se seguiu um estranho e agudo silêncio. Ouve-se Bach no Vaticano (talvez pela primeira vez).


Perguntam-me o que penso. Pensei mal, quando pensei depressa e me vieram dizer que Ratzinger era o novo Papa. Agora espero para pensar. Bento XVI já não é Ratzinger. É o meu sétimo Papa. Seja minha a solidão deste silêncio, como escreveu o poeta dos 35 Poemas, e dos trinta e cinco cardeais.


por João Bénard da Costa

20 de maio de 2005 in Público

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

  


XCVII - DIVERSIDADE, IGUALDADE E RECIPROCIDADE


Se o combate pela diversidade cultural e linguística não pode ser isolado, porque feito com os que para ele sensibilizados, significa que essa partilha é uma participação em igualdade, que acautele e evite posições de preponderância de um dos parceiros.


É saudável e gratificante cultivar e manter a diversidade linguística, dado que cada língua tem um tipo de relação com a realidade, sendo perigoso e redutor poder apenas contar com uma.         


Sendo a língua um bem imaterial, da esfera do conhecimento, difícil de quantificar, o conhecer vários idiomas dá-nos mais probabilidades de encontrar mais e melhor, usando diversas ferramentas para pesquisar a realidade.   


Se é verdade que o princípio da igualdade linguística impulsiona, em sentido crescente, o respeito pela variedade cultural e das línguas, de igual modo, em contrapartida, o progresso e a globalização, resultante dessa reciprocidade, estimula uma uniformização cultural e linguística.     


Não podemos - consciente ou inconscientemente, por predisposição, inércia, paixão, ausência de amor próprio, provincianismo ou complexo de inferioridade - deixar que a nossa língua seja preterida ou dominada por uma estrangeira, revelando baixa consideração por ela.       


O princípio da reciprocidade tem aqui papel primordial, institucionalizando-a em reuniões bilaterais, trilaterais, ou similares, em termos políticos e governamentais, onde cada elite ou poder interveniente faz questão em usar, mediática e publicamente, o seu idioma, dignificando-o num patamar de diversidade e igualdade recíproca, por maioria de razão quando línguas de comunicação global e internacional, como a nossa, nem sempre acarinhada e favorecida, por nós, a esse nível, por quem tem o dever primordial de o fazer, por confronto com terceiros que não ocultam a sua dos ouvidos alheios, nem a têm em baixa estima, muito menos na própria casa.


10.03.23
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

O pregão das virtudes

  


As formas básicas de poder social que podem operar à escala da família ou a tipos de ampliação de domínio político, apregoam amiúde as virtudes das suas opções de estar, num pregão coletivo de uma verdade que está sempre deles mais próxima, apesar de nunca afirmarem expressamente tal assunção de vizinhança

O modo como cada um desenvolve o seu eixo de poder social, gera uma espécie de sistema de irrigação das ideias, em jeito de torniquete, e em torno de uma ordem que muito tem de administrativa, supervisionando tudo o que lhes pode interessar com o juízo único e convicto, de que será mau se lhes escapar alguma avocação.

Na medida em que o pregão das virtudes se pode passar a fazer por silêncios tácitos ou preposições q.b., ou até expresso pela boa educação e pelo prumo da mesma, bastando que se aparente, ou deveras se creia ser inquilino pela via mais confortável, dos princípios pela maioria aceites como aprazíveis e logo as concordâncias aos centros de poder se estabelecem em paz à falta de melhor.

Esta postura é outra das que mais expõe a aceitação do pregão das virtudes.

Ao aprofundarmos esta questão, verificamos que a mesma combinação de características se encontra no mesmo perfil de gentes, não se questionando por que razão tem de ser assim para que tudo funcione, e sendo que deste modo, o que funciona, é o decorativo debate sobre a desigualdade nas sociedades, admitindo, expressamente ou não, que tudo o que é altamente problemático sempre se manterá.

Então, uma resposta possível ao pregão das virtudes é o de o confrontar com a similitude do poder, que paga ao barbeiro para cortar o cabelo ao escravo, ainda que depois o alimente.

Este o compromisso ou a imagem de um dinheiro de terrível equivalência, sendo que a  ambos há que romper.

