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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

 

(XVIII) SUBLIME GARRETT

 

Almeida Garrett é o grande inovador da língua e da literatura. É lendária a sua relação com a oralidade popular, transmitida por Brígida e Rosa de Lima, durante a infância. Aí despertou o jovem para as tradições populares - romances, xácaras, narrativas, feitiços, mouras encantadas…

A revolução de 1820 encontrou-o em Coimbra, motivado para a ideia nova de criar um liberalismo constitucional, como nas nações civilizadas da Europa. O país emancipava-se - e proclamava as liberdades. A intenção política não passava despercebida. E o Garrett literato não esquecia o Garrett competente oficial da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino (1822), de impecável escrita, dando os primeiros passos na vida profissional.

Depois de um período de intensa motivação política, abre-se um momento difícil com a "Vilafrancada" e a "Abrilada", que obrigam o poeta a fugir para Inglaterra. Quando regressa é preso. Fica na cadeia muito pouco tempo. Quando o libertam, empreende nova fuga do país. Fixa-se primeiro em Inglaterra e depois em França. Lê então os grandes românticos - W. Scott, Byron - e descobre Shakespeare…

Depressa pensa em recriar literariamente os valores nacionais – com Camões e D. Branca. A outorga da "Carta Constitucional" por D. Pedro trá-lo de regresso à pátria (1826). É o ano da indispensável Carta de Guia de Eleitores - "vade-mécum" da cidadania liberal. Volta à Secretaria de Estado do Reino, polemiza com José Agostinho de Macedo e defende a causa da liberdade, o que lhe valerá três meses de cadeia… Volta a Londres, depois do regresso de D. Miguel.

Em Portugal todos os esforços em prol da liberdade parecem baldados. Na Europa, as circunstâncias são desfavoráveis às cores liberais. Mas em 1830 os ventos mudam. A revolução de Julho abre novos horizontes. O neto de Filipe Égalité simpatiza com D. Pedro e apoia-o. Em Inglaterra a vitória Whig também ajuda. Em Janeiro de 1832 parte de Paris, para chegar a Angra em Março. É o tempo da colaboração intensa com José Xavier Mouzinho da Silveira. Os decretos dos Açores, verdadeira Carta Magna da revolução liberal, têm a intenção do Ministro e o brilhantismo formal do jovem Garrett. Com os heróis do Mindelo chega ao Porto e é integrado no heroico Corpo Académico. Depois da vitória liberal (1834), colabora com o governo saído da Revolução de Setembro, tomando o encargo da organização do Teatro Nacional e do Conservatório de Arte Dramática.

É um dos constituintes de 1838 e aí se afirma como democrata, o que constitui uma ousadia. Não é só liberal, mas sim defensor da soberania do povo, adversário de todas as tiranias e combatente da educação para a liberdade. Mas os ordeiros demitem-no, em 1841 e regressa à oposição…

Em 1843 escreve o "Frei Luís de Sousa”. Aí se nota a interrogação audaciosa sobre os que viriam a ser os grandes mitos nacionais. Manuel de Sousa Coutinho e Telmo são, assim, cada um à sua maneira, encarnações do próprio Garrett. É a essência do constitucionalismo liberal que está por detrás desta interrogação fundamental sobre o destino coletivo. E Garrett enaltece a nacionalidade como fator de liberdade política. As tradições são usadas pelo dramaturgo como fatores de emancipação. Assim se compreende que alguém fortemente crítico da antiga legitimidade e do antigo regime lance os fundamentos do novo patriotismo com ingredientes históricos totalmente renovados. É o período áureo da criação garrettiana.

Inicia a escrita de "Viagens na Minha Terra", onde começa por contar o percurso que faz para visitar o seu amigo Passos Manuel, no exílio político em Santarém. Estamos perante um relato no qual a realidade e a ficção se confundem. O escritor invoca o heroísmo fundador da liberdade e a degenerescência do dia a dia político, de que é símbolo o protagonista Carlos - que cai "no indiferentismo absoluto", pois "fez-se o que chamam cético". "Morreu-lhe o coração para todo o afeto generoso e deu em homem político ou em agiota…".

Garrett surge como “mensageiro do novo espírito europeu" - como disse Ramalho Ortigão. "Foi ele que, de chapéu branco, calças de quadrados, gravata encarnada, monóculo no olho, um charuto nos beiços e uma chibata em punho, vergastou as orelhas do velho mundo português e o obrigou a abrir a primeira garrafa de champagne. Nós não éramos todos uns pobres velhotes, uns ginjas, uns xexés. Foi ele que, por meio dos seus livros, nos deitou nos copos e nos fez beber o vinho da mocidade. E foi depois de reconfortados por esse generoso licor de poesia, que nós aprendemos a estimar a beleza, a amar a liberdade, a compreender as artes e a querer o progresso".

Que mais haverá a dizer? Ele foi um núncio da modernidade. Quando o romeiro responde que é ninguém no "clímax" trágico bem conhecido do "Frei Luís de Sousa", põe no centro da reflexão dramática não apenas a questão da ausência e da vida que não se detém, mas fundamentalmente a força maior do mito sebástico, "a primeira mitologia portuguesa sem transcendência", no dizer de Eduardo Lourenço - não confundível com um destino impossível e inútil, mas sim legitimador de uma vida assente no querer das pessoas e dos cidadãos, do povo-povo que sempre entusiasmou Garrett. Assim mesmo é nosso contemporâneo o sublime autor das "Viagens", peregrinação que nos ensina a melhor nos conhecermos.

GOM

 

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O JOVEM GARRETT HÁ 200 ANOS

 

Obviamente, já temos aqui abordado as intervenções de Garrett no historial do teatro português. A cronologia torna agora a referência ainda mais adequada.

 

Efetivamente, os livros de Memórias do Marquês da Fronteira José Trazimundo Mascarenhas Barreto (1802-1881), “ditadas por ele próprio em 1861” diz a edição original coordenada por Ernesto de Campos Andrada e publicadas em 1926, descrevem uma inesperada intervenção pública do então jovem e desconhecido Almeida Garrett no Teatro de São Carlos, há exatamente 200 anos.

