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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   Guilherme d'Oliveira Martins chamou-me a atenção para o facto de, na minha última carta, eu atribuir a autoria de uma quadra de Mário de Sá Carneiro a António Ferro: Perdi-me dentro de mim / porque eu era labirinto, / e hoje, quando me sinto, / é com saudades de mim. Tem toda a razão  o meu amigo Guilherme: na verdade - e tal qual os transcrevo - estes versos integram um conjunto de quadras feitas e reunidas por Sá Carneiro numa poesia intitulada Dispersão que, aliás, dá  nome a um livro, publicado em 1914, mas composto em maio de 1913, marco cronológico das edições da obra poética do autor. Terá acontecido que  António Ferro, amigo de Mário, usou aquela primeira quadra de Dispersão como epígrafe (ou dedicatória) de um livro de poemas seus: Saudades de Mim. Li-os em 1957, ano da sua publicação, e nunca mais vi o livro. Mas a quadra de Sá Carneiro, que o encabeçava, ficou-me na memória e, quiçá por tê-la lido no livro de Ferro, associei-a a este. Mas terá sido assim? Estaria essa quadra mesmo lá? Eis que é antiga a lembrança, nada posso garantir para além de ter decorado esses versos... Curioso ainda é o facto de eu não encontrar, entre as dezenas de milhares de livros da minha biblioteca pessoal, a obra de António Ferro, mas de lá estarem as opera omnia de Mário de Sá Carneiro, cujo 2.º volume, na edição da Ática (em 1953), dá pelo nome de Poesias e inclui Dispersão e suas quadras. Neste volume, o adolescente que eu então era registou a data em que o adquiri: CALMO (as letras iniciais do meu nome e apelidos) 1956. Possuo ainda outras edições das Poesias, incluindo do poema Diapasão, como, por exemplo, a do Círculo de Leitores (1990) ou a chamada Obra Essencial, planeada por Fernando Pessoa, conforme desejo expresso do autor, e editada pela E-Imprimatur em 2016. Dessa respigo estes trechos do poema de Pessoa (1934) cujo título é SÁ CARNEIRO:

 

                     Nesse número do Orpheu que há-de ser feito
                     Com rosas e estrelas em um mundo novo.

 

                     Nunca supus que isto que chamam morte
                    Tivesse qualquer espécie de sentido...
                    Cada um de nós, aqui aparecido,
                    Onde manda a lei e a falsa sorte,

 

                   Tem só uma demora de passagem
                   Entre um comboio e outro, entroncamento
                   Chamado o mundo, ou a vida, ou o momento;
                   Mas seja como for segue a viagem.

                   [...]

                   Hoje, falho de ti, sou dois a sós.
                   Há almas pares, as que conheceram
                  Onde os seres são almas.

 

                 Como éramos só um, falando!
                  Éramos como um diálogo numa alma.
                  Não sei se dormes... calma,
                  Sei que, falho de ti, estou um a sós.

 

   A releitura destes versos traz-me memórias da amizade, em tempos bem mais antigos, entre Montaigne e La Boétie: esqueço a distância do tempo e das culturas, pensossinto a igual consciência de pertença e comunhão com o próximo. A morte de um amigo é sempre também um pouco de mim que me deixa só. [E todos nós o teremos experimentado, sobretudo depois de chegados a uma certa idade: ainda quando iniciava esta carta para ti recebi a nova da morte, consequente a uma contaminação por covid 19, do meu grande amigo e compadre Miguel João Rodrigues Bastos. Tê-la-ei sentido mais, talvez por não ter sequer havido uma despedida, nem a possibilidade de eu dar um abraço amigo à família...]  

   Quando, em carta anterior à presente, Princesa de mim, citei a quadra que de cor guardava, não pretendia falar doutro tema que não fosse a meditação que então fiz contigo. Hoje, já que veio à baila Mário de Sá-Carneiro (o hífen entre apelidos pondo-lhe o nome "à francesa", tal como ele quis durante o "exílio" parisiense), falaremos mais sobre o poeta.

   No prefácio que escreveu para a edição do Círculo de Leitores acima referida, Nuno Júdice começa por afirmar; Podia-se começar por uma constatação: a de que a escrita de Sá-Carneiro  é uma escrita doente. Não é uma doença física, mas «qualquer coisa de intermédio», como ele próprio diria - entre o corpo e a alma. E esta divisão reflete-se dolorosamente na sua imagem do mundo, transportando para o interior da ficção e da poesia um drama que o consumirá até ao instante do suicídio. Esse «qualquer coisa de intermédio» acima referido é verso de um poema, o 7, de Indícios de Ouro:

 

                    Eu não sou eu nem sou o outro,
                    Sou qualquer coisa de intermédio:
                    Pilar da ponte de tédio 
                    Que vai de mim para o Outro.

 

   Este é de 1914, mas já em 1911, no seu A um suicida, Sá-Carneiro escrevia:

 

                    Tu, morreste.

 

                    Foste vencido? Não sei.
                    Morrer não é ser vencido,
                    Nem é tão pouco vencer.

 

                    Eu, por mim, continuei
                    Espojado, adormecido,
                    A existir sem viver.

 

                   Foi triste, muito triste, amigo, a tua sorte - 
                   Mais triste do que a minha e malaventurada.
                   ... Mas tu inda alcançaste alguma coisa: a morte,
                   E há tantos como eu que não alcançam nada...

 

   Pensossinto que a morte, precisamente por ser certa e certeira, não é algo que deva estar ao nosso alcance. Não é preciso. Ela virá, e nunca sabemos nem o  dia, nem a hora. O que podemos sempre tentar alcançar é a vida, na medida possível  do nosso alcance. Afinal, é ela a nossa vocação, a alma que nos anima (perdoa-me o pleonasmo). E a vida é-nos dada, não nos pertence: chama-nos, mesmo que para fora de nós. É no dom de si mesmo que se semeia o amor e se comunica (e comunga) a vida. Mais um dos nossos humanos paradoxos: se o grão de trigo lançado à terra não morrer, permanecerá sozinho. Mas se morrer dará muito fruto. Quem amar a sua vida perdê-la-á... (João, 12, 24-25). E até sem citar os evangelhos, Georges Bataille escreveu que l´érotisme c´est l´affirmation de la vie jusque dans la mort... 

   O drama, a tragédia, de Sá-Carneiro foi nunca ter percebido que é grande ilusão alguém ter saudades de si mesmo. Como, afinal, num texto publicado na revista Athena, nº. 2, Novembro de 1924, escreve, a dado passo, Fernando Pessoa: Génio na arte, não teve Sá-Carneiro nem alegria nem felicidade nesta vida. Só a arte, que fez ou que sentiu, por instantes o turbou de consolação. São assim os que os Deuses fadaram seus. Nem o amor os quer, nem a esperança os busca, nem a glória os acolhe. Ou morrem jovens ou a si mesmos sobrevivem, íncolas da incompreensão ou da indiferença. Este morreu jovem, porque os Deuses lhe tiveram muito amor. Dito que não é assim tão contrário ao que escrevo acima, já que pensossinto que tais deuses não morrem de amores.

   Mas para nos dar uma visão pela perspetiva de um crítico literáriotrago-te agora, Princesa de mim, uns trechos de João Gaspar Simões, que recolhi do estudo que esse crítico publica em apresentação do poeta. Pensando também como teriam certamente cabimento nas considerações da minha carta anterior, se então me tivesse lembrado de Sá-Carneiro, logo quando parti duma citação de versos seus pelo António Ferro. Vamos a Gaspar Simões:

   Os simbolistas, de acordo com os progressos da psicologia, inverteram os termos da inspiração. O poeta deixou de se inspirar na natureza, para se inspirar em si mesmo. Já não precisa de olhar as águas para ver que as mágoas correm como elas. Começa por olhar as suas mágoas e só depois procura, no domínio dos símbolos, quer naturais quer espirituais, uma correspondência equivalente...   ...O simbolismo é, portanto, um movimento poético em que o centro da poesia está no poeta. O poeta constitui-se fulcro do poema. A poesia não é uma introversão do mundo no poeta; o poeta é que o extroverte. O mundo está nele: dele, poeta, é preciso partir para encontrar o mundo...