 

Teresa Bracinha Vieira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


O espaço das casas de Tokyo Style é aproveitado até ao limite, como uma colagem, ao máximo.


“Most expensive apartments are boring because they’re all the same, but in small apartments you can’t hide your personality.”, Kyoichi Tsuzuki In Apartamento Issue #20, 2017-18


No início dos anos 90, Kyoichi Tsuzuki começou a fotografar apartamentos pequenos, apertados e desordenados, em Tóquio. Tsuzuki visitava casas de amigos e também de estranhos. Com a publicação do livro ‘Tokyo Style’, há 30 anos atrás, Tsuzuki produziu um retrato real e raro que explora o que está fora dos limites do bom design. Estes interiores não são minimalistas, nem perfeitos como aqueles retratados nas revistas, e nem o pretendem ser.


É a exploração de um quotidiano marginal e uma ode ao maximalismo. O livro ensina-nos a ver para além do ideal, do esperado, do aceitável e do correto.


Tokyo Style
é um pedaço de objetividade, que mostra a verdadeira escala humana que um espaço pode ter. O espaço de repente é de alguém e só desse alguém - porque é apropriado, delapidado, pintado, (re)interpretado, encerrado, preenchido e atulhado. Estes espaços fotografados em Tokyo Style parecem ser a continuação de um eu. São reflexo do que é falado, pensado, tocado, vestido, comido. Tsuzuki, propositadamente, fotografa só o espaço da casa, nunca ninguém aparece. Ainda assim sente-se intensamente a presença física dos que aí habitam - a roupa pendurada, a cama desfeita, os papéis acumulados, os desenhos nas paredes, as passagens estreitas, as portas que não se podem abrir, as janelas cobertas…


“We live in homely woodframe apartments or mini-condos crammed to the gills with things.”, Kyoichi Tsuzuki In Apartamento Issue #20, 2017-18


O espaço aparece, neste livro, como servidor, como contentor, pronto a ser individualizado, pronto a ser mais uma coisa por entre tantas outras coisas. É um espaço adaptável, manipulável, maleável, que se deixa convencer e que é dócil, de tão tangível que é. A suspensão da liberdade provocada por um espaço deixa de existir por momentos.


Através destas fotografias apercebemo-nos que cada pessoa tem uma forma particular de encontrar e de construir o seu conforto. E esta procura é uma escolha que não obedece a algoritmos, nem a ideias estandardizadas. É uma procura que tem de estar ao alcance de um instante, dos sentidos, do movimento e da forma de um corpo.


O espaço das casas de Tokyo Style é aproveitado até ao limite, como uma colagem, ao máximo - este espaço, todo o espaço (chão, parede, teto) e não outro, como que obedecendo a um processo de pura aceitação do que se tem, sem arrependimento e que até pode falhar.


“Bookstore shelves are lined with more publications on ‘Japanese Space’ than you’d ever want to see… But how many of these places look lived in? That’s because what these books show are the co-creations of known architects and photographers, or else very skillful presentations of designer products.”, Kyoichi Tsuzuki In Apartamento Issue #20, 2017-18


Este livro mostra, através de uma honestidade inesperada, que a vida de todos os dias não se transforma num espaço estéril. Estende-se porém na singularidade de cada apropriação, de cada erro e de cada contorno: “It’s your choice to live in a cluttered space or live in a simple space. But I don’t like the view that living in a clean, simple space is intellectually superior to living in a small, cluttered space.”, Kyoichi Tsuzuki In Apartamento Issue #20, 2017-18


Ana Ruepp

QUE IGREJA TEM FUTURO?

   


Torna-se cada vez mais claro que a Igreja precisa de uma conversão a fundo. Com a tomada de consciência da tragédia da pedofilia, fala-se de um sismo e impõe-se uma reconstrução desde os fundamentos: Jesus e o Evangelho.


Neste contexto, permita-se-me que volte ao teólogo Hans Küng, católico convicto e pensador universal, que nos deixou em Abril de 2021 e que constitui certamente uma das fontes inspiradoras do Papa Francisco. Também ele pensava que é urgente cada uma, cada um, interrogar-se sobre a sua fé pessoal. No seu livro Was ich glaube (O que eu creio) deu testemunho, respondendo, de modo pessoal e profundo, às perguntas essenciais: em que posso acreditar?, em que posso confiar?, em que posso esperar?, como posso configurar a minha vida? De facto, a fé vive-se em Igreja, mas de modo pessoal. E só se pode transmitir aos outros, se realmente se mostra como Evangelho, notícia boa e felicitante para nós.


