Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Há a tendência para prognosticar o emergir de uma civilização universal, resultado da afirmação dos valores ocidentais, referência civilizacional cimeira para os outros povos.
Em 1989, com a queda do muro de Berlim e o fim da guerra fria, a ideia de universalização do ocidente ganhou nova projeção com a defesa da tese segundo a qual a democracia liberal seria a “forma final de governo humano” e, como tal, “o Fim da História”, da autoria de Francis Fukuyama (O Fim da História e o Último Homem, edições Gradiva).
Argumenta, em seu favor: “Todos os países em fase de modernização económica se tornarão cada vez mais parecidos entre si: têm de conseguir a unidade nacional com base num estado centralizado, urbanizar, substituir as formas tradicionais de organização social, como a tribo, a seita e a família, por formas economicamente racionais, baseadas na funcionalidade e na eficiência, e promover a educação universal dos seus cidadãos. Este processo garante uma homogeneização cada vez maior de todas as sociedades humanas, quaisquer que sejam as suas origens históricas ou culturais”.
O desenvolvimento científico e tecnológico, a interdependência comunicacional do sistema económico e consequências comunicacionais do sistema político, justificariam essa uniformização através da globalização.
E esse anúncio da vitória da democracia liberal sobre as autocracias, ditaduras e totalitarismos, projetou-o e visualizou-o, de novo, Fukuyama, no início da invasão da Ucrânia, prevendo o colapso do regime russo, a derrota da Rússia, sem solução diplomática para a guerra. Em síntese: “A derrota russa tornará possível um novo nascimento da liberdade. O espírito de 1989 voltará a viver, graças a um bando de bravos ucranianos”.
Se é verdade que a modernidade e a evolução tecnológica e científica se disseminaram globalmente, isso não significa que foram causa de uma civilização única ou de um modelo único de resposta institucional e política.
Escreve Arnold Toynbee: “A origem do erro foi o facto de a nossa civilização ocidental ter modernamente lançado rede do seu sistema económico a todo o mundo, e a esta unificação económica seguiu-se na mesma base e quase na mesma extensão uma unificação política”. E acrescenta: “nada mais fácil para o comércio do que exportar uma nova técnica ocidental. É infinitamente difícil para um poeta ou um santo do Oriente comunicar a sua própria chama espiritual a uma alma estranha do Ocidente”.
Adianta Fernand Braudel: “A difusão da tecnologia, e mesmo de alguns valores ocidentais, nos países que não pertencem à nossa civilização, mais não é do que manifestação da ancestral permuta “inter-civilizacional”. Conclui: “O passado das civilizações, aliás, não é mais do que a história dos contínuos contributos mutuamente prestados, ao longo dos séculos, sem que por isso percam os seus particularismos, as suas originalidades”.
A idealista, talentosa e polémica tese de Fukyama sobre o Fim da História falhou, até agora, mesmo sabendo-se que a Rússia também é, por direito próprio e geograficamente, parte da Europa, e maioritariamente e civilizacionalmente cristã. Prova-o a invasão à Ucrânia, sem derrocada à vista (até hoje) da autocracia/ditadura e emergência da democracia, bem como os populismos, ditaduras e totalitarismos que, pelo mundo fora, não veem na democracia liberal um amanhã que canta.
O pacifismo, ao defender a paz como bem supremo, faz o seu percurso ideológico e político desenvolvendo-se, no seu sentido mais restrito, ao recusar o uso de meios violentos contra toda a criação ou a espécie humana (ecologistas), quer no mais amplo, ao incluir as doutrinas defensoras da conciliação internacional, na base de organizações e de políticas como a SDN, a ONU, a DUDH, a Ostpolitik e o desanuviamento.
Baseia-se numa antropologia tida essencialmente como otimista, onde predomina a paz, tendo como base filosófica a Paz Perpétua de Kant e a ideia de que o homem é naturalmente bom.
É uma ideia culturalmente e espiritualmente revolucionária em termos civilizacionais, que não tem qualquer tipo de reflexo de uma ordem natural das coisas, o que é demonstrado pela repetição da História ao longo dos tempos, não justificando o otimismo excessivo do pacifismo.
Com efeito, ao lado do aprofundamento da globalização, integração regional e aumento da cooperação, materialização e positivação do conceito de complementaridade de ação das organizações internacionais, reapareceram violentas e agressivas afirmações de nacionalismos e violações dos direitos humanos. Algumas das mais recentes nos Balcãs (ex-Jugoslávia), no Ruanda-Burundi e Síria. E, atualmente, com a invasão da Ucrânia, após duas guerras mundiais com epicentro europeu, contrariando quem tinha tal factualidade como uma regressão improvável.
É a antropologia pessimista que tem por fundamento filosófico a teoria de Thomas Hobbes de que o Homem é mau, é um lobo para o Homem, defendida pelos belicistas, dada a inevitabilidade da guerra que acompanha, em permanência, o ser humano, adaptada pelos realistas para quem o Estado é o único ator internacional válido relacionando-se com os outros (Estados) movido pelo interesse nacional, maximizando o poder, se necessário o militar, através da guerra, sendo esta boa se for um meio para atingir os fins.
Tem havido sempre uma repetição da História, quanto a guerra e paz.
O desejável seria nunca haver repetição da guerra, havendo sempre paz.
Movimentos generalizados da opinião pública a favor da paz são louváveis, mas há obstáculos à sua realização, como o terrorismo, tensões religiosas, intolerâncias étnicas, xenofobia, racismo, supremacias imperialistas ou outras, fazendo esquecer os esforços da paz, sem excluir o poder como fim ilimitado, sustentado pelo puro domínio e ganância do poder pelo poder.
É a guerra e paz e a repetição da História.
O que não justifica que nos conformemos com a repetição da guerra, pois a paz é decorrência inelutável do progresso espiritual da Humanidade, árdua tarefa, que vem de há muito, não sendo, para muitos, uma mera utopia.
«O Testamento Político» (1749) de D. Luís da Cunha é um dos Documentos mais importantes da História Política Portuguesa.
