Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
1. Todas as épocas têm as suas características, as suas vantagens e os seus perigos e ameaças. O nosso tempo sofre de três grandes feridas que nos levam à inquietação e à incerteza, contribuindo para a solidão, não a solidão habitada, necessária para estar consigo e com os outros na profundidade, mas a solidão do abandono.
2. Essas feridas são, como explica José María Rodríguez Olaizola num belo livro, Bailar con la soledad, a que já aqui me referi e no qual me inspiro: a do amor, a da morte, a da fé.
2.1.A ferida do amor.
Hoje, vivemos num mundo no qual o amor na sua permanência se tornou efémero e inseguro. Quem diz hoje, de modo seguro: amor “para sempre”? Quando se olha para as estatísticas, não é antes o “enquanto durar” que está em vigor? Aconselhava-me há dias alguém, por ocasião da celebração dos 50 anos de casamento de uns amigos meus, a que presidi: por este andar, comece a celebrar os 10 anos, os 20 anos de casados das pessoas, porque isto das bodas de prata e de ouro, aos 25 e 50 anos, é cada vez mais raro e a acabar... Como é sabido, Portugal está na frente quanto à percentagem de divórcios (há um divórcio por hora em Portugal) e em Espanha os casamentos duram em média 16 anos...
Razões? Certamente, o aumento da esperança de vida é uma delas: o que antes eram 20 ou 30 anos de casamento agora poderão ser 50. Assim, porque não desfrutar de dois ou três casamentos mais? Por outro lado, numa cultura do descartável, da fuga ao sacrifico e à renúncia e do culto da superficialidade, o que fica é também a incapacidade do compromisso definitivo. Como escrevia uma jovem: “Queremos comprometer-nos um pouco, mas não cem por cento.” E o sociólogo Zygmunt Bauman, referindo-se ao “amor líquido”: Se estamos continuamente a deitar fora automóveis, computadores, telemóveis ainda em perfeito estado, para os trocarmos por novas versões melhoradas, “haverá porventura uma razão para que as relações de casal sejam uma excepção à regra?” Está aí o paradoxo, ouvi eu pessoalmente Bauman a dizer: Por um lado, na presente instabilidade, deseja-se profundamente um amor estável para toda a vida, mas isso é incompatível com a disponibilidade para a abertura a novas oportunidades que apareçam...
A pergunta é se as pessoas são mais felizes. O Papa Francisco, em A Alegria do Amor, fala de várias feridas do amor: o amor egoísta; a falta de tempo para o encontro, para o diálogo, para a escuta; a paternidade/maternidade egoísta ou negada; as expectativas demasiado altas, irrealistas e, consequentemente, defraudadas... O que daí se segue, citando o Sínodo sobre a Família: “Uma das maiores pobrezas da acultura actual é a solidão, fruto da ausência de Deus na vida das pessoas e da fragilidade das relações.” Vale a pena bater-se por uma família estável, pois é esteio para uma vida feliz e é o melhor lugar para ter filhos e educá-los. A desestruturação da família é um dos perigos maiores para o nosso mundo.
2.2.A ferida da morte.
Muitas vezes tenho aqui sublinhado que uma característica essencial da nossa sociedade é a morte enquanto tabu. Disso não se fala. Não é de bom tom. Como aceitar falar da morte numa sociedade na qual o que se valoriza é o ter, o sucesso? Este é o paradoxo: por um lado, nada mais certo do que a morte; por outro, a sua ocultação. E aqui reside a pobreza da nossa sociedade: na obturação das perguntas essenciais e da verdade da vida, na tentação do auto-engano, perde-se a perspectiva da existência autêntica. Para ser o que é, vivendo na superficialidade, na corrupção, na vaidade oca e vazia, no esquecimento do essencial e do que verdadeiramente vale, esta sociedade tem de ignorar o pensamento da morte. De facto, confrontados com a morte, repentinamente tudo muda, as decisões são outras, porque aquilo que parecia decisivo aparece então a outra luz: banal e prescindível.