Foi assim que já em 2011 escreveu o livro Ist die Kirche noch zuretten? (A Igreja ainda tem salvação?), a que várias vezes aqui me referi. Foi por imperativo de consciência que o escreveu: "Na presente situação, o silêncio seria irresponsável".


De que sofre a Igreja? A Igreja católica, a maior, a mais poderosa, a mais internacional Igreja, essa grande comunidade de fé, está "realmente doente", "sofre do sistema romano de poder", que se caracteriza pelo monopólio da verdade, pelo juridicismo e clericalismo, pelo medo do sexo e da mulher, pela violência espiritual. E que propõe?


É preciso voltar a Jesus Cristo, ao que ele foi, é, quis e quer. De facto, em síntese, a Igreja é “a comunidade dos que se entregaram a Jesus Cristo e à sua causa e a testemunham com energia como esperança para o mundo. A Igreja torna-se crível, se disser a mensagem cristã não em primeiro lugar aos outros, mas a si mesma e, portanto, não pregar apenas, mas cumprir as exigências de Jesus. Toda a sua credibilidade depende da fidelidade a Jesus Cristo." Como procederia Jesus nas actuais situações, quando pensamos no modo como agiu? Seria contra o preservativo, os anticonceptivos, excluiria as mulheres, obrigaria ao celibato, proibiria a comunhão aos recasados? Que diria sobre as relações sexuais antes do casamento? Como procederia em relação ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso?


A Igreja não pode entender-se como um aparelho de poder ou uma empresa religiosa, mas como povo de Deus e comunidade do Espírito Santo nos diferentes lugares e no mundo.     


O papado não tem que desaparecer, mas o Papa não pode ser visto como "um autocrata espiritual", antes como o bispo que tem o primado pastoral, vinculado colegialmente com os outros bispos.


A Igreja, ao mesmo tempo que tem de fortalecer as suas funções nucleares - oferecer aos homens e mulheres de hoje a mensagem cristã, de modo compreensível, sem arcaísmos nem dogmatismos escolásticos, e celebrar os sacramentos -, deve assumir as suas responsabilidades sociais, apresentando, sem partidarismos, à sociedade opções fundamentais, orientações para um futuro melhor.


Não se trata de acabar com a Cúria Romana, mas de reformá-la segundo o Evangelho. Aqui, pergunto: Não é o que quer Francisco com a reforma da Cúria na Praedicate Evangelium (Pregai o Evangelho)?


Mais: precisa-se de transparência nas finanças da Igreja; deve-se acabar com a Inquisição, não bastando reformá-la, e eliminar todas as formas de repressão; deve-se permitir o casamento dos padres e dos bispos, abrir às mulheres todos os cargos da Igreja, incluir a participação dos padres e dos outros fiéis na eleição dos bispos; não se pode continuar a vedar a Eucaristia a católicos e protestantes; é preciso promover a compreensão ecuménica, o diálogo inter-religioso e o trabalho em conjunto.


Na presente situação da Igreja, há várias opções: abandoná-la, converter-se a outra, não entrar nela. Outra opção: comprometer-se de modo activo na comunidade, em movimentos, na teologia, pela sua reforma. "Foi esta opção que escolhi para mim."


A sua visão da Igreja determina-se pelas características da radicalidade cristã: a reforma da Igreja não se funda na adaptação ao Zeitgeist (espírito do tempo), mas na mensagem originária cristã e da constância: não se baseia em oportunismos, mas atende aos impulsos fundamentais do Concílio Vaticano II.


Concretizando:


1. Não tem salvação uma Igreja voltada para o passado, mas aquela que " se concentra nas tarefas do presente", aberta ao futuro.


2. Não tem salvação uma Igreja fixada patriarcalmente em imagens estereotipadas da mulher, linguagem exclusivamente masculina, papéis sexuais pré-definidos. Mas sobreviverá uma Igreja de companheirismo, inclusiva e que "aceita mulheres em todos os cargos eclesiais".