 

Estava-se pois em 1820, Garrett tinha 20/21 anos e o Marquês assistia a um espetáculo no então Real Teatro de São Carlos quando inesperadamente vê levantar-se um jovem espetador. E conta nas sua Memórias:

 

“Foi numa dessas noites de grande entusiasmo que, estando na plateia geral, vi pôr-se de pé sobre um dos bancos um jovem elegante pelas suas maneiras, duma fisionomia simpática e toilette apurada, um pouco calvo, apesar da pouca idade, o qual, pedindo silêncio aos que o rodeavam, desse hino “À Liberdade”. E recitou uma bela ode que foi estrepitosamente aplaudida, perguntando-se com curiosidade, tanto nos camarotes como na plateia, quem era o jovem poeta: foi ele próprio quem satisfez a curiosidade, dizendo chamar-se Garrett”.

 

E continua:

 

“Foi a primeira vez que os habitantes da capital ouviram a voz sonora do grande poeta, e foi nessa noite que eu fiz com ele conhecimento, o qual se estreitou, durando até à sua morte as nossas relações de amizade. Garrett teve nessa noite uma bem merecida ovação, sendo levado em braços, de roda do salão, por várias vezes”.  (In “Memórias do Marquês de Fronteira e de Alorna” vol.I-II - 1926 – ed. INCM 1986 pág.212).

 

Ora bem: será oportuno lembrar que Garrett, no prefácio da “Mérope”, primeira peça publicada em 1819, assume que o teatro o interessou desde os 12 anos, e que cerca de 1815 ensaiou uma adaptação de “Os Persas” de Ésquilo. E recorda no mesmo texto que ensaiou ainda “um meio Afonso de Albuquerque, um quarto de Sinfonista, um Átila e não sei quantas coisas mais”...

 

O “Catão” data de 1821.

 

E a partir daí, desenvolve-se a dramaturgia iniciática da renovação/modernização (à época) do teatro português, a partir portanto do romantismo garreteano, histórico ou não...

 

DUARTE IVO CRUZ

COLÓQUIO SOBRE GARRETT E O TEATRO DE D. MARIA II

 

Em 15 de abril último, a SHIP organizou um colóquio sobre “O Teatro Nacional D. Maria II e Almeida Garrett”, assim intitulado e abrangendo temas relevantes na época e ainda hoje. Porque, para além da qualidade em si mesma da dramaturgia de Garrett, nada mais adequado do que evocar e analisar a importância da sua obra e da sua atividade literária mas também, como sabemos, política e social, tudo isto na introdução do romantismo.

 

Tive o gosto de participar nesse colóquio, que precedeu a inauguração de uma placa alusiva à permanência do escritor no que é hoje o Palácio da Independência. Foi-me solicitada uma intervenção sobre “Garrett e a Renovação do Teatro Português”.  Tema vasto e envolvente, sobretudo na perspetiva da renovação que efetivamente Garrett trouxe à cena e à dramaturgia, tendo sobretudo em vista três fatores determinantes: a qualidade, a inovação da linguagem e o sentido de espetáculo.

 

Outros participantes foram José Alarcão Troni, Presidente da SHIP, Annabela Rita, Fernando Larcher e Pedro Saraiva. E foi inaugurada uma placa alusiva a Garrett.

 

Referimos as três características da dramaturgia garrettiana - qualidade, inovação, sentido do espetáculo -  tendo em vista, entretanto, que a obra dramatúrgica que chegou até nós constitui quase um resquício daquilo que o autor ao longo da vida imaginou e de que restam, além das peças conhecidas e consagradas, para cima de mais 15 títulos.

 

Sabe-se que Garrett se interessou pelo teatro desde os 12 anos, aí por 1813. Ele próprio o assume, no prefácio da “Mérope” (1819), primeira peça que chegou até nós. Segue-se o “Catão” (1821), e em ambas concilia, de forma notável, a tradição clássica com uma força já característica da renovação romântica do teatro de Garrett, como tal iniciático entre nós.

 

Essa força romântica é pois patente mesmo nestes textos que modelam mas renovam o modelo da tradição clássica. E essa renovação consubstancia-se sobretudo a partir de “Um Auto de Gil Vicente”, de 1838, peça iniciática do teatro romântico português. Aí encontramos a conciliação do tema histórico com uma inovação linguística e estilística que marcará, durante décadas, o romantismo no nosso teatro.

 

E mais: a conciliação do tema histórico em si mesmo com a força sentimental do romantismo, abre portas a uma nova e renovadora abordagem do teatro português, na conciliação da perspetiva histórica dos temas e dos personagens, com a então atualidade/modernidade do sentimento, que cobre da tragédia à comédia, da História à atualidade.

 

E tudo isto numa perspetiva de reivindicação dos valores na época como hoje impositivos da liberdade. Mesmo nas peças históricas que rigorosamente situam o envolvimento epocal, mas nem por isso abrem mão dos valores dominantes da liberdade: e esses valores conferem a cada uma das peças um pujante sentido de atualidade, isto para lá da qualidade de escrita, de linguagem e de espetáculo.

 

Mesmo quando assume o classicismo histórico: mas de forma totalmente conciliada com o estilo romântico. Veja-se designadamente as iniciáticas “Mérope” e “Catão”, para não falar nas peças que mergulham diretamente no temário da História de Portugal.

 

E desde logo o próprio “Frei Luís de Sousa” mas também expressões da história e da cultura, como são por exemplo notável “Um Auto de Gil Vicente”, “D. Filipa de Vilhena” “O Alfageme de Santarém” ou “A Sobrinha do Marquês” que constituirá, nesse aspeto, talvez o mais peculiar da dramaturgia de Garrett.

 

Veremos, em próximos artigos, outros aspetos da dramaturgia renovadora de Almeida Garrett.