M. Rodríguez Olaizola refere uma experiência muito significativa. Pelo Natal de 2015, um conjunto de organizações quis fazer um estudo sobre percepções, prioridades e valores dos jovens madrilenos. Para isso, juntaram um grupo e foram perguntando, um a um, que prendas pensavam dar nesse Natal a uma pessoa muito significativa (na maioria dos casos, tinham indicado os pais). As respostas eram alegres, vulgares, mais ou menos originais. Mas, depois, seguia-se uma nova pergunta: E se soubesses que estas são as últimas prendas que vais oferecer, pois essa pessoa vai morrer, este é o último Natal que vais passar com ela? Aí, de repente, os rostos contraíam-se, o silêncio era todo, as palavras arrastavam-se, e as respostas surgiam cheias de profundidade, cuidado, emoção, intensidade. E a perspectiva do fim dava outra orientação às prendas, havia outra profundidade. Nesse cenário, as prendas estavam “carregadas de sentido, significado e ternura”. A consciência da morte dá outra sabedoria ao viver.
2.3.A ferida da fé.
Durante séculos, viveu-se no Ocidente numa sociedade crente. A fé era o que poderíamos dizer uma evidência social, de tal modo que o difícil era ser não crente, pois os não crentes eram estigmatizados e até perseguidos. Claro que havia o perigo de uma fé imposta, mas a cosmovisão comum era religiosa e, portanto, era mais fácil ser crente, aceitar a fé e praticá-la: as pessoas acreditavam, rezavam, celebravam naturalmente em conjunto.
Hoje, as coisas são diferentes, muito diferentes. A liberdade religiosa é — e ainda bem — um valor inquestionado. A fé e a religião estão submetidas à crítica, por vezes ácida, por parte da filosofia, da ciência e da opinião pública, também no contexto de um laicismo agressivo. As estatísticas mostram que a religião está em queda acentuada. Os valores são cada vez mais os da autonomia, do individualismo, do hedonismo, e talvez nunca como hoje se tenha afirmado tanto o valor desta vida terrena em contraposição com a vida eterna, desvalorizada.
Como escrevia recentemente José Antonio Pagola, “depois de séculos de ‘imperialismo cristão’, os discípulos de Jesus têm de aprender a viver em minoria.” E o mais difícil é que, neste contexto, a própria fé pessoal dos crentes está submetida à ameaça de erosão. Porque é mais confrontada com dúvidas que podem ou querem apresentar-se com carácter científico: como acreditar na vida eterna, se a ciência não precisa do espírito para explicar o Homem?; onde está Deus, se o mundo se auto-explica?
Mais dramáticos serão os dilemas, as encruzilhadas e as perguntas que concretamente o mistério de um Deus silencioso coloca. Porque é que existe o mal? Perante o sofrimento cruel, a eterna pergunta: Porque é que Deus não intervém? Que amor é o seu, se é infinitamente bom e poderoso e nem sequer parece sensível ao sofrimento dos inocentes? A fé é hoje um combate mais duro, e, escreve J. M. Rodríguez Olaizola, “o crente tem que aprender a manter a sua fé um pouco contra a corrente. A eterna dúvida ou o abismo perante o silêncio de Deus é hoje um desafio enorme para os crentes, que vêem que outros parecem viver de modo estupendo sem necessidade de referir-se a nenhuma religião nem a nenhuma divindade.” Porque é que Deus não se manifesta de modo claro, parecendo, pelo contrário, por vezes, que nos abandona?
A situação não é cómoda, é muito mais exigente. Mas será preciso ver e aproveitar as suas vantagens, para despertar uma fé tantas vezes infantilizada e acomodada, inerte, numa Igreja que, aprisionada por um sistema clerical, corre o risco se tornar cada vez mais um museu de antiguidades. Caminharemos cada vez mais para uma Igreja de voluntários, na qual a fé convive com um combate pessoal, numa entrega única e confiada ao mistério do Deus silencioso e salvador. Com razões e todas as consequências na vida, seguindo o exemplo de Jesus e rezando aquelas palavras do Evangelho: “Senhor, eu creio, aumenta a minha fé”. Neste processo, o crente autêntico concluirá e até talvez possa mostrar a outros que a fé é mais razoável do que não acreditar. E poderá ainda aperceber-se de que Deus não é uma necessidade, mas “um luxo”, como me disse uma vez o grande teólogo Edward Schillebeeckx. Como uma rosa que se dá, sem porquê. Gratuitamente.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 27 OUT 2019
“I've lived a life that's full I've traveled each and every highway But more, much more than this I did it my way”
Vivi uma vida cheia Viajei por todas as auto-estradas Mas mais, mais do que isso Fi-lo à minha maneira
e omitiu de propósito
And now, the end is near And so i face the final curtain
Agora, que o fim está perto E que enfrento a cortina final
Não o fez por esquecimento - escreveu-se - mas, certamente, para evitar a exposição pública de constrangimentos da plateia de amigos que assistia ao lançamento do seu último livro no Centro Cultural de Belém.