   ... Tendência nativa, vento de feição - eis que o simbolismo nos trouxe os mais subjetivos dos nossos poetas. Mário de Sá Carneiro é a quinta essência desse simbolismo: será mesmo o seu símbolo vivo. 

   Todavia, não foi por isso que citei a primeira quadra de Dispersão. Fi-lo tão somente por ter guardado comigo aqueles versos, durante muitos e muitos anos. Talvez por eles me terem dito algo que, aos meus quinze anos, já sentira como tentação de auto refúgio e que, a pouco e pouco, paulatinamente, por lindos que os versos fossem, penseissenti que devia ultrapassar, buscando na minha circunstância, não a minha essência impossivelmente reconhecível, mas a minha existência efémera na sua razão de ser estando. 

   Finalmente, Princesa de mim, devo confessar-te que, ao reler escrupulosamente o poema Dispersão, alertaram-me a memória três outras quadras que, se bem recordo agora, me impressionaram há quase sete décadas, negativamente. Aqui vão:

 

                    Como se chora um amante,
                    Assim me choro a mim mesmo:
                    Eu fui amante inconstante
                    Que se traiu a si mesmo.

 

                   Não sinto o espaço que encerro
                   Nem as linhas que projeto:
                  Se me olho a um espelho, erro - 
                  Não me acho no que projeto.

 

                  Regresso dentro de mim
                  Mas nada me fala, nada!
                  Tenho a alma amortalhada,
                  Sequinha, dentro de mim.

 

      E concluo com a primeira: Perdi-me dentro de mim / porque eu era labirinto... Pois não será a ensimesmar-nos que daremos com uma saída airosa para qualquer crise do drama da nossa tão paradoxal condição humana. Não sei em quê a educação e o meio possam ter contribuído para Sá Carneiro ter sido o que foi. É esse um problema a que me não quero abalançar - escreveu, em 1940, João Gaspar Simões. Tampouco quero fazê-lo, mas talvez se possam situar já na infância do poeta algumas das raízes do tão doentio narcisismo que o desesperou. Perde-se no labirinto de si, não só o órfão de mãe mimado por avós e uma ama, e cujo pai se ausenta frequentemente, mas todo aquele que, talvez por outras razões, acaba por se sentir apenas na saudade de um si mesmo utópico que, por ser imaginável, ele próprio todavia desconhece. O encontro de mim com eu mesmo só será possível pelo Outro, que me dá a minha auto descoberta na minha circunstância. Na cultura japonesa, por exemplo, a contemplação da natureza é anterior à poesia. E brevemente te falarei, em rebusca do Japão, do conceito de fusosei, que o filósofo Watsuji Tetsuro define com elemento estrutural da existência humana. E talvez seja interessante comparar o livro dele, intitulado, na versão francesa Fudo, le milieu humain com uma obra de Teilhard de Chardin, lida também na minha adolescência, Le Milieu Divin.

   O velho que hoje sou aprendeu desta vez que até as falhas de memória podem abrir-nos portas para novas peregrinações. Bem haja, Guilherme amigo! 

 

Camilo Maria

   

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM


Minha Princesa de mim:


   Vieram ter comigo agora uns versos de António Ferro que li na minha adolescência. Se a memória me não trai, diziam, mais ou menos, isto: Perdi-me dentro de mim / porque eu era labirinto / e hoje quando me sinto / é com saudades de mim... Mas não garanto a justeza da citação, vai para sete décadas que os li.


   Na teima de alguém se enfronhar no seu eu (ou no que julga ser ele) acaba sim, por se perder, pois o eu mesmo é uma utopia. Quiçá saudades de mim sejam, mais propriamente, saudades da infância, do tempo natalício da consciência de si. Tempo de relações zelosas, em que o mimetismo vai construindo esse paradoxo do ser humano ser ele, a sua alteridade e o que os rodeia. E pela vida adiante vamos sempre sendo eu e a minha circunstância ou, talvez melhor dizendo, a minha circunstância e eu. E será o dasein, isto é, o "ser ou estar aí", como que um momento dialético, algo só existencialmente verificável em dado instante desse entendimento do si mesmo com a sua circunstância?


   Ser-se será diferente de estar-se? Ou será, apenas e contudo, o estar, ou mesmo ser-se, ansioso de permanência? Desde que se "libertou" da lógica dita aristotélica, a filosofia "ocidental" foi-se enredando numa espécie de labirinto ontológico. E, certamente, os progressos da descoberta do universo extraterrestre abriram brechas por onde entram dúvidas e interrogações novas, abalando fundações antigas do nosso pensarsentir o espaço e o tempo onde  pressupúnhamos mover-nos. Serão finitos, em expansão, ou infinitos?  E poderão ser quer  categorias mentais, quer seres em si - classificações lógicas, ou realidades ontológicas?


   A simples circunstância deste novo pensarsentir faz de mim um eu mesmo diferente do que terei sido ontem, não na realidade de mim, que desconheço, mas no estar aqui, na minha circunstância. Todavia, posso estar enganado, na medida em que for eu mesmo o sustento do diferente, já que sou a minha circunstância e eu mesmo. Ou não será assim? A recusa oriental do eu, de que já falámos, pretende que este mais não seja do que um aglomerado de contingências biológicas e outras, ilusório e evanescível. Mas, seja como for, ele surge sempre como um momento de consciência de si em circunstância. E continuará a revelar-se por essa presença recíproca na relação que o constitui, o faz evoluir, o torna atual (no próprio sentido aristotélico do termo). 


   Receando  reconhecer-me essencialmente, contento-me com verificar-me existencialmente enquanto eu e a circunstância minha que, qual mundo flutuante, é sempre efémera, mas sempre deixa um rasto, promessa de permanência. Tudo junto e misturado dá um "panaché", faz de cada um de nós um mestiço de passado e presente e mais sonhos de futuro, de contrastes e combates, de esperanças apesar das desilusões, de loucuras apesar das evidências...


   Mas, contas feitas, o que fica do rosário de efemérides da nossa vida? Eu que para aqui estou - e, nesse estar aí, como eu mesmo me surpreendo agora e em qualquer instante do meu existir - sou, afinal, o quê? Uma relação, um ténue fio no tecido imenso, infinito, do universo? Que sentido tem o ser humano? Poderemos construir um humanismo? E como deverá ele ser? Sobre a sua obra Autrement qu'être ou au delà de l´essence, diz Emmanuel Levinas (traduzo): Falo aqui  da responsabilidade enquanto estrutura essencial, primeira, fundamental, da subjetividade. Pois é em termos éticos que descrevo a subjetividade. A ética não aparece aqui como suplemento para uma base existencial precedente: é na ética entendida como responsabilidade que se dá o próprio nó do subjetivo...  


   
Deves lembrar-te, Princesa de mim, de alguns passos antigos dessas minhas cartas, em que, inspirado por trechos de S. João evangelista, meditava sobre o amor constitutivo das pessoas, ou o valor divino do humano, para que maior seja a nossa alegria. Curiosamente, descobri hoje - dia de chuva intensa, em que, confinado numa casa de quinta solitária entre o silêncio cúmplice dos campos invernosos, escutei um ofício de trevas do Couperin interpretado pelo Arts Florissants e seu William Christie - uns trechos do belíssimo Humanisme de l´autre homme, do Emmanuel Levinas, que te traduzo:


   O homem livre está votado ao próximo, ninguém pode salvar-se sem os outros. O campo do outro lado da alma não se fecha por dentro. Foi «o Eterno que fechou sobre Noé a porta da Arca», diz-nos um trecho do Génesis com precisão admirável. Como se fecharia ela na hora em que perecia a humanidade? Haverá horas em que o dilúvio não seja ameaçador? E eis aqui a interioridade impossível que desorienta e reorienta as ciências humanas nos nossos dias. Impossibilidade que não nos ensina nem a metafísica, nem o fim da metafísica. Distância entre o mim e o si, recorrência impossível, identidade impossível. Ninguém pode ficar em si: a humanidade do homem, a subjetividade, é uma responsabilidade para os outros, uma vulnerabilidade extrema. O regresso a si torna-se interminável desvio. Antes da consciência e da opção - antes que a criatura se recomponha em presente e representação para se tornar essência - o homem aproxima-se do homem. Está tecido por responsabilidades. Por elas, lacera a essência. Já não se trata de um sujeito assumindo responsabilidades ou furtando-se a elas, dum sujeito constituído, posto em si e para si como identidade livre.