3. Não tem salvação uma Igreja vencida pela arrogância institucional, exclusivismo confessional, negação da comunidade. Mas sobreviverá uma Igreja que seja "uma Igreja ecuménica aberta".


4. Não tem salvação uma Igreja eurocêntrica e que reclama que só ela tem a verdade. Mas sobreviverá uma Igreja "universal e tolerante, que respeita uma verdade sempre maior, que, portanto, procura aprender também com as outras religiões e deixa uma adequada autonomia às Igrejas nacionais, regionais e locais. E que, por isso, também é respeitada pelos homens e mulheres, cristãos e não cristãos". E concluía: "Não abandonei a esperança de que a Igreja sobreviverá".


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 4 de março de 2023

A VIDA DOS LIVROS

  

De 6 a 12 de março de 2023


O Conde de Ficalho, membro do grupo conhecido como Vencidos da Vida descreveu Portugal a partir da sua flora de modo que hoje continua a ter especial utilidade cultural e científica.


Portugal ostenta diferenças sensíveis nas floras espontâneas locais ou nas práticas e instituições agrícolas. Quem o afirmou foi o Conde de Ficalho, Francisco Manuel de Mello Breyner (1837-1903), cientista, historiador, proprietário agrícola e político, que se destacou nas diversas áreas em que exerceu atividade. Ramalho Ortigão disse dele um dia: “Tanto sabia com autoridade palaciana empunhar o seu bastão de mordomo nas funções régias, como sabia manejar no gabinete a sua pena de escritor, como sabia governar no campo o ferro de um arado na lavra de um alqueive, ou um pampilho de vaqueiro numa apartação de gado”. Este foi, porventura, o retrato mais fiel desse homem do seu tempo, ancorado na tradição familiar e com os horizontes abertos para a nova ciência. Recordamo-lo, a propósito do seu retrato de Portugal, como país de contrastes e de diferenças, onde chega a dizer que “um viajante subitamente transportado do centro do Minho ao centro do Alentejo, julgar-se-ia a milhares de léguas do ponto de partida”.


No Minho, Ficalho encontra “o verde variegado”, em vales estreitos, “com todas as nesgas de terra bem aproveitadas, o verde brilhante do milho, o verde fresco dos prados húmidos, e enquadrado por sebes vivas em que a vinha trepa pelas árvores”. E se fala do verde de Entre-Douro-e-Minho, numa paisagem limitada, mas acolhedora, pinta, nas encostas, o “verde alegre” dos carvalhos de folha caduca (que tantas vezes o lucro fácil sacrificou, teremos de dizer nós) e o “verde-escuro” dos pinheiros… Nesse tempo distante, em que éramos contemporâneos do neolítico, camponeses e camponesas cultivavam os campos – e Ficalho notava um fundo matriarcal na sociedade (“a mulher trabalha tanto ou mais que o homem”). No norte litoral, encontravam-se os “pequenos rebanhos da pequena cultura”, nas colinas, entre os “tojos de flor dourada e as urzes floridas dum violeta rosado”. Dois ou três bois nos prados, meia dúzia de vacas ou uma dúzia de ovelhas nas encostas. A pequena propriedade, de cultura dividida e pobre, mantida pelo camponês “pouco progressivo” e pela sua prole… Em contraste, falava o conde, que conhecia o Alentejo como os dedos das suas mãos, da transição desde o norte minhoto até à planura do meio-dia – “a paisagem muda, mais árida, mais ampla, os tons são menos vivos, pois o arvoredo dominante (a oliveira e os dois carvalhos de folha persistente), são todos dum verde apagado, azulado na oliveira, acinzentado na azinheira e sobretudo no sobreiro”. Eis a charneca inculta, a perder de vista, com as “grandes estevas glaucas”, as “alfazemas prateadas”. E, no “verão do Verão”, o restolho das searas “amareleja” e os pastos vicejam sob o “azul violento do céu”. As vacas e os bois de “pelagem encarniçada” (da “cor do trigo” na expressão do povo) viviam em grandes manadas, ao lado dos rebanhos “intermináveis” de ovinos pretos, conduzidos por “pastores seminómadas”. Escasseiam as pessoas (“pastores” e “maiorais pitorescos”) e de longe em longe há grupos de trabalhadores que amanham a terra, e o que ela dá, “por conta dos grandes proprietários”, em demanda de trigo, azeite, lã e cortiça…