COMO RESPONDER À SITUAÇÃO? Portugal, depois da Restauração de 1640, saiu enfraquecido, procurando responder às novas circunstâncias. E assim jogou com a liberdade dos mares e com a relação com a Inglaterra (em plena crise interna de índole constitucional, religiosa e política). Daí as tentativas para criar núcleos economicamente ativos nas zonas de influência, em especial no Brasil, sendo desse tempo a proposta do Padre António Vieira de recorrer aos cristãos-novos e judeus, de modo a refazer o império marítimo, contra a lógica do isolamento a que a Espanha nos quis condenar. Jorge Borges de Macedo refere então duas tendências em confronto na política externa portuguesa – uma atlântica, inclinada ao entendimento com a Inglaterra, e outra continental, orientada para uma ligação à França. E se o casamento de D. Catarina de Bragança com Carlos II de Inglaterra, procurou pôr fim ao isolamento português, segundo uma opção atlântica, que parecia ser a mais consistente, não podemos esquecer a ambiguidade do casamento de D. Afonso VI com a princesa francesa D. Maria Francisca Isabel de Sabóia. “Para Portugal, - refere ainda Borges de Macedo - as boas relações com as potências marítimas apresentavam-se como indispensáveis, uma vez que era por mar que se fazia o comércio externo; por aí saíam o vinho, o sal, as frutas, chegavam e partiam as produções coloniais, como sejam o açúcar, o tabaco e os couros”. A participação portuguesa na guerra da sucessão espanhola (1701-1714) foi bem ilustrativa dos cuidados estratégicos. Havia que acautelar o que restava da influência marítima, sobretudo na América do Sul e no Estado da Índia. E se houve mudança de campo por parte de D. Pedro II, primeiro ao lado de Luís XIV e da causa dos Bourbons, e, depois de uma aparente hesitação neutralista, na “Grande Aliança”, de Inglaterra, Holanda, Áustria e Estados alemães, a verdade é que a preocupação fundamental estava ligada à necessidade de preservar a relevância de Portugal como potência atlântica. O primeiro Tratado de Methuen (1703) celebrado com a Inglaterra inseriu-se nesta orientação e teve influência decisiva na evolução económica do século XVIII. No entanto, os lucros da comercialização pertenceriam aos grandes comerciantes franceses, ingleses e holandeses. O tratado de Utrecht (1712), no fim da guerra de sucessão, permitiu, contudo, reforçar a sua posição no Brasil – num momento em que se anunciava a riqueza e magnanimidade do ouro…
A ALIANÇA BRITÂNICA Enquanto a Grã-Bretanha se tornava paulatinamente a potência marítima hegemónica, Portugal vivia uma fase próspera, com meios de pagamento abundantes, graças ao ouro, e ao resultado das vendas do açúcar brasileiro, dos vinhos e das frutas, e gozava de prestígio internacional, designadamente junto da Santa Sé (com a atribuição do título de “Fidelíssimo” ao monarca português) reforçado pela participação na vitória sobre os turcos em Matapão (1717). Desde o século XVII, um conjunto de portugueses preocuparam-se com a necessidade de recuperar a posição no contexto internacional, não só evitando a subalternização relativamente a Espanha, mas também garantindo a defesa dos domínios ultramarinos e das frotas do Brasil. Estiveram neste caso diversas figuras relevantes, como: Manuel Severim de Faria, Duarte Ribeiro de Macedo, o Padre António Vieira, o 4º conde da Ericeira, Alexandre de Gusmão, José da Cunha Brochado, o Cardeal da Mota (D. João da Mota e Silva) ou António Ribeiro Sanches. É nestas águas que encontramos D. Luís da Cunha, autor do célebre Testamento Político. E quando encontramos referências aos estrangeirados, estamos perante uma corrente política que procurava assegurar ligação à chamada “Europa das Luzes”, que procurava seguir os países com maior desenvolvimento, pelo conhecimento científico. Está nesse caso o Dr. António Ribeiro Sanches, formado nas Universidades de Coimbra e Salamanca, de origem judaica, que D. Luís da Cunha conheceu num contacto que fez com a Universidade de Leide (Países Baixos), numa diligência para a aquisição de livros de Medicina e de Filosofia Moderna, destinados à Universidade de Coimbra (1730). No relatório que produziu, Sanches salientava, porém, que os lentes de Coimbra iriam ter certamente dificuldades em aceitar as novas ideias, por exemplo no tocante à Física de Newton ou à moderna medicina experimental, por demasiado dependentes do ensino escolástico. Ribeiro Sanches partiria pouco depois para S. Petersburgo (donde regressaria em 1747) a solicitação da czarina Catarina II. Continuou, porém, a reflexão sobre Portugal, o que, segundo o conselho dado a D. Luís da Cunha obrigaria a encontrar alguém com grande influência junto do Rei que pudesse contrariar as práticas censórias e inquisitoriais e mudar profundamente as mentalidades e os métodos vigentes. Sanches escreveu as “Cartas sobre a Educação da Mocidade” (1759), onde preconizou as urgentes medidas necessárias a ultrapassar os atrasos do país.
COMO ULTRAPASSAR ENTRAVES? Importa referir ainda Luís António Verney, autor do “Verdadeiro Método de Estudar” (1746), leitor dos pensadores britânicos, como John Locke, que faz uma crítica ao ensino rígido, devendo proceder-se a uma nova orientação, baseada na inovação e na experiência, devendo a instrução elementar ser ministrada a ambos os sexos e a todas as classes, cabendo ao Erário fomentar e custear as despesas da educação. Refira-se ainda o caso de Francisco Xavier de Oliveira (Cavaleiro de Oliveira), autor da mais severa crítica aos métodos inquisitoriais, que considerava serem a razão do atraso português. Menos preocupado com uma perspetiva pedagógica e reformista, assume essencialmente a atitude de denúncia. Por isso, será condenado pelo Santo Ofício, tendo-se convertido ao protestantismo, escreveu vasta obra crítica entre a qual as Reflexões de Félix Vieira Corvina dos Arcos… Já Filinto Elísio foi um admirador dos franceses, com o cuidado de evitar excessos galicistas. Clérigo de formação, foi mestre de latim de D. Leonor de Almeida, a marquesa de Alorna (Alcipe). No exílio, com o seu amigo Félix Avelar Brotero, aplaudirá a Revolução Francesa, regressando no ano seguinte a Portugal. Por fim, o Padre José Agostinho de Macedo, conhecido como Padre Lagosta, também foi influenciado pelos ventos afrancesados, mas tornou-se conhecido por ser indisciplinado, pelas diatribes antiliberais e pela linguagem radical. Pertenceu com Bocage à Nova Arcádia, com Cruz e Silva e Reis Quita, onde teve por nome Elmiro Tagídeo… Celebrizou-se pela negativa e como defensor do retrocesso. E D. Luís da Cunha? Há quem ponha dúvidas. Contudo, foi indiscutivelmente o verdadeiro símbolo de inteligência fulgurante, num tempo de radical mudança.
Abraão Zacuto (1450-1522), rabino, astrónomo, matemático e historiador, fez publicar em Leiria no início de 1496 o célebre “Almanaque Perpétuo”, que demonstra a qualidade excecional do homem de ciência – conselheiro de D. João II e de D. Manuel, num momento alto de cooperação de saberes de que as navegações portuguesas beneficiaram decisivamente. A ele se deve o aperfeiçoamento do Astrolábio e a opinião favorável que deu para a viagem à Índia. Mesmo assim foi uma das vítimas da expulsão do povo judeu, não lhe valendo a muita admiração que lhe votaram os reis de Portugal e o progresso científico que tornou possível. Zacuto é um exemplo do método do planeamento rigoroso que permitiu a definição das missões marítimas e os seus importantes resultados, longe de qualquer improviso ou cedência ao curto prazo.
Num ano com tantas incertezas vale a pena lembrarmos o exemplo do Almanaque, como repositório de informações e conhecimentos. Como disse o nosso Eça de Queiroz: “O tempo, essa impressão misteriosa a que chamamos tempo, é para o homem como uma planície sem forma, sem caminho, sem fim, sem luz, onde ele transita guiado pelo almanaque que segura na mão que o vai puxando e a cada passo murmurando: aqui está setembro!... além finda a semana” (…). Só com o almanaque sempre presente e sempre vigilante, pode existir regularidade na vida individual ou coletiva e sem ela… o que era seriedade seria apenas uma horda e o que era um cidadão seria apenas um trambolho”.
E lembramos o “Verdadeiro Almanaque Borda d’Água – reportório útil a toda a gente para este ano de 2022, contendo todos os dados astronómicos e religiosos e muitas indicações úteis de interesse geral”. O que hoje se publica pela Minerva vem de 1929 e está na edição 93, mas teve como antepassado o da Barateira, com a mesma utilidade. Recordo-me do cuidado que meu Avô Mateus punha na consulta desse instrumento fundamental. Havia muitas anotações e pode dizer-se que o conhecimento da vida útil dependia dessa íntima ligação. Neste ano atípico com tantas incertezas, lembrei-me de Voltaire, do seu “Cândido” e da necessidade de sabermos cultivar o nosso jardim, só possível com a ajuda do Almanaque… Folheando o “Borda d’Água”, ficamos a saber muitas coisas, entre as quais que em janeiro se preparam as culturas de Inverno, como a da batata, ou que a poda é aconselhável no Quarto Minguante, apesar de a não devermos fazer nas figueiras, laranjeiras e macieiras, nas quais os grandes cortes são agora prejudiciais. Mas se pensarmos em enxertos, estes estão na altura certa no Crescente, do mesmo modo que a semeadura da fava, ervilha, alface e rabanete.