As feiras de outras vaidades deixou pelo caminho na hora certa. A poesia, soube-o a tempo, foi a virtude reencontrada.
É necessário, digo, o respeito pela cedência da força face à doçura. Por aí o reencontro com a delicadeza em que se faz saber a nós mesmos que o domínio do nosso sentir só se faz no sentido íntimo do outro. É o único progresso que nos humaniza porquanto por aí se partilham as solidões e as poeiras da vida.
O amor como todos os sentires, abre fendas, e a ideia de um recomeço implica sempre a sua transformação numa associação, enfim, será quando um género de fraternidade das armas da política, da economia, da justiça, dos estatutos, dos compromissos, da pobreza, fica desamparado pois dele em nós, não se exigiu o suficiente e chegou a nossa partida!
Já não é possível recomeçar-se mesmo que se recusem falhas, fazê-lo teria sido o segredo maior da coragem, a adesão da inteligência à verdade. Diria mesmo que para a abordagem da razão, talvez nem uma alma de criança baste; tudo é embrionário no fim. Sentiremos então que encontraremos tudo pelo deslumbramento das fronteiras que afinal se não traçam?
Se assim for, o amor venceu a morte e esta é doravante oferecida numa participação eterna na vida.
Se assim for, não há justiças compensadoras noutros locais que não aqui. A paz no mundo tem este preço, bem-haja quem teve no coração uma moral que soube o quanto a equidade respeita a dignidade humana e se funda numa sociedade livre.
O Padre Anselmo Borges publicou aqui a 27 de março do corrente um texto de entrançadas e acutilantes reflexões, nomeadamente sobre o jejum, o silêncio, a espiritualidade, entre outras temáticas que certeiramente acudiram às relações que estabeleceu para refletir sobre Quaresma e mundo.
Imaginei um mastro e as velas à volta dele, amarradas por sua própria diligência numa autossubmissão total. Imaginei que o próprio mastro era líquido como se nem o próprio Caos tivesse morada para onde se enviassem as orações a um deus cristão. Registei o quanto as tempestades atuais não se anunciam pois já vivem acomodadas, silenciosas dentro de cada um, e, sem fúria que as faça explodir antes que provoquem dor e morte ao sol nascituro.
Registo cada vez mais o quanto ninguém suporta o silêncio por não ser ele ruído bastante ao próprio não-ser da vida que se aceita tal qual, indecifrada e acerada. Reconhecer que o silêncio é o da natureza no diálogo com o nosso interior, seria saber o quanto a Poesia é a fala do silêncio que leva os homens a viverem altaneiros e não escravos.
E a perceção transtorna-se quando a espiritualidade que se atinge é de facto aquela que faz sentir que a soma dos prazeres seja o sinónimo de felicidade. Assim as hierarquias vão preferindo os apáticos e os abúlicos que se conformam até com os cânones dos Bancos que, abrindo falências por vontades óbvias, codificam a ordem social, insaciados do mal que nos fazem e afinal, nunca perseguidos nem exemplarmente aniquilados os que por seus atos os representaram ou representam. E tudo tem a sua ligação ao tal silêncio das tempestades, à tal espiritualidade de fácil aquisição em hora de saldos.
O pó nefasto e inclemente não aborrece nem fustiga as ideias, parece que se entrou há muito, num doravante, um doravante que é o não medo e a não esperança que liberta os homens de uma tarefa perigosa: a de sondarem razões.