   Talvez devêssemos pensarsentir melhor a advertência sobre a vigilância perene: não sabemos o dia nem a hora...Tal pouco ou nada tem a ver com a surpresa de sermos enviados para um qualquer eterno castigo. Antes nos diz, e ensina, que o alerta da nossa circunstância  -  sobretudo a evolução e a situação da natureza e dos nossos próximos  -  é algo que devemos ter sempre presente à nossa atenção. É precisamente a nossa incompletude ou imperfeição que nos induzirá a estarmos sempre atentos aos sinais dos tempos e à circunstância do nosso ser estando. A parábola do Bom Samaritano ensina-nos a ser o próximo dos outros pela atenção e descoberta, pelo encontro e o cuidado. Aliás, a simples atenção ao outro poderá conduzir-nos à descoberta de nós mesmos e a uma metanoia: na cena evangélica da mulher adúltera, todos os que se prontificavam a lapidá-la foram saindo, depois de Jesus lhes ter dito que quem não tivesse pecado lhe atirasse a primeira pedra... 


   O humano ser estando é a nossa consciência ética, formada pelo si e a sua circunstância. Estranho a si próprio, obcecado pelos outros, o eu é refém, até na própria recorrência de um eu que incessantemente se falha a si, como escreve Levinas. Mas acrescenta : E fica assim cada vez mais próximo dos outros, mais obrigado, agravando a falta que se faz a si mesmo. Tal passivo só se reabsorve alargando-se: glória da não-essência!


   
Ao dissertar sobre a "estranheza ao ser", conceito filiado na ideia heideggeriana da "estranheza do homem ao mundo" - ou, se assim melhor entenderes, Princesa de mim, ao exílio que é a condição humana -, Levinas cita um passo do salmo 119 (v.119): Sou um estrangeiro na terra, não me ocultes os teus mandamentos. E encontra esta afirmação fundamentada no Levítico (25, 23), anterior aos gregos Sócrates e Platão: Terra alguma poderá ser irrevogavelmente alienada, porque a terra pertence-me, e vós mais não sois do que estrangeiros que moram em casa minha. E o filósofo judeu prossegue: Não se trata aí da estranheza da alma eterna exilada entre sombras fugazes, nem de um desterro que a construção de uma casa e a posse de uma terra pudessem ultrapassar, eliminando pela sua construção, a hospitalidade de um sítio que a terra envolve. Porque, tal como no salmo 119, que apela aos mandamentos, esta diferença entre eu e o mundo  prolonga-se pelas obrigações para com os outros... ... A condição, ou incondição, de estrangeiros e de escravos no Egipto aproxima o homem do próximo. Os homens procuram-se na incondição de estrangeiros. Ninguém está em sua casa. A lembrança dessa servidão reúne a humanidade. A diferença que se abre entre mim e si, a não-coincidência do idêntico, é uma profunda não-indiferença relativamente aos homens.


   
Na circunstância geral da nossa presente atualidade, enfrentando uma pandemia soez, levantam-se vozes de protesto contra algumas das medidas sanitárias impostas profilaticamente, tais como a obrigatoriedade do uso de máscara, do confinamento domiciliário, ou do encerramento de estabelecimentos comerciais, etc. Esses protestos surgem de diferentes quadrantes, refletindo sobretudo a indignação de desconfortos pessoais e rebeldia de indisciplinas confundidas com liberdades individuais, mesmo quando recorrem a diatribes solenes acerca da ameaça de estados totalitários contra princípios fundadores da democracia... Muito embora existam casos pungentes de injustiça sofrida - e por inimputáveis autores, ou apenas imagináveis bodes expiatórios...


   Todavia, a questão que agora se levanta não tem, nem pode nem deve ter, uma base ética individualista, egocêntrica, mas antes nos coloca, a todos, perante essa realidade que é cada um e a sua circunstância, o eu mesmo como próximo de todos os outros. Ninguém se salvará sozinho. Qualquer de nós sente bem, sendo honesto consigo, que todo o nosso relacionamento é, em cada um, também um elemento da sua própria subjetividade. Yo soy yo y mi circunstancia.


   
Hoje, nenhum de nós está fora, é  estrangeiro, nem pode ser estranho a esta pandemia que nos obriga a ser um por todos, todos por um.

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira

P.S. Na verdade, como me lembrou um amigo, os versos citados não são de António Ferro, mas de Mário de Sá Carneiro. No labirinto por vezes escuro da minha memória, ficaram mal registados, quiçá por tê-los lido citados num livro de António Ferro.

 

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM / EM REBUSCA DO JAPÃO XIX


Minha Princesa de mim:


   Como bem sabes, desde muito jovem convivi com os livros e o pensamento de Ortega y Gasset. E fui guardando e remoendo certas ideias que me enchiam o coração. De algumas delas amiúde te falei, sobretudo quando as surpreendia na liça das minhas cogitações. Mas creio que nunca te disse algo especial que me ocorreu aquando da minha primeira visita ao Japão, há décadas.


   Um esforçado professor universitário nipónico procurava explicar-me a "timidez" de pronomes pessoais no falar japonês, recorrendo a conceitos e exemplos - de que já tratei noutras cartas e textos meus - enraizados numa visão abrangente do mundo, do humano e da natureza. Com o desenrolar das explanações, ia-se acentuando em mim uma qualquer impressão de "já visto", mas de pernas para o ar. Ao fim e ao cabo, ocorreu-me então que a noção "gassetiana" de que yo soy yo y mi circunstancia, se poderia traduzir, em japonês, por yo soy mi circunstancia y yo... Pouco ou nada sabendo que, quatro décadas mais tarde,  acharia em Lévi-Strauss, antropólogo que eu pouco lera antes, uma interessante interpretação do "mistério". Descobri-a relendo o texto de uma conferência que ele proferiu em Kyoto, a 9 de março de 1988, sobre o tema de La Place de la Culture Japonaise dans le Monde, de que seguidamente traduzo alguns trechos.


   Os filósofos ocidentais veem duas diferenças maiores entre o pensamento oriental e o deles. A seus olhos, o pensamento oriental caracteriza-se por uma dupla recusa. Primeiro, a recusa do sujeito, já que, de modos diversos, o hinduísmo, o taoísmo, o budismo negam o que, para o Ocidente, constitui uma evidência elementar: o eu, cujo carácter ilusório aquelas doutrinas insistem em demonstrar. Para elas, cada ser mais não é do que uma montagem provisória de fenómenos biológicos e psíquicos, sem elemento duradouro como é um si mesmo: aparência vã, inelutavelmente destinada a dissolver-se.


   A segunda recusa é a do discurso. Desde os gregos que o Ocidente julga que o homem tem a faculdade de apreender o mundo, utilizando a linguagem ao serviço da razão: um discurso bem construído coincide com a realidade, atinge e reflete a ordem das coisas. Pelo contrário, segundo o conceito oriental, qualquer discurso está irremediavelmente inadequado ao real. A natureza essencial do mundo  -  a supor-se que tal noção tenha sentido - escapa-nos. Transcende as nossas faculdades de expressão e de reflexão. Dela nada sabemos, sendo assim melhor que nada digamos. 
[Lembrando a simetria, ou inversão de imagem, de que já vínhamos falando, Princesa de mim, ocorre-me que o próprio São Tomás de Aquino, Doutor da Igreja - e estrela da escolástica - já dizia, no século XIII, que de Deus só não sabia nada. Na verdade, da Sua existência, avançou provas várias, racionais. Mas sabia e reconhecia que, da Sua essência, nada sabia...]. 