Se os hortelões são os destinatários de tão ajuizadas orientações, os jardineiros são aconselhados a plantar begónias, ervilhas de cheiro, gipsofilas, girassóis, lírios, paciências, sécias, zínias, goivos e miosótis. As indicações são as mais diversas à medida que percorremos os dias. E não falta a sabedoria popular: “Tudo perde quem perde o bom momento”; “Falar sem pensar, é atirar sem apontar”; “Antes escorregar o pé que a língua” ou “A inveja consome o invejoso como a ferrugem o ferro”… E não falta o “Juízo do Ano”, que nos é proposto pelo “Borda d’Água” e pela sabedoria omnipresente da sua cartola. São reflexões atinadas, infelizmente mais esquecidas que as referências às culturas de época ou às podas, enxertias, cortes e sementeiras… E quais os melhores ensinamentos, normalmente recorrentes? A prevenção e o cuidado (que a pandemia aconselha), o aproveitamento do tempo, o não desperdício, o trabalho e a aprendizagem. E as longas séries matemáticas de Abraão Zacuto ensinam, no fundo, que não há resultados sem a audácia de ver longe.
Já no séc. V a.C., Heródoto comentava acerca da Europa, heroína mítica, nome de Oceânide ou Fenícia que Zeus, disfarçado de touro, raptara: "o mais curioso é que a Tiriana Europa era asiática de nascimento e nunca veio a esta terra a que os Gregos hoje chamam Europa". Geograficamente, aliás, a Europa é uma península da Ásia, um território multifacetado e caprichosamente desenhado, que se estende, a norte do Mediterrâneo, dos Urais ao Atlântico. Economicamente, albergou ou participou em várias economias-mundo, essas entidades a cavalo sobre diversos impérios, civilizações e culturas, mas consolidadas por uma auto-suficiência económica, que lhes é facultada pela hegemonia do comércio em que participam. O conceito surgiu com "La Méditerranée et le monde méditerranéen à l´époque de Phillipe II" de Fernand Braudel, em 1976. Quiçá já com vocação política, a noção de Europa aparece pela primeira vez num texto do monge britânico Bedo, o Venerável, por volta da vitória de Carlos Mardel sobre os sarracenos em Poitiers (em 732). E é essa travagem do avanço muçulmano que, na Europa Ocidental, confinando o Islão à Península Ibérica, dá um sentido político à Europa. Três décadas mais tarde, em 769, o espanhol Isidoro, o Jovem, narrando essa batalha, conta: "Saindo pela manhã de suas casas, os Europeus deparam com as tendas bem alinhadas dos Árabes". Será da consciência da cristandade europeia que nascerá uma Europa culturalmente identificável pelo seu enraizamento, apesar de todas as suas diversidades internas.
Mas politicamente, desde o "Pai da Europa", Carlos Magno, e, da tentação unificadora dos sacro-impérios que se lhe sucederam, ou da do poder temporal do Papa até aos nossos dias, a união europeia tem-se ficado pela utopia, causando tantas vezes, infelizmente, conflitos e guerras. A consciência da cristandade europeia e do seu território desenha-se, a partir da queda do Império Romano do Ocidente, nos quatro séculos seguintes. Já Estrabão observara que os Romanos "detêm quase toda a Europa, menos a parte que se situa além do Ister (Danúbio) e as margens do Oceano entre o Reno e o Tanaís (Don)". De facto, quase desconheciam a Escandinávia e as planícies bálticas, nunca conquistaram a Germânia, e só com Trajano, no princípio do séc. II, ocuparão a Dácia (Roménia), além Danúbio. Com as invasões bárbaras e a queda do Império do Ocidente, em 476, a cristandade vai acentuar a divisão entre oriental e ocidental, iniciada pela separação do Império Romano entre Bizâncio e Roma, em 395, até ao cisma de 1058. Mas, enquanto o Império e a cristandade orientais viriam a ser submetidos, com a tomada de Constantinopla em 1453 ao poder do Islão Otomano, ao cristianismo converter-se-ão os invasores e conquistadores do Império Romano do Ocidente, vindo assim a cristandade a ocupar, para além da que fora romana, a Europa toda, mais o norte de África. Este será islamizado, três séculos depois, pela expansão almóada e almorávida, que ocupará ainda a Península Ibérica, antes de ser definitivamente derrotada em 1452, em simultâneo com a queda de Constantinopla e o desaparecimento da entidade política da cristandade oriental. Pouco depois, a Reforma irá dividir a cristandade ocidental (excomunhão de Lutero e Dieta de Worms em 1521). Contudo, nem a fronteira religiosa - que vem separar a Europa do Norte, protestante, da do Sul, católica - nem as guerras da religião - que também alimentaram os conflitos decorrentes da expansão de novas potências ultramarinas (Inglaterra e Holanda) por mares e terras que o Tratado de Tordesilhas partilhara entre os reinos católicos da Ibéria - foram suficientes para anular a consciência da Europa como cristandade. Como apontamento curioso, refiro que, ainda no sec. XVII, em regiões teutónicas, se encontravam clérigos que, ao serviço do povo cristão, celebravam missa para os católicos e o ofício luterano para os protestantes da sua área. Aliás, já travado o avanço otomano em Lepanto (1571), a Europa conhecerá a afirmação progressiva de nacionalidades e a constituição de estados nacionais que, com alianças várias apagando distinções religiosas, andarão em guerra uns contra os outros durante mais de quatro séculos. E também se lançará, com força, no prosseguimento da expansão ultramarina, em que as rivalidades europeias se traduzem na luta pelo domínio de rotas e centros comerciais, e do abastecimento em especiarias, matérias-primas, artefactos e metais preciosos, e mão de obra, que, mais tarde, levará à instalação de colónias e á formação de impérios coloniais. Durante séculos, os europeus viverão com guerras intestinas, mas a descoberta e o encontro com povos, civilizações e culturas diferentes despertarão uma consciência europeia como modo próprio de estar no mundo. E o esforço missionário levará a outras paragens valores cristãos que, mesmo aculturando-se, conservarão o seu cariz europeu ou "ocidental". Podemos dizer que a consciência de ser Europa se forma como a de ser cristandade, desde a comunhão na fé de bárbaros díspares e romanos à identidade definida pela oposição à ameaça islâmica, e até à perceção de si pela descoberta do denominador comum face às outras humanidades que a expansão ultramarina foi revelando.... Erasmo, padre católico e conselheiro de Carlos V para a aproximação entre católicos e protestantes, escrevia no seu "Querela Pacis": "A distância entre países separa os corpos, não as almas.
Antigamente, o Reno separava os Franceses da Alemanha, mas o Reno não pode separar o cristão do cristão. Os Pirinéus formam fronteira entre Gauleses e Espanhóis, mas esses mesmos montes não podem dividir a comunidade cristã. O mar separa os Ingleses dos Franceses, mas não pode romper os laços da sociedade de Cristo... Cristo é o conciliador de todas as coisas..." E é interessante dar uma olhadela ao que se escreveu na "idade das luzes": para Voltaire: "A Europa é uma espécie de grande república partilhada por vários Estados, uns monárquicos, outros mistos, estes aristocráticos, aqueles populares, mas todos correspondendo uns com os outros, todos tendo um mesmo fundo de religião, ainda que divididos por várias seitas"... Diderot e d’Alembert (no artigo "Europa" da Enciclopédia): "Pouco importa que a Europa seja a mais pequena das quatro partes do mundo pela extensão do seu território, posto que é a mais considerável de todas pelo seu comércio, pela sua navegação, pela fertilidade, as luzes e a indústria dos seu povos, pelo conhecimento das artes, das ciências, dos ofícios, e por aquilo que é mais importante, pelo Cristianismo, cuja moral benfazeja conduz à felicidade da sociedade"... Rousseau: "Todas as potências da Europa formam um sistema que as une pela mesma religião. Não se pode negar que é fundamentalmente ao Cristianismo que a Europa deve o tipo de sociedade que se perpetuou entre os seus membros"... O Iluminismo vai, aliás, buscar à tradição cristã europeia os valores que racionalizará e universalizará.
