Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
"Avô, porque é que o Avô diz que os meninos crescem e o Avô não?" - Perguntas bem, Tomás, mas eu não sei responder... - "O Avô sabe tudo! Porque é que não me diz?" - Olha, se calhar é porque sei tudo, como dizes... - "Então se sabe, diga!" - Digo o quê? Talvez não percebesses... - "O Avô acha que eu sou burro?" - Não, não acho. Só acho que és uma criança, um minúsculo, uma amostra de gente... - "Mas o Avô é que disse que o Avô não sabia responder. Também é minúscula criança?" - Ouve lá: és parvo ou quê? Achas que, com este corpanzil e barbas brancas, alguém acredita que eu seja um puto? - "Já sei: o Avô não quer responder! Ou não sabe?" - Já te disse que não sabia, mas se calhar sei... Sei lá, não me apetece dizer! - "O Avô está sempre a nos ralhar quando dizemos não me apetece, porque isso não se diz. E agora..." - Isso é quando não querem comer a sopa, dormir a sesta, dar um passeio a pé, ou arrumar os jogos. Quando os netos são preguiçosos ou caprichosos... - "E o Avô agora não está a ser caprichoso?" - Ó Tomás, vamos a ver se nos entendemos: o teu Avô, este que aqui está, não é nenhuma criança, já tem idade para ser caprichoso e preguiçoso - e até amoroso com os netos que não o maçarem... Percebeste? Vá, ala, ala, arreda, como diria o infante Dom Afonso! - "O que é um infante, Avô? É uma pessoa crescida que dá ordens, ou um velho que está sempre a querer dizer só o que lhe apetece, como o Avô? " - Olha, meu lindo: não é nada disso, é uma coisa que já não existe. - "Porquê, Avô? Morreu?" - Não morreu, nem deixou de morrer, sei lá... Talvez seja assim como ser criança : todos fomos ou somos, os que ainda são - como tu és - os que ainda gostam de ser - como eu, quando brinco contigo e com os teus irmãos.. Mas também há os que nunca foram, nem conseguem ser, porque o azar não deixou. - "Ó Avô, o que é o azar?" - Perguntas bem, Tomás, porque és criança e não sabes, nem te passa pela cabeça o que azar possa ser. E eu não te respondo, porque sou velho e ainda não percebi.
Nunca tive um gato na vida, mas, já nos meus setenta anos, encontrei-me com o Finório. Vinha de um passeio à beira-mar, a manhã de Verão já avançava e eu pedia sombra. Senti-me tropeçar no que fosse que se enrolara nas minhas pernas, olhei para baixo e vi um gato ainda pequeno, que miou. Apanhei-o, fiz-lhe uma festa e pu-lo outra vez no chão, batendo o pé a dizer-lhe que seguisse o seu caminho... Qual quê! Voltou a encostar-se às minhas canelas, e não consegui desfazer-me dele até chegar a casa. Quis entrar comigo, fechei-lhe a porta das traseiras, deixei-o no jardim. Pelo vidro, vi dois olhos verdes arregalados e interrogadores, fui buscar uma tijela de leite e levei-lha. Bebe e vai-te embora, pensei. Subi ao primeiro andar, tomei um duche, vesti-me à japonesa, com um belo yucatá, fui para o meu gabinete, abri a janela que, sobre as telhas de um alpendre, me oferecia a verdura e flores do jardim. Sentado à secretária, ia lendo e tomando umas notas, quando uma leve sombra se debruçou sobre os papéis à minha frente: era o gatinho que, no vão da janela, parecia aguardar que o chamasse. Sorri, e logo ele saltou para o soalho e daí para o meu colo, com um conforto de velha intimidade. Concluí que deveria levá-lo ao veterinário, e assim fiz: tinha as vacinas todas e já fora esterilizado. Habituou-se depois a habitar um cantinho que lhe arranjei no jardim, e percebeu que o meu colo não era cama. Mas nunca deixou de me vir visitar pela mesma janela e ficar a olhar para mim como pastora para aparição. Não me enganou com a beatice: então lhe chamei Finório. Entretanto chegaram, para férias, os meus netos. O Sebastião, ainda sem dois anos feitos, mexia-se bem e muito, era curioso, falava pouco, mas gostava de frequentar-me o gabinete. Ficava, por vezes, ali sentado, com os irmãos, a ouvir a música clássica que me enchia aquele cantinho de mim, ou a desenhar. Enfim: os irmãos desenhavam, o Sebastião rabiscava. Certo dia, ausentei-me por qualquer razão, estava sozinho, deixei a tal janela aberta e a porta encostada. Quando voltei, o miúdo estava, de joelhos e rabo espetado, em cima da minha secretária, criativamente refazendo, com fúria e lápis de cor, um livro ilustrado intitulado Personnages et Paysages dans la Peinture Hollandaise du XVIIième siècle... Sentado no vão da janela, imóvel e interessado, o Finório seguia, com os olhos verdes, o trabalho artístico do Sebastião... Talvez Vermeer tivesse gostado de pintar aquela cena.