 


DUARTE IVO CRUZ 
 

ALMEIDA GARRETT

 

O narrador anuncia: De como o autor deste erudito livro se resolveu a viajar na sua terra, depois de ter viajado no seu quarto; e como resolveu imortalizar-se escrevendo estas suas viagens. Parte para Santarém. Chega ao terreiro do Paço, embarca no vapor de Vila Nova; e o que aí lhe sucede.

 

“Há em todo este enredo um claro simbolismo político e social: o emigrado é filho do frade, como o Portugal revolucionário é filho do Portugal clerical; e só por acidente aquele não assassina o pai, como o novo Portugal liquidara pela base o Portugal antigo.” Esta uma das opiniões criticas que li acerca das “Viagens na minha terra”.

 

“Viagens” fazem referência a uma série de reflexões políticas, históricas, filosóficas e existenciais que o autor-narrador trabalha no texto e a viagem, diga-se, é interpretada como busca do conhecimento: assim, pode-se dizer, que a literatura de viagem não é apenas encontrar e conquistar pelo saber do sentir, novos territórios, mas, conhecendo outros povos e culturas refletir de um novo angulo sobre o nosso próprio eu.

 

E quando pego nesta edição de 1857 da Imprensa Nacional, leio, a dada altura, as palavras deste magnífico Garrett:

 

Comêmos, conversámos (vieram visitas, falou-se de politica, falou-se litteratura, falou-se de Santarem sobretudo, das suas ruinas, da sua grandeza antiga, da sua desgraça presente. Emfim, fomo´-nos deitar.

 

(…) Nunca dormi tam regalado somno em minha vida (…).Saltei da cama no outro dia (…) recordações de todos os tempos, pensamentos de todo o género me afluíam ao espirito, e me tinham como n’um sonho em que as imagens mais discordantes e disparatadas se sucedem umas ás outras. Mas eram todas melancholicas, todas de saudade, nenhuma de esperança!...

 

Lembraram-me aquelles versos de Goeth (…)

Vêem os primeiros símplices amores

(…) Dos labyrinthos da perdida vida;

(…) Em horas bellas por fallaz ventura

Antes de mim na estrada se sumiram.

 

É tão evidente neste livro que cada geração, pelo facto de ter nascido no interior de uma continuidade histórica, beneficia e carrega fardos anteriores, reordena ideias, sentires e tempos para, no pensamento e na ação, renovar mundo, aquele mesmo mundo que já lá existia antes do livro e que ele deixará a todos os que o lerem. Ficará o mundo deste livro, viajado também, no quarto de múltiplas estradas, por onde erradamente nos sentimos em excesso culpados e em excesso livres de culpa, quando nem o amor é inocente durante a viagem.

 

Cada peça da engrenagem deste livro é o mesmo que dizer que cada pessoa é um quadro de referência distinto, é um grau de participação no nosso processo interior, respondendo perante o nosso tribunal para que este interprete o que se deve entender, nomeadamente, nas palavras de Garrett por

 

o pouco da noite que lhe restava passou-se (…) combateu-se larga e encarniçadamente – como entre irmãos que se odeiam de todo o odio que já foi amor – o mais cruel odio que tem a natureza!”

 

Depois, depois, proponho que o critério do nosso juízo seja o mundo, isto é, que da janela do quarto de cada um, se olhe para a rua. Permitam então que sugira que deste modo se releia o livro e se faça a viagem. Que se espreite a linguagem a viver ao lado de nós com muitas razões a serem aferidas contra as probabilidades a que estamos habituados, e talvez nos chegue de outra viagem, com a qual nascemos, o entender de parte da Carta de Carlos a Joaninha no Capítulo XLVII (SEGUNDO DAS VIAGENS)

 

Tambem deve ser assim a morte: um descanso apathico e nullo depois de inexplicável padecer.

 

(…) E já não pensava em ti, já te não via na minha alma: eu não existia, estava alli.

 

A militância ideológica de Garrett não é descurada nunca neste livro, ela é uma fonte de informação sobre os sinais de vida do seu tempo e das suas opções, agregada sempre ao fogo intenso e intimo dos amores.

 

Teresa Bracinha Vieira

A VIDA DOS LIVROS

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  De 5 a 11 de fevereiro de 2018

 

«Obra Política – Escritos do Vintismo (1820-1823)» de Almeida Garrett (Estampa, 1985) permite-nos compreender os alvores do constitucionalismo, seus claros e escuros, segundo o mais inovador dos nossos românticos.

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LIVRES E IGUAIS…

Almeida Garrett, ao escrever em 1821, sobre os princípios da nossa primeira revolução liberal, a do Porto de 24 de agosto de 1820, disse que “os homens são iguais, porque são livres, e são livres porque são iguais; eis aqui um círculo vicioso à primeira vista, mas uma demonstração verdadeira; e exata, para quem a quiser aprofundar. (…) Somos livres; porque os direitos, que temos à existência, à boa existência, a prover aos meios dela, a aperfeiçoá-la, são comuns a todos (…). Somos iguais; porque não podendo nenhum homem ser impedido por outro no exercício dos seus direitos, sendo estes os mesmos para uns, que para outros, e portanto livres, este estado forma o que se diz, e o que é a igualdade”… E não deve esquecer-se a fraternidade, já que é “o homem dotado de uma sociabilidade, ou necessidade de viver com os outros homens, que é clara e patente a todas as luzes”. Nesta referência atualíssima, encontramos o fundamento do constitucionalismo moderno – assente nas ideias do primado da lei, de legitimidade cidadã e de diversidade. E se hoje a reflexão sobre a democracia, a representação e a participação estão na ordem do dia, a verdade é que a ligação entre liberdade e igualdade, igualdade e diferença, legitimidade e mediação devem ser consideradas. Nos duzentos anos do constitucionalismo português, importa ter presentes os antecedentes desse momento fundador. Realizado o Congresso de Viena, em que uma nova ordem europeia foi consagrada, depois da derrota de Napoleão, um paradoxo foi lançado, simétrico ao da expansão de Bonaparte. Se os ideais da Liberdade, Igualdade e Fraternidade entravam em choque com a lógica expansionista do Império, o certo é que no domínio dos princípios não podiam ser esquecidos – e no caso português, se a aliança luso-britânica nos salvara da perda da independência, com a inteligente solução de transferir a capital para o Rio da Janeiro, o certo é que a ausência do rei e os efeitos económicos da subalternização do Portugal europeu resultaram na nossa redução à condição de colónia. Não podemos esquecer a existência de uma importante corrente liberal (dita afrancesada) nos meios cultos portugueses, que não desapareceu durante as invasões francesas e a guerra de libertação nacional. E era paradoxal combater um invasor, que representava ideais de liberdade e de progresso… A figura de Gomes Freire de Andrade é representativa dessa tensão de ideias contraditórias – a da independência nacional, incompatível com a invasão napoleónica, e a de um constitucionalismo baseado na liberdade e na emancipação assente numa cidadania ativa, representada nos princípios originais da revolução francesa.