Os mesmos que a expansão europeia difundiu pelo mundo e hoje constituem o "corpus" ético e jurídico da sociedade internacional: a dignidade da pessoa humana, o valor universal do homem, filho de Deus, como medida de todas as coisas, a consciência individual, cuja liberdade apela à responsabilidade, a razão, da qual como diz S. Tomás de Aquino até a fé é serva, o trabalho como cooperação na criação do mundo, a distinção entre o religioso e o político (contrariamente às tradições judaica e islâmica), sem prejuízo do empenhamento cívico de cada um: dai a César o que é de César... Nem sempre a Igreja visível, "oficial", se conduziu de acordo com estes princípios. Mas eles permaneceram, apesar dos desvios e aberrações eclesiais ou clericais, como fundamentos da vocação divina e universal do Cristianismo e como estrela polar da consciência europeia.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 07.09.12 neste blogue.
Quando lemos o romance de Álvaro Guerra, Razões de Coração (1991) (D. Quixote, 2008) passado na vila de Mafra no ano de 1808, em plena guerra peninsular, durante a tentativa de invasão napoleónica, compreendemos como a História e a memória não podem misturar-se e não devem confundir-se.
AS RAÍZES DA REVOLUÇÃO LIBERAL
Ao celebrarmos os duzentos anos da Revolução de 1820, recordamos o momento fundador da moderna democracia portuguesa. Se é certo que o início desse processo foi pleno de vicissitudes, a verdade é que há uma História que permanece atual, no sentido do aperfeiçoamento de uma cidadania inclusiva e responsável – baseada na soberania dos povos e nos direitos e liberdades fundamentais. As origens merecem uma especial reflexão. Trata-se de um tema bem atual. No enredo, Frei Pedro Taveira empenha-se na resistência, discreta e persistente, ao invasor, os filhos de Beatriz de Almeida, representando a sociedade toda e as suas contradições, dividiram-se entre a guerrilha contra o invasor, o que restava do exército português e o partido de Junot. Entretanto, Mariana e Philipe, ela da pequena nobreza, ele capitão dos dragões do exército de Napoleão, apaixonam-se e têm perspetivas algo diferentes mas complementares, ela ansiando por um Portugal moderno e europeu, ele farto da guerra e dos caminhos perdidos. Falamos, assim, da necessidade de compreender que o combate pela democracia e pela liberdade é uma exigência permanente comportando diversos caminhos. E se falo de um romance é porque ele contém todos os ingredientes que antecipam a Revolução liberal de 1820. Está presente um movimento popular heterogéneo e contraditório, servido por um comum desejo de independência e de soberania. A sociedade antiga resiste, os partidários das novas ideias sentem a contradição entre o carácter de invasores dos franceses e as ideias emancipadoras que a Revolução Francesa semeara.
A MEMÓRIA E A HISTÓRIA
Aqui se ilustra bem como a memória e a História têm de ser distinguidas, sendo genuinamente complementares. Se julgássemos os acontecimentos, à luz do que pensamos hoje e do que sabemos da História, chegaríamos a conclusões quase absurdas. Os diferentes protagonistas têm visões e atitudes diferentes, mas a História resulta da coexistência e da evolução de muitos caminhos, sempre plenos de dúvidas e contradições. De facto, no ambiente de 1808 encontramos o caldo de cultura que culminará em 1820, na revolução do Porto: há a recusa da dominação pelos invasores; há a aceitação transitória da ajuda dos britânicos, para manter a independência; há a tomada de consciência de que urge o primado da lei e que os ideais da Liberdade, Igualdade e Fraternidade da Revolução Francesa têm de ser preservados, apesar dos excessos. As atitudes complementam-se e a História, na sua complexidade, permitirá: a resistência, o desejo de liberdade, a conquista da soberania popular, a importância da separação de poderes, a ligação entre tradição e modernidade. Não por acaso o constitucionalismo ibérico andou a par – com referência essencial à Constituição de Cádis de 1812, “La Pepa”, tão presente na luta comum dos povos peninsulares. O fundo quase republicano de 1812, ou o de Portugal em 1820, deveu-se à ausência dos respetivos Reis. Os tempos tenderiam a ajustar as situações, mas a verdade é que a causa liberal fortaleceu-se pelo reconhecimento do direito dos povos a disporem do seu próprio destino, em nome do equilíbrio de poderes e da soberania popular de Montesquieu, aspetos presentes na pioneira Constituição da Córsega de 1755. A razão histórica nunca está só nem é absoluta. A memória para ser viva não pode ser fechada nem autossuficiente. Alexandre Herculano, que foi crítico da versão republicanizante do texto de 1822, inclinando-se mais para a legitimidade da Carta Constitucional de 1826, tornar-se-ia partidário entusiasta da Constituição de 1838 e do Ato Adicional à Carta de 1852, mercê do compromisso, da descentralização, da participação e da representação dos cidadãos. Afinal, a superioridade ética e política do constitucionalismo deve-se à sua plasticidade e sobretudo ao respeito pelas instituições e pela sua função mediadora, pondo as pessoas e os seus direitos e deveres, em primeiro lugar. A visão prospetiva dos acontecimentos, e não a História como deveria ter sido, obriga-nos a tirar lições do passado, segundo o patriotismo constitucional de que precisamos.
PEDRA DE TOQUE DE REGIME JUSTO
Para usar a expressão de Almeida Garrett, cidadão maduro: a Constituição deveria ser a pedra de toque de um regime justo, promover um governo representativo, e segurar a majestade do Povo, a liberdade da Nação, os direitos do Trono, a santidade da religião, e o império das leis. E a Carta Constitucional completada pelo Ato Adicional de 1852 (como Herculano defendeu) tornar-se-ia, assim, a mais duradoura das nossas Constituições, baseada num consenso cívico e político importante. A vida do constitucionalismo português tem-se feito e continuará a fazer-se, pois, gradualmente. Por isso, Garrett, no início deslumbrado por Rousseau, cartista crítico, aderiria a Montesquieu e a Chateaubriand. Alexandre Herculano, cartista de alma e coração tornar-se-ia paladino da Constituição de 1838, cuja matriz estava na Lei Fundamental de 1822, limada de algumas angulosidades. E não se esqueça como o então moderadíssimo Herculano foi obrigado em 1831 a partir para o exílio, perseguido pelo mais cego dos radicalismos absolutistas. Se a Constituição da República Portuguesa de 1976 resultou de um compromisso complexo mas essencial, que perdura, a verdade é que ele se inseriu na tradição começada em 24 de agosto de 1820, no caminho fecundo do Estado de Direito, da soberania popular, do primado da lei, da legitimidade democrática e dos direitos fundamentais…
O «Dicionário de História de Portugal» de Joel Serrão (Figueirinhas) constitui um precioso elemento de estudo sobre a historiografia portuguesa, numa perspetiva rigorosa e pedagógica, com grande qualidade científica e capacidade de abrir e alargar horizontes. É uma obra indispensável.