Este é o contraste forte que ressalta à vista e aos sentidos, mas o conde de Ficalho diz-nos que a transição é gradual. Em indo de sul para norte, as árvores mediterrâneas vão rareando até desaparecer (com a exceção de Trás-os-Montes), o tamanho dos campos vai diminuindo, o trigo vai dando lugar ao milho, o cinzento e o amarelo ao verde, e a gente vai-se tornando mais numerosa nos caminhos e nas fazendas. Da influência do Mediterrâneo vai-se passando para o Atlântico, sobretudo depois de passada a Cordilheira Central, como Orlando Ribeiro ensinou, melhor do que ninguém. E aí a Estrela é a grande referência beirã (Beira-Serra), que, no dizer de Miguel Torga, não divide, mas une e concentra: “alta, imensa, enigmática, a sua presença física é logo uma obsessão”. Aquilino Ribeiro é claro: “A serra da Estrela é uma personalidade. Descobre-se à distância de trinta léguas”. Mas, nesta “sucessão de transições” fica o verdadeiro quebra-cabeças de geógrafos e economistas sobre a divisão regional de Portugal… Orlando Ribeiro fez, no entanto, a proposta mais prática e inteligente: encontrou duas regiões, uma litoral e outra interior, ao norte da Cordilheira Central - com o Marão a separar “dois mundos” e a Estrela a pontificar; e depois autonomizou apenas a “imensidão da terra lisa do sul”. Antero de Figueiredo diria: “cá em cima, os galaicos misturaram-se como os astúro-leoneses; lá em baixo, os lusos cruzaram-se com os mouros”. E Maria Angelina e Raul Brandão, no seu “Portugal Pequenino”, falavam da quadrícula da pequena propriedade a norte do Tejo e das extensas planícies ao sul – “com os pinheiros bravos cobrindo o terreno nas costas marítimas e vegetando no interior até às montanhas, onde só medram até certa altitude, na encosta voltada para o mar”… E qualificavam, muito justamente, o castanheiro como “a mais linda árvore de Portugal”, do mesmo modo que Aquilino (premonitório no proibidíssimo “Quando os Lobos Uivam”) dizia que nada era “mais sumptuoso que um souto em vésperas de maturação”. Infelizmente, a natureza foi violentamente contrariada e os terríveis fogos florestais de hoje são resultado de criminosa ignorância.


Esta “sucessão de transições” tem os seus misteriosos santuários. São eles: Entre-Douro-e-Minho; a cidade-estado do Porto; o para lá do Marão mandam os que lá estão (Marânus de Pascoaes); a Régua terra mágica do “vinho fino; a Beira como um todo que circunda a Estrela; “um ázimo pão sobrenatural” que mora nos “sacrários que a Charola de Tomar sintetiza” (Miguel Torga); Sintra como prefiguração do Éden; a Arrábida (de Agostinho da Cruz a Sebastião da Gama – de que Oliveira Martins, criado nesse monte sacro, disse: “acaso não há no reino panorama nem mais belo, nem maior, nem mais nobre, nem mais variado”) e a sul, o Alentejo (com a água a mudar o panorama) e o inebriante Algarve, de Teixeira Gomes e de Sophia. Tudo sem falar das ilhas encantadas… E neste sul do sul, onde escrevo, entre Barlavento e Sotavento, Raul Brandão falava da “reverberação do sol”, do “azul mais azul” e do “branco mais branco” de uma terra levantina, a que só faltam os minaretes – “duas cores e cheiro: branco, branco, branco, branco doirado pelo sol, que atingiu a maturidade como um fruto, pinceladas de roxo uniformes para as sombras, e um cheirinho a cemitério” – “da soteia chego às estrelas com a mão”. E se virmos bem tanta variedade da terra portuguesa formou um povo bastante homogéneo, cujas idiossincrasias não induzem divisões insanáveis. Pesa talvez o individualismo atávico, que leva ao funcionalismo burocrático e à adoração do Estado messiânico, o melhor protetor e o melhor bode expiatório para todos os males. Daí funcionar o centralismo (que permitiu a unidade Brasil), que teve como melhor aliado, ao longo dos séculos, um municipalismo de forais e privilégios, contra as veleidades da nobreza e do alto clero. E assim a variedade do território contrasta com a proximidade das gentes, numa história de migrações internas ditadas pela pobreza agrícola e de fuga para as grandes cidades, a começar na Lisboa mítica, porta de todos os Eldorados fictícios… Numa palavra, "Portugal é mediterrânico por natureza e atlântico por posição" – no dizer de Pequito Rebelo.


Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE PEDRO MEXIA

  


As gavetas


Não deves abrir as gavetas
fechadas: por alguma razão as trancaram,
e teres descoberto agora
a chave é um acaso que podes ignorar.
Dentro das gavetas sabes o que encontras:
mentiras. Muitas mentiras de papel,
fotografias, objectos.
Dentro das gavetas está a imperfeição
do mundo, a inalterável imperfeição,
a mágoa com que repetidamente te desiludes.
As gavetas foram sendo preenchidas
por gente tão fraca como tu
e foram fechadas por alguém mais sábio que tu.
Há um mês ou um século, não importa.


in Menos por Menos – Poemas Escolhidos, 2011


Drawers 


You should not open closed
drawers: they were locked for a reason,
having now found
the key is a happenstance you can ignore.
You know what you’ll find inside drawers:
lies. Many paper lies,
photographs, things.
Drawers are home to the world’s
imperfection, the unalterable imperfection,
the sorrow that repeatedly feeds your disillusion.
Drawers have always been packed
by people as weak as you
and locked by someone wiser than you.
A month ago, never mind a century.


© Translated by Ana Hudson, 2011
in Poems from the Portuguese 

 

ANTOLOGIA

  


ONDE SE FALA DE PIERRE DE BRANTÔME
por Camilo Martins de Oliveira 

"Regressado à Europa, lá fui às exéquias da tia Ana Adelaide Eugénia, que teimou em esconder os seus últimos anos no Périgord, onde também decidiu que aí deveria ser dado à terra o seu corpo mortal. Casta, penso eu, terá morrido. Mas ficará por elucidar a razão do tão forte desejo de terminar seus dias naquele casarão às portas de Saint Crépin, bem vizinho de Brantôme que deu nome ao autor de tantos discursos sobre as damas, incluindo os "Discours sur l’amour des dames vieilles et come aucunes l’ayment autant que les jeunes"... Passei pelo túmulo de Pierre de Bourdeilles, Sieur de Brantôme, que pouco terá combatido em armas, mas muito deixou escrito, um tal como o seu coevo e quase vizinho Michel de Montaigne. Traduzo-te, Princesa tão augusta do meu coração, umas linhas do epitáfio que lhe deixou uma sobrinha: "Fez a sua primeira aprendizagem das armas sob esse grande Capitão Francisco de Lorena, Duque de Guyze (…) e em nada degenerou da virtude dos seus antepassados, mas se achou em muitas guerras e combates arriscados tanto em França como em países estrangeiros: mesmo o Rei de Portugal Dom Sebastião, honrando o seu valor (…) o fez cavaleiro da sua Ordem chamada o Hábito de Christo...". Foi este Brantôme um notável contador de memórias, ao ponto de me ser difícil, lendo-as, duvidar da sua veracidade. Fidalgo da câmara dos reis Carlos IX e Henrique III de França, foi quando o último dos Valois lhe negou provimento no cargo régio que ocupava, no Périgord, depois da morte de seu irmão mais velho, para o atribuir ao seu sobrinho filho deste, que Pierre de Bourdeilles atira ao Sena a simbólica chave de ouro de camareiro do rei, e se retira para as suas terras, onde passará trinta anos a escrever. Os vários livros que constituem o seu "Recueil des Dames", vão desde crónicas da vida e obras de rainhas de França, Navarra e Espanha, até memórias e contos exemplares de senhoras de todas as idades, viúvas, casadas e solteiras, a maioria das quais se moveram no tempo e na atmosfera erótica e frívola da corte dos Valois. Brantôme é um observador amoral e impenitente, condescendente consigo e com todas elas. Essa nossa juventude hodierna  -  que tanto se gaba e compraz na "sua" revolução sexual dos anos 60  -  não faz ideia de que, nessa viragem do século XVI para o XVII, um fidalgo francês escrevia, com agrado geral e larga aceitação, sobre: "les dames qui font l´amour et leurs maris cocus"; "le sujet qui compte plus en amour, ou le toucher, ou la vue, ou la parole; la beauté de la belle jambe et la vertu qu´elle a; les femmes mariées, les veuves et les filles, à