E imagino de novo a vida como um mastro liquido exposto a um céu pedrado, permitindo por frestas um sol enganador e sob ele as testas dos homens a bronzearem vaidades, hipocrisias, invejas, cobardias, minudências, jejuns de excessos, aguas indivisas de solidariedade, enfim tudo o que infecta e é presente e justifica a razão de se jejuar sim, até no amor, como se este jejum não fosse o da queda explícita das relações da humanidade que prefere ser bastarda de um rei a dar a mão revoltada à condição comum que a identifica como criada à sombra da fórmula despida de qualquer senso.
Olho pela janela do texto do Padre Anselmo e dali envio-lhe a ave que se perdeu do mundo e que na minha porta hoje vacilou, numa vertigem. Quanta injustiça! A solidão acompanhada não lhe zela o sofrer; nós no mundo a fazer-lhe crer os deuses bons; as indiferenças homéricas atiraram-na à Sorte, àquela que umas vezes escuta as preces face aos holocaustos, outras não.
E só sei que jejuar no amor não é desocultá-lo. E só sei que à minha volta devo saber interpretar este universo miniaturizado. Também só sei que a palavra não pode ser como mise en abyme; e também só sei que convoco a ideia, aquela que se possa coabitar e por ela se saiba distender o tempo buscando aquele que se perdeu.
Diz-se que o tempo sempre se anuncia e com ele se intui o que se pode e o que se não vai poder nunca. É uma espécie de condenação definitiva que se admite de uma forma ou de outra.
E o que fazer do conhecimento dos olhos quando de frente para nós despertam cheios de imensidades e medos e perfumes que se deixam cair entre lençóis por estrear?
Não há que procurar razões, nem sentá-las em sofá que as sossegue. O território tem a força do aço e a sua violação implicações fortíssimas na vida-a-vida que se diz não perceber, não designando essa afirmação real estado.
E hesita-se mais e uma vez mais ou, nem se hesita, recusa-se o que em sonho desperto nos mantém aptos a acreditar que porventura um dia será diferente.
A lógica é excessivamente familiar e reduz sempre a metade qualquer coisa por nascer.
Assim e de outras formas se aceita ser clandestino junto e para além da fogueira que, quando perto ou por tão perto e de tão perto, se fecham os olhos com a ajuda das mãos porque tão perto é demais.
O silêncio mais profundo apodera-se de nós, quando a possibilidade é o calar, num brutal movimento de fogo.
Um dia, um dia de país não esperado, todos os obstáculos são vantagens e enfim de súbito, de jorro, de esperança desalmada, tudo acontece. A densidade é tão segura quanto a dimensão da clareira que ora se permite. O sentido último da vida faz sentido por instantes: ao rubro.
Só o tempo é esquivo. Essoutro coto de vela.
E, antes que alguma ausência se sobreponha, antes que outro antes faça face ao que se vive, antes que o futuro possa não acontecer e antes que eu mais não possa, deixa que te diga
Meu Amor
Teresa Bracinha Vieira
Publicado pelo António Alçada Baptista na Revista Máxima em 1999
Obs. Em 2006/07? Tive oportunidade de ver uma retrospetiva de Palermo no Kunsthalle Düsseldorf. Fiquei sensível ao seu trabalho e tento saber até onde vai a minha curiosidade desde então. Daí esta escolha de hoje, e, que seja bem recebida também no site de Alçada Baptista já que foi a seu pedido que escrevi este texto há 19 anos sobre o tempo e o amor.
El oficio de Cupido, Los Siete Pecados Capitales, Las Siete Virtudes, Los amores de los dioses y Cinco sentidos numa sumptuosa edição da TASCHEN, editora alemã cuja minucia da edição perfeita sempre nos surpreende e surpreenderá.
A recompilação das 143 magníficas gravuras dos princípios do séc. XVII que ilustram o amor em suas alegorias, os provérbios que envolvem a carga erótica latente, a mitologia, as breves frases de amor ardente que elucidam a cor da criatividade dos desenhos e o seu significado, encontram-se neste livro de rara e extraordinária qualidade e beleza.
Permite-nos esta obra viver e entender um mundo da era do Barroco, e, bem usa as figuras de linguagem para reforçar a tentativa de apreender a realidade por meio dos sentidos.