 

O PORTO COMO PONTO DE PARTIDA

A revolução constitucional do Porto de 1820 foi o corolário de uma tomada de consciência sobre a necessidade de encontrar um regime constitucional moderno, assente numa legitimidade cidadã. Daí termos de falar da tentativa de 1817 de Gomes Freire, barbaramente reprimida pela condenação ilegal e ilegítima dos mártires da Pátria – o que foi justamente associado às celebrações da abolição da pena de morte (1867) e deve ser continuado pela invocação agora dos duzentos anos da criação do Sinédrio, na cidade do Porto – verdadeiro embrião do movimento liberal-democrático que aboliria o absolutismo e implantaria a soberania popular. O Sinédrio foi criado no Porto a 22 de janeiro de 1818 por Manuel Fernandes Tomás, desembargador Tribunal da Relação, a ele aderindo doze figuras marcantes: João Ferreira Viana, comerciante; José Ferreira Borges, advogado e secretário da Companhia da Agricultura das Vinhas do Alto Douro; José da Silva Carvalho, juiz dos órfãos e futuro ministro de D. Pedro; Duarte Lessa, grande amigo de Garrett; José Maria Lopes Carneiro; José Gonçalo Santos e Silva; José Pereira Meneses; Dr. Francisco Gomes da Silva, médico militar; João da Cunha Sotomaior, desembargador; José de Melo e Castro e Abreu, coronel das milícias do Porto; José Maria Xavier de Araújo; e coronel Bernardo Correia da Costa e Sepúlveda, comandante do regimento de Infantaria 18… O fim da agremiação era “observar a opinião pública e a marcha dos acontecimentos, vigiar as notícias da vizinha Espanha, reunir-se no dia 22 de cada mês em um jantar na Foz, onde se daria parte dos sucessos acontecidos no mês passado, e do que conviria fazer no próximo, guardar a maior lealdade uns para com os outros e o mais inviolável segredo para com os estranhos…”. A designação foi escolhida pelo próprio Fernandes Tomás e havia a ideia determinada de libertar o país do vexame de ser praticamente um feudo do procônsul Beresford. Em 1818 e 1819 houve uma atividade persistente, mas discreta, reforçada pelos movimentos na Galiza no sentido da proclamação da Constituição de Cádis. E o Sinédrio foi reforçado pela entrada de António da Silveira Pinto da Fonseca, irmão do Conde de Amarante, figura de grande prestígio em Trás-os-Montes, que trouxe o coronel Sebastião Drago Valente de Brito Cabreira, comandante da Artilharia do Porto. De índole conservadora, os novos membros deram um impulso significativo ao movimento – com importantes adesões de altas patentes, o que levaria o Sinédrio a contar com todos os regimentos do Porto e de Trás-os-Montes. Faltavam apenas as forças do Minho – tendo, no entanto, o coronel António Lobo Teixeira de Barros assegurado a Xavier Araújo que poderiam contar plenamente com ele, o que dava aos conspiradores acentuada confiança. As boas comunicações com a Galiza e os apoios prometidos, com a retaguarda segura pelo controlo da praça-forte de Valença, levaram ao começo da preparação do golpe.

 

A REVOLUÇÃO REGENERADORA DE 1820

Foi fixada a data de 29 de junho, que teve de ser adiada, pois o coronel Teixeira de Barros deu o dito por não dito – uma vez que as condições tinham mudado. Esperava-se a todo o momento a chegada de Beresford, vindo do Rio, tendo ele, coronel, dado a palavra de honra ao governador militar da província, general Wilson, de que não concorreria para a revolução na sua ausência – afinal, na revolta da Galiza tudo apontava para que seria sufocada. Araújo parte para as Taipas onde comunica a Fernandes Tomás a nova situação. No entanto, o embaixador de Espanha em Lisboa, José Maria de Pando, entra em contacto com o Sinédrio, com vista a uma solução iberista, na linha do que defendia José Liberato Freire de Carvalho. O encontro do emissário tem lugar em um jardim na rua de Cedofeita. Mas Fernandes Tomás recusa essa solução: “Perdermos a nossa nacionalidade, nunca”. Entretanto, notícias da contrainformação levam o coronel Cabreira e o brigadeiro Silveira a querer avançar imediatamente. Mas faltam condições para o sucesso o que leva a diversas diligências, com êxito, designadamente de Cunha Sotomaior, para refrear os ânimos. Fernandes Tomás acerta em Lisboa os últimos pormenores e o movimento ganha um apoio de peso – o futuro Cardeal Saraiva, o beneditino D. Francisco de S. Luís. Fixa-se a data para 24 de agosto, mas Fernandes Tomás ainda se vê em sérias dificuldades para convencer o brigadeiro Silveira a aprovar uma declaração civilista e de sentido liberal e progressista. Manifestavam-se já as diferenças que levariam ao retrocesso de 1823, às guerras civis e às contradições que enfraqueceriam o constitucionalismo.     

 

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

 

 

A VIDA DOS LIVROS

 

De 13 a 19 de novembro de 2017.