   A ambas as recusas 
[do sujeito e do discurso], reage o Japão de modo inteiramente original. Não dá ao sujeito uma importância comparável à que o Ocidente lhe atribui, nem dele faz o obrigatório ponto de partida duma reflexão filosófica, nem de qualquer tentativa de reconstrução do mundo pelo pensamento. Houve mesmo quem dissesse que o «Penso, logo existo», de Descartes é, em rigor, intraduzível em japonês...


   Mas também não parece que o pensamento japonês aniquile o sujeito: antes fará, dele, não uma causa, mas um resultado. A filosofia ocidental do sujeito é centrífuga, já que tudo parte dele. Mas o conceito japonês do sujeito é centrípeto. Tal como a sintaxe japonesa constrói as frases por determinações sucessivas, que vão do geral ao particular, o pensamento japonês põe o sujeito na meta: ele resulta do modo como os grupos sociais e profissionais, cada vez mais restritos, encaixam uns nos outros. O sujeito volta assim a encontrar uma realidade, como se fosse o último lugar em que se refletem as suas pertenças. 


   Este modo de construir o sujeito pelo lado de fora também serve à língua, propensa a evitar o pronome pessoal, tal como à estrutura social em que a «consciência de si» (jigaishi) se exprime no e pelo sentimento que cada um, mesmo o mais humilde, tem de participar numa obra coletiva. Até ferramentas de conceção chinesa, como certas serras e tipos de plainas, só foram adotadas no Japão, há seis ou sete séculos, com um modo de emprego invertido: o artífice puxa a si a ferramenta em vez de a empurrar para a frente. Situar-se à chegada, e não à partida, de uma ação exercida sobre a matéria revela profunda propensão a definir-se pelo exterior, em função do lugar que se ocupa numa família, num grupo profissional, em dado meio geográfico, ou, de modo mais geral, no país e na sociedade. Dir-se-ia que o Japão revirou, como se revira uma luva, a recusa do sujeito, para extrair dessa negação um efeito positivo e aí encontrar um princípio dinâmico de organização social que ponha esta também a salvo da renúncia metafísica das religiões orientais, da sociologia estática do confucionismo e do atomismo a que o primado do eu expõe as sociedades ocidentais.


   A resposta japonesa à segunda recusa é de género diferente. O Japão operou uma completa reviravolta de um sistema de pensamento: posto pelo Ocidente na presença de outro sistema, retém o que lhe convém e afasta o resto. Visto que, longe de repudiar em bloco o logos, tal como os gregos o entendiam - isto é, enquanto correspondência da verdade racional ao mundo - o Japão tomou resolutamente partido pelo conhecimento científico, onde, aliás, vem a ocupar um lugar de primeiro plano.


   
Seja como for, proponho-me agora sublinhar a importância pragmática de pensarsentirmos o indivíduo, o eu, não como centro mas como parte de um conjunto solidário, necessário ontologicamente. O ser humano, e não só, é um ser em relação, não se explica, nem sequer existe por si e para si. Ao cartesiano cogitoergo sumprefiro o gassetiano yo soy yo y mi circunstancia, posto que, sendo arbitrária a ordem dos fatores, o mesmo é dizer que yo soy mi circunstancia y yo... Aliás, as últimas encíclicas do papa Francisco lembram à nossa cultura hodierna o dever de nos pensarsentir prioritariamente na fraternidade da nossa humanidade comum e com a terra, nossa mãe e abrigo. Assim também me ensinou, ao longo destes anos todos, o meu convívio japonês.

 

Camilo Maria    

   

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM / EM REBUSCA DO JAPÃO XVIII


Minha Princesa de mim:


   Apprivoiser l’ Étrangeté, de Claude Lévi-Strauss, aparece encabeçado por uma citação de Platão: Pois que é o mais contrário, acima de tudo, o maior amigo do que lhe é mais contrário... Assim, Princesa de mim, há paradoxos em que os contrários nos surgem como alter-ego do outro. Também é verdade que prudência é grande amiga da perspicácia e, por isso mesmo, ao querer aproximar-me do ignoto, do desconhecido, tenho sempre bem presente aquela definição "agostino-aquinense" da prudência como amor sagaz. Mas hoje vamos deixar Lévi-Strauss falar-nos do padre Luís Fróis. Traduzirei trechos do tal Apprivoiser l'Étrangeté.


   O Ocidente descobriu o Japão por duas vezes: em meados do século XVI, quando os jesuítas, na senda dos mercadores portugueses, ali entraram (mas foram expulsos um século depois); e trezentos anos mais tarde, com a ação naval conduzida pelos Estados Unidos para obrigar o Império do Sol Nascente a abrir-se ao comércio internacional.


   O padre Luís Fróis foi um dos principais atores da primeira descoberta. Papel comparável desempenhou, na segunda, o inglês Basil Hall Chamberlain, de quem Fróis surge hoje como o precursor. Nascido em 1850, Chamberlain visitou o Japão, por lá ficou e lá se tornou professor da Universidade de Tokyo. Num dos seus livros, "Things Japanese", publicado em 1890  e composto como um dicionário, na letra T desenvolve um artigo intitulado "Topsy-Turvy Dom" (
o mundo com tudo do avesso) em que afirma que «os japoneses fazem muitas coisas de maneira exatamente contrária à que os europeus consideram natural e conveniente»...


   ...Se ele tivesse conhecido o tratado de Fróis, teria encontrado um repertório fascinante de observações por vezes idênticas às suas, mas mais numerosas, e conduzindo todas à mesma conclusão...


   
Alimentado pelo seu trabalho antropológico, Lévi-Strauss vai então buscar um interessante termo de comparação das notas de Fróis (séc. XVI) e Chamberlain (XIX) com outras, acerca do Egipto, feitas por  Heródoto no século V antes de Cristo! Diz o grego antigo: «Os egípcios conduzem-se, em todas as coisas, ao contrário dos outros povos.» As mulheres dedicam-se ao comércio, enquanto os homens ficam em casa. E são estes, e não elas, quem tece. E começam a tessitura na parte de baixo do tear, e não pela de cima, como nos outros países. As mulheres urinam em pé, os homens de cócoras... E o antropólogo francês comenta: E não continuo a lista, que põe em evidência uma atitude de espírito comum aos três autores. E acrescenta: 


   Não devemos ver só contradições nas disparidades que enumeram. Têm muitas vezes um estatuto mais modesto: ora simples diferenças, ora presença aqui, ausência ali. E Fróis bem o sabia, pois que, no título da sua obra, as palavras contradições diferenças [em português no texto francês] estão lado a lado. E todavia, nele, muito mais do que nos outros dois autores, existe um esforço para que todos os contrastes caibam no mesmo quadro. Centenas de comparações, formuladas de modo conciso e construídas de modo paralelo sugerem ao leitor que não se lhe assinalam apenas diferenças, mas que todas essas oposições constituem, de facto, inversões. Entre os usos de duas civilizações, uma exótica, outra doméstica, Heródoto, Fróis, Chamberlain, partilharam a mesma ambição: para lá da ininteligibilidade recíproca dessas civilizações, eles insistiam em poder ver relações transparentes de simetria. 


   
Pessoalmente, sempre procurei tentar perceber a razão e o modo de pensamentos, sentimentos e comportamentos que me pareciam estranhos, interrogando-me também, simultaneamente, sobre as razões e modos dos meus próprios. Talvez por isso, cedo compreendi que, antes de qualquer construção mental e afetiva, e por detrás das suas expressões, existe um húmus humano comum, graças ao qual nos podemos reconhecer no que, em primeira abordagem, nos aparecia contraditório. Sei, Princesa de mim, que reincido na tradução de longas citações, mas acho bem deixar-te aqui uma conclusão de Lévi-Strauss:


   Assim, teremos de reconhecer que o Egipto, para Heródoto, tal como o Japão, para Fróis e Chamberlain, tinham uma civilização em nada desigual à deles? A simetria que reconhecemos entre duas culturas une-as ao opô-las. Surgem-nos simultaneamente semelhantes e diferentes, como a imagem simétrica de nós mesmos refletida por um espelho que nos fica irredutível, apesar de nos descobrirmos em cada pormenor. Quando o viajante se convence de que usos em total oposição aos seus o tentariam a desprezá-los e rejeitar com desgosto, na realidade lhes são idênticos quando vistos ao contrário, aprende a domesticar o estranho, a torná-lo familiar. 


