Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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1 - Quanto mais penso nesse filme, mais espantado fico. Na verdade, nem é no filme, relativamente banal e ensosso, mas no fim do filme. Se há, não conheço uma figura semelhante. A raiz quadrada de um número sem raiz quadrada. "Três quartas de cinema" ou "três quartas partes pretas de lã carneira?". Não estou a louvar nada nem a simplificar nada, embora as citações venham do poema de Cesariny, de que me lembrei a páginas tantas por razões que explicarei lá para o fim desta página. É certo que estou no princípio e por isso convém que me explique antes que se faça ainda mais tarde.
2 - O filme, de que vos poupo o título original em russo, chama-se qualquer coisa como "Às Seis Horas da Tarde, Depois da Guerra", a acreditar nas traduções ocidentais, já que, antes deste Janeiro, nunca tinha sido exibido em Portugal. Realizou-o um certo Ivan Pyriev (1901-1968) em 1944, ou seja, há 60 anos. Passou num ciclo que a Cinemateca está a finalizar, dedicado aos gelos e degelos do cinema soviético entre 1926 e 1968. Ou seja, a filmes que ou foram proibidos pela censura estalinista e dos camaradas que se seguiram, ou a filmes que foram mudados de cabo a rabo pelas mesmas censuras (em certos casos, por várias vezes e com cortes diferentes) ou a filmes que, pelo contrário, de tão perto seguiram a linha oficial que o tempo os tornou inacreditáveis e ainda mais reflectores que as obras tesouradas. Quando se programam ciclos destes há riscos vários. Os mais ingénuos ou os mais distraídos acreditam que vão ver filmes de resistentes, que heroicamente denunciaram Estaline nos anos 30, 40 ou 50, Krustchev nos anos 50 e 60, ou Brejnev nos anos 60. Basta pensar duas vezes para perceber que filmes desses jamais podiam ter existido na União Soviética. Quem pensasse em filmar um plano sequer de crítica explícita ou implícita já estava na Sibéria (na melhor das hipóteses) antes de pegar na câmara. O que foi proibido ou censurado foi-o por razões circunstanciais, na maior parte dos casos difíceis de detectar a esta distância temporal e sabendo-se o que se sabe hoje. Aprende-se mais com os ortodoxos do que com os humilhados e ofendidos. Pyriev era desses ortodoxos. Um labrego segundo os amigos, mas um labrego com talento, que sabia do ofício, o poder prezou e o público - que-tem-sempre-razão - adorou. Vários filmes dele foram sucessos colossais na URSS, com muitos milhões de espectadores, coisa de povoar os sonhos dos gémeos lusos do século XXI. "Às Seis Horas da Tarde, Depois da Guerra" foi um dos maiores. Filmado em 44 - em plena guerra e não depois dela -, conta a história de um bravo soldado russo (no cinema soviético, todos os soldados são bravos) que se apaixona por uma corajosa enfermeira (no cinema soviético, todas as enfermeiras são corajosas). Encontram-se por aqui e por acolá, cantam muito, na boa tradição do musical e, lá para o meio do filme, combinam casório para o fim da guerra. No dia desse fim, marcam encontro numa ponte de Moscovo, às seis da tarde. Mas eis que o soldado fica sem uma perna em combate. Como alma nobre que era, decide que não vai impor um inválido à bela enfermeira. Um amigo que lhe vá explicar que ele morreu, que ela não pense mais nele. Mas os amigos são para as ocasiões. A meio da piedosa mentira, o portador da má nova arrepende-se do que está a mentir. Conta-lhe a verdade e a rapariga corre para o hospital, para lhe jurar que não é perna a mais perna a menos que a aquece ou arrefece. Chegou a tempo. O soldado pensou melhor e achou-se egoísta, individualista e pequeno-burguês. Repetem a jura anterior. Só que, depois, é a rapariga quem apanha com um estilhaço e o espectador é levado a crer que ela morreu. O soldado nada sabe. E, às seis da tarde, no dia do fim da guerra, lá está na ponte, à espera da noiva. Passam as 6, passam as 7 e nem novas nem mandados. Mas filmes destes, a leste como a oeste, fizeram-se para acabar bem. Quando protagonista e espectadores já desesperam, a moça, supõe-se que incólume, aparece-lhe e lá vem o abraço e beijo finais. É evidente (até por este resumo o é, quanto mais pela visão do filme) que Pyriev viu muito cinema americano. Concretamente viu "Love Affair" de McCarey (1939), obra que, mai-lo seu "remake", "An Affair to Remember" do mesmo McCarey, e mai-los "remakes" feitos depois desse, suponho conhecida pela maioria dos meus leitores, Charles Boyer (ou Cary Grant) a combinar encontros no Empire State Building, com Irene Dunne (ou Deborah Kerr) a ser atropelada, a ficar paraplégica e a decidir desaparecer para não estragar a vida ao amado. "Às Seis Horas da Tarde, Depois da Guerra" é uma variação sobre o mesmo tema, história de azares e de sortes.
3 - Mas não é isso que me embasbacou. Não precisei de chegar a esta idade para saber como o longo braço de Hollywood chegou até ao país dos comunistas e como os filmes mais exaltadores da glória do proletariado seguiram receitas capitalistas, disfarçadas com temperos locais. O que é inédito é que, em 1944, quando ainda havia tropas alemãs em território russo e o desfecho embora previsível não fosse ainda de favas contadas, Pyriev não tenha hesitado em figurar o dia V, como se todo consumado fosse. Eu sei que não faltam na história do cinema (até na história do cinema soviético) representações de futuros longínquos, isso a que se costuma chamar "ficção científica". Eu sei que ficções do real ou com o real foram o pão-nosso de cada dia. Mas nenhum filme ocidental, dos anos da guerra, ousou jamais mostrar o fim, antes de o fim chegar, ou deu dois passos em frente para olhar do futuro vitorioso o passado sangrento. Também nunca houve - nem nos mais delirantes filmes de propaganda anticomunista - representações da queda do Kremlin ou da queda do Muro. Neste caso, Pyriev não hesitou. Em 44, mostrou 45, na guerra mostrou a paz. Há quem diga que o fez para dilatar a crença de que o dia da vitória estava próximo. Afinal de contas, a "Marselhesa" ("le jour de gloire est arrivé") tanto se cantou no início das grandes guerras como no fim delas. E, como Pyriev até nem se enganou muito (a Alemanha rendeu-se um ano depois da estreia do filme), podemos absolvê-lo dessa antecipação pela premonição. Porque é que eu fiquei tão embasbacado?
4 - Precisamente, como já disse, por essa sequência final. Séculos de cinema (passe o exagero) habituaram-nos a ver, documental ou ficcionada mente, o dia da Vitória como um dia de multidões transbordantes, enchendo as ruas, com soldados e paisanos abraçando-se furiosamente, num 25 de Abril em tamanho sobrenatural. A tamanha festa e a tamanha alegria. Tudo o que simbolicamente foi captado na lendária fotografia que deu volta ao mundo do marinheiro e da rapariga em abraço tremendo. Pyriev, em 44, não tinha milhares de figurantes nem podia filmar nas ruas de Moscovo. Que fez ele? Construiu uns "décors" com a ponte tão citada no filme, ao fundo da qual uma transparência dava a sugestão do Kremlin, iluminado por holofotes. Agarrou em duas dezenas de figurantes, de ambos os sexos, e pô-los a passear de braço dado pela dita ponte. Casais jovens, casais de meia-idade, como domingueiros, como se andassem por ali a ver as vistas. Em primeiro plano, o herói da perna de pau, muito sozinho e muito ansioso. Nalguns cantos, outros vultos solitários, ora de mulher, ora de homem. À vez, vinham chegando os pares esperados pelos ditos cujos. Abraços e beijos e lá iam a passear, juntando-se aos outros. Até que só ficava sozinho o protagonista. Caía a noite e os casais iam para a noite deles, sempre vagarosos e emburguesados, com passos de um coro de ópera convencional, mais se assemelhando a espectros do que a humanos. E, quando por fim chegava a enfermeira, o abraço era tão púdico e tão desengraçado como só o cinema soviético filmou abraços e beijos. Mas tratava-se da girândola final. Pyriev não o esqueceu e, para a sublinha, guardou para esse momento uma largada de fogo-de-artifício digna da festa da Senhora dos Remédios em Forno de Algodres, sem desprimor para a Senhora e para o forno. Na banda sonora, muitos bum-bum-bum. Até encadear com a palavra fim. E é essa sequência que não deixa de me perseguir desde o dia 7 de Janeiro. No país do "socialismo", na "pátria do povo", na terra dos sovietes, o fim da guerra foi celebrado por antecipação, sem povo, sem operários, sem camponeses, sem massas, sem qualquer desordem, sem qualquer alegria, a não ser a alegria breve de uns casais de namorados. Moscovo é uma cidade fantasmagórica, inexistente para aquém e para além da ponte sombria e soturna. Ou seja, Pyriev imaginou tudo menos uma real festa popular. É totalmente surrealista, no sentido pejorativo da palavra. Fez frio e medo. Muito frio e muito medo. Mas, pensando bem, talvez esteja certo. Para voltar a Cesariny e ao surrealismo, na verdadeira acepção da palavra: "Porque é que a enfermeira compra do Alves Redol quando está a pensar nas pernas e no peito do louro galã?" E nem sequer nisso pode mostrar que pensa. Na URSS, qualquer festa espontânea era espontaneamente inimaginável.
Recordamos o testemunho de Rita Azevedo Gomes no texto que escreveu na revista “Electra” (Ausência Imperfeita – Agustina - nº 20, Primavera de 2023).
UMA ESTRANHA ESCOLHA
Conta-se que um dia, em 1995, a Cinemateca pediu a Agustina uma sugestão de filme para apresentar na iniciativa “Terças-Feiras Clássicas”. Então sugeriu o filme As You Like de Paul Czinner, de 1936, raríssimo, e que nunca fora exibido naquelas sessões cinéfilas. Era uma opção misteriosa, que causou surpresa entre gente muito habituada a este género de escolhas. Moveram-se céus e terra, e lá apareceu a cópia. Quando houve oportunidade, perguntaram qual o motivo de tão inusitada escolha. E a resposta veio para espanto de todos. Não se tratava de qualquer memória de algo que a escritora tivesse visto alguma vez, nem se tratava de lembrar a primeira interpretação de Sir Laurence Olivier de Shakespeare. Não, Agustina nunca tinha visto o filme e tinha curiosidade em vê-lo pela primeira vez. Interessava-lhe ver o desempenho de Elisabeth Bergner, de quem ouvira falar, quando teria oito ou nove anos, como uma grande atriz, superior à Garbo, e desejava confirmar com os próprios olhos e ouvidos o que ouvira aos amigos de seu Pai, no tempo em que este a levava às matinées do Passos Manuel no Porto. Era assim Agustina, sempre desarmante na enorme capacidade de surpreender.
O testemunho de Rita Azevedo Gomes no texto que escreveu na revista “Electra” (Ausência Imperfeita – Agustina - nº 20, Primavera de 2023), confirma que Agustina Bessa-Luís é um caso especial. “Lembro a Helena e o Alberto Vaz da Silva, o Manuel Lucena e o João Bénard da Costa, que não parava de falar do prodígio da inadjetivável escrita da autora d’A Sibila”. Jorge Alves da Silva, João Botelho e Manuela Viegas juntavam-se a tal grupo de admiradores. “Descíamos juntos a Rua da Misericórdia, ao Chiado, pelo passeio da Guimarães na expectativa de ver exposto na vitrine o último romance de Bessa-Luís”. E havia histórias contadas por Joaquim Manuel Magalhães e João Miguel Fernandes Jorge, do tempo em que visitavam a escritora na sua casa no Porto. E temos de lembrar, na continuação deste preito de homenagem, o outro caso de uma relação contrastada que tem a ver com Manoel de Oliveira. Tratou-se de Francisca. Sem entrarmos nas clássicas discussões sobre as soluções de títulos e de enredos, Agustina teria gostado mais que tivesse sido assumido o título do romance original, Fanny Owen, mas Oliveira preferiu a proximidade, até para que o ambiente romântico ficasse mais evidente. Para o cineasta haveria que garantir a fidelidade aos textos e à palavra, mas igualmente o recurso à magia da representação. Mais do que na representação do teatro, teríamos a fixação das imagens em movimento, suscetíveis de ser repetidas, como se o tempo pudesse ser revisto e a reflexão tivesse uma nova oportunidade. A cena recordada é a dos momentos finais da protagonista no suspiro derradeiro: “Não há por aí um homem que ame?”. Paulo Rocha estava investido no papel de médico e Agustina, fora do plano de cena, assistia ao desenrolar da cena. Rita Azevedo Gomes ocupava-se em ver o desenrolar da filmagem – “a voz ondulada do Paulo Rocha; o riso menineiro e sagaz de Agustina”. E depois importaria que o cerimonial do passamento fosse adequado e sentido: “Os pés nus têm de ficar descobertos”.
LEMBRAR “FRANCISCA”
Teresa Menezes, no papel de Francisca, deveria aparecer como alguém que assumia em pleno o drama representado. E não poderia esquecer a ligação entre as palavras escritas e a vida vivida e mortal. “A alma não é uma cadeira que se oferece a uma visita. A alma é um vício”. De facto, falar de Agustina é assumir um paradoxo, uma aposta, a capacidade de ver o avesso e o direito das coisas. Por isso mesmo, ela se lembrou de Elisabeth Bergner em As You Like, preferindo falar não de algo que pudesse conhecer realmente, mas de uma impressão original, apreendida sem preconceitos. Por certo que teria ouvido falar das lendas de Bergner (até nos misteriosos ecos no celebrado All About Eve de J. Mankiewicz), mas o que lhe interessava verdadeiramente era cultivar a surpresa em diferentes registos – para si própria e para os seus interlocutores. Frederico Lourenço, não por acaso, fala de «um percurso, afinal de contas, demasiado desconcertante na sua mescla de arrojo e de convenção para poder almejar esse estatuto incolor, outorgado aos pouquíssimos escritores que têm o azar de ser aclamados por todos os críticos, que é o de serem ‘pardamente consensuais’».
Rita Azevedo Gomes lembra o seu filme A Portuguesa, baseado num texto de Robert Musil. Sobre esse conto, Agustina disse em 1966: “como quem atinge um segredo através do anódino, ele aflorou como ninguém essa sombra melodiosa e fria”. Mas que fique esclarecido: não é infiel a portuguesa; contudo é mais do que isso. “A fidelidade da portuguesa é o que aniquila o marido; é uma fidelidade que não tem nada a ver com a mesura da virtude nem com o reflexo do tédio. “É um estado de graça, algo blasfemo talvez e não se sabe desafiador”. Para quem lê o conto e vê o filme encontra imbrincados dois caminhos paradoxais – a virtude e a sua recusa. Musil terá ido buscar esta portuguesa ruiva ao extraordinário quadro póstumo de Ticiano, feito por encomenda de Carlos V, da muito bela Imperatriz Isabel de Portugal, sentada “como quem espera a confirmação de uma notícia importante, sem ansiedade e também sem abandono”. E, com base nesse conto, emerge um diálogo misterioso escrito por Agustina, a pedido da realizadora. Musil dá-nos o enigma e a romancista encarrega-se de o completar com outra interrogação perturbadora: “Dizem que tenho amor pelos gatos que têm um pacto com o demónio. Os gatos têm uma alma de filósofo. É só isso. O diabo não é filósofo porque inveja Deus e a criação do mundo”. Tudo, afinal, se liga. Agustina era portentosa na definição emblemática dos temas. O lançamento das narrativas envolvia um surpreendente jogo de ideias e de palavras. Por isso, o testemunho de Rita Azevedo Gomes permite compreender encontros e desencontros na representação das palavras. É o princípio da incerteza que funciona, há o ganhar e o perder e os dois eram fascinantes para Agustina. “Portugal é tímido e ama a sua rotina: preza uma felicidade que tem de pagar pelo preço das suas submissões” (As Fúrias). Tinha, ao invés, o prazer da audácia. E volto a Frederico Lourenço: “À cigarra compete apenas concentrar-se no seu próprio canto, independentemente da zurraria dos burros que criticam (cito aqui os termos bem conhecidos do poeta helenístico Calímaco). Lição em que Agustina foi exemplar».
A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA O FANTASMA APAIXONADO
1. Em 1979, organizei, na Gulbenkian, um ciclo sobre cinema americano dos anos 40. Desse, como doutros ciclos dos anos 70 e 80, a fada-madrinha foi uma das pessoas mais enigmáticas e fascinantes que jamais conheci. Não sei o nome dela e não sei de ninguém que o saiba. Dizia que se chamava e chamavam-na Mary, mas, não sendo ela inglesa, americana ou mesmo remotamente anglo-saxónica, é duvidoso que a tenham batizado com esse nome. Usava o apelido Meerson, pois teria sido casada com Lazare Meerson (1900-1938), famoso decorador francês de origem russa. Mas é bem possível que tivesse sido tão casada com Meerson como o foi com Henri Langlois (1914-1977), o lendário fundador da Cinemateca Francesa. Muitas vezes a ouvi autodesignar-se como Mme. Langlois, mas, se viveu com Langlois entre 1939 e 1977, não consta que se tenham casado. Sem razão aparente (mas porque é que querem sempre razões para tudo?) guardou toda a vida absoluto segredo sobre as suas origens. Diziam-na russa, diziam-na búlgara, diziam-na finlandesa, diziam-na de um dos países do Báltico. Ela nunca nada revelou e, quando alguns biógrafos de Langlois começaram a querer vasculhar-lhe o passado, enfureceu-se terrivelmente e Deus e algumas pessoas sabem como as fúrias dela eram terríveis. Morreu em 1993, diz-se (quem pode estar certo?) que nonagenária, mas bilhete de identidade, passaporte ou qualquer outro documento de registo civil nunca se lhe conheceu. A mim, essa mulher que me explicou que os russos só invadiram o Afeganistão para descobrir segredos sobre ciências ocultas, sempre me disse que não morreria. "Um jour, je m"envolerais..." Da morte de Langlois até ter voado de mim (estou, pois, a falar de uma pessoa com setenta e muitos anos, ou oitenta) desenvolvemos uma relação que me é impossível qualificar. Telefonava-me vezes sem conta, altas horas da noite, quase sempre para casa, pois que, para ela, telefones de trabalho (Gulbenkian ou Cinemateca) eram telefones sob escuta dos nossos muitos ignotos e invisíveis inimigos. Se, quando a conheci, era gordíssima e imponentíssima, disseram-me que em nova fora belíssima. "J"etais plus belle que toi", teria dito um dia a Marlene e tê-lo-ia sido ao tempo em que a lenda pretendia que se passeava por Paris nua, sob um fabuloso casaco de renard argenté. Nesses telefonemas noturnos, transparecia o "coquettismo" das mulheres que são ou foram muito bonitas e se habituaram a seduzir homens. Tinha uns olhos extraordinários, como só o têm os quase cegos que vêem o que mais ninguém vê (quase cega sempre a conheci). Tinha uma voz de baixo profundo, que facilmente se confundia com a de um homem e dominava, na perfeição, o inglês, o alemão, o francês, o italiano, o russo e muitas mais línguas que nem eu sei (num jantar, uma vez, espantou toda a gente recitando poemas em arménio e os arménios presentes juraram-me que ela o dominava fluentemente).
Por que razão ela me tomou sob sua proteção nunca saberei bem. O nome Gulbenkian (ela teria conhecido Calouste Gulbenkian quando foi marchande d"art) contribuiu fortemente, mas não explicou ou explica tudo. Lia através de mim ou em corpo ou em voz. E em várias alturas, mais complicadas, sem que alguma vez eu lhe tenha feito confidências, dizia-me o que eu precisava de ouvir como se fosse uma Xerazade ou um Tomás de Kempis telecomandados. Uma vez disse-lho. Limitou-se a responder-me: "Je sais. Mary sait tout." Soubesse-o ou não (e eu, hoje, acho que, se ela não sabia tudo, sabia muito), o que é certo é que, graças a ela, eu fiz o meu nome como programador. Filme que lhe pedisse (mesmo que a Cinemateca Francesa o não tivesse ou o poder efectivo dela na Cinemateca Francesa já fosse diminuto) era filme que ela me encontrava. No fim do mundo, ou ao virar da esquina. Há uma expressão que eu acho deliciosa e aprendi há pouco tempo com as minhas netas mais velhas, com a Sofia e com a Mariana: "amizades coloridas". Se não sabem perguntem, que eu não estou aqui para explicar. Mas acho que a minha relação com Mary Meerson foi uma "amizade colorida" avant-la lettre. Après la lettre, vejo-lhe o olhar renascendo em muitas vidas, ou de dantes ou de depois.
2. É estranho. Eu não vinha para falar de Mary Mersoon, sobre a qual escrevi uma crónica quando ela morreu e co-organizei um catálogo a que chamei O Cinema como Magia.
Se a invoquei, e ao tal ciclo de 79, foi para contar uma história bizarra das muitas entre nós sucedidas. Além de filmes, pedi-lhe cartazes para uma exposição paralela ou coisa que o valha. Ela enviou-me os originais de The Grapes of Wrath de John Ford e de The Ghost and Mrs Muir de Joseph L. Mankiewickz. São cartazes enormes e vinham montados em diversos rolos, para depois se colarem e se pendurarem nas fachadas do cinema, como nos anos 40 se usava. Mandei-os para o serviço de exposições da Gulbenkian que, pouco habituado àquele género de materiais, os montou, sim, mas os colou em enormes e pesadíssimos contraplacados de madeira. Quando assim os vi, caiu-me a alma aos pés. Como é que eu ia devolver aqueles "monstros"? Descolar os cartazes nem pensar, que ficavam em fanicos. Reenviá-los para Paris só em camião especial e por uma fortuna. Telefonei-lhe a contar do sucedido e ela respondeu-me com a maior naturalidade do mundo: "Guarde-os. Pode ser que lhe sejam úteis." Assim fiz. De 79 a 91, os cartazes estiveram nas paredes do meu gabinete da Gulbenkian. Em frente de mim (porquê?) já estava o do Ghost, filme que em Portugal se chamou O Fantasma Apaixonado.
Não é tão bonito como o das Vinhas da Ira, com desenho original desse mestre dos nossos neo-realistas que se chamou Benton. Mas nunca resisti ao sorriso de Gene Tierney, tão segura, tão insegura, precisamente por isso. Curiosamente, uma Gene Tierney tingida de louro, quando nunca houve mulher mais morena e mais branca em Hollywood. High-Cheek Bone Beauty. Há tanto de triste e algo de insuspeitado nesse leve sorriso e nesses imensos, insondáveis olhos. Mulher-patchuli. Em 91, trouxe os cartazes para a Cinemateca. Hoje, o das Vinhas da Ira anda por lá. No meu gabinete, em frente à minha mesa, só o do Fantasma. Vinte e seis anos (79-05) a viver com ele e com a Mrs. Muir dele é muito tempo. Mais do que umas bodas de prata. Mas a profecia de Mary Meerson cumpriu-se. Também foi para isso que ela mo mandou.
3. Esta vida é de facto estranha. Quando eu vi O Fantasma Apaixonado pela primeira vez tinha 12 anos. E foi no Tivoli dos veludos da Fox. Quem fosse o realizador - Joseph L. Mankiewickz, depois, também, meu cineasta de cabeceira - ignorava completamente. Só me interessava Gene Tierney e, depois de visto o filme, passou-me a interessar Rex Harrison, com quem vivi pela primeira vez. Gostei. Gostei muito. Mas quão longe estava de adivinhar o que esse filme iria significar para mim, passados os 40 anos, quando o revi no tal ciclo da Gulbenkian e, depois, quando o revi e revi e revi em dezasseis passagens na Cinemateca e mais não sei quantos visionamentos. Já contei mil vezes, mas, como estou morto por contar, conto outra vez. Mrs. Muir (Lucy Muir = Gene Tierney) enviuvara há pouco tempo de um Mr. Muir que nunca vemos, mas não era de molde a deixar grandes saudades. Sogra e cunhada em Londres, princípio do século XX, vigiavam a virtude da jovem viúva e da filha dela, de dois anos. O filme começava quando a situação se começava a tornar insuportável e Mrs. Muir, doce mas firmemente, anunciava que ia sair de vez daquela casa para ir para o pé do mar, para o pé do mar. Nem rogos nem ameaças a demoveram. Procurou casa junto ao Mar do Norte como Mar do Norte nunca vi, mas nenhuma casa a convenceu. Até que viu a que queria ver, mas ninguém lhe queria mostrar. A casa estava assombrada pelo fantasma do Capitão Gregg que nela se suicidara. Só que os fantasmas não assustam Mrs. Muir. Um fantasma é o medo que a gente tem dele.
Mrs. Muir instala-se na casa com a filha e com a criada. E logo o fantasma começa a visitá-la. "I know you are here", diz ela. As luzes todas se apagam, começam as trovoadas e os relâmpagos. Mas começa também, poucochíssimo depois, a história de amor entre o fantasma mais malcriado do mundo e a mulher mais mar do mundo. Debalde o fantasma lhe diz: "I"m here because you believe I"m here." Não vou contar o filme todo. Há sempre uma hora em que se acorda dos sonhos. Os fantasmas não são para toda a vida. Quando o percebe, Rex Harrison, pois é dele que se trata, sempre de negro vestido, vem despedir-se dela que dorme. "What you have missed by being born too late to travel the seven seas with me! And what I"ve been missed too? What we both have missed!" Antes recitara Keats, depois dá-lhe um quase beijo. Mrs. Muir descobrirá depois que o real é bem mais frágil. Fica na casa, pensando sempre que o que aconteceu nunca aconteceu, que nunca houve fantasma algum. Mas o que houve deu sentido a tudo, por ser feito de tão nada.
Depois o tempo passou. Passa sempre. Depois, um dia, o coração de Mrs. Muir deixou de bater. Quando a criada lhe vem trazer o chá cruza-se com o fantasma e com Mrs. Muir, que avançam devagarinho nas brumas. Como é que diz Keats que o fantasma recita: "I have been half in love with easeful Death... Was it a vision or a waking dream?" Porque é que as pessoas se apaixonam por fantasmas? Porque é que os fantasmas se apaixonam por pessoas? Perguntá-lo é perguntar "como pode usar amor de entendimento". Sempre que vejo, no meu cartaz, Rex Harrison mais azul do que negro sumir-se no fundo do colo de Gene Tierney, pergunto-me qual dos dois foi fantasma e como o Andrea Francorum de Stendhal "inter quos possit esse amor". Lembram-se do que ele respondia a quem se embaraçava com a obscuridade de discursos destes? É melhor não se lembrarem.
A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA DE JOHN MOHUNE A JON WHITELEY OU DE FRITZ LANG A AUGUSTE-DOMINIQUE INGRES
1. Julgo que é o título mais comprido desta série de crónicas, quer as das antigas e românticas sextas-feiras, quer as dos novos e frustres domingos onde ainda não conseguiram arranjar lugar para me sentar. Quando se escolhe um título longo, é, normalmente, para ser mais explicativo, como é o caso, por exemplo do Everything You always Wanted to Know About Sex, but Were Afraid to Ask. Não é o caso deste meu, de hoje. Dou um doce a quem, mesmo muito sabido, perceber que relação existe entre John Mohune e Ingres, ou mesmo entre o pintor e Fritz Lang. Essa relação construiu-se, para mim, nos últimos três anos e só há três dias se concretizou. Apetece-lhes ouvir a história? A mim, apetece-me contá-la.
2. John Mohune é o nome do jovem herói do romance de John Meade Falkner Moonfleet, publicado em 1898. Um desses romances de aventuras escritos para pré-adolescentes do sexo masculino, que descende de Stevenson ou, mais remotamente, de Dickens ou de Kipling, e que foi muito popular na Grã-Bretanha, dos alvores aos meados do século que passou. A ação situa-se no século XVIII. John Mohune é o filho de Olivia e a família é tão importante naquela parte da Escócia que o próprio nome da povoação que dá título ao romance provém dela. Moonfleet é contração de Mohune e Fleet. Não eram senhores muito amados os Mohune. John, órfão aos nove anos, é informado pouco depois (pouco depois da morte da mãe, que o pai é outra história) que o nome não é propriamente um nome benquisto na aldeia de contrabandistas e piratas onde se situa quase toda a ação.
A primeira vez que o vi foi no filme homónimo de Fritz Lang, estreado em 1955. Tinha os mesmos nove anos, era muito ruivo e de cabelo encaracolado, a cara cheia de sardas, olhos azuis determinados. Por uma noite sem lua, com um céu coberto de nuvens púrpuras ou amarelas, caminhou à procura de um homem que julga ser seu amigo. A certa altura pára, para tirar um seixo de um dos buracos das solas das botas. De repente, aparece-lhe - é o termo - um anjo enorme de olhar vazio e expressão inquietante. Será estátua? Será gente? Uma mão que se vê em cima de um muro parece apontar para a segunda hipótese. John Mohune tenta fugir, tropeça e desmaia. Quando acorda, está no fundo de um poço e é do fundo desse poço que nós, com ele, vemos em contra-plongée vertical uma série de caras patibulares. O miúdo caiu às mãos de 40 ladrões. Mas recupera depressa a coragem e insiste que o levem à presença de Jeremy Fox, para quem traz uma carta. Carta da mãe, que, ao morrer, o confiou aos cuidados desse homem. Quando lhe somos apresentados (a Jeremy Fox), o aspeto e as maneiras do personagem (o ator é Stewart Granger) não prometem nada de bom. Nem dele, nem dos companheiros dele (onde avulta, para mim, a voz incomparável de Joan Greenwood), nem da dançarina que dança para ele. Só muito pouco a pouco percebemos algumas coisas e nem todas são esclarecidas. Jeremy Fox tem as costas marcadas por dentes de cães que os Mohune lhe atiçaram. Plebeu, estava na companhia de senhora, senhora que só podia ser uma Mohune, para a família se enfurecer de tal modo. Se ela, ao morrer, confiou o filho ao homem que fora pasto da matilha, as probabilidades são muitas de John Mohune ser filho de Jeremy Fox, embora no filme nunca tal se diga e o miúdo nunca o suspeite. No livro? No livro nem sequer há nenhum Jeremy Fox, tal era, nesses bons tempos, a fidelidade dos estúdios aos textos originais. Mas se John Mohune nunca suspeita que Jeremy Fox é seu pai, também nunca duvida que ele seja o amigo que a mãe lhe disse que era. Contra todas as evidências, porque Jeremy Fox passa o filme a enxotá-lo. Mrs. Minton, uma das amantes dele, pergunta a Jeremy: "Que vais fazer dele? Corrompê-lo e destruí-lo, como fazes a toda a gente?" "Há um perigo bem maior", responde Jeremy, "é ser ele a destruir-me." No final do filme todos morrem, menos John Mohune, que tem finalmente toda a razão para dizer: "It’s good to have a friend".
Para interpretar John Mohune, a Metro-Goldwyn Mayer, em 1955, chamou Jon Whiteley, um miúdo escocês que se estreara nas telas aos 6 anos, em 1951, e aos oito ganhara um Óscar especial da Academia pela sua interpretação em The Kidnappers de Philip Leacock. Em 1956, aos 11 anos, desapareceu das telas. Os pais acharam que cinco anos de filmes e estúdios, entre Londres e a Califórnia, já chegavam. Mandaram-no estudar.
Mas quem ama Moonfleet como eu amo - e estou cada vez mais acompanhado - nunca mais conseguiu ver John Mohune sem ver Jon Whiteley seguindo com um cão o seu amigo e roubando para ele o tesouro do Barba Ruiva. Cinemascope, mar, o obsessivo decote de Joan Greenwood, a voz de Joan Greenwood. E, evidentemente, Jon Whiteley. Cemitérios, lousas quebradas, poentes castanhos, rochas escarpadas. A fotografia de Robert Planck e a música de Miklos Rozsa. E, evidentemente, Jon Whiteley.
3. Mas se era evidente, era tão evidente que nunca me lembrei de perguntar por ele. Nem eu, nem (aparentemente) mais ninguém. Todas as celebridades do filme disseram da sua graça, e a maior das vezes da sua desgraça. Fritz Lang só no fim da vida se reconciliou com um filme em que passou as passas do Algarve. John Houseman, o produtor (que não era nada imbecil), dizia que só os franceses é que achavam que o filme era uma obra-prima. Por "perversidade ou por lealdade para com Fritz Lang". Mas Jon Whiteley nunca foi tido nem achado, apesar de se dizer que Lang, "ditatorial e déspota", tratara com especial e teutónico sadismo o seu jovem intérprete.
Provavelmente, o assunto teria morrido por aí (e hoje não me estavam a ler), se, em finais de 2001, por ocasião de um seminário sobre cinema e pintura no Convento da Arrábida, Henri Zerner não me tivesse perguntado: "Você sabe que Jon Whiteley é meu colega e professor de História de Arte em Oxford?" Não fazia a mais pequena ideia. Mas como cinema, pintura, Moonfleet fazem trindade indissociável, pensei em convidá-lo quando saísse o livro em que esse seminário desembocou. Convidá-lo para vir a Lisboa e apresentar Moonfleet. Ao princípio correu mal: de Oxford disseram-me que o prof. Whiteley (hoje com 60 anos) estava em ano sabático algures nos Estados Unidos. Mas havia mails. Há sempre.
Já com poucas esperanças, mailei. E, na volta, tive a resposta mais simpática do mundo. Que adorava voltar a Portugal, que conhecia como turista e que adorava apresentar Moonfleet, que (e agora sublinho bem) nunca ninguém o tinha convidado a apresentar.
Em janeiro, Jon e Linda Whiteley desembarcaram em Lisboa e eu vi subitamente na minha frente, aos 60 anos, o miúdo de 9, de 1955. Mesmos cabelos ruivos, mesmos olhos azuis, mesmas sardas. E, na fantástica apresentação do filme, o mesmo medo e a mesma coragem para defender Fritz Lang, acabar com a lenda das malfeitorias e falar da conspiração de produtores e atores contra aquele velho barrigudo e monocular que ousara pular para cima de uma mesa e explicar à famosa bailarina Liliana Montevecchi como é que se devia dançar a dança que ele queria que ela dançasse para endoidar os homens e empalidecer as mulheres. Fritz Lang, o realizador que "composed scenes in the manner of a painter and treated actors like a puppet-master". "This perhaps annoyed his actors but it did not trouble me." Depois falou-me de Ingres, seu pintor favorito, e prometeu-me o livro que sobre ela tinha escrito e há muito se esgotou.
4. A fama dessa palestra de Lisboa chegou a várias partes. Este e aquele começaram-me a pedir o Whiteley de Lisboa. Até que, postos os feriados de junho e os dias de montanha russa entre Guimarães e Salamanca, Salamanca e Belmonte, recebi, com data de 8 de junho, uma carta dele e o livro sobre Ingres. Na carta dizia-me que "as a result of your invitation to Lisbon and the showing of Moonfleet" recebera um convite para comentar o filme num festival em Procida. Sabia que a cópia a ser projetada era a nossa (a melhor cópia de Moonfleet que por aí anda e não é para me gabar). "Any chance of seeing you? I hope so very much." Não, não vou rever em Procida o meu John Mohune feito Jon Whiteley, criatura de Lang e criatura de Ingres, igual aos 9 e aos 60 anos, na sua busca pela amizade e na certeza dela. Mas ganhei o livro azul, com o retrato da viscondessa de Haussonville que está na Frick Collection. E nele recordei que a duquesa de Guermantes, depois de o ter execrado como o pior dos académicos, descobriu, no fim da vida, que ele fora o genial precursor do Art Nouveau. "Como os arquitetos do barroco, Ingres ultrapassou o domínio da arte clássica para inventar uma linguagem expressiva de regras quebradas, através das quais deu forma exterior aos doces, nostálgicos, ambiciosos, sensuais e vingativos desejos que sempre possuíram a sua imaginação." Ingres, certamente. Mas também Fritz Lang. "A deeply sensuous nature." John Mohune começou na encruzilhada de Moonfleet. Mas lembrou-se que estavam por ali senhoras. Foi nos banhos turcos de Ingres.
Nos filmes de Éric Rohmer a cidade representa o confronto de contradições.
A cidade de Eric Rohmer está sempre viva, porque está sempre em movimento contínuo. É porosa, permeável, isotrópica, transparente e atua em todas as direções.
Ao longo dos filmes, percebemos que as constantes conexões urbanas (o andar, o movimento, a multidão) tornam possível a existência de relações entre os personagens. Há cidades cheias e ruas vazias, campos a perder de vista, comboios com passageiros e carros a circular.
Nos filmes de Rohmer, a cidade, ou seja, o mundo físico exterior, promove o encontro humano e não há medo em enfrentar o outro, pois entende-se que a existência das cidades depende desse constante aglomerado de pessoas. Depende do movimento para a sua vitalidade - depende da complexidade da rede de cidades, depende do cruzamento permanente de ruas e praças, dos diferentes níveis de velocidade e circulação, das diferentes perspetivas e dos muitos momentos de pausa.
No filme L’amour l’après midi (1972), a cidade representa o confronto de contradições - o profano com o sagrado, a multidão com a solidão, a certeza com o desejo, a imaginação com a salvação.
Segundo Vittorio Hösle, em ‘Éric Rohmer. Filmmaker and Philosopher’, Rohmer considera que a realidade para Rohmer é mais do que uma conexão entre causas e efeitos. Rohmer vê a realidade física como uma ordem integral, como sendo a perfeita junção entre a natureza e o ser humano, ao estar impregnada de significados e de princípios e ideais. As várias partes da realidade, por isso estão interligadas e os objetos e os espaços físicos são reflexo de um determinado estado mental.
Hösle também refere que Paris como metrópole representa o dinamismo necessário para que Frédéric viva aberto a diversas possibilidades e para que viva numa nuvem de sonhos e fantasias imparáveis. Frédéric, ao ter escolhido casar com Hélène, conhece já o que desejou ter tido, e por isso agora, é na cidade que se proporcionam diariamente alternativas possíveis e a inevitável desilusão de algumas expectativas desencadeia naturalmente segundas reflexões: “Pourquoi, dans la masse des beautés possibles, ai-je été sensible à sa beauté? C’est ce que je ne sais plus três bien. (…)
Depuis que je suis marié, je trouve toutes les femmes jolies. (…) Que se serait-il passé, si j’avais, il y a trois ans, rencontré cette jeune femme? Aurait-elle frappé mon attention? Aurais-je pu m’éprendre d’elle, désirer un enfant d’elle?” (Rohmer 1998, 211)
Rohmer move-se entre diferentes conceitos nos seus filmes, que parecem transmitir a mesma mensagem, ou seja, que o espaço tem um impacto nos indivíduos e nas suas relações. Este impacto pode ser físico ou emocional e abre a possibilidade do inesperado, que pode atuar contra a vida organizada e planeada - nalguns casos o imprevisto é bem-vindo, noutros é perturbador.
Assim, o modo de vida urbano é sempre definido através de mudanças e deslocações constantes, condensadas e aceleradas. Para Rohmer, a cidade é, portanto, sinónimo de transformação contínua. Na sua opinião, é o lugar, por distinção, onde estranhos se podem encontrar, e onde as margens podem ser centrais e a vida no centro pode até significar exílio.
Os filmes de Éric Rohmer abrem a possibilidade do milagre infundir a vida com sentido.
“There is a crack in everything. That’s how the light gets in.”, Leonard Cohen ‘Anthem’
O cinema, segundo Éric Rohmer, não cria significados através de símbolos. O seu cinema simplesmente dá a mostrar. No texto ‘Truth, Beauty and Goodness: Freedom and the Platonic Triad in Eric Rohmer’s Film Theory’ de Hanne Schelstraete (Film-Philosophy, Volume 26 Issue 3, Page 331-351, Sep 2022) lê-se que em vez de afirmar uma camada por de trás da realidade que se experiencia e que se tem de interpretar, Rohmer antes declara que aparência já é essência. O cinema ao ser o meio que revela a essência na realidade visível, procede de uma visão cristã sobre o mundo. E Rohmer expressa esta crença na transcendência imanente do mundo palpável através do seu cinema que, naturalmente, revela a realização divina.
Schelstraete explica que desde início da era moderna, a sociedade ocidental progressivamente substituiu o absoluto pelo particular, a certeza pelo relativismo e os dogmas religiosos por um ceticismo generalizado. Desde o séc. XIX, a sociedade tornou-se industrial e a existência humana deixou de ser somente justificada pela existência de Deus. Não é Deus omnipresente, mas sim o indivíduo que detém o poder soberano sobre a sua própria liberdade e as suas próprias incertezas. O espaço reservado ao desconhecido e ao irresoluto diminuiu.
Porém, Schelstraete argumenta, que dentro deste panorama Eric Rohmer acredita que o cinema é ainda a arte que possui intrinsecamente a verdade e por isso deve fazer da beleza o seu fim supremo. Em alguns dos seus textos, Rohmer considera a lógica, a estética e também a ética como ideais absolutos que fundamentam e precedem todas as experiências e os pensamentos do ser humano. Para Schelstraete, Eric Rohmer aborda o cinema como meio mecânico, como forma de arte em movimento mas sobretudo como expressão que explora a metafísica e a essência do ser humano.
O cinema de Rohmer tenta, assim, recuperar esse espaço reservado ao transcendente em ocasiões aparentes quase impercetíveis. Para Keith Tester, em ‘Film as Theology’ (2008), os filmes de Rohmer abrem de facto essa possibilidade de um sentido mais sublime se concretizar. O cinema de Rohmer permite que haja espaço para os sinais divinos se manifestarem na realidade objetiva.
Para Tester, o sinal ou graça não se manifesta através de grandes momentos. Os milagres nos filmes de Rohmer aparecem subtilmente, não são óbvios e por isso a sua receção e entendimento é mais exigente. A graça manifesta-se em momentos frágeis, insignificantes e facilmente ignoráveis - um encontro inesperado, a forma de um joelho, o despir de uma camisola, um reflexo…
Um milagre, nos filmes de Rohmer, é uma irrupção de novas possibilidades mas também a invasão súbita de novas incertezas. Por isso, Tester esclarece, que muitos filmes terminam em momentos que não ficam resolvidos - parecem, muitas vezes, terminar em novos começos. A circunstância em que surge a transmissão do sinal é só reconhecida por aqueles que estão prontos para receber a graça. Para Tester, os filmes de Rohmer exploram sobretudo a capacidade das personagens (que são pessoas empiricamente reais) em conseguirem, através da perseverança, continuar a procurar ver ou pelo menos em possuírem a disponibilidade para continuar à procura dos sinais - mesmo se estes ficarem perdidos ou se não forem vistos com evidência.
Na opinião de Tester, os filmes de Rohmer abrem caminho para algo prometedor porque permitem a possibilidade do milagre infundir a vida com sentido. O indivíduo poderá assim abrir-se à possibilidade de um sentido vivencial mais sublime e não somente superficial e experiencial. E essa abertura implica estar mais atento e sensibilizado em relação ao mundo real e físico.
A arquitetura e a cidade em Rohmer expõem falhas, modificações, reflexos, imagens, encontros.
“Dans le fond, ça me rassure, dis-je, j’aime bien qu’il y ait du monde dans les rues, à n’importe quelle heure. C’est ce qui fait l’agrément de Paris. Je ne connais rien de plus sinistre que les après-midi de province ou de banlieue…”, Fréderic In L’Amour, l’après-midi (Rohmer 1998, 214)
No filme L’Amour, l’après-midi (Eric Rohmer, 1972) a metrópole, neste caso Paris, apresenta-se como um lugar que salva da angústia e do aborrecimento quotidiano. A cidade oferece a possibilidade de o indivíduo desaparecer para emergir.
Lê-se em ‘Film as Theology’ de Keith Tester (2008) que o território dos filmes de Rohmer têm um sério compromisso com a realidade. Segundo Tester, o realismo dos seus filmes, distingue-se ao refletir a importância da graça teológica para a vida empírica de cada pessoa humana. Nos filmes de Rohmer, o território cartografado é precisamente o lugar para aprender a olhar e para atender às manifestações da graça.
Em L’Amour l’après-midi a cidade revela-se como sendo o lugar onde a imaginação se desenvolve e onde suposições se poderão eventualmente cumprir. É durante a hora de almoço tardia que Fréderic fantasia viver uma vida paralela. Mas assim que dá a possibilidade da vida imaginária se concretizar, através de Chloé, Fréderic escolhe conservar-se firme na sua vida real.
Na opinião de Tester, os filmes de Rohmer exploram o conceito de graça que está incorporado no mundo da experiência e da prática. Graça para Rohmer é o momento capaz de transformar o indivíduo de modo a poder perseverar na vida real. Rohmer revela assim a importância de cultivar o olhar aberto ao milagre que irrompe inesperadamente através dos outros e do mundo objetivo que nos rodeia.
A arquitetura e a cidade em Rohmer têm esse papel, porque é através desse espaço físico que se expõem falhas, modificações, reflexos, imagens, encontros... Segundo Rohmer é a graça divina que salva e que indica o caminho e o verdadeiro destino.
Tanto o cinema como a arquitetura, para Rohmer, moldam o espaço e têm a capacidade de influenciar e determinar o trajeto humano. Porém é sobretudo a arquitetura, que através da sua forma e escala pode ser uma abertura para a compreensão que transcende. A cidade onde Fréderic se move e trabalha é o espaço da sua vontade e da sua imaginação mas também lugar de uma vontade sublime. Para Tester, Rohmer com sua objetividade, explora sobretudo os momentos em que a infusão divina se perde e se manifestam erros, ilusões e estratégias na tentativa das personagens se preservarem da tentação.
PORQUE É HUMANO TENTAR QUANDO A RAZÃO PARECE PERDIDA
As andorinhas de Cabul, o filme do futuro, do futuro de hoje.
As cores das aquarelas instam a placidez do deserto face ao desastre perpétuo que se tem passado no Afeganistão, quando um sentido para a vida é procurado por dois homens e duas mulheres que mal sobrevivem ao martírio que o país perpassa, sob a loucura entregue às mãos da tirania talibã.
Todavia, nem sob o jugo do fanatismo religioso, esse mesmo que se alenta e gargalha quando as bolas de pano, pontapeadas pelas crianças, atravessam as argolas de corda preparadas para os enforcamentos; nem mesmo quando de pedrada a pedrada as mulheres sob a burca rolam de dores espraiando sangue até à morte, perante uma ovação furiosa; nem mesmo assim, o amor cede, nem mesmo assim a esperança parte dali.
E nada é milagre, mas antes desobediência. Desobediência no pequeno gesto que faz futuro apesar da miséria e da extrema violência que a obriga.
Porque há esperança e futuro quando há desejo de ensinar, na clandestinidade, as futuras gerações que têm de saber que a falta de liberdade acarreta a falsa estabilidade, num silêncio tão fundo que até os pensamentos, mata, e há que transmitir esta verdade, porque há gestos de andorinhas.
Porque há esperança e futuro quando nada parecendo acontecer que mude a dimensão trágica da vida, as andorinhas insistem no seu piar, no seu voo livre, desafiando os termos dos homens.
Porque há esperança e futuro quando o amor faz explodir as grilhetas que punem a humana tentação, o humano desejar.
O silêncio mata mais do que as armas, é certo, e os personagens centrais sabem-no, e tentam subverter as regras aguardando ou não que a misericórdia derradeira lhes seja concedida, já que apenas tentam.
O final deste filme portentoso?
Um murro explosivo no estômago. Uma centelha estrondosa de barulho no coração.
Teresa Bracinha Vieira
Obs: Estreou mundialmente este filme, no Festival de Cannes em 2019. Baseado no livro de Yasmina Khadra, pseudónimo de Mohammed Moulessehout, escritor argelino.
Filme realizado por Zabou Breitman e a ilustradora Élea Gobé Mévellec.
A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA PARA AS BANDAS DA “PLAYBOY”
1 - Uns artiguitos, por aqui e por acolá, informaram-me que a "Playboy" fez 50 anos. Primeiro pensei: "Meu Deus, como o tempo passa!" Depois, melancólico, realizei que as mais tenrinhas das "bunnies" de há 50 anos têm hoje a minha idade. Marilyn - na celebérrima foto nua do número 1 - era bastante mais velha. O que vale (vale a quem?) é que o tempo não corre à mesma velocidade para os homens e para as mulheres. Marilyn morreu, ainda quase todas vocês nem nascidas eram. As coelhinhas desmamadas de 1953 têm agora idades assustadoras. Mas aquele que, ainda hoje, continua a ser tratado por Hef (Hugh Hefner, o patrão), nascido no mesmo ano de Marilyn (1926) continua, aos 77 anos, mais Viagra menos Viagra, a "dating" três coelhinhas em simultâneo e a ter um harém permanente de vinte e tal. A acreditar em Pedro Rolo Duarte, Sting, que entre parêntesis já vai nos cinquenta e picos, compara-o "a uns daqueles imperadores romanos decadentes, cercados pelos bárbaros da Internet, que estão a acabar com o seu império". Mas as fotos da festa das bodas de ouro, que se podem ver na "Playboy" de fevereiro de 2004, já à venda por aí, mostram-no em bastante boa forma e excecionalmente num impecável "tuxedo". Duvido que os bárbaros, quando lá chegarem e se lá chegarem, consigam o mesmo estardalhaço.
2 - Em 1953, ano XVIII da Revolução Nacional, indecências como a "Playboy" não chegavam a Portugal, mesmo se, vistos de hoje, esses números de antanho nos apareçam tão puros e castos. Foi na maluca década seguinte que comecei a ouvir falar dela e a comprá-la às escondidas em Paris, usando do álibi de tantos "intelectuais" da época: nela colaboravam nomes maiores da literatura americana. A quem nos apanhava com a boca na botija, respondíamos que a tínhamos nas mãos por causa de Norman Mailer e não das mulheres nuas. A partir daí, não me lembro bem. Começou a haver coisas bem mais escandalosas ou já nada escandalizava ninguém, como se lamentava o velho Breton, de barbas até ao umbigo. Mas o mito permaneceu e pelos vistos permanece, já que, desse tempo, só a "Playboy" subsiste. E não conheço ninguém que, pelo menos de nome, ou de escaparate, a não conheça. E ainda há quem tenha pudor de a comprar seja a quem for. Mas isso são outras histórias e eu venho hoje para contar a minha.
3 - Foi em Los Angeles. Primavera de 1995. Estava por lá num congresso das Cinematecas, desses que há todos os anos nas sete partidas do mundo. Quem chega a esses congressos recebe sempre, entre uma data de papelada, vários convites, qual deles o mais chato. Ou é o ministro ou é o presidente da câmara ou é o diretor de uma instituição cultural, que convida para um "cocktail", geralmente precedido por infindáveis discursos, em que os retardatários já não acham nada de beber nem nada de manjar. Daí o meu espanto, quando, entre vários envelopes, achei um com a inconfundível "trade-mark" e em que Hugh Hefner requestava o prazer da minha companhia para uma receção em casa dele (a lendária Mansão) dia tal às tantas horas. Apressei-me a confirmar, sem perceber a razão do convite. Embora se anunciasse uma sessão de cinema. Na tarde aprazada, meti-me num táxi com uns colegas (em Los Angeles, o táxi é o único transporte possível para quem não dispõe de carro próprio) Sunset Boulevard acima ou Sunset Boulevard abaixo. O cinema preparara-me para muito, mas não para a verificação experimental de que ser bi ou tri milionário na América ou na Europa é coisa distintíssima. O táxi parou à porta de um enorme portão de aço, entre altíssimos e irídicos muros. O motorista tocou em intocáveis botões e, com os nossos convites na mão, respondeu a uma voz de oz com os nomes que os nossos pais nos deram. Os portões abriram-se à sésamo e o táxi entrou, após cuidada contagem dos ocupantes. Seguiram-se três quilómetros de subida (não exagero) por uma estrada ladeada por árvores soberbas, com inscrições em latim. Fosse eu minimamente botânico (desgraçadamente não o sou) e esmagaria os peritos com nomes venerandos. A certa altura, lembrei-me da Rebecca de Hitchcock e do susto da Joan Fontaine da primeira vez que entrou em Manderley. Lembranças não eram lembradas e achei-me diante de uma mansão que parecia a do Senhor de Winter. O táxi contornou-a e descemos num jardim de buxos a perder de vista. Em pequeno, a minha mãezinha ensinou-me que, quando se é convidado, a primeira coisa a fazer é ir falar aos donos da casa. As regras ali eram diferentes. Numa vasta varanda, inconfundível na "silk red robe" e no "silk red pijama", Hugh Hefner conversava com uns íntimos e com umas íntimas. Nem pensar em lá chegar. Para o impedir, existiam uns polidos e corpulentos guarda-costas que nos saudavam em nome do mestre, enquanto conferiam discretamente o nome que lhes dizíamos com uma lista que tinham. E logo chegaram as coelhinhas, servindo copos, louramente insinuantes. Andando, tremiam-lhes as mesmas coisas que tremeram a Vénus quando subiu ao Olimpo para interceder pelo Gama. Qualquer coisa entre o jardim de Klingsor e o Venusberg.
Depois que de nós afastaram o desejo de comida e bebida, propuseram-nos uma voltinha. Começou pelo muito celebrado Grotto, que, ao princípio, parece a ribeira misteriosa da antiga feira popular e, a pouco e pouco, recorda os lagos e as grutas do rei-virgem da Baviera. Música afrodisíaca, estalactites e estalagmites a que só extremos de boa educação podem chamar símbolos fálicos ou vaginais. Por aqui me fico na descrição, que estas coisas mais vale imaginá-las do que nomeá-las. Após as vinte mil léguas submarinas, a Arca de Noé. Quero eu dizer, um jardim zoológico a perder de vista, onde não vi feras, mas muitas girafas, zebras, avestruzes e cangurus. O luxo da coleção era a morada dos répteis e o espaço dos aquários. A coleção de peixes do Pacifico era particularmente prodigiosa.