PEDAGOGO EXEMPLAR
Joel Serrão (1919-2008) foi um pedagogo exemplar, que soube ao longo da vida fazer dos ofícios de pensador e de historiador uma permanente ação de cidadania. O seu labor científico foi sempre feito a pensar nos seus alunos, nos seus leitores e na necessidade de fazer da reflexão uma exigência permanente. Quando hoje nos lembramos da importância do “Dicionário de História de Portugal”, percebemos a determinação e a generosidade de quem se empenhou em preencher uma lacuna na nossa perspetiva cultural. Mas só alguém com uma extraordinária capacidade de ver largo e com uma férrea capacidade de trabalho pôde realizar uma empresa muito difícil, em que a marca de grande qualidade fica bem patente, não só em cada entrada, mas no conjunto realizado. Vê-se como o coordenador foi obrigado, com grande mestria, a preencher todos os espaços previstos e necessários. Mas igualmente descobrimos, em algumas remissões, o drama sentido nos atrasos de alguns colaboradores. Quem coordena obras coletivas sabe bem a angústia que sente, quando um texto falta no momento em que deve entrar na tipografia. Ora, tratando-se de um Dicionário saído em fascículos, esse drama surgia agravado pelos inexoráveis compromissos da Editora. Só o conhecimento, o trabalho, a persistência, o cumprimento determinado do compromisso assumido de um professor e de um intelectual de exceção puderam superar as angústias e os contratempos. Conheci-o bem, mas não tive o gosto de ser seu aluno. Posso dizer, porém, que fui desde muito cedo seu ávido leitor. Foi através dele que li sistematicamente os “seareiros” e, antes de todos, António Sérgio, seguindo-se Jaime Cortesão e Raul Proença. Recordo especialmente a minha saudosa professora Maria Lucília Estanco Louro, que nos fazia ler os grandes mestres da História política como modo de aprender a realizar uma verdadeira Escola de Cidadãos – do mesmo que nos levava às conferências dos grandes mestres, desde o pensamento às artes, numa imersão total em banhos lustrais de sabedoria e sensibilidade. Eram momentos de puro deleite, através dos quais compreendíamos como o diálogo entre filósofos da Escola de Atenas, retratados por Rafael, começava na capacidade de saber perguntar… E pouco antes de nos deixar, Maria Lucília foi ter comigo à Casa Fernando Pessoa para dizer que não podia ficar para uma conferência. E nesse momento pudemos lembrar esse tempo em que Joel Serrão nos ensinava pelos seus escritas a ler melhor o mundo e o tempo e em que ouvíamos as canções de 1789, como sinal de liberdade.
A PAIXÃO DA HISTORIOGRAFIA
No tempo em que nos aproximámos, o ensaísta e historiador mergulhava no âmago da gloriosa geração de 1870, e naturalmente foi Antero que nos fez encontrar pessoalmente, compreendendo no que viria a ser O Primeiro Fradique Mendes (Livros Horizonte, 1985), como as figuras dessa idade de ouro se complementaram na diferença e se projetaram no século seguinte. “Pouco ou nada se compreenderá das origens do escritor Eça de Queiroz se não tivermos em vista a conjugação de duas perspetivas: a primeira, é que ele foi um homem da geração, cujos valores e objetivos fundamentais haviam sido esboçados pelos juvenis escritos de Antero; e a segunda, é que esse facto, além de comprovado, lhe não tolheu a singular originalidade da sua procura, a partir de um magma cultural mais ou menos comum”. E sem sombra de anacronismo, é o próprio Joel Serrão que irá encontrar ecos dessa riqueza criadora no Livro do Desassossego de Bernardo Soares – ou seja, é a modernidade que se encontra a si própria nas suas diversas facetas. E Carlos Fradique Mendes vai ser, no percurso da sua afirmação, o ponto de encontro de um singular heterónimo coletivo, envolvendo Antero, Batalha Reis e Eça. E este último dirá: “Antero, mesmo troçando e amaldiçoando, era um ateniense: e à sua ironia convinha, mais que à de nenhum outro ironista, o nobre epíteto homérico de alada. Os seus ditos abriam através da sua geração grandes sulcos luminosos e puros”. Havia, pois, uma indicação de sentido de marcha orientada para o futuro. Contudo, do que se tratou inicialmente com Fradique, no dizer de Batalha Reis, foi um tremendo simulacro: “o nosso plano era considerável e terrível: tratava-se de criar uma filosofia cujos ideais fossem diametralmente opostos aos ideais geralmente aceites, deduzindo, com implacável e impassível lógica, todas as consequências sistemáticas dos pontos de partida, por monstruosas que elas parecessem. Dessa filosofia saía naturalmente uma poesia, toda uma literatura especial, que o Antero de Quental, o Eça de Queiroz e eu, nos propúnhamos construir a frio, aplicando os processos revelados pelas análises da Crítica moderna, desmontando e armando a emoção e o sentimento, como se fossem máquinas materiais conhecidas e reproduzíveis”. E esse satanismo mais não seria do que a procura de um gesto original, capaz de prenunciar novos caminhos críticos. Estaríamos perante o realismo em poesia, e a demarcação nítida do romantismo decaído.
FRADIQUE MENDES
E depois da revelação do poeta no seu espaço próprio, escrito a várias mãos, encontramos em 1870 Fradique Mendes, no capítulo XXX de O Mistério da Estrada de Sintra, da autoria partilhada de Eça e Ramalho Ortigão, saído em folhetins no “Diário de Notícias”: “sentado no sofá com um abandono asiático”, “verdadeiramente original e superior”, “um excêntrico, distinto”, de “caráter impecável”, “originalidade violenta, quase cruel”, “amigo de Baudelaire” – que “tocava admiravelmente violoncelo, era um notável jogador de wist, tinha viajado no Oriente, estivera na Meca e contava que fora corsário grego”… Dir-se-ia que a personagem vai ganhando vida, para além da poesia que tinha publicado. E assim Eça vai apoderar-se da figura. E o certo é que já não é o mero símbolo, algo marginal na obra de uma geração, que desejava deixar clara a sua identidade. Agora, já temos uma figura central, base de um verdadeiro romance epistolar – ao lado de Amaro, Basílio, Carlos da Maia, João da Ega, Jacinto, Zé Fernandes e Gonçalo Mendes da Maia. Em bom rigor, é uma personagem multifacetada, capaz de gerar fascinação e de se constituir em voz de um tempo singularíssimo. “A minha intimidade com Fradique Mendes começou em 1880, em Paris, pela Páscoa – justamente na semana em que ele regressara da África Austral. O meu conhecimento porém com esse homem admirável datava de Lisboa, do ano remoto de 1867. Foi no Verão desse ano, numa tarde, no Café Martinho, que encontrei num número já amarrotado da ‘Revolução de Setembro’, este nome de C. Fradique Mendes, em letras enormes, por baixo de versos que me maravilharam”… Os versos significavam uma definição nova, muito mais do que um estilo inolvidável. Este estava representado pela própria personagem, que se tornou símbolo de uma geração, de uma obra, de uma força crítica. Assim, Eça e toda a geração de 1870 superam o romantismo do elogio mútuo, mas atingem a sua plena consumação num naturalismo que não segue cânones de escola e se abre para o simbolismo, anunciando o modernismo do século XX, como necessidade a um tempo crítica e construtiva em relação à sociedade. Joel Serrão compreendeu-o plenamente na sua análise rigorosa e certeira de Fradique.
Guilherme d'Oliveira Martins
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«O Algarve Económico durante o Século XVI» de Joaquim Romero Magalhães (edição de Sul, Sol, Sal, Faro, 2018) é uma obra fundamental da moderna historiografia económica portuguesa, que nos permite compreender como o Algarve teve um papel fundamental na génese da expansão portuguesa.