   Ao sublinhar que os usos dos egípcios e os dos seus próprios compatriotas estavam numa relação de inversão sistemática, Heródoto punha-os realmente no mesmo plano, e indiretamente dava conta do lugar que cabia ao Egipto segundo os gregos: civilização de respeitável antiguidade, depositária de um saber esotérico ao qual se podiam ir buscar ainda ensinamentos.


   Tal como noutros tempos, posto numa conjuntura comparável em presença doutra civilização, é também pelo recurso à simetria que Fróis, sem o saber, pois era cedo demais, e Chamberlain, sabendo-o, nos deram um meio de melhor compreender a profunda razão pela qual, por volta de meados do século XIX, o Ocidente ganhou o sentimento de se redescobrir nas formas de sensibilidade estética e poética que o Japão lhe propunha.

 

Camilo Maria    

   

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM / EM REBUSCA DO JAPÃO XVII


Minha Princesa de mim:


   A coleção La Librairie du XXIe. Siècle, dirigida por Maurice Olender, publicou em 2011 uma pequena coletânea de escritos do grande antropólogo Claude Lévi-Strauss, intitulando-a L’AUTRE FACE DE LA LUNE - Écrits sur le Japon (Seuil, Paris). Junzo Kawada recorda, no prefácio a essa obra, uma confissão de Lévi-Strauss que, na apresentação da edição japonesa do seu livro Tristes Tropiques, em 1977revela o seu apego ao Japão:


   Nenhuma influência contribuiu mais precocemente para a minha formação intelectual e moral do que a da civilização japonesa. Por vias bem modestas, sem dúvida: meu pai, artista pintor, fiel aos Impressionistas, tinha, na mocidade, enchido uma gorda pasta de estampas japonesas, e deu-me uma pelos meus cinco ou seis anos. Ainda me lembro dela: era uma gravura de Hiroshige, já muito gasta e sem margens, que representava umas passeantes debaixo de uns grandes pinheiros à beira-mar. 


   Entusiasmado pela primeira emoção estética que ressentira, com ela cobri o fundo de uma caixa que me ajudaram a pendurar por cima da minha cama. A estampa fazia de panorama avistado do terraço dessa casinha que, de semana em semana, eu me entretinha a rechear de móveis e personagens em miniatura importados do Japão, e de que uma loja chamada "La Pagode", situada na rua dos Petits Champs, em Paris, fizera especialidade sua. Desde então, uma estampa veio premiar  cada um dos meus êxitos escolares, e assim foi durante anos. A pouco e pouco, a pasta de meu pai foi-se esvaziando para proveito meu. Mas tal não chegava para conseguir o encantamento que me inspirava o universo que eu ia descobrindo através de Shunsho, Yeishi, Hokusai, Toyokuni, Kunisada e Kuniyoshi... Até aos meus dezassete ou dezoito anos, todas as minhas economias se gastaram em estampas, livros ilustrados, lâminas e copas de sabre, indignas de qualquer museu (já que as minhas só me deixavam adquirir coisas humildes), mas que me absorviam durante horas, nem que fosse para - armado de uma lista de caracteres japoneses - apenas decifrar, laboriosamente, títulos, legendas e assinaturas... Posso portanto dizer que toda a minha infância e parte da minha adolescência se desenrolaram tanto, ou talvez mais, no Japão do que em França, pelo coração e pelo pensamento.


   
Todavia, curiosamente, só entre 1977 e 1988 é que Lévi-Strauss fez umas cinco viagens ao Japão, onde nunca estivera, ele que nascera em 1908. Já depois de ter escrito que, apesar dissonão ignoro as grandes lições que a civilização japonesa tem em reserva para o Ocidente, se este quiser entendê-las: que, para viver no presente, não é necessário odiar e destruir o passado; e que não há obra de cultura digna de tal nome onde não haja lugar para o amor da natureza e respeito por ela. Se a civilização japonesa consegue manter o equilíbrio entre a tradição e a mudança, e se o preserva entre o mundo e o homem, sabendo evitar que este não arruíne nem torne feio aquele, por, numa só palavra, permanecer persuadida, conforme o ensino dos seus sábios, de que a humanidade ocupa esta terra a título transitório e de que tal breve passagem não lhe confere o direito de causar irremediáveis danos a um universo que existia antes dela e continuará a existir depois, então talvez tenhamos uma fraca probabilidade  de que as sombrias perspetivas a que este livro chega não sejam, pelo menos em partes deste mundo, as únicas promessas às futuras gerações...


   
Reconheço, minha Princesa de mim, que esta carta te foi escrita mais pelo Claude Lévi-Strauss do que por este Camilo Maria que a subscreve. São, na verdade, muito longas as citações que aqui traduzo, mas também é certo que a minha convivência de décadas com a gente nipónica e a sua cultura me leva a acordar-me com tudo, ou quase tudo, do que aqui transcrevi do prefácio straussiano à edição japonesa (em 1977?) do seu Tristes Tropiques, cujo original francês foi publicado pela Plon, Paris, em 1955. Aliás, tem sido longa a minha própria reflexão acerca das diferenças culturais, tal como da evolução das culturas de, e em, várias sociedades, da aculturação e inculturações que todos os dias vão medrando por esse mundo em que vivemos ou, melhor, convivemos. Aprendi muito, quanto ao Japão, com o padre Luís Fróis, jesuíta português do século XVI, observador perspicaz e amantíssimo das gentes e coisas japonesas. Em próxima carta, Princesa de mim, debruçar-me-ei sobre um capítulo de L’autre face de la Lune, capítulo esse intitulado Apprivoiser l’étrangeté (que traduzo por "Domesticar a estranheza ou o estranho", no sentido de tornar cá de casa o que nos é estranho, ou seja, também, conviver com a nossa própria estranheza. A fonte de tal capítulo é um prefácio de Lévi-Strauss ao livro Européens & Japonais. Traité sur les contradictions & différences de moeurs, versão francesa (Chandeigne, Paris, 1998) dum escrito do padre Luís Fróis, no Japão, em 1585. Veremos então a bem profunda admiração de Lévi-Strauss pelo nosso missionário quinhentista...

 

Camilo Maria

   

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM / EM REBUSCA DO JAPÃO XV

Catálogo-de-Obras-Selecionadas-Museu-de-Belas-Art

 

          Minha Princesa de mim:

 

             Será por se dispersarem

             Que as flores da cerejeira

             Nos são tão queridas,

             Neste mundo tão efémero

             Em que nada dura muito?

 

   Assim, a dado passo, canta o tanka do conto LXXXII de Ise. Talvez por ler e reler tais contos velhinhos de mais de um milénio, e de neles, para além da distância no tempo, nada estranhar, mas apenas reconhecer tantas facetas da minha própria sensibilidade portuguesa, que me comovo ao ponto de confundir esta minha rebusca do Japão com as cartas do meu sentimento de mim que te vou escrevendo. Se bem que os Contos de Ise se debrucem intencionalmente sobre sucessos e insucessos de namorados e amantes muito humanos, o seu lirismo veicula sentimentos e preocupações mais fundas, como se de raízes fasciculadas se tratasse, pertinentes ao sentido e à perplexidade com que nos defrontamos em súbita presença do nosso próprio destino humano. O aguilhão do sentimento permanente da efemeridade do tempo, das coisas todas e da vida, parece sobretudo destinado a reflectir esse paradoxo que será a consistência permanente do efémero. Lembro, Princesa de mim, este haiku de Basho:

 

           Acima da cotovia no céu

           eis impassível  

           o desfiladeiro da montanha...