 

«As Viagens na Minha Terra» de Almeida Garrett são um repositório de grande atualidade sobre o valor do património cultural, e a necessidade de o preservar e proteger.

 

ROTEIROS DE PATRIMÓNIO VIVO
Com o Ano Europeu do Património Cultural (2018) já no horizonte, devemos perguntar o que será essencial para que esta celebração se não fique pelo mero formalismo de uma festa. Naturalmente que é importante que os especialistas se encontrem e aprofundem as suas reflexões ou estudos, mas urge lançar pistas novas e fecundas que ponham a defesa e salvaguarda do património cultural na ordem do dia. E as escolas devem ser chamadas à primeira linha da ação. Como impedir que a memória seja votada ao abandono? Como conhecer melhor a História? Como saber de onde vimos, onde estamos, para onde vamos? Como dar valor ao que recebemos dos nossos antepassados? Como tornar a memória um fator de melhor aprendizagem? Como transformar a informação em conhecimento? Mais do que fogos-de-artifício ou ambiciosos e estimáveis programas, do que precisamos é de conhecimento e de motivação. Como Anselmo Borges dizia, há dias, em Santarém, na Fundação Passos Canavarro, temos de saber ler e de ganhar o hábito de ler – em vez da superficialidade dos efeitos especiais das novas tecnologias. Saber ler é saber refletir, pensar, repensar – não esquecendo que a educação se faz olhos nos olhos, a conversar, a dialogar, a conhecer, a transmitir e a trocar. E não se interprete mal, o erro não está nas tecnologias, que são instrumentos, belíssimos quando ao serviço de boas ideias, mas na falta de sentido crítico e de capacidade criadora. A ciência contribui para avançarmos no conhecimento e na compreensão das coisas e do mundo. As técnicas e as tecnologias completam-se e complementam-se – coexistindo umas com as outras ou até substituindo-se, no entanto não podemos confundir pessoas e robôs. Precisamos de voltar a ouvir T. S. Elliot quando nos diz: “Qual é o conhecimento que perdemos na informação e qual a sabedoria que perdemos no conhecimento”.

 

DE PORTAS ABERTAS
A experiência das Jornadas Europeias do Património, promovidas pelo Conselho da Europa, com o apoio da Comissão Europeia, nasceu em França nas Jornadas Portas Abertas, em 1984, tendo evoluído, depois de diversos países terem adotado iniciativas semelhantes, em 1991, para o modelo atual. Aí esteve Helena Vaz da Silva. Foi a experiência inovadora das Jornadas que levou à necessidade da aprovação da Convenção-Quadro do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural na sociedade contemporânea (2005), assinada na cidade de Faro. A concentração no início do Outono de cada ano de eventos correspondentes a uma chamada de atenção para o Património Cultural, material e imaterial, monumentos, sítios, museus, paisagens, tradições, costumes e idiomas, constitui um modo de mobilizar a atenção e o cuidado dos cidadãos para a herança e a memória. No entanto, o culto do património cultural obriga a tornar essa preocupação permanente, aberta e prospetiva – e não momentânea, fechada e retrospetiva. Daí que o Ano Europeu de 2018 deva constituir-se numa chamada de atenção para as políticas públicas de cultura – que têm de articular a proteção do património e a criação cultural contemporânea, em nome da coerência e da qualidade, da liberdade e da inovação. E quanto à identidade, estamos perante o velho paradoxo filosófico do Navio de Teseu, a embarcação que foi de Atenas a Creta para pagar o tributo pela morte de Androgeu, filho de Minos… Depois do gesto heroico de Teseu os atenienses preservaram o Navio mítico, que ia sendo reparado e cujas madeiras iam sendo substituídas. E surgiu a pergunta: qual o verdadeiro navio, o que está renovado ou os seus despojos? Naturalmente, como disse Leibniz, o que importa é a identidade que prevalece – o navio renovado e não o que restou do primitivo… Como o Navio de Teseu, o património e as identidades culturais devem ser abertas para se enriquecerem – ao invés de qualquer fechamento, que perigosamente se traduz na destruição da memória.

 

LEMBRANDO ALMEIDA GARRETT
Em Santarém, no fim de uma tarde estranhamente quente do final de outubro, lembrámos, há dias, a célebre passagem de Almeida Garrett sobre o que hoje designamos como património cultural: “Entrámos a porta da antiga cidadela. – Que espantosa e desgraciosa confusão de entulhos, de pedras, de montes de terra e caliça! Não há ruas, não há caminhos: é um labirinto de ruínas feias e torpes. O nosso destino, a casa do nosso amigo, é ao pé da famosa e histórica Igreja de Santa Maria da Alcáçova. – Há de custar a achar em tanta confusão”… Garrett dá-nos conta da falta de cuidado que encontrou na histórica cidade, quando ia ao encontro de seu amigo Passos Manuel. Fala-nos de “pardieiros e entulhos”, que hoje felizmente deram lugar a uma cidade cuidada. E assim apelava a que não se deixasse ao abandono um legado histórico sagrado. Mas o grande mestre romântico faz o contraste entre as pedras mortas que encontrou decaídas, a honradez das pedras vivas e a formosura do panorama e da paisagem. “Nunca dormi tão regalado sono em minha vida. Acordei no outro dia ao repicar incessante e apressurado dos sinos da Alcáçova. Saltei da cama, fui à janela, e dei com o mais belo, o mais grandioso e, ao mesmo tempo, mais ameno quadro em que ainda pus os meus olhos”. Eram o “vale aprazível e sereno” e “o sossegado leito do Tejo, cuja areia ruiva e resplandecente apenas se cobre de água junto às margens, donde se debruçam, verdes e frescos ainda, os salgueiros que as ornam e defendem”… A seca prolongada deixou-nos agora severas preocupações, mas aquele glorioso momento foi mais forte que tudo, em nome de uma memória histórica inesquecível. Que é o património senão vida vivida? Vínhamos de Mangualde e de Vale da Estrela, do roteiro suculento do queijo da Serra da Estrela, no coração da Beira-Serra, com as ovelhas da raça Bordaleira ou Mondegueira, e ali estávamos com Pedro Canavarro a idear (com a presença silenciosa de Garrett e Passos) um roteiro da democracia neste rico Ribatejo – desde as Cortes de Santarém, como as de 1331, que ilustram os fatores democráticos na formação de Portugal (de Jaime Cortesão) e a aclamação em 1580 como rei de Portugal de D. António Prior do Crato (em tão boa hora agora lembrado por Manuel Alegre), até D. Pedro IV em vésperas de Évora-Monte, Sá da Bandeira, Alexandre Herculano, Rebelo da Silva, Oliveira Marreca, Anselmo Braancamp Freire, António Ginestal Machado, José Relvas, Humberto Delgado, Salgueiro Maia… Para as escolas deve haver a determinação em criar para os mais jovens o gosto do estudo rigoroso, o culto e o interesse pelo património – seja o monumento antigo, seja a paisagem ou o jardim, seja o cuidado com o uso da língua materna, seja o trabalho do artesão, seja a qualidade na tradição gastronómica. E aqui está a ilustração de um modo como podemos cuidar do património – prevenindo-nos contra o descuidado, delineando e estudando caminhos que nos permitam conhecer, recordar, alertar e salvaguardar.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS


   De 26 de dezembro de 2016 a 1 de janeiro de 2017

 

A leitura da Correspondência de Almeida Garrett para Rodrigo da Fonseca Magalhães (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2016), permite compreendermos um pouco melhor o complexo mas apaixonante período da implantação e consolidação do liberalismo em Portugal.

 

 

UM APAIXONANTE PERÍODO
Encontramos o cidadão comprometido que foi Garrett em diálogo direto com o político mais influente na estabilização das instituições constitucionais – das guerras civis à Regeneração, momento em que foi possível pousar as armas e chegar a um acordo político de alternância no poder. A edição desta correspondência é de Sérgio Nazar David, que trata com esmero o manancial de contributos relevantes não só sobre as personalidades dos dois protagonistas, mas também sobre o período em que intervêm. Como sabemos, a edição crítica na INCM das obras de Almeida Garrett é coordenada por Ofélia Paiva Monteiro, cuja ação merece especial destaque, uma vez que tem permitido um melhor conhecimento da obra do grande autor do período romântico. Relativamente a Rodrigo da Fonseca (1787-1858), que a posteridade conheceria como «raposa», pela inteligência política e capacidade de superar as situações mais difíceis, não podemos esquecer a excelente biografia da autoria de Maria de Fátima Bonifácio, indispensável para percebermos o papel fundamental que desempenhou na história do seu tempo («Um Homem Singular», Dom Quixote, 2013).

 

 

GARRETT CIDADÃO E POLÍTICO

Almeida Garrett é uma referência da cultura portuguesa que supera em muito qualquer classificação de escola ou de grupo. Por isso, foi respeitado e referenciado por todos quantos, sob as mais diversas influências, até à modernidade, cuidaram de quem marcou indelevelmente o amadurecimento das nossas língua e cultura. «Não sou clássico nem romântico, de mim digo que não tenho seita nem partido em poesia (assim como em coisa nenhuma); e por isso me deixo ir por onde me levam as minhas ideias, boas ou más, e nem procuro converter as dos outros, nem inverter as minhas nas deles: isso é para literatos ou outra polpa, amigos de disputas e questões que eu aborreço». Estas são as suas palavras, significativas, em 1825 no prefácio à primeira edição de «Camões» demonstram sobretudo a independência de espírito e a especial atenção de Garrett relativamente às mudanças fundamentais do seu tempo. E o diálogo com Rodrigo da Fonseca, ora publicado, é revelador de como, apesar das incompreensões, o poeta, romancista e dramaturgo pôde contribuir pela dimensão cultural e artística para afirmação de uma sociedade aberta e liberal. O corpus documental que constitui a presente publicação é constituído por 97 cartas, 72 do espólio de Rodrigo, 18 do Ministério do Reino (Torre do Tombo) e 7 do espólio de Garrett (5 da Biblioteca Geral e 2 da Faculdade de Letras, da Universidade de Coimbra). O importante é dizer que se trata de 93 cartas inéditas. O percurso que poderemos seguir nesta correspondência revela-nos plenamente o cidadão, o político e o servidor público. Nota-se a situação que rodeou ida para Bruxelas como Encarregado de Negócios, por «sórdidas conveniências políticas», e as condições do regresso depois de dois anos de penúria. De novo na pátria, é eleito deputado em 1837 e defende na Câmara dos Deputados a liberdade religiosa - «não creio que possa haver liberdade civil para o povo que perder a liberdade religiosa». É uma preocupação que assiste ao liberal autêntico e que aflora nas «Viagens na Minha Terra». A moderação é a marca da sua intervenção política, afirmando-se entre os setembristas moderados, como dirá no célebre discurso do Porto Pireu, exemplo da oratória parlamentar, em resposta a José Estêvão: «É verdade: todas essas galés de injúrias navegadas de toda a parte do mundo, vieram descarregar-se a um imaginário porto Pireu, onde, sonhando os agradáveis sonhos da loucura ambiciosa e da cobiça frenética, nos supuseram, a estes poucos homens do centro, que, por poucos, por moderados, por guardadores de todas as formas, deviam ter merecido mais alguma daquela civilidade e consideração com que a todos acatam, renunciando tantas vezes a despicar-se das ofensivas, até a defrontar-se dos agravos, com que a todo o instante são provocados» (8.2.1840).