VOZ CRÍTICA, ATENÇÃO DESPERTA Conheci-o como cidadão e como historiador, sempre voz crítica e atenção desperta – e deste modo nos tornámos amigos. Um dia, lançou-me o desafio – havia que encontrar e publicar as lições de Afonso Costa na Universidade de Coimbra, por ocasião dos cem anos da República. Aceitei a proposta, já que se tratava de matéria que não era estranha na minha vida universitária. Não sabia eu em que me iria meter. Mas compromisso era compromisso, e não descansei enquanto não encontrei a versão completa das lições. Fui mantendo Romero Magalhães ao corrente das minhas dificuldades. Afinal, ainda que as lições fossem citadas nas principais bibliografias, o certo é que a sebenta não constava de nenhuma das bibliotecas da rede pública. Ou seja, as lições foram citadas durante muitos anos sem que houvesse alguém a olhar sequer para elas. Finalmente, como explico na introdução ao livro que finalmente se tornou possível, graças à busca persistente de Judite Cavaleiro Paixão, às pistas dadas por Jorge Alarcão, um dia que nos encontrámos em Coimbra (eu deveria pesquisar nos manuscritos da Biblioteca Geral, já que se tratava de uma sebenta – mas esta estava truncada), e à milagrosa aparição na biblioteca pessoal de Luís Bigotte Chorão (sem que ele suspeitasse que o volume que tinha era único), chegámos a bom porto e a sugestão do meu amigo Joaquim Antero Romero Magalhães pôde ser cumprida. Assim a Imprensa Nacional publicou os Apontamentos das Preleções do Dr. Afonso Costa sobre Ciência Económica e Direito Económico Português, correspondentes ao ano letivo de 1896-97, inseridos na Biblioteca Republicana (2015).
UMA VIDA DE CIDADÃO ESTUDIOSO Ao longo da vida, fomo-nos encontrando, por boas razões. Conheci-o em andanças políticas – como deputado constituinte, como Secretário de Estado da Orientação Pedagógica – por motivos históricos, na Comissão dos Descobrimentos e por razões afetivas, pela admiração por seu pai, o Doutor Joaquim Magalhães, professor de minha mãe no Liceu de Faro, com quem tive o gosto de conversar longamente nas ruas da capital algarvia, e até pelas nossas afinidades eletivas relativamente a Antero de Quental. Importa não esquecer que o nome próprio de Joaquim Antero se deveu ao facto de ter nascido exatamente na data do centenário do nascimento do autor dos “Sonetos”, 18 de abril de 1942. Com o pai e o filho tive o grato prazer de recordar esta circunstância feliz de calendário. Nasceu em Loulé, estudou no Liceu de Faro, onde seu pai seria Reitor, e rumou para Coimbra, primeiro para o curso de Direito e logo no fim do primeiro ano inscreveu-se na Faculdade de Letras, em Histórico-Filosóficas. Durante a crise académica teve papel ativo, sendo Presidente da Associação Académica de Coimbra em 1964-65, bem como do TEUC – Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra. A sua tese de licenciatura foi sobre o Algarve Económico do século XVI, constituindo uma referência inovadora, hoje essencial para a compreensão da história económica portuguesa. Doutorou-se em 1984, sendo fundamental na afirmação da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Pode, aliás, dizer-se que Romero Magalhães dividiu o seu labor cívico e científico entre Coimbra e o Algarve. Foi desde cedo um grande defensor da criação da Universidade do Algarve, tendo tido nela uma colaboração científica e pedagógica da maior relevância. A sua biografia é muito rica, não sendo possível ser-se exaustivo. Foi professor convidado na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, na Universidade S. Paulo, e em Yale. Em 1993, colaborou no terceiro volume da História de Portugal de José Mattoso. Foi diretor da revista Oceanos, e em 2009 publicou a obra Vem aí a República! 1906-1910. Com Manuel Viegas Guerreiro deu à estampa duas obras essenciais sobre o Algarve no Século XVI - a Corografia do Reino do Algarve, escrita em 1577 por Frei João de S. José e História do Reino do Algarve, da autoria de Henrique Fernandes Sarrão. Em 1999, foi nomeado como comissário-geral da Comissão dos Descobrimentos até 2002, tendo feito parte da Comissão Consultiva das Comemorações do Centenário da República de 2009 a 2011.
A MELHOR HISTORIOGRAFIA A recente reedição de O Algarve Económico durante o Século XVI pela nova editora algarvia “Sul, Sol, Sal” é um acontecimento assinalável. Foi sobre isso que conversámos, a última vez que nos vimos, em Loulé, no Convento Espírito Santo, a assinalar os 25 anos da revista do Arquivo Municipal de Loulé – “Al’-Ulyá”. E falámos das “Atas da Vereação de Loulé dos séculos XIV-XV”, agora à disposição dos estudiosos graças ao seu labor científico. Se no estudo sobre o Algarve Económico deparamos com um grande historiador, sentimos também a influência de Magalhães Godinho. E a abrir a nova edição, podemos ler: “Era o verão de 1964. Em Albufeira passava férias Vitorino Magalhães Godinho, não há muito afastado de professor da Universidade Técnica de Lisboa por opositor ao regime (1962). Nem por isso deixava de ser o mais prestigiado historiador português. Tendo lido alguns dos seus trabalhos (…) entendi que valia a pena procura-lo para que orientasse a minha dissertação de licenciatura”. O jovem foi então procura-lo, o mestre acolheu-o com “lanheza e boa disposição”. E aqueles foram uns dias de praia inesquecíveis. O estudante tinha ideias ambiciosas, mas o experiente professor indicou como tema adequado o da Economia algarvia – até partindo da citada Corografia de 1577. Assim se desenvolveu o trabalho, com a orientação formal de Salvador Dias Arnaut, mas a condução de Magalhães Godinho. As vicissitudes da investigação arquivística foram diversas – desde a consulta (mais fácil) da documentação de Loulé, graças à confiança de Eduardo Delgado Pinto, então presidente da Câmara, às milhentas dificuldades na Torre do Tombo, apesar da preciosa ajuda de zelosos funcionários e de A. H. Oliveira Marques, que conhecia bem o Fundo Antigo. Mas a lição era recebida “em casa de Magalhães Godinho, onde o ouvia e apresentava as dificuldades que sentia e onde como resposta saía com braçadas de livros que tinha que ler porque mais devia e ainda havia muito para trabalhar”. Hoje, confessa, talvez tivesse havido excessiva influência de Braudel, mas a panóplia de autores considerados (não esqueçamos Albert Silbert), a orientação do mestre e as qualidades do autor permitem considerar que o resultado é importante, para a compreensão duma economia que correspondia, na prática, a uma península da Andaluzia, com polos em Lagos, Faro e Tavira, que a lógica atlântica afastará do Mediterrâneo. O trabalho vale por ser “escorado em documentos de arquivo, alguns nunca utilizados, como os livros de vereações da Câmara de Loulé ou os livros das Misericórdias de Lagos, Tavira e da Biblioteca Municipal de Faro”. É essa matéria-prima que concede originalidade à obra e que permite corrigir tantos lugares comuns que persistiam. Em suma, relido agora o livro mantém o maior interesse – a população, a paisagem, os cereais, o gado, as frutas, a pesca, as indústrias, o comércio e a sociedade permitem-nos compreender o ontem e o hoje. Orlando Ribeiro, Oliveira Marques, Aníbal de Almeida e Ruben Andresen Leitão fizeram justos elogios. E basta ler tudo para ficarmos cientes de que lidamos com a melhor historiografia.
Guilherme d'Oliveira Martins
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Alertas-me para um prolongado silêncio meu, como se as minhas cartas falassem e eu te faltasse com a minha conversa fiel. Esqueces que, neste voluntário retiro, além dos milhares de livros que vou arrumando ou dispondo - em benefício, espero, de quem os possa apreciar - cozinho os petiscos quotidianos... Primum manducare, deinde philosophare, diriam os antigos, e eu, pobrecito, nem à filosofia chego, só procuro tratar de mim... Também recolho, escolho e dou abrigo mais seguro a muitos documentos da vida passada da nossa família, e da minha própria, não tanto por gosto de colecionar memórias, como pela serenidade de uma comunhão intemporal. E é bem verdade que o intemporal talvez nos tire muito tempo...