 

   Acima do ukyio, deste mundo contingente, flutuante, há sempre uma passagem, um caminho para a permanência. No seu «Diálogo com um Japonês» (in Aus einem Gespräch von der Sprache - Unterwegs zur Sprache, Pfullingen, Neske, 1959), Martin Heidegger, referindo-se à questão da relação entre a letra das Escrituras e o pensamento especulativo da teologia com fonte das suas interrogações (cf. Bernard Stevens in Heidegger et l ́École de Kyoto - Soleil Levant sur Forêt Noire, Les Éditions du Cerf, Paris, 2020) escreveu: Sem essa proveniência teológica, nunca teria chegado ao caminho do pensamento. Proveniência é sempre porvir. E Bernard Stevens, da Universidade Católica de Louvain (la Neuve) comenta, pertinentemente: O que retém a atenção de Heidegger sobre este tema é, no plano da vida efectiva, uma certa experiência do tempo na fé cristã primitiva, antes da dogmática eclesial e a teologia escolástica. Trata-se de uma experiência do tempo e da história, orientada para um evento determinante do porvir: a esperança no regresso de Cristo ou no Juízo Final, para os primeiros cristãos que todavia se tornará, no Sein und Zeit (obra chave de Heidegger), em neutralidade religiosa momento decisivo da morte. Tal momento não é um instante preciso do futuro, mas no seu repente imprevisível é a nascente desconhecida de uma orientação de vida em função do porvir, pondo o humano em face da necessidade de uma decisão: a de uma opção por uma vida autêntica ou inautêntica. Do porvir imprevisível, indisponível, carregado de ameaças, provirá o sentido que o humano, resolutamente, deverá dar à sua vida presente.  

   A partir daqui, defronto-me com uma surpreendente - para mim - distinção entre a temporalidade «kairológica» e outra, a «cronológica», sendo que a primeira será obliterada, pela Idade Média e a Renascença, em favor do conceito do ser como substância, simultaneamente presença constante (ousia) e visão teoricamente objectivável (theoria), portanto impermeável  à efectividade kairológica da vida efectiva...

   Será que tal obliteração conduziu, como alguns pretendem, a um duradouro esquecimento do ser pelo pensamento ocidental?

Bernard Stevens defende que a própria noção do ser como ousia foi radicalizada durante a Idade Média pela reinterpretação como substantia, sendo o ser, aí subsistente, o sendo, na constância estável de si próprio. E afirma que tal noção de ousia provém da compreensão grega do ser, cuja memória é guardada pela pluri vocação aristotélica do sendo. E prossegue: a compreensão grega do ser como ousia sublinha um só sentido lexical do ser, sentido esse que remonta ao wasami indo-europeu (permanecer, ficar na constância do presente) e que, ao associar-se com o sentido nuclear do «viver» (es-, esti), escamoteará todavia o sentido igualmente essencial do crescer (bhu-, phy-) que, por outro lado, encontramos na palavra physis. Este vocábulo, em tempos pré-socráticos, sobretudo entre os iónicos, designa o conjunto do sendo no seu ser

   Evitando continuar a escrever-te, Princesa de mim, a remar entre escolhos de elucubrações "técnico-filosóficas" (terá tal expressão algum sentido?), vou procurar chegar ao dito do que quero comunicar-te, isto é, ao pensarsentir do tempo e do ser - para recordar o Sein und Zeit de Heidegger - nas culturas ocidental e extremo-oriental. Já entre gregos havia divergência entre reconhecer o ser do sendo na totalidade como porvir, movimento, crescimento, ou seja, enquanto physis, e o conceito de ousia, no qual o ser do sendo na totalidade é identidade consigo na presença constante. Ora, precisamente, é a ideia de physis que mais se aproxima do conceito extremo oriental de ziran (em chinês) ou shizen (em japonês), o qual aponta para o modo de ser do que é por si mesmo e por si mesmo se desenvolve, em incessante dinâmica que escapa a qualquer objetivação estabilizante e ao domínio de qualquer olhar teórico, assim exigindo nova achega. O mundo flutuante é, portanto, inapreensível ou, melhor dito, apreensível apenas na fugacidade de ocorrências surpreendidas em privilegiados momentos. Podemos, pois, dizer que ele é plurívoco, o que nos deixa entender melhor aquela interrogação de Heidegger que, no Japão, foi acolhida e reflectida pela escola de Kyoto, com Nishida Kitaro à cabeça: «Se o sendo é dito com significado múltiplo, qual será então o seu significado director e fundamental? Que quer dizer ser

   A cultura japonesa, ao longo de séculos, tem respondido privilegiando a poesia, tal como a caligrafia, a pintura e a gravura - visões simultaneamente místicas e ambíguas - na intuição de um olhar que interroga o mistério e busca surpreender no fugidio a possível ou impossível permanência... Andará muito longe de um Novalis que diz ser a poesia o real absoluto, ou quanto mais poético mais verdadeiro?

   Proximamente - e, espero, de modo menos árido e, quiçá, confuso do que o desta minha escrita de hoje - voltarei a estes temas. Para que me perdoes, pelo menos tu, Princesa de mim, deixo-te a tradução de uns pensamentos do monge budista Urabe Kenko (século XIV), respigados do seu Tsurezure-gusa (Horas de Lazer...):

   Mesmo eu, que tudo deixei, compreendo que neste triste mundo haja coisas do agrado do meu coração...

   ... Mas não há outro mundo em que possa esconder-me, além deste mundo efémero. Aquilo de que fugi era o meu próprio coração. 

 

                               Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM / EM REBUSCA DO JAPÃO XIV

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  Minha Princesa de mim: 

 

   Acho interessante a perspectiva de um certo olhar de Augustin Berque (cf. Le sauvage et l'artifice: les Japonais devant la nature, Gallimard, Paris, 1986), ao colocar a sociedade, para efeitos de análise, como distinta do seu ambiente. Com este ela manterá certas relações: ecológicas, técnicas, estéticas, axiológicas e conceptuais, políticas. E sublinha que o conjunto dessas relações é unitário:

   A sociedade é una no seu ambiente que é um (e isto tantas vezes quantas as sociedades que houver...). As relações supra mencionadas só devem ser diferenciadas para propósitos de exposição, já que, na realidade, cada uma contém em potência todas as outras, cada uma está presente em qualquer das outras.

   Gosto desta achega, porque nos aproxima do meu próprio conceito de cultura, sobre o qual já muitas vezes escrevi alhures. 

Na verdade, Augustin Berque chamará cultura precisamente ao comando dessa unidade, do ponto de vista da sociedade:

   A cultura é, com efeito, o que confere alguma coerência e orientação ao complexo conjunto das dimensões da vida social, em função dela própria, enquanto distinta da vida biológica. Dito mais sobriamente: cultura é o que, pelo e para o homem, dá um sentido ao mundo - o homem sendo aqui considerado no seu enquadramento natural, isto é, em sociedade. 

   Noutro trecho do mesmo livro (Habitar em pureza), Berque, depois de recordar Hölderlin (dichterisch wohnt der Mensch: o homem habita poeticamente...) desenvolve:

   Mas o homem também habita, e de modo mais manifesto, de acordo com certos valores. Na casa japonesa, a elevação do soalho - de altura variável, reduzida, por exemplo, a poucos centímetros nos apartamentos modernos, mas sempre presente - ligado à obrigação de se descalçar e tomar um banho quente quando se regressa do trabalho - define o interior por oposição ao exterior, sob o signo evidente da pureza. Na verdade, a cultura japonesa parece querer associar o tema do habitar ao da pureza.