 

 

A CAUSA DO CONSERVATÓRIO

O homem de cultura, encontramo-lo a pugnar pelo Conservatório Real de Lisboa. A determinação de Garrett é clara, em nome do ensino das Artes (Declamação, Música, Dança e Mímica). A figura tutelar de Gil Vicente é chamada em nome da «ideia de civilização». O presidente da instituição é D. Fernando II, em nome das conjugação dos princípios democrático e monárquico, tão cara ao dramaturgo – que se empenha a fundo nos mais ínfimos pormenores, para que o Conservatório tenha as condições para ser marcante. E nesse combate conta com o apoio de Passos Manuel, sopro da liberdade e da democracia, e com Rodrigo, o homem capaz de compreender o Portugal mais a fundo… Mas é Costa Cabral e o cabralismo que se irão impor a partir de 1842. E Garrett passa para a oposição – uma vez que que o executivo «absolutamente declarou por seus atos, que queria governar no interesse exclusivo de um partido». E dirá a seu amigo Silva Abreu: «desagrada-me o estado das cousas e a tendência dos homens. Sou pasteleiro pelo coração e pela cabeça: sentimento e reflexão me fazem desejar e crer que não seja nacional nem fixo todo o governo exclusivo e intolerante. (…) Portugal não é dos setembristas nem dos cartistas, é dos portugueses». Afinal, vê no novo poder cabralista pretextos para «vingançazinhas mesquinhas de bairro e bairristas». Pela demarcação política, foi demitido pelo Decreto de 16 de julho de 1841, assinado por Joaquim António de Aguiar, da Inspeção-Geral dos Teatros, de Vice-Presidente do Conservatório e de Cronista-Mor do Reino… Daí o clima de desalento que sentimos nas «Viagens», onde se descreve a ida ao encontro de Passos Manuel em Santarém. Em 1846, no final da guerra da Maria da Fonte, ainda julga poder participar numa solução moderada, que, no entanto, será destruída na «emboscada» de outubro, na qual a rainha D. Maria II ainda vai dar a mão a Costa Cabral. Nesse ínterim, Garrett e Rodrigo ainda tentam mobilizar Passos para uma solução – mas não têm sucesso. A guerra civil regressa, impiedosa e inexorável – na Patuleia. A propósito do Grémio Literário, o escritor chega a confessar-se a Rodrigo mais político que literato. Contudo, nas «Viagens», os barões são duramente julgados, na pessoa de Carlos. O certo é que o genial escritor ainda regressará à ribalta política na Regeneração, na pasta dos Negócios Estrangeiros. Mas a política tem sempre as suas vicissitudes e a amizade entre Garrett e Rodrigo terminaria toldada num episódio triste de intrigas e calúnias, em 1852, em que o poeta se sentiu injustiçado. É certo que Rodrigo compareceria ao funeral de Garrett, em 54, mas o mal-estar deixou marcas fundas… De qualquer modo, desta relação tão rica fica este diálogo do maior interesse. 

 

Guilherme d’Oliveira Martins
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ATORES, ENCENADORES - XLV

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UMA CRIAÇÃO DE GARRETT: GIL VICENTE ENCENADOR

Já aqui evocamos Garrett ator: e não foram poucas as intervenções nas suas próprias peças, desde escolar de Leis em Coimbra, a dirigir, em 1819, os ensaios da Mérope”, primeira peça completa que nos legou; ou em 1821 no ”Catão”, estreado no Teatro do Bairro Alto, ou no “Impropeto de Sintra” representado em 8 de abril de 1822 na Quinta do Cabeço em Sintra; ou, mais tarde e mais exigente no desempenho, o papel de Telmo Pais na estreia do “Frei Luís de Sousa” na Quinta do Pinheiro em Lisboa, 4 de Julho de 1843, contracenando com um dos grandes nomes da cena da época, a atriz Emília Kruz, que fez a D. Madalena de Vilhena.

E podemos também recordar a reforma do teatro português, elaborada por Garrett em 1836 e consagrada por Portaria de D. Maria II datadas de 15 de Novembro daquele ano, a qual lança as bases da estrutura da formação e profissionalização do setor teatral, que ainda hoje perduram.

Mas o que hoje aqui evoco é a convergência digamos assim de Garrett e de Gil Vicente nas funções de criação do espetáculo, numa curiosíssima antevisão do que viria a ser – tal como temos aqui evocado, nesta série de artigos – o papel e a intervenção do encenador na criação do teatro-espetáculo.

É em “Um Auto de Gil Vicente”, primeira peça “de fundo” de Garrett, “Drama representado pela primeira vez em Lisboa no teatro da Rua dos Condes, em 16 de Agosto de MDCCCXXXVIII” diz a edição da época. Aí encontramos 22 personagens, entre eles, o próprio Gil Vicente, Bernardim Ribeiro, Paula Vicente, Garcia de Resende e atores e atrizes envolvidos na primeira representação de As Cortes de Júpiter” perante a corte de D. Manuel I.

Estamos perante uma reconstituição do ensaio do espetáculo, dirigido – hoje diríamos encenado – pelo próprio Gil Vicente, e tendo como protagonista, diríamos hoje também, a Paula Vicente.

Evoquemos pois esse ensaio inicial. Desde logo, a intervenção do “encenador Gil Vicente”, que refere em síntese o teor da peça e orienta os atores:

«Gil Vicente - (…) Vamos. - Porte, dignidade, - um ar majestoso e grande. As ”Cortes de Júpiter” é o título da nossa comédia. Deuses e deusas: não há outra gente aqui. Paula, tu sabes que és a “Providência”, que vais ordenas a Júpiter que chame a cortes os regedores de todas as coisas, o deus do mar, o dos ventos, da guerra, Sol, lua, estrelas.»

E segue-se a cena do ensaio, entremeada com as galanterias - expressão mais dos tempos de Garrett do que dos nossos tempos! - de Bernardim Ribeiro dirigidas a Paula Vicente:

«Bernardim – Providência! De molde lhe vai a esta altivez natural e génio sobranceiro. – Dizia-me Pêro que ereis a Lua/ Paula – Não me contento de luz emprestada, senhor cavaleiro./ Bernardim – Porque da própria sabeis quanto brilha».