savoir desquelles les unes sont plus chaudes à l´amour que les autres"; "qu´il ne faut jamais parler mal des dames et la conséquence qui en vient"; " que les belles et honnêtes dames aiment les vaillants hommes, et les braves hommes aiment les dames courageuses"... Saboreie-se o conto do que lhe disse, na corte de Espanha, uma senhora idosa, "muito honesta e bela", sobre o amor carnal na terceira idade: "Quanto à picada da carne, não deve pensar-se que só pela morte dela nos curamos, mesmo que pareça que à idade ela repugne. Até porque toda a mulher bela se ama extremamente, e amando-se não o faz por ela mas para outrem; e em nada se parece com Narciso que, por tolo que era, amado de si e de si mesmo enamorado, aborrecia todos os demais amores".  E o nosso Brantôme comenta o dito, num parágrafo que serviria de guião a um ousado filme do nosso tempo: "A mulher bela não é de modo algum assim (narcísica) .Tal como ouvi contar, de uma belíssima Dama que, amando-se e agradando-se muito, muitas vezes só e consigo, no seu leito se punha toda nua, e em todas as posturas se contemplava, se admirava e mirava lascivamente, maldizendo-se por se ter votado a um só que não era digno de corpo tão belo, entendendo que seu marido em nada era igual a ela, e que finalmente se acendeu tanto com tais contemplações e visões, que disse adeus à sua castidade e ao seu voto matrimonial, e fez amor e servidor novo. " Vivia-se numa época em que, pelo contrário, o Grão-Duque de Florença, ao casar-se com Cristina de Lorena, manifestou o seu espanto por tê-la achado virgem! Mas se Pierre de Bourdeilles condescendia com os apetites naturais da carne feminina, também contraditoriamente sentia com veneradora devoção os exemplos opostos. Sintomático é este passo em que nos fala da infanta Dona Maria de Portugal que, diz-me o Alberto, o grande Camões tanto admirou e, talvez, desesperadamente tivesse amado ("Num tão alto lugar de tanto preço,/ este meu pensamento posto vejo,/ que desfalece nele inda o desejo,/ vendo quanto por mim o desmereço."): "Vi a Infanta de Portugal... ...morreu menina e virgem aos sessenta anos de idade ou mais. Não por falta de grandeza porque era grande em tudo; nem por falta de bens... ...nem por falta de dons da natureza, porque a vi em Lisboa, com quarenta e cinco anos de idade, uma muito bela e agradável menina, de boa graça e belo aspeto, doce agradável, e que bem merecia um marido a ela igual em tudo. Cortez mesmo para connosco, Franceses. Posso dizê-lo por ter falado com ela muitas vezes e em privado. O falecido Senhor grande Prior de Lorena... ...quando esteve, por uns dias, em Lisboa, visitou-a e viu-a todos os dias. Ela recebeu-o muito cortesmente e teve gosto na sua companhia e deu-lhe muitos belos presentes... ...que ele amava por amor da Dama, da qual se tinha enamorado. E creio que ela não o amava menos, e de boa vontade teria por ele rompido o seu nó virginal; mas só pelo casamento,entenda-se,porque era uma muito sage e virtuosa Princesa". Assim o Senhor de Brantôme - que sempre se inclinaria para o gabanço das proezas do "seu" Francisco de Lorena - aqui o deu por derrotado pela virtude de uma Senhora... Tal como eu, Camilo Maria, venero a tua e talvez lhe obedeça.". E assim acaba esta carta em duas partes, pela qual o Marquês de Sarolea, antes do Périgord, me levou ao "Chez Pierre" e ao cemitério de Aoyma ali defronte. A onde, anos mais tarde, tantas vezes fui acolhido, mais do que como cliente, como amigo. Para deleite do meu paladar irreverente e rebuscado, o Pierre Prigent cozinhava bochechas de atum, pés de porco e molejo de vitela. Em Tokyo! Retribuía-lhe conforme podia, levando lá guitarristas e fadistas de passagem para jantares de epopeia, que mantinham o restaurante  - cheio de japoneses conviventes e deliciados com o nosso lusitano exotismo - aberto até de madrugada!