Dou comigo, muitas vezes, a entrelaçar lembranças e descobertas várias, tantas delas insuspeitas de qualquer relação entre si...ou comigo! No fundo, talvez dê por mim a dizer, com o Alberto Caeiro, que a espantosa realidade das coisas / é a minha descoberta de todos os dias. Aliás, dei novamente com estes versos hoje mesmo, evocados por José Mattoso no seu prefácio, de 13 de abril de 1985, à Identificação de um País, que começa assim: Este livro nasce de uma insatisfação: a de não encontrar na historiografia portuguesa atual respostas para muitas interrogações que a moderna ciência histórica não pode deixar de colocar. Tentei dar as minhas e coordená-las num conjunto que constituísse uma visão global da História de Portugal durante os seus dois primeiros séculos. A minha curiosidade orientou-se especialmente para os homens concretos, a sua maneira de viver e de pensar [...] o que mais me atrai no passado medieval é a mentalidade: como é que os homens viam o mundo e se organizavam para tentarem dominar a realidade, nessa época tão diferente da nossa?
Tu também sabes, Princesa, como eu sempre pensossinto a constante mudança das coisas: a vida, o mundo, tudo é movimento, e quando olho para pessoas ou para povos, pela perspetiva do que chamamos História, melhor me apercebo de quão dinâmica, afinal, dialética mesmo, é a ideia ortegana de sermos e sermos a nossa circunstância. Assim, o conceito hegeliano de que die Weltgeschichte ist das Weltgericht deve ser só tomado no sentido de que os efeitos apurados dos factos produzidos são os únicos juízes destes, a História não podendo ser tribunal como se se pudesse julgar o passado por critérios presentes e retroativos... E sabemos quanto atos, factos e seus efeitos vão padecendo de mui diversas interpretações.
A História, como um dia disse João Ameal, é a nossa vida antes de nós, sim, mas tal não tem de tornar esta necessariamente gloriosa, nem vergonhosa: as lições da História não são gabanços nem pedidos de desculpa, podem, quando muito, e devem ser ensinamentos da escola da vida.
Qualquer povo tem uma história passada - a dos seus seniores - mas, essa mesma, não são os hodiernos que a fazem, é, tão simplesmente, um da sein que herdaram. É dele, de dantes, mas está aí, já feita. E dou aqui, mentalmente, o salto até uma resposta, há pouco lida, de Onésimo Almeida à revista LER, que lhe perguntava se, afinal, o carácter nacional não existe: Não, e deveríamos acabar com conceitos desse género. Não é possível, para qualquer povo, generalizar seja o que for. Nem nunca, em nenhuma época, toda a gente pensa e age da mesma forma, nem nunca, através dos tempos, uma nação se comporta da mesma maneira. Quer dizer que não se pode generalizar, nem diacrónica nem sincronicamente.
Ocorreu-me então algo que vou pensandossentindo acerca do modo como eu mesmo e muitos dos meus amigos fomos cultivados no ambiente de "uma certa História do Grande Portugal", algo que tanto me foi remoendo pelo convívio que tive, durante a minha longa estadia no Japão, com versões claramente míticas - para um estrangeiro que eu era - da História nipónica, sobretudo das origens do povo e da estirpe divina da linhagem imperial.
Não te esqueças de que até Wenceslau de Moraes escreveu um Dai Nippon (Grande Japão)... Como sabes, já amiúde falei sobre isso. Mas nunca me "psicanalisei" disciplinadamente no tocante ao meu entranhado sentimento de português enquanto filho de uma nação gloriosa, única, diferente de todas as outras. Pensossinto "Portugal", e vibro! Mas a leitura de obras hodiernas, de historiadores estrangeiros e portugueses, dos tais cuja curiosidade - repetindo o dito de José Mattoso acima citado - se orienta especialmente para os homens concretos, a sua maneira de viver e de pensar, ao ponto de os levar a procurar e consultar outras fontes - até agora esquecidas ou ignoradas, quer por razões políticas ou ideológicas, quer por tradicional desconhecimento de estranhas línguas e culturas - para acharem novas perspetivas e, acima de todas elas, uma visão mais global, muda-me o sentir da História, das nossas vidas antes de nós, com as suas circunstâncias. Não já só "nós", os Portugueses, como pioneiros e condutores, mas todo um vasto mundo, povoado por outros, com que sucessivos lusos foram interagindo.
Dias atrás, falava com alguns amigos sobre um livro que há já uns anos me encantou, ao ponto, aliás, de dele ter adquirido vários exemplares para oferecer - incluindo alguns na sua bela edição francesa - a conhecidos, amigos e, - vieillesse oblige - aos inescapáveis netos. Trata-se de A Aventura das Plantas, do Prof. Eng.º Mendes Ferrão, famoso catedrático do Instituto Superior de Agronomia de Lisboa, reconhecido internacionalmente. Tive o grande gosto de o conhecer em 2004/5, quando recorri à sua sapiência para melhor me informar sobre a globalização das plantas que surgiu com a aventura da descoberta de caminhos marítimos entre todos os continentes, tema que decidira abordar em exposições e sessões públicas a realizar no pavilhão de Portugal na Exposição Universal de Aichi (Japão), de que eu era Comissário Geral. Um dos meus convivas referiu então um artigo recente de Guilherme d´Oliveira Martins que diz: "As Surpresas da Flora no Tempo dos Descobrimentos" de Alfredo Margarido (Elo, 1994) constitui uma excelente oportunidade para compreendermos como os portugueses fizeram mudar os hábitos do mundo, alimentares e outros, mercê das viagens para outros continentes. Os "negritos" são meus - já perceberás porquê. Antes, todavia, deixa-me dizer-te que, com muito gosto lusíada contei a aventura das plantas aos meus netos, por ela ser um dos mais antigos e persistentes sinais do que afinal a globalização é ou pode ser na vida quotidiana e comezinha das pessoas. Mas quantas vezes lembramos, ou quantos de nós sabem, que não se cultivavam nem comiam batatas, feijões ou tomates na Europa, antes das grandes viagens?
História fascinante, tetra secular, elucidativa, divertida, consoladora de humanidade... Quem mudava, então, as plantações de legumes e frutos no mundo de todos, era essa mancha de gente de muitas paragens, muito ou pouco ou nada sábia, a mor das vezes sem mais pertença do que qualquer obediência consciente ou instintivamente devida, que andava embarcada. E não eram só portugueses...
Já a razão dos meus "negritos" tem a mesma raiz dos que mostro de seguida, por mim postos num anúncio da Fundação e Museu do Oriente: Os Portugueses na Ásia na Segunda Metade do Século XVII - curso administrado por João Paulo Oliveira e Costa - dá a conhecer o panorama político, económico e sociocultural da Ásia sob a influência portuguesa.
No mesmo ou em dia próximo daquele em que recebi esta notícia, lera eu no Público uma entrevista a Eduardo Lourenço, em que este, a dado passo, afirmava: Portugal não é uma ilha, mas vive como se fosse. Talvez por uma determinação de quase autodefesa. O que me admira mais não é a preocupação constante que temos em saber qual é a figura que fazemos no mundo enquanto portugueses. Todos os países terão à sua maneira essa preocupação. É o excesso dessa paixão. É preciso que não estejamos a viver um Ronaldo coletivo, um "nós somos o melhor do mundo"... E, mais adiante: Fomos os primeiros que largámos da Europa para ir para um sítio mítico, só conhecido através de novelas, como as de Marco Polo. De repente, deslocamo-nos do ocidente europeu e demos a volta a África - demos..., deram eles, os navegadores, porque eu não tenho um pé marítimo propriamente dito - para chegar à Índia. E foi como chegar a outro mundo, descobrir outro planeta, e durante dois séculos a nossa capital era mais fora de nós do que dentro de nós. E sempre nos habituámos a que essa imagem que adquirimos num lá fora hípermítico fosse tão universal que ninguém podia não saber que nós lá tínhamos chegado... Há aqui, nesta análise de um nonagenário, muita cândida lucidez. Que, quanto a mim, me levou sobretudo à intuição de que as mitomanias nos podem conduzir a algo que eu definiria como "narcisismo nacional"...