E continua o ensaio, com uma clara direção de atores por parte de Gil Vicente, com transcrições do Auto e com intervenções dos próprios atores. Mas a grande protagonista desta cena é na realidade a Paula Vicente, que reage com impaciência às orientações de Gil Vicente e aos avanços de Bernardim.

«Paula – Deixemos esse tom de galanteria, senhor cavaleiro. Não vos fica bem a vós e sabeis que não me agrada a mim. (…) O meu papel todo agora! Isso é impossível. Tirava-me a ânimo de o repetir logo. Demais o tendes ouvido todos. Fazei de conta que está dito.»

E noutra fala: «Praz-lhe ao Senhor Bernardim Ribeiro zombar de nós e da nossa humilde profissão.”

Segue o ensaio, com uma crescente indisposição de Paula Vicente, que imita e critica os próprios colegas: assim, na sequência das indicações aos outros atores, e da intervenção de Pero Sáfio, no papel de Marte, em transcrição rigorosa do auto vicentino intercalada pelos comentários de Gil Vicente/Garrett:

«Paula (interrompendo-os e parodiando o tom da declamação): - É a Providência divina que está secadíssima de ouvir as conversas sensabores destes deuses pagãos, ordena que vos caleis já, e guardeis isso para logo.”

Ora bem: esta simbiose, permita-se o termo, entre classicismo e romantismo, ou, se quisermos, esta visão romântica do teatro clássico, esta interpretação de Gil Vicente feita por Garrett, constitui, na síntese de épocas e estilos, um documento notável no ponto de vista estético, mas também cronológico, da evolução histórica do teatro, e neste caso, a partir de dois nomes cimeiros da nossa literatura dramática, Gil Vicente e Garrett. E ambos marcam de que maneira a época, a estética técnica dos atores e dos encenadores, no século XVI, no século XIX e no século XXI!

E uma nota final: ao publicar em 1841 a peça “Um Auto de Gil Vicente”, Garrett fá-la anteceder de longa Introdução, onde traça uma interessantíssima teoria geral do teatro português e do teatro em Portugal. Dela destacamos as passagens que se seguem, até porque em muitos aspetos não perderam atualidade:

«Em Portugal nunca chegou a haver teatro: o que se chama teatro nacional, nunca (…) O teatro é um grande meio de civilização mas não prospera onde a não há. Não têm procura os seus produtos enquanto o gosto não forma os hábitos e com eles a necessidade. (…) Depois de criado o gosto público, o gosto público sustenta o teatro”.

No seu tempo, com a sua obra e com a sua intervenção, Garrett, muito ajudou a criar o hábito, o gosto, a necessidade – e a qualidade!

DUARTE IVO CRUZ

FERNANDO AMADO DISCORRE SOBRE GARRETT


Almeida Garrett (1799-1854)
Almeida Garrett (1799-1854)


Em dezembro de 1969 assinalou-se o primeiro aniversário da morte de Fernando Amado, ocorrida exatamente em 23 de dezembro do ano anterior. Já aqui referi as ligações de família que me relacionam com Fernando Amado, e o interesse e proveito intelectual e cultural de que beneficiei durante os anos em que, a par de uma sofrida licenciatura em Direito, frequentava, como "aluno ouvinte" como então se dizia, as aulas de Estética Teatral e de Encenação de Fernando Amado no Conservatório Nacional. Não é demais novamente recordar que muito do que sei de teatro a ele devo. No primeiro aniversário da sua morte, foi-me pedido um texto alusivo à vida e obra, para uma sessão evocativa. Relendo-o hoje, encontro uma longa análise de Fernando Amado sobre o teatro e a obra de Garrett, que é interessante aqui transcrever em parte. Até porque me faz recordar a qualidade ímpar da sua docência.


Diz então Fernando Amado, e transcrevi nessa evocação, que "Garrett, o príncipe dos nossos dramaturgos, teve singular intuição do que havia a esperar do teatro. Pressentiu-lhe a origem sagrada; quis ressuscitar o coro helénico em jeito português e, pela mão de Gil Vicente, renovar o auto medieval; compôs três peças felizes sobre temas eternos da nacionalidade. Maior gratidão nos deve merecer ainda o que planeou sem ter feito o bastante para o ilibar das culpas que teria tido no posterior desvairo romântico"…

Havemos de voltar a estes textos de análise histórica de Fernando Amado. Mas para já, interessa-me salientar a justeza do enquadramento histórico sobre o teatro português. Na verdade, a Garrett se deve a renovação romântica do teatro e a sua modernização nos cânones da época e só ele a fez com verdadeira qualidade, pois os outros dois iniciadores do nosso romantismo - Herculano e Castilho - ficam muito aquém no que toca ao teatro. E o que se seguiu já foi ultrarromantismo.


Garrett é de facto um poderoso iniciador, e não só no plano dramatúrgico: a reforma do teatro encomendada por Passos Manoel e consagrada na Portaria de 15 de setembro de 1836 criou uma estrutura que ainda hoje subsiste: Inspeção Geral de Teatro e Espetáculos, Teatro Nacional, Conservatório de Arte Dramática, Companhia Nacional de teatro, concursos de peças, proteção de direitos de autor, política de subsídios.

 
E vale e pena, porque é retintamente garrettiano, recordar o relatório deste texto, dirigido diretamente a D. Maria II: "Valetudinário e achacado de corpo e espírito que ambos quebrei ao serviço de Vossa Majestade e pela santíssima causa da liberdade da minha Pátria,"…

Fernando Amado não cita este texto, mas o que diz de Garrett encaixa-se nele com precisão: "também a Garrett pertence o alacre apelo ao dramaturgo. Cuidado que em dramaturgo há demiurgo." E mais: "ele, dramaturgo, é instrumento e condição do diálogo. Atue pois como se estivesse simultaneamente no palco e na plateia, sincero, por amor dos homens, discreto por amor da arte"… Notável lição de um grande professor de teatro, de um grande doutrinador que foi também um grande dramaturgo - e referimo-nos evidentemente, a Fernando Amado.

 

DUARTE IVO CRUZ