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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ESTRANHO MODO DE VIDA…

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DIÁRIO DE AGOSTO (XXVII) - 27 de agosto de 2017

 

Esta aconteceu com o então Presidente do Grémio Nacional dos Editores e Livreiros, nos anos sessenta do século passado, Luís Borges de Castro, e foi-me contada também pelo António Alçada (de quem tenho muitas saudades).

 

Havia uma reunião de rotina da direção do Grémio e nela irrompeu a PIDE, para prender o Augusto Sá da Costa. Acontece que os PIDES se tinham esquecido de levar o papel azul regulamentar para escreverem o auto de detenção. Por isso, um deles mandou um subordinado de elétrico, do Largo do Andaluz até à Rua António Maria Cardoso para trazer o tal papel

 

Durante cerca de 1 hora manteve-se uma atmosfera de cortar à faca, com uma ou outra interrupção – a pedir testemunhas e com o António a dizer que não contassem com ele para participar na prisão do Dr. Sá da Costa…

 

Borges de Castro tentava quebrar aquele gelo, a desdramatizar a situação… Para desanuviar, volta-se para o agente da PIDE e pergunta, palacianamente, como se aquilo fosse um modo de vida como outro qualquer:

- Então, têm prendido muita gente?...

 

 

 

 

 

 

DIÁRIO DE AGOSTO
por Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

 

 

 

 

 

 

SHAKESPEARE CENSURADO…

CNC Diário de Agosto _ Shakespeare.jpg

 

DIÁRIO DE AGOSTO (XXIV) - 24 de agosto de 2017


Ainda há muito pouco, Luís Miguel Cintra recordou o momento em que Sophia de Mello Breyner disse ter terminado a tradução do «Hamlet» de Shakespeare. Foi um momento heroico. Trata-se de uma obra-prima da língua portuguesa. 

 

O mais curioso é que ocorreu em relação a esse texto de 1965 um episódio caricato que dá bem ideia do absurdo que é sempre qualquer ato de censura. 

 

António Alçada Baptista pretendeu publicar um excerto dessa magnífica tradução na revista «O Tempo e o Modo» - mas, como acontecia nesses casos, era necessário enviar as provas do texto à Comissão de Censura. Importa esclarecer que a revista foi das mais martirizadas pela censura, tendo sofrido a proibição de cerca de metade dos textos que, entre 1963 e 1969, foram a exame. 

 

Inesperadamente, o texto de Sophia veio totalmente cortado. António Alçada ficou estupefacto. Não esperava que tal acontecesse relativamente àquele texto clássico. Pegou no telefone e falou ao coronel dos serviços de censura. Eram coronéis reformados que normalmente estavam encarregados dessa tarefa… 

 

Do lado de lá da linha, o censor confirmou o corte total do texto. António, com uma paciência infinda, explicou quem era Shakespeare e que o texto era do século XVII. No entanto, inabalável, o coronel insistiu na decisão. Era assim, não havia volta a dar… Mas não dava razões…

 

Perante a insistência, lá veio a justificação. É que no «Hamlet» há uma personagem de nome Marcelo – e (ainda que Salazar estivesse de saúde) falava-se com insistência na hipótese de Marcelo Caetano poder suceder ao Presidente do Conselho – como aconteceria três anos depois… E o censor estava convencido que havia naquela publicação uma intenção politica qualquer… 

 

Não se conformava, porém, António Alçada – e, palavra puxa palavra, tudo acabou com um corte parcial, não se publicando a fala de Marcelo…

 

 

 

 

 

DIÁRIO DE AGOSTO
por Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

 

 

 

 

António Alçada: o rosário das falas escritas

 

(…) Esta minha relação com a Bárbara estava fora de todos os hábitos. Era exatamente o contrário de quem se ama para fazer uma história comum.

 

- Olha o que aqui escreveste, disse-me:

 

«Hoje a minha ideia de Deus não tem que ver com a criação do mundo, com a sua intervenção no meu dia-a-dia, nem com a condenação nem com a salvação. Diria que há coisas na natureza e na condição humana que me impõem a existência de um núcleo misterioso a que chamo Deus. Acho que a morte de Deus significa o necessário silêncio que é preciso fazer antes de Deus se tornar significativo.

 

(…) É evidente que não posso estar interessado num deus que aterrorizou toda a minha vida passada, que me cortou cruelmente de uma perspetiva de desenvolvimento humano que tem que ser vivido na terra (…)

 

Recuso uma conceção de Deus cujo caminho seja a tristeza e a angústia, já que o projeto humano pressupõe o amor e a alegria.»

 

António Alçada Baptista, in “O Tecido do outono” 1999, ed. Presença

 

António! António, digo-te que depois de aqui estarmos neste mundo, prendemo-nos numa grande teia e quanto mais nos debatemos mais nos enredamos. Nós somos mundo e artesão.

 

- Teresa, já escrevi e cada vez sinto mais que se não houvesse mulheres eu não tinha com quem falar.