Nomeadamente despertam-nos pedaços soltos do poder do sentir
N’acusons point l’Amour mais notre ame indiscrete
Ou
Because I Have fettered myself
Perch’io stesso mi strinsi
Let us not accuse Cupid, but our own imprudent soul
A arte Barroca foi impactante, expressou as ideias e os sentimentos do artista do século XVII. Gerou encantamento e apelo visual e soube combinar realidades para expressar uma nova conceção de mundo.
O homem culto conhece o espanto que nos provoca a Editora TASCHEN, neste brio de publicação que não descuida a brilhante escolha de Carsten-Peter Warncke, autor nascido em Hamburg em 1947 e que estudou história de arte, arqueologia clássica e literatura, tendo-se doutorado em Hamburgo em 1975 e na Universidade de Gottingen e ser atualmente catedrático de história de arte; autor, aliás conhecido também pelos seus estudos sobre Pablo Picasso.
E porque o que farei na vida do meu pensar terá sempre um relacionar firme e fixo ao que pretendo exprimir, aqui recordo, terra e fogo, ar e agua na intersecção com a peça que sem estabilidade ou suporte que não a da alquimia do dizer, vi na Bastilha com Laure Mathis (Doreen Keir) e David Geselson (André Gorz), na peça “Doreen” em março de 2017.
Confessa um homem, à sua muito amada mulher, todo o seu imenso amor, em jeito de desculpa.
Não se fende a pedra filosofal, mas a sua invisível fratura consolidou-se na matéria-prima do coração e leva-o mesmo à corajosa decisão de ser.
Assim se rompeu a simetria e assim se volveu amor como ser-que-conhece o instante em que se perde e se reencontra, e, só depois se pode em rigor dizer que se conhece a distância e se compreende o ar que o separou respirando-o, respirando o amor que parecia consumido, mas que do longe nos vem, nos torna e tudo ousa. E assim o disse quase em segredo este homem à sua mulher de sempre. Esculpidos numa chama, ela no ouvir, ele no dizer, fez-se assim sentir a cor do carmim.
E baixinho, mas sólido, deste livro nos chega para que adormeçamos em paz
I have been fishing all night; I must dry my little net
E na gravura de oiro as mãos dele secam-lhe o corpo em certezas absolutas, certeiras e incansáveis, e os dois, no tal amor grande como o sono, afinal como o sono quando é gentil.
Lion: cresceu no seio do amor maior e dele fez caminho até ao deslumbramento
Saroo com as duas mães
Só as crianças adotadas são felizes … para sorte delas, a maioria é adotada pelos pais biológicos”.
Laborinho Lúcio
E a receita começa assim:
1º Engravide-se do coração incondicionalmente.
Gostávamos de ver este filme “Lion” na perspetiva da comunicação do amor, do amor de pais e filhos para sempre. Do amor que não resulta de um processo biológico de conceção em que amar é o natural desejo, mas sim, como um dia li que uma nordestina citou
“tu coube tão direitinho dentro do meu coração, que talvez tu não tenha formato de gente, mas de amor.”
Adotar implica também adotar um passado da criança, uma história e o seu sofrimento sem que dela tenhamos feito parte. Implica oferecer o velejar do que connosco se passou, quantas vezes, rumo a ilhas inexistentes. Implica o mistério do nunca abandono.
Os filhos adotados têm de se sentir inequivocamente solares para quem os ama.
Estes meninos supostamente de ninguém são o nosso tudo e devem dele ter consciência para que a entrega se faça sem medo de se perderem de novo.
Todos nós deveríamos ter noção do que significa escolher ser pai ou ser mãe de alguém que muito deseja ser filho. Também por esta razão, a adoção não tem lugar para preencher vazios. Veja-se que neste filme os pais que decidiram adotar podiam ter tido filhos biológicos sem restrições, e a eles renunciaram por um amor maior.
Curiosamente, não escapa a frase que menciona, o quanto se apaixonaram um pelo outro, este casal que decidiu não ter filhos biológicos, exatamente porque essa decisão entre eles gerou paixão, sonho aguardado, e fez crescer o amor que souberam transferir na adoção sem nunca se perderem da razão primeira.