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 26.04.13 neste blogue.

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO


XCVI - PERFIL DE ANTERIORES E NOVAS VAGAS IMIGRATÓRIAS


Comparativamente às novas vagas imigratórias em Portugal, eram as anteriores, no essencial, de imigrantes das ex-colónias, cuja ligação se fixava, maioritária e naturalmente, por uma língua comum.  


Eram imigrantes preferencialmente do espaço lusófono, ao invés de um novo perfil de origem anglófona, francófona, asiática, eslava, entre outros.


Enquanto anteriormente se diferenciavam, na quase totalidade, por baixas rendas e qualificações, há um novo perfil imigratório que se particulariza por serem recursos humanos qualificados e de um elevado património líquido. 


Sendo um país intercultural, aberto a imigrantes, de emigrantes e com uma população das mais envelhecidas, é-nos dada uma esperança para amenizar o inverno demográfico e escassez de mão de obra.  


Sucede que, em termos linguísticos - e se acreditarmos que o português é um ativo que não podemos desperdiçar - há uma nova vaga de imigrantes que se limita a estar entre nós enquanto auferir um benefício pessoal imediato, não se vendo como solução para os nossos problemas demográficos, económicos e outros, alheando-se da nossa cultura, a começar pela língua, e não reconhecendo em Portugal uma fonte civilizadora. 


São, essencialmente, imigrantes muito qualificados, de altos rendimentos, criativos, cosmopolitas, globalizados, falantes fluentes de inglês, entre outras línguas, com capacidade para uma mobilização conjuntural e permanente (de país em país), ao gosto das circunstâncias, não portadores de uma mais valia estrutural, com uma experiência de inclusão limitada. 


Interessa que permaneçam, não só porque aconchegados pelo nosso clima, pacifismo, natureza, gastronomia, baixo custo de vida (para eles), mas também abrindo novos espaços e mentalidades, investindo, criando postos de trabalho e integrando-se, o que mais vezes, do que seria desejável, não acontece, manifestando-se amiúde na não aprendizagem da nossa língua.


Nem sempre por responsabilidade exclusiva, dado o provincianismo de alguns portugueses, no próprio país, omitirem o idioma materno e usarem o alheio, mesmo que o interlocutor se esforce por o aprender e falar, chegando ao cúmulo de ter presenciado, num hipermercado, uma portuguesa atender, sempre em inglês, um imigrante que se esforçava, expressando-se e respondendo sempre em português!  (apelei a uma colega, que se apercebeu, para chamar a atenção para o exagero, que compreendeu, prontificando-se a fazê-lo, dado me ter antecipado e não poder esperar).  


O que nunca exclui, por uma questão de princípio e de respeito para com o país que nos acolhe, que todo o imigrante se tente integrar e aprender, ab initio, o nosso idioma, apropriando-se dele e tornando mais fácil, por arrastamento, a compreensão e interação com a nossa cultura. 


Imigrantes de mais baixos rendimentos e qualificações, incluindo países de nível de vida inferior ao nosso, como das ex-colónias, leste europeu e de algumas bolsas asiáticas (não todas), reveem-se mais e melhor, até agora, como solução para a crise demográfica e aprendizagem da língua, sendo esta comum, para alguns. 


Anote-se que entre os originários do Brasil, falantes de português na vertente brasileira, há um novo perfil e uma nova vaga de pessoas qualificadas, de altos rendimentos, diferentes dos brasileiros comuns, singularizando-se por bolsas de brasilidade, preferindo ser vistos como “não residentes” e não como “imigrantes”, em paralelo com os que estão de passagem ou trabalham no nosso país para o exterior, em que uma percentagem relevante nos quer mais como de acolhimento que como de integração.


Em qualquer caso, o permanente aumento da população estrangeira obriga Portugal a refletir sobre o seu futuro como país, contando com o perfil das tradicionais e novas vagas imigratórias, em termos de uma maior inclusão e integração (e não só acolhimento), com reflexos na nossa história e cultura, a começar pela língua, um ativo primordial e internacional de projeção global.


03.03.23
Joaquim M. M. Patrício