A Exposição “Tudo se Desmorona. Impactos Culturais da Grande Guerra em Portugal”, na Fundação Calouste Gulbenkian, comissariada por Ana Vasconcelos, Carlos Silveira e Pedro Aires de Oliveira, constitui uma oportunidade para lembrar (tal como acontece em Londres) um momento dramático e decisivo na História europeia do século XX.
UMA POLÉMICA INTENSA “A grande verdade, pelo que diz respeito ao progresso da Humanidade, é que existe um horrível tumor militarista corroendo a Europa e que vários operadores se preparam para o extirpar. Qual será o resultado da operação? Esperemos; mas julgamos bem que, por muitos estragos operados, a Humanidade sofrerá ainda longo tempo desse horrível mal”. É Jaime Cortesão quem o escreve, quando a Grande Guerra dava os seus primeiros passos – em 10 de agosto de 1914. A lucidez das palavras é profética. Ninguém esperava que tudo se precipitasse, mas havia razões profundas para a eclosão do desastre. Muitos julgavam que a guerra seria rápida, depois de pensar que era impossível, até porque o Kaiser Guilherme II era neto da Rainha Vitória e porque se pensava que os proletários mobilizados para a frente recusar-se-iam a combater quando os respetivos Estados-Maiores dessem ordem para atacar. Perante tais circunstâncias, é fácil de perceber como a sociedade portuguesa se dividiu quanto a saber se deveríamos ou não participar na guerra. É este o tema da Exposição “Tudo se Desmorona. Impactos Culturais da Grande Guerra em Portugal”, na Fundação Calouste Gulbenkian, comissariada por Ana Vasconcelos, Carlos Silveira e Pedro Aires de Oliveira. E a oportunidade do tema não oferece dúvidas. Lembra-se a guerra em nome da cultura e da paz. Houve polémica intensa entre nós. Jaime Cortesão e Raul Proença defenderam a intervenção. Pascoaes disse: “a hora é magnífica (…). Se formos para a guerra, mostraremos ao mundo que estamos prontos a morrer pela pátria (…) e Portugal criará novas raízes na História”. No entanto, António Sérgio e Aquilino Ribeiro tinham entendimento diverso, já que a prevalência dos fatores económicos dominantes tornaria os benefícios ilusórios. No “Portugal Futurista”, Álvaro de Campos assumiu uma violenta posição antiguerra, com laivos germanófilos. Em contraste, na mesma revista (proibida pela censura), Almada Negreiros considerava a guerra como “a grande experiência” regeneradora da pátria futura. Em pano de fundo, havia o panorama negro traçado por Raul Brandão em Húmus: “Na barafunda da Europa ardem aqui e ali cidades inteiras. Um brasido e gritos”. E os ecos nas Memórias – Vale de Josafat eram igualmente pesados: “Foi a morte que se aproximou de repente de nós todos, dos desgraçados e dos outros e nos pôs o problema da vida como uma faca apontada aos peitos. A morte passou para o primeiro plano”.
UM REGIME MUITO FRÁGIL A República era muito jovem e as instituições não estavam estabilizadas. A polémica era melindrosa. O eco popular das campanhas intervencionistas foi diminuto. De facto, não havia condições para uma resposta eficaz e, mais do que o teatro europeu, havia África – a lembrança do velho Ultimatum inglês de 1890 não se tinha apagado, havendo obrigações nacionais, que as ambições alemãs punham em xeque no norte de Moçambique e no sul de Angola. Esse apelo africano tornou-se natural, mas Basílio Teles dizia: “A desilusão, a fadiga, o sofrimento e o mal-estar de todo o mundo acabarão breve por fazer ouvir a sua voz retumbante e imperiosa; e os partidos da guerra, por lhe obedecer sem murmurar, pondo por uma vez ponto na pavorosa chacina”… A pergunta sacramental era: seria necessária a participação portuguesa na frente europeia para salvaguardar em futuras negociações de paz a manutenção dos nossos territórios? Não tinham tido Londres e Berlim, em 1898 e em 1912-13, a tentação de partilhar os despojos de um desmembramento do império africano português? Apesar de tudo, a situação no sul de Angola estava estabilizada, com a rendição das forças alemãs em 1915, ao contrário do que ocorria no norte de Moçambique. Foram, todavia, os ingleses que deram pretexto para a declaração de guerra alemã de março de 1916 ao instarem os portugueses a apresarem os navios alemães estacionados em portos portugueses. Mas os britânicos conheciam bem as nossas fragilidades. Se se falou do “milagre de Tancos”, pela preparação rápida do Corpo Expedicionário Português, o certo é que o desastre de La Lys (9.4.18) tornou-se um novo Alcácer-Quibir. Afonso Costa procurou fazer da guerra um fator de unificação interna que fortalecesse a República, mas a frente doméstica acabaria em colapso com o golpe e o assassinato de Sidónio Pais. O complexo contexto em que se desenvolveram os acontecimentos portugueses ligados à I Grande Guerra foi analisado no Colóquio Internacional intitulado significativamente “Ninguém Sabe que Coisa Quer – A Grande Guerra e a crise dos cânones culturais portugueses”, comissariado por António José Telo. De facto, os argumentos invocados na altura anulavam-se mutuamente, quanto às origens e às possíveis consequências do trágico conflito, que se tornaria origem de uma nova Guerra dos Trinta Anos, que só terminaria em 1945.
UMA ARRISCADA PARTICIPAÇÃO Para o bem e para o mal, Portugal seria profundamente marcado por essa arriscada participação. A crise da I República, as práticas e as representações que marcaram a sociedade e a cultura, os temas religioso e social, a génese da ditadura e do Estado Novo, a questão colonial, o papel de Portugal no mapa geoestratégico, a memória presente até 1974 e decisiva para a prevenção e para a consolidação do regime democrático atual – tudo esteve bem evidente numa reflexão atual e pertinente, em que o tema da Guerra (como acontece em Londres no Imperial War Museum – agora a comemorar cem anos) constitui ponto de partida para uma reflexão histórica e estratégica sobre um conceito aberto e partilhado de identidade cultural, que se revela atualíssimo, sobretudo quando falamos das legitimidades nacional, supranacional e cidadã – num mundo em que o local e o global se confrontam e articulam contraditoriamente. Na conferência proferida pelo Cardeal Patriarca, D. Manuel Clemente, foi lembrada a proposta feita pelo Papa Bento XV aos governo beligerantes em 1 de agosto de 1917, para acabar com a “inútil carnificina”: a) desarmamento simultâneo e recíproco; b) arbitragem internacional; c) liberdade dos mares: renúncia recíproca a indemnizações de guerra; e) reexame conciliador das reivindicações territoriais. Ninguém ouviu. Pelo contrário, as potências consideraram excessiva a referência à carnificina. Mas a sensibilidade “politicante” (diferente da atitude “zelante”) de Bento XV foi importante para Portugal e para a acalmação na questão religiosa (até com a beatificação de Nuno Álvares, em 1918), quer através do papel muito importante dos capelães militares na Guerra, quer pelas consequências duráveis da concordata informal, do modus vivendi de 1919, do apoio às missões católicas. Jaime Cortesão diria em julho de 1920: “