 

Teresa Bracinha Vieira

A resistência da palavra de António Alçada Baptista

 

Revi então toda a minha vida de homem casado com as suas mais pequenas experiências. Em primeiro lugar o casamento como um fim. Toda a construção do meu universo moral estava sujeita a este princípio: ou se vai para padre ou se casa. (…) mas o problema nunca foi o deixar de casar: a imposição do casamento exercia-se não só perante uma sexualidade que devia ser considerada, como pela impossibilidade de a viver fora do casamento. De certo modo, só nos interrogámos sobre a forma de viver o nosso casamento, nunca sobre a sua viabilidade.

 

Eu ainda fui educado a ouvir dizer que o «destino da mulher é ser esposa e mãe» e até demorei a reparar que isso é tão bizarro e inadequado como dizer que o «destino de um homem é ser esposo e pai».

 

António Alçada Baptista, in “O Tecido do outono” 1999, ed. Presença

 

Teresa Bracinha Vieira

OS CANDEEIROS…

 

DIÁRIO DE AGOSTO (VII) - 7 de agosto de 2017

 

Esta também é do António Alçada, mas associa outro amigo do coração – o José Guilherme Merquior, grande ensaísta e diplomata brasileiro. 

Pouco depois do 25 de Abril, o José Guilherme passou por Lisboa e fez uma conferência no Centro Nacional de Cultura sobre a crise da cultura contemporânea. Ele era uma personalidade fascinante que amava verdadeiramente a liberdade. Ainda havia naquele tempo um fervor revolucionário…
A conferência, como se esperava, foi um sucesso e revelou a extraordinária lucidez do seu autor. Um perguntador profissional invocou a ladainha habitual do materialismo dialético. E o José Guilherme foi claro, como era seu apanágio, na resposta:
- «O mais que eu posso conceder é que o materialismo dialético, como método de interpretação, pode ocasionalmente servir-nos de alguma utilidade, mas como filosofia, acho que funciona como os candeeiros para os bêbedos: mais para se agarrar do que para iluminar»…  

 

DIÁRIO DE AGOSTO

por Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

 

 

 

 

 

  

 

 

PRODUTIVIDADE…

 

DIÁRIO DE AGOSTO (V) - 5 de agosto de 2017

 

O António Alçada Baptista era um incansável contador de histórias. Podiámos estar com ele horas a fio, serões seguidos, mas sempre havia motivo para bom convívio. A ele voltaremos mais vezes… Esta é dele.
Um amigo, diplomata brasileiro, foi colocado na Embaixada do Brasil na Holanda. Chegou à noite e, logo na manhã seguinte, telefonou para a Embaixada para combinar com o Embaixador a sua apresentação. Atendeu o porteiro, um português emigrado, que assegurava a guarda daquela casa. O diplomata perguntou: - O Senhor Embaixador está? – O Senhor Embaixador não está.
E como ele sabia como se compunha o quadro da Embaixada, foi perguntando, um por um, pelos seus titulares. Não estava nenhum. Admirado, perguntou: - Então, de manhã não trabalham? Resposta do porteiro zeloso: - Não. De manhã não vêm. À tarde é que não trabalham!...

 

 

DIÁRIO DE AGOSTO

por Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

RECORDAR: “lembrar-se, trazer à mente”, de RE-, “de novo”, mais COR, “coração”


A

António Alçada Baptista 

 

PLURALIDADE

 


Voltámos a pousar as palavras no local do seu nascimento. Fez-se um silêncio, e perguntaste

          - Queres ser minha vizinha? Farei o que for possível para que os olhos dos outros não deixem queixas nos teus

Vizinha sou e fui

(asilo e paz. Porta)

Eram sete os palácios brancos e habituámo-nos a deles partir sem nunca dizer adeus.

Não sei se nasci para este destino

(disse)

Pois também acho que deveria ser possível inverter o sentido dos dias

- Eu escolhia ontem e tu o amanhã. E ambos o mesmo ainda assim

E eu, dúvida, a pensar se acaso, os ponteiros do relógio se encurvam no meio dos dias e digo-te

- É que a aprendizagem também se converte no aprendido

(que se não resigna)

a superfície do mistério não existe. Olha-se de dentro das coisas

- Pois. O que interessa não é que a infância retorne. As perguntas não devem despistar

(também as quero com ternura)

-E?

Cada um tem o seu pedaço de tempo, de espaço, de vida. Não se deve viver na vida dos outros. Aliás isso faz confundir as mortes

Fazia frio. Recostei à lareira

e não é preciso ler para aprender

- Não, não é. A prometida razão expõe-se e tu sabes, se sabes que o caminho real passa pelo meio

(quando deixo de te escutar, pareces-me impossível)

Não digas isso. Uma pessoa, às vezes, agarra-se a tudo, até mesmo às contradições

- E o Borges também dizia que o mundo es el segundo término

cuyo primer elemento se há perdido.

 

Teresa Bracinha Vieira

Junho 2007