A adoção não depende da gestação mas da vontade e da disponibilidade para se ser pai e filho e mãe eternamente. Quem ama não desiste. Quem ama, cuida. E filiar é desejar um filho, reconhecendo-o.
Uma família é, digo-o, se dentro dela a soubermos pensar, a soubermos fecundar. E nunca bastará a justificação de se tratar de uma família biológica, para assim ser ou não, ou esta não fosse muitas vezes a que tolera o que não deve, e também cria filhos, usando próteses de chantagens camufladas, nunca detetadas por se imputar à natureza dos pais ditos verdadeiros, e tanto basta.
E de ver-te meu filho amado entendo-te na minha semelhança. Assim o sinto. Que me seja permitido descobrir o que de mim saí para procurar. E que tu e teu outro que em ti habita persiga o lugar a que te destinas no teu sentido de viver, no teu saber de tão longo caminhar.
E encontraram-se as mães, a biológica e a outra. E no meio do abraço de ambas, disputava-lhes o filho a atenção.
E tudo sem perguntas fundamentais.
Todos os sítios e os indícios, enfim juntos.
Aquele contacto extremo era uma toalha liquida de lágrimas tal qual o amor que se estende na mesa e se partilha desvanecido ali no vértice mesmo do Ser. E casa são tijolos e lar são princípios.
Lion: cresceu no seio do amor maior e dele fez caminho até ao deslumbramento
Fins de semana compridos, feriados sucessivos, o que seja disso tudo pouco ou nada me mexe na vida. Quanto muito, poderá tal benesse pôr-me à janela da prateleira em que estou posto... E a olhar para fora. A TV também ajuda, não vejo muito, mas nestes dias, sei lá porquê, gosto de percorrer o panorama que me oferece: o início do campeonato europeu de futebol, os noventa anos de Isabel II, as comemorações do dia de Camões e das Comunidades Portuguesas. E dou por bem empregue o tempo que lhes dei. Tenho visto equipas francesas, suíças, albanesas, com jogadores de várias origens e raças em cada uma, emigrantes regressados às pátrias ou, fora delas, mantendo o seu ganha-pão, mas regressando sempre ao carinho da pátria inicial, a de seus pais. Como também emigrados que imigraram mesmo, em primeira, segunda ou terceira geração, na pátria nova, que é agora sua, e que servem amam e festejam. É bonito! É, para mim, cristão de confissão convictamente católica, ou universal, uma imensa consolação: sempre penseissenti que é isso mesmo o cristianismo, essencialmente a comunhão de todos na alegria da vida. Pois só nessa convivência poderemos dizer o nome de Manuel, "Deus connosco"!
Quando me chegam ecos de reações xenófobas, ou ditas nacionalistas, desvalorizando seleções nacionais por estas terem gentes de outras raças e credos, rio-me da ignorância de quem não sabe como, afinal, todos somos filhos de Quem, e em todos nós muitos genes se misturam. E fico um pouco triste ao ver como a grande, essencial, mensagem da Boa Nova, pode ser esquecida na Europa que a Cristandade fez: nenhuma nação é grega ou romana, gentia ou judia, ou seja o que for que fizer diferença, pois Deus, nosso Senhor, manda sol e chuva para cima de todos. Uma nação, ou uma igreja, não é uma seita, é um projeto de união fraterna. E até quase me zango, magoado por esse mal querer ao estrangeiro, com a cegueira tal que não entende que até nas grandes guerras dos europeus, e em terras de Europa, tantos soldados vindos das colónias de África e outros continentes se sacrificaram por pátrias que, só por isso, se tornaram, com pleno direito, as pátrias deles... E não as poderiam representar numa seleção de futebol, a que, aliás, acedem por serem melhores do que outros?