   Aliás, o vestíbulo (geikan), pequeno que seja, que marca a entrada de qualquer casa japonesa - e onde, por exemplo, nos descalçamos - está sempre ao nível do soto (o exterior), um degrau abaixo do uchi (o interior), a que acedemos subindo, para calçar os chinelos preparados para nós. Quem já habitou, ou apenas visitou, uma casa japonesa, terá notado como o chão que nela pisa está coberto por esteiras (tatami ) de palha de arroz, onde o nosso andar desliza silencioso. Mas também existem casas de tipo ocidental - algumas habitadas mesmo só por japoneses legítimos - em nada diferentes das que conhecemos e onde as regras atrás referidas até podem não ser aplicadas, sem que haja qualquer escândalo ou espanto por isso... 

   Aliás, se estivermos bem atentos aos comportamentos vários dos que nos rodeiam, verificaremos que, com maiores ou menores diferenças e matizes, cada um de nós tem a sua própria cultura, já que cada sistema de referências axiológicas e existenciais varia do do vizinho, pelo menos na respectiva intensidade de consciência. Como, também, a mesma pessoa terá reacções ou respostas diferentes perante situações semelhantes, de acordo com a variedade das circunstâncias. O ser humano é - sabe-lo bem, minha Princesa de mim - um peregrino imprevisível. Numa conferência proferida perante japoneses, Claude Lévi-Strauss afirmava:

   No Ocidente, sucedem-se os estilos de vida, os modos de produção. Mas dir-se-ia que, no Japão, eles coexistem. E serão eles, em si mesmos, radicalmente diferentes dos nossos? Quando leio os vossos autores clássicos, sinto mais o desfasamento temporal do que qualquer estranheza. O Genji monogatari prefigura um género literário que a França só conhecerá sete séculos mais tarde com a obra romanesca de Jean-Jacques Rousseau: uma intriga lenta, encabrestada, toda matizada, em que evoluem personagens cujas motivações profundas nos são, como muito nas nossas vidas, misteriosas. Narrativa cheia de observações psicológicas subtis, e mergulhada num lirismo melancólico, em que o sentimento da natureza tem um papel tão importante como a impermanência das coisas e a imprevisibilidade dos seres...

   Ise monogatari, ou Os Contos de Ise, foram escritos, quiçá, por volta do ano de 951... Digamos que são muito antigos, mas, pese embora estarem redigidos numa língua ainda muito tosca e de nem sempre fácil transcrição para japonês moderno, têm hoje lugar em qualquer compêndio ou colectânea de literatura, ou história da literatura japonesa. Traduzo, da versão francesa de G. Renondeau (Gallimard / UNESCO, Paris, 1969), um conto - que, como todos os outros se revela em tanka, poemas de cinco versos e trinta e uma sílabas - bem como as pertinentes notas explicativas:

   Uma vez, um homem que estava em Musashi escreveu a uma senhora que estava na capital: «Se falar, tenho vergonha; se não falar, fico com pena.» Como remetente, no lugar da sua própria morada, escreveu: «Dos meus estribos de Musashi». E não voltou a dar notícias. Da capital, a dama escreveu:

          Tal como nos estribos de Musashi,
          Bem presos às suas correias,
          confiamos,
          Assim nos estribos de Musashi
          Me apoio, apesar de tudo, apaixonada,
          E tenho confiança em ti.
          Sofro por não te inquietares comigo, como sofro 
          Quando te inquietas, é abominável.

 

   Ao ler esta carta, ele teve uma sensação difícil de suportar e disse:

           Se perguntar por ti, admoestas-me,
          Se não perguntar, odeias-me.
          Em tal circunstância, que homem não morreria?

 

   Musashi era uma província do nordeste do Japão, longe de Heian (Kyoto), famosa pela artesania de estribos de tipo coreano. (Lembra-te, Princesa, de que estavam no século X...) Mais concretamente, explica Renondeau:

   Ele tem vergonha porque começou uma relação com outra mulher nessa região distante. Fica com pena porque lhe falta franqueza para com a mulher que ficou na capital.

   O autor introduz muitos sentidos que obrigam a justapor duas traduções dos três primeiros versos. A expressão «estribos de Musashi (Musashi abumi) é estereotipada e associa-se a sasuga (correia / apesar de tudo) e a kakeru (estar suspenso / estar aborrecido). Os japoneses sempre gostaram destas expressões ambíguas, que despertam vários sentidos...

   A questão da ambiguidade da língua japonesa, curiosamente, nada, ou muito pouco, tem a ver com o entendimento de um grupo para a acção. Já te falei várias vezes, Princesa, no nemawashi, esse «partir pedra» que, obrigatoriamente, precede sempre o início de qualquer trabalho em equipa: remói-se e volta a remoer-se o tema, a razão de ser e o projecto, até todos ficarem bem cientes de que falam do mesmo. Simplificando, é assim.

   Mas, por outro lado, conserva-se e estima-se o jogo de subentendidos que sustenta a linguagem poética e humorística. A cultura é como o próprio ser humano: está sempre soto (fora) e uchi (dentro). Recordando Ortega e Gasset, repito, que sou eu e a minha circunstância, e não esqueço que sou um trânsfuga da natureza.

                                   Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

 

 

FELIZ NATAL!


Minha Princesa de mim:


   Escrevo esta carta pensandossentindo-te, não só a ti, mas a todos os que a lerem e não só. A circunstância atual da vida humana no nosso planeta, leva-me a viver este tempo de Natal, não só como festa da promessa de Vida que se vai realizando, mas como tempo de espera. Respiro a vida à minha volta, transpondo-a para textos e imagens da simbologia tradicional, que nos falam de um paraíso vindouro, em que os humanos convivem com uma natureza limpa em que todos os seres estão em harmonia. E imagino este cenário idílico como antecipação sensorial do universo que todos desejamos - e por isso mesmo já é, mais do que aspiração, semente em nós - posto que a nossa atual capacidade de inteligência, visão ou antevisão das coisas não nos faculta a possibilidade de o concebermos realmente.

   No mundo presente, a nossa vida terrenal tem sido cada vez mais marcada pelo frenesi e pela sofreguidão, com forte propensão ao imediatismo. Até arrisco dizer que, na agitação de querermos logo tudo, não só perdemos a capacidade de esperar, como também o sentido da própria esperança. Dir-se-ia que só os pobres, destituídos e despojados, poderão saber hoje o que é a esperança, por muito que as suas próprias expectativas continuem a ser desiludidas... E nós, os abastados, teimamos em não querer entender que não há esperança sem partilha, que esperar não é tão somente aguardar com paciência, antes é acreditar na realidade possível de um mundo novo. 

   Eis o que me ocorre compartilhar contigo, neste Natal "pandémico", minha Princesa de mim: este Menino Jesus, pobrezinho e forte, aguarda com misericordiosa e infinita paciência a nossa esperança na harmonia do Reino de Deus, na tal que só surgirá em verdade no coração de todos se formos capazes de abraçar a alegria da partilha, em que descobriremos o sorriso de Deus.

   FELIZ NATAL!

 

Camilo  Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim: 

 

   Li esta manhã, numa revista católica francesa (La Vie, nº 3922), uma conversa sobre a separação e a morte, que me comoveu, sobretudo nestes tempos de pandemia. Inumação imediata, rigidez do protocolo funerário, interdição dos funerais familiares... As medidas sanitárias que rodearam a morte na Primavera passada deixaram traumatismos entre os vivos. Como podemos consolar-nos sem ter podido acompanhar os últimos momentos dos nossos próximos? Nem honrá-los por um ritual de adeus coletivo? Eis chegados os dias de Todos os Santos e dos Fiéis Defuntos, duas festas concomitantes que, este ano, se revestem de mais gravidade. Com o minuto de silêncio respeitado nas escolas a 2 de novembro, em memória do professor Samuel Paty. [Em Portugal, o Dia de Luto Nacional pelas vítimas do Covid19 e a bandeira a meia haste no Palácio de Belém]. Com o reforço das medidas sanitárias face à retoma da epidemia. Face à morte, por que gestos, por que presença, por que esperança nos consolaremos? La Vie reuniu, em 9 de outubro, a psicóloga e autora Marie de Hennezel e a escritora Anne-Dauphine Julliand, ambas tendo publicado livros sobre o assunto. A primeira, com L’Adieu Interdit (Plon) lança um grito de alarme a uma sociedade que esqueceu a morte; a segunda regressa, em Consolation (Les Arènes), ao lugar certo para acompanhar o luto. Anne-Dauphine Julliand dá testemunho dos laços que lhe permitiram, após a morte das suas duas filhas, afetadas pela mesma doença genética, conjugar a paz que nos dá vida e o desgosto que permanece. Numa presença rara e lúcida a questões que muitas vezes não queremos abordar, as duas experiências cruzam-se para nos revelarem convicções íntimas e universais. Palavras certas, cheias de força de viver, num encontro evidente de que saímos transformados. 


  
Ambas as intervenientes testemunharam experiências das suas vidas. Mas, finalmente, também nós nos reconhecemos nelas, ao recordarmos familiares e amigos que, mesmo à margem do covid 19, morreram em tempos de pandemia e confinamento, foram exumados sem assistência, sepultados ou cremados quase em segredo... E, sobretudo, não tiveram o conforto de uma mão, de uma presença amiga e próxima a acompanhá-los na misteriosa viagem. Em muitos casos, será difícil dizer quem se sentiu mais solitário e impotente, se o moribundo ou se cada um daqueles que ansiavam - por mais uma vez, quiçá derradeira, transmitir-lhe ou partilhar um sopro de vida com ele...


   Penseissenti melhor esta alma de uma irrepetível despedida - que, aliás, é uma profunda ação de graças pelo dom da vida - ao ler como Anne-Dauphine conta as mortes de ambas as filhas:


   Vivi-as diferentemente, pois elas eram pequeninas - uma com três anos e três quartos, outra com dez e meio. Mas sentimos nelas ambas uma indescritível intensidade de vida. A Thaïs, hospitalizada em casa, viveu mais um ano e uma semana do que o  prognosticado pelos médicos. E dois meses antes da morte da Azylis, senti que a atitude da minha filha tinha mudado, porque ela tirava proveito de tudo, de cada momento. Passámos férias na ilha de Yeu - foi um dos mais belos momentos das nossas vidas - e sentimo-la cheia de vida e do que nos queria transmitir: o seu amor pela vida. Nas horas anteriores à morte, cada uma das nossas filhas teve um sobressalto, ambas estiveram muito ternas. A Azylis abriu os olhos, ri-se, apertou uma mão e tudo passou por esse simples gesto. Aquele adeus diz-nos tudo o que a vida lhe trouxe. Partilho o ponto de vista da Maria de Hennezel: a relação perdura porque o amor perdura - o amor que nos liga uns aos outros. A Azylis dizia-nos: «Eu também continuarei a amar-vos à minha maneira». Estou persuadida de que morrer é um ato. Não escolhemos morrer, nem padecemos a morte: vivemo-la.


   
Este tão simples relato é, afinal, extremamente denso, profundamente interrogativo pela nudez da condição humana que descobre. Talvez por isso, Marie de Hennezel apenas comentou: Esse trabalho do trespasse pode tão somente ser a intensidade de um olhar, um modo de abraçar alguém. E dou comigo a pensarsentir a morte como trabalho de parto. 

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:


   Regressando ao nosso filósofo sul coreano, Byung Chul Han, formado na Alemanha, e ao seu livro de 2019, Vom Verschwinden der Rituale, que te citei na minha carta anterior, ressalto: Os ritos são ações simbólicas. Transmitem e representam aqueles valores e ordens que mantêm coesa uma comunidade. Geram uma comunidade sem comunicação, enquanto que o que hoje predomina é uma comunicação sem comunidade. A perceção simbólica é constitutiva dos rituais. O símbolo, palavra que vem do grego symbolon, significava originalmente um sinal de reconhecimento ou uma «contrasenha»...  ... parto uma tabuinha de argila, guardo uma metade e entrego a outra a outrem, em sinal de hospitalidade. Deste modo, o símbolo serve para nos reconhecermos. É, assim, uma forma peculiar de repetição.


   
E cita longamente H-G Gadamer:


   Re-conhecer não é voltar a ver uma coisa. Uma série de encontros não é um re-conhecimento, antes re-conhecer significa reconhecer algo como o que já se conhece. O que propriamente constitui o processo de «instalação num lugar» - utilizo aqui uma expressão de Hegel - é que qualquer re-conhecimento se desprendeu da contingência da primeira apresentação e subiu ao ideal. Todos sabemos isso. No re-conhecimento acontece sempre conhecer-se mais propriamente o que foi possível no momentâneo desconcerto do primeiro encontro. O re-conhecer capta a permanência no fugidio. 


   
Faço agora, Princesa de mim, duas breves reflexões sobre as questões que temos vindo a abordar. Recordo-as porque são parte da minha experiência pessoal da vida ou, se preferires, de meditações suscitadas por um qualquer momento de reconhecimento do que me vai acontecendo.


   Assim, tem-me ocorrido, ao olhar para um regato, um ribeiro ou um rio, perguntar-me o que ele realmente será, para além das águas que naquele preciso instante à minha vista correm, nem saberei eu bem para onde, águas fugidias que não verei mais. Evoco as águas que vejo, não me lembro logo do leito que as encaminha, e quiçá outras águas passadas cavaram. Num mapa, os rios todos não são águas que ali não vemos, mas apenas traços cujo desenho nos aponta cursos de águas invisíveis. Os rios são, pois, cursos de água. Ocorre-me então que são destinos de águas, fados que elas, desde a sua nascente, ignoram...


   Curiosamente, Byung-Chul Han, sem pensar em rios, escreve: Ao ser uma forma de reconhecimento, a perceção  simbólica percebe o duradouro. Assim se liberta o mundo da sua contingência e se lhe outorga uma permanência. O mundo sofre hoje de uma carência de simbólico. Os dados e as informações carecem de toda a força simbólica e por isso não permitem qualquer reconhecimento. No vazio simbólico se perdem as imagens e metáforas geradoras de sentido e fundadoras de comunidade, que dão estabilidade à vida. Diminui a experiência da duração. E aumenta radicalmente a contingência 


   
Os cursos dos rios são sempre caminhos novos, conduzem a mares ignotos e descobertas, a encontros de outros fados, em que os reencontros se farão pelo reconhecimento do que, em cada um de nós vai continuando insuspeito.


   Nos meus primeiros anos de vida no Japão, ajudou-me muito uma certa disponibilidade para a presença em reuniões com japoneses, apesar da minha ignorância da língua. Qualquer intérprete não conseguia traduzir-me nem metade do que se ia dizendo, e quanto mais sério fosse o assunto assim se prolongaria o encontro pelo exercício do nemawashi, ou prática de "partir pedra", isto é, de repetir até à exaustão as ideias anteriormente expostas e os pontos de acordo conseguidos. Tal não seria tempo perdido, visto que, claramente definido e partilhado o contexto, seria mais rápida e eficaz a participação futura na obra comum. Aí comecei a entender o que lera em obras de antropólogos anglo-saxónicos sobre "high context communication": que a comunicação, como partilha eminentemente comunitária, não é só algo de herdado, mas pode e deve ser, em cada e para cada geração, algo que se constrói pela atenção e a escuta mútuas. O que, evidentemente, logo requer que cada parte saiba o que está a querer dizer. Isto é : que tenha consciência de que qualquer palavra não pode ser passageira, menos ainda fugidia, mas seja uma porta para o que se segue... Aí começa um compromisso de responsabilidade, ou seja, a sageza de que deverei sempre responder pelo que afirmo. Simultaneamente se desenvolve um esforço de escuta e atenção, como fator necessário de qualquer comunicação que, para ser partilha real, é necessariamente afirmação própria e descoberta do outro. Reconhecimento, para lá das diferenças, convergências e divergências. Comunidade humana. Comunidade que se constrói ao prescindirmos dessa linguagem pletórica de neologismos com que se vão mascarando vacuidades, ignorância e desconsideração dos outros.

 

Camilo Maria  

 

Camilo Martins de Oliveira