4 - A essas horas, começava a anoitecer, as coelhinhas prometeram o resto para logo e levaram-nos para dentro. Era tempo de cinema. A sala privativa de Hugh Hefner cumulou os meus sonhos. Madeira escura, grandes maples de couro, mesinhas para o cinzeiro e para o copo, ecrã imenso. À frente, cadeirão especial para o anfitrião, que entrou por outra porta e nos introduziu, numa longa preleção, ao filme que escolhera: a versão de 1939 de "The Hunchback of Notre Dame", realizada por William Dieterle, com Charles Laugthon e Maureen O'Hara. Bem ao meu estilo, contou de como amara o filme aos 13 anos e de como a seguir o foi amando vida fora. Nunca vi mais bela cópia dele.
Finda a sessão, alguns voltaram aos prazeres da mesa, enquanto outros (foi o meu caso) preferiram continuar a explorar os jardins. Não me arrependi, pois que as nossas guias nos levaram ao "santo dos santos", a peculiaríssima "garçonnière" de Hef.
Na sala de entrada, aquela versão da "Última Ceia", onde Clark Gable, James Dean, Marlon Brando, Elvis e sete outros bebem néctar e comem ambrósia. Uma parafernália erótica preenchia cada canto e cada recanto, até nos mostrarem os quartos e as casas de banho. As posições do "Kama-Sutra" ilustravam as portas, sugerindo a especialidade de cada câmara, como parece que foi de uso nos lupanares do século XIX. Entrado no primeiro quarto, fui-me abaixo das pernas, não por culpa delas, mas por culpa do chão, almofadado e elástico e não propriamente destinado à parte do corpo humano conhecida pelo nome de pés. Paredes e tetos de espelhos. Cada quarto cada cor, qual delas mais "kitsch" e mais berrante. Uma rampa de igual moleza levava às casas de banho, muito escuras e subterrâneas. Mas a luz, como tudo o resto, dependia do gosto de cada qual. Também se podiam iluminar feericamente as casas de banho e escurecer os quartos. Ideal para jogar às brincadeiras às escuras, à cabra-cega ou à linda barquinha do lindo luar.
5 - Quando voltei à Mansão, já havia poucos convidados, entretanto saídos ou entretanto recolhidos. Comecei a admirar a coleção de pintura de Hefner, sobretudo os seus Fragonard. Foi nessa altura que o homem de pijama de seda se aproximou de mim e a conversa voltou ao corcunda. Contou-me ele então que sempre gostara tanto de ver filmes como de falar sobre eles. Mas, outrora, os amigos fugiam a sete pés dessas conversas intermináveis, sobretudo do seu requinte supremo que era contar um filme tintim por tintim. Por isso, quando ficou rico e famoso, resolveu organizar aquelas sessões. Eram sobretudo um pretexto para ele falar, demasiado sabendo que os agradecidos convidados não ousariam pateá-lo ou virar-lhe as costas. "Agora, como viu" (e fora bem verdade) "ouvem-me em religioso silêncio e, no fim, dão-me muitas palmas. All that money can buy". "All", depois de tudo o que eu vira, era um exagero. Mas ficou-me a sensação (talvez errada) de que, pelo menos em 1995, ele se divertia bastante mais com essas cinéfilas palestras do que com as coelhinhas. Pelo menos, quando nos despedimos, já não havia coelhinhas nenhumas e ele estava a meio de me contar a versão de Lon Chaney (1923) do romance de Victor Hugo. As almas têm, às vezes, encontros singulares.
por João Bénard da Costa 30 de janeiro de 2004, in Público
Alice and the Cities e o percurso de uma descoberta, numa paisagem infinita.
No filme Alice and the Cities (1974), de Wim Wenders assiste-se à vontade de regressar a uma plenitude que se perdeu e que se deseja recuperar.
No livro Wim Wenders de Iñigo Marzabal lê-se que a estadia de Philip nos Estados Unidos, é impulsionada por um olhar nostálgico, por um olhar que sente falta, por um olhar que substitui e que já não consegue ver.
No filme, a América representa o mito e o sonho que se vai desvanecendo. Os espaços por onde Philip vai passando anunciam instabilidade, permuta, transição, constante mudança, solidão. Antecipam partidas. São a negação do lugar, são vazios de sentido. Philip converte-se aos poucos num estranho para si mesmo e é a busca e a esperança de se encontrar de novo que ainda estimula o seu caminho. Philip deseja encontrar provas da sua existência. Por isso, tira polaroids sem parar.
As polaroids são bocados reais do mundo que está diante dos seus olhos. As polaroids provam que Philip está efetivamente ali, naquele lugar e não noutro. As polaroids contêm a verdade da sua experiência particular e são o resultado concreto da sua existência física. São as testemunhas mais diretas da sua viagem. São a captação de um momento original e irrepetível que jamais sucederá. São os documentos instantâneos que demonstram que Philip esteve ali, presenciou e foi testemunha de algo. As polaroids confirmam, revelam e possibilitam estender, prolongar e partilhar a sua viagem.
Mas a imagem imóvel das polaroids provocam uma frustrante inquietude em Philip, por nunca mostrarem exatamente o que se vê, por nunca superarem a realidade. As polaroids são cortes na sequência ininterrupta de uma paisagem. São fechamentos demasiado compreensíveis. São fragmentos de um infinito com autonomia espacial própria: “Un fragmento de lo infinito no supone sino el acto del recorte en estado puro, pues la materia celeste, por su irrelevancia composicional, se resiste a la formalización.” (Marzabal 1998, 84)
A realidade da viagem pela América nunca transmite o fundamento, a causa, o motivo da sua vida. O viajante, na verdade, procura por uma nova capacidade de ver. Como não consegue a sua existência torna-se uma eterna busca de si mesmo, um eterno girar em círculo.
É Alice que vai transformar Philip e vai permitir revelar a sua subjetividade perdida. Alice passa a ser o seu guia, para ir ao encontro do princípio, do lugar que o faça sentir-se em casa e em entendimento com aquilo que o rodeia. Por esse motivo, o regresso à Alemanha significa, talvez a possibilidade de voltar ao acontecimento original, à coerência que não precisa de ser explicada, à prova real de que se está vivo. Significa, através de Alice, um resgate da capacidade de ver.
Na Alemanha, os espaços por onde os dois vão passando também são igualmente impessoais, anónimos e vazios. Philip segue sentindo-se um estranho no seu próprio país. O que vai ser modificado não é o objeto do olhar, mas a forma que o próprio olhar adota. A viagem pela Alemanha é mais espontânea e imprevisível, mas concretiza uma importante busca e contrasta com os percursos preestabelecidos e premeditados da América. segundo Marzabal agora sim Philip tem um objetivo bem definido que é o de devolver Alice ao seu lugar, a sua casa.
Quando se volta ao lugar de origem o confronto com a mudança é inevitável. A alteração do olhar construído fora, faz do lugar da memória um lugar também desconhecido e inóspito. Porém, Philip consegue voltar a entender o que é relevante, através da perspetiva amplificadora da Alice. É Alice e a sua infantilidade que colocam Philip diante dos problemas que mais interessam à sobrevivência. A espontânea vitalidade, a permanente vontade de brincar e a insaciável curiosidade de Alice permitem Philip confrontar-se com a sua própria existência e a sair de si mesmo. Alice consegue aos poucos libertar Philip das interrupções que perturbam o seu olhar, pois é ela que dá forma ao confronto direto, atento e desprendido sobre as coisas reais, sobre o espaço e sobre o tempo.
Sendo assim, o filme de Wim Wenders capta o percurso de uma descoberta, numa paisagem infinita. O constante movimento de Philip fragmentado na América, finalmente se funde num lugar. A estranheza transforma-se em abertura inevitavelmente incompreensível. E é visão direta e libertadora de Alice sobre o real, que abre espaço para que Philip se redefina.