Tudo isto me ocorre também, ao ver, com o gosto familiar que sempre tive por essas "cerimónias", as celebrações militares dos 90 anos de Sua Majestade a Rainha Isabel II. Nos magníficos alinhamentos de tropas britânicas, também se contavam africanos e asiáticos, mais do que súbditos, eles mesmos cidadãos livres da monarquia. Por direito e mérito próprio, numa sociedade e num sistema que, graças a Deus, tanto mais se honra quanto mais souber reconhecer como iguais aqueles que participam no seu projeto de nação cristã, não só pelas raízes, mas hoje, sobretudo, pela universalidade do abrigo que a todas as raças e religiões oferece. A vocação do cristianismo é o fim do nacionalismo religioso, é a alegria livre do convívio reconhecido dos filhos de Deus. Que todos somos.
No mesmo espírito em que o meu pensarsentir tem vivido estes dias, comovo-me, com alegria grata, ao ver representantes do nosso Estado Português festejarem e homenagearem emigrantes, indo até ao sítio de uma "bidonville", ou bairro de lata, onde a coragem, que venceu a miséria, os acolheu, porque já a traziam da madre pátria. Bravos! Tal como, ao longo de todos estes anos - em que chorei a morte de militares portugueses, irmãos meus e africanos, com quem partilhei 25 meses de trabalhos, dia a dia, na Guiné - me tenho enchido de silencioso orgulho e indizível mágoa, ao assistir a uma celebração religiosa islamo-cristã, por todos eles, os mortos, e nós com eles, nesse dia do coração comum, o de Camões universal - que foi, também, não esqueças, o namorado de Dinamene - e das comunidades portuguesas. Nem a nossa saudade, nem tampouco a soberba declamada por outros, poderão curar esta ferida marcada e rasgada pelo destino de tantos africanos, nossos irmãos de armas e de coração, que um processo de descolonização, alimentado de ilusões ou demissões, perdendo a razão humana do seu sentido, abandonou a outros ódios e co-condenou à morte... Como vês, Princesa, há dias em que, no meu pensarsentir, o coração manda muito... Não porque seja alheio a razões que a minha razão, afinal, reconhece, mas porque também vai tendo, ao longo desta vida em que sempre o senti bater, comoções fortes, que não escondo nem consigo esconder, essas todas que amizades profundíssimas ciosamente guardam nos subterrâneos da minha alma...
Estou velho, bem sei. Limitadíssimo. Por isso pouco saio e pouco apareço e digo. Mas muito sinto, sem talvez saber se penso. Digo pensossinto, porque sempre assim fui lidando comigo. Guardo, na memória da cabeça, os sentimentos do coração. E tento voltar a passa-los pelo crivo da razão. Quiçá assim vá conseguindo entender-me na dialética de mim com a minha circunstância: serei um conservador que procura ser justo? E será que o que conservo é, de alfa a ómega, o sopro - que eu possa sentir - do Espírito que criou e renova a face da terra? Na fraternidade universal me sinto mais português, mais cristão, mais feliz. Muitas vezes - a muitos títulos e de muitas maneiras - te tenho escrito que vou sempre aprendendo a amar a imperfeição, pois nela necessariamente nos descobrimos e podemos amar. O amor é a capacidade de passarmos além das nossas limitações.
Assim, fiquei feliz ao ouvir o Papa Francisco, no seu sermão deste domingo, dizer: O mundo não será melhor se se compuser apenas de pessoas aparentemente "perfeitas" (para não dizer "maquilhadas"), mas sim, quando crescem a solidariedade, a mútua aceitação, e o respeito entre os seres humanos. Como são verdadeiras as palavras do Apóstolo: o que é fraco no mundo é que Deus escolheu para confundir o que é forte... Palavras respigadas do versículo 27 do capítulo I da primeira carta de São Paulo aos Coríntios, onde também lemos: Mas o que é louco no mundo é que Deus escolheu para confundir os sábios... E já no versículo 25 explicara: Porquanto o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens. Pensossinto, Princesa de mim, que a loucura e a fraqueza de Deus têm um nome comum: Amor. E ocorre-me agora uma carta antiga, que te escrevi acerca da Turandot do Puccini, do desenlace comovente e feliz do dilema existencial que preenche aquela ópera: a princesa Turandot, ao perceber que Calaf a ama com mais loucura do que do próprio orgulho dela - e ao ponto de lhe revelar, com risco de vida, o seu nome - grita à multidão ansiosa que o nome de Calaf é AMOR!