No alpendre da porta da nossa casa, na Quinta da Várzea da Pedra, está uma cabeça de mulher, de cabelos anelados e misterioso sorriso, esculpida em pedra que nunca identifiquei. Ou terá sido moldada, feita de cimento e pó de rocha? Não sei. Colocámo-la ali, vigilante e com o número 32 em algarismos metálicos, salientes e bem visíveis, a marcar a entrada com a lembrança da clínica do Dr. Monjardino, na avenida da República, nº 32, em Lisboa, onde tinham nascido as nossas duas filhas. Quando este edifício foi demolido, fomos lá buscar essa guardiã para a pôr nesta casa sem número de porta. Depois, pela primavera, todos os anos vieram andorinhas construir os seus ninhos nesse alpendre, mesmo por cima daquela cabeça de mulher, cujo olhar esfíngico foi vendo crescer filhos de gente e de andorinhas, e netos ainda... Gente vagabunda, diga-se, que pelo mundo andámos todos, muitos anos. E andorinhas fiéis, que mesmo na nossa ausência ali voltavam, a repetir gerações. Como se tivéssemos firmado um acordo secreto, um pacto familiar. Ou misteriosamente nos pertencêssemos e andássemos de asas e mãos dadas, como anjos no céu que não vemos. Mas neste nosso céu, este que o nosso olhar enxerga, na transparência claramente azul da Primavera, as andorinhas iam bailando e trabalhando, fazendo casas e famílias, como quem diz que estávamos sempre, nós e elas, na mesma pátria do ar que o coração habita. Esperavam pela nossa chegada, para férias de Verão, perfilavam-se nos fios do telefone e da electricidade, para que as pudéssemos contar e ver que nunca faltariam, nem frustrariam os nossos pequenos, filhos e netos que, de nariz no ar e olhos luzindo de encanto, lhes acompanhavam o voo, ou se sentavam à espreita da mãe que vinha dar de comer aos passarinhos. Certo dia, a Inês perguntou : «Avô, o Avô sabe quantas andorinhas tem cá em casa? ». Esta nossa neta foi sempre muito matemática e apaixonada por pormenores. Eu não sabia, imaginem-me, sem rir, por favor, a contar andorinhas... Ó Inês, eu só as conto, a contar mesmo, quando as apanho empoleiradas ali nos fios! «O Avô apanha-as? Então porque é que não as põe numa gaiola?» Diz o Tomás: «Ó Avô, ela não sabe que, se pusermos as andorinhas numa gaiola, elas morrem, pois é? » Fugi à transcendente questão : as andorinhas não se prendem nem se largam, chamam-se. E elas vêm sempre, voltam todos os anos, nunca partem. «E como é que o Avô as chama?» Pelo nome. Olhem: aquela chama-se Teresa, aquela Ana, e aquela ali António e esta Camilo. «Como é que o Avô sabe?» São os nomes dos meus avós.
Já lá irão uns dez anos, não conto bem, cheguei a esta idade em que cada década nos parece um ano apenas. Mas lembro-me desse dia como se fosse hoje. Ao tempo, pelo Verão, saía de casa muito cedo, com dois netos pela mão - uma à direita, o outro à esquerda: a Inês, a chegar aos seis anos, o Tomás com quatro e meio. Descíamos o Monte Estoril até ao mar, procurávamos, na maré baixa, uma mancha de rochas onde pudéssemos descobrir caranguejos minúsculos, burriés e conchas várias... Os pequenos, descalços e de cócoras - como eu, tal qual - encantavam-se com aquele movimento de águas e vidas, respirando a transparência da manhã, acolhendo o sol ainda tímido. Contava-lhes então como, sessenta anos antes, quando ainda não havia o paredão por onde tínhamos caminhado, com outros garotos eu andava por ali, pela costa rochosa, e apanhávamos lapas e mexilhões e os comíamos crus. Ficavam os meus netos com ganas de provar um burrié, e eu levava - os então ao mercado de Cascais, a comprar uns mariscos vários, que os três preparávamos para o almoço. Creio que também assim aprendiam a comunhão do mundo, ou como todos pertencemos à natureza que Deus criou e nos dá vida. E a tira, individualmente: mas nada se perde, tudo se transforma... De regresso a casa, atravessávamos o Jardim dos Passarinhos, onde em certa manhã fotografei os netos em cenários quase iguais aos de retratos meus aos três anos. E quando lhes mostrava os mesmos, eles miravam-me com sorrisos que, nos olhos deles, diziam incredulidade e amor. Logo me reconheciam naquelas fotografias, porque me conheciam e sempre me tinham visto em tamanho maior e com barbas... O coração não lhes mentia. A manhã, entretanto, já se fizera dia claro, meridiano, criador. Parámos junto ao tanque em que nadavam uma tartaruguitas e outras se enxugavam ao sol. Uma delas, maior, parecia mais velha, talvez doente. A Inês puxa-me o braço direito e pergunta: - «Avô, aquela está velha, doente! Vai morrer?» Respondi-lhe que não sabia se morreria agora, mas qualquer dia haveria de morrer... «Porquê, Avô?» Porque tudo o que nasce, vive e morre. «Nós também!» Também. Puxam-me então pela mão esquerda. É o Tomás. Baixo para ele os olhos e dou com os dele, escuros e luminosos, sérios e firmes. Diz-me: «Avô, o Tomás não nasceu!». Tinha razão: somos todos eternos no coração de Deus.
Há provas fotográficas da familiaridade de Sebastião com caracóis: senta-se ao lado eles, e sorri para a câmara, como se posasse para uma fotografia com os seus amigos da primeira classe lá da escola. Também o vi e ouvi conversar com alguns gastrópodes mais atentos, de antenas bem esticadas. Nunca lhes toca, aprendeu que cada caracol conhece misteriosamente o caminho lento que o seu pé-barriga vai percorrendo, ou que, quando se demora mais um pouco em cima de caliça, é porque absorve o calcário necessário à solidez dessa concha que é a sua casa de trazer às costas. Assim, sorridente e solidário, Sebastião vai acompanhando, horas a fio, pelo jardim e pelo terraço, o deslizar sumido dos "seus" caracóis.
Um dia destes, pela festa de São Sebastião, um avô do miúdo, em vez de lhe contar a história de um mártir crivado de setas, numa agonia de sangue, resolveu dizer-lhe que os anjos, lá no alto dos céus, tocavam corneta, cantavam e dançavam, para festejarem os meninos que se chamam Sebastião, sobretudo aqueles que são amigos dos caracóis... Estes, felizes e gratos, tinham-se reunido em grande algazarra festiva, no jardim lá de casa, e cantavam alegremente:
Ora viva, viva Sebastião!
És muito, muito nosso amigo!
E fizemos esta canção
para a poder cantar contigo!
O pequeno assomou à janela do quarto e viu o jardim coberto de caracóis cantantes. Escorregou pelo corrimão de dois lances de escada, correu à porta, que abriu sobre o jardim. Fez-se silêncio, até os caracóis todos começarem a bater as antenas - tal como nós batemos palmas - e um raio de sol, como relógio a bater os bons-dias, iluminar de alegria a manhã. Sebastião sentiu crescer-lhe e jorrar a lágrima paradoxal, veio-lhe o choro mudo da beleza boa. E o coro dos caracóis rompeu e foi subindo, cantando o va, pensiero... Vai, voa, meu pensamento, com asas de oiro leve, leva-me de volta à pátria que não podemos perder!...
Imaginem que - talvez por excesso de tédio ou desejo de me distrair - fui hoje ao supermercado. Sabeis bem quanto gosto de ir ao mercado, àquele que tem bancas com muitos vendedores de muitas coisas diversas, cheirosas, próximas da gente e palpáveis, sempre discutíveis na qualidade e no preço... Ou ainda, quando me pesam as pernas ou se me esvai a cabeça, à mercearia do canto da rua, essa que, de há uns anos até hoje, mesmo sem uma salsicha fresca lá dentro, se chama, parisientemente, charcutaria... Aí sim, divirto-me, humanizo-me, converso, ou seja, converto-me, saio de mim para os outros. E não só me sabe bem, como melhor me faz. Mas era domingo, e fui ao supermarché porque estava fechado o comércio tradicional, vejam bem, e eu sentia um apetite súbito, violento, de fiambre. Peguei numa embalagem do dito - ainda acredito que fosse aquilo que estava escrito na cobertura plástica e transparente: Fiambre da Perna Extra... Ao passar pela caixa - a tal portagem em que tenta sempre não pagar quem quiser roubar e paga sempre quem é roubado - disse sorrindo à simpática menina funcionária: "Este fiambre deve ser excelente e raríssimo, pois é da quinta perna do porco..." A rechonchuda jovem esbogalhou-se! Atrevi-me a explicar: "Minha Senhora, qualquer porco, que eu saiba, mesmo aqueles que, metaforicamente, têm as anteriores mais curtas (que ironia!), têm só quatro pernas! Se este afiambrado é da perna extra, é porque é da quinta, não acha?"
Lembrada das lições do seu curso de marketing, com pós-graduação em atendimento de clientes, a simpática moça retorquiu : "Ó senhor, eu não posso garantir a você que este fiambre seja de quinta ou de aviário... Não sei, não lhe posso dizer... Mas posso chamar o supervisor..."
"Não se incomode, nem perturbe ninguém", respondi. E fiz-lhe uma festinha na cabeça, loira de cabeleireiro, carícia amiga que a idade já tranquilamente me permite, sem que corra grande risco de ser levado a tribunal que não funciona mas vai remoendo quem lhe calhe... E lá levei as fatias exíguas de fiambre extra de uma perna, sem saber de que perna era...
Avançava a noite, António acordou estremunhado e perplexo: despertara-o uma voz de mulher, um segredo que meigamente o chamava pelo seu nome de frade menor... Não seria de sua mãe aquela voz, ela sempre o tratara por Fernão, e sempre o deixara dormir, pressentindo que se deitara tarde, talvez nem sempre pelas melhores razões... Mas era a sua mãe. Esta noite, também tarde recolhera, tinham os peixes insistido em que lhes falasse de Jesus à luz do luar. De volta ao convento, balbuciara um padre-nosso e caíra ferrado no sono. Sentiu frio, como se a sua cela escapasse ao calor estival de um junho italiano. Tossiu e logo resguardou a garganta na lã rude do escapulário do seu hábito franciscano. Vieram-lhe calafrios, como se o inverno ali estivesse, para o incomodar. Mas logo a doce voz de uma mulher chamou de novo: "António, frei António, vem ajudar-me!" Abriu os olhos, viu que estava deitado num monte de feno húmido, à beira de uma manjedoura, que o hálito de um boi e de um burro, ajoelhados atrás, brandamente aquecia. Um homem robusto, debruçado sobre ela, dela retirava um menino e o entregava aos braços acolhedores de uma senhora linda. Seria a mãe daquela criança, e falou-lhe, sorrindo: "Frei António, queres pegar-lhe ao colo? Chama-se Jesus, é o filho que Deus, por mim, destinou a todos, a ti também..."
O frade desenrolou o escapulário do pescoço, e com ele agasalhou o menino que aconchegou ao peito. Mirou-o, e muito com os olhos do coração. Sentiu junto à coxa esquerda, no bolso fundo da túnica, o peso duro de um volume e sacou-o: era um vaso de barro vermelho com um manjerico gloriosamente verde e cheiroso. Levantou-o à altura do menino, e logo este acariciou aqueles rebentos e, rindo muito, levou a mesma mãozinha ao rosto de quem lhe dava colo, para lhe oferecer perfume mais grato do que incenso.
Desde então, António, que conversara com os peixes, nunca mais comeu sardinhas, e foi passeando pelo mundo, com o menino ao colo e cheiro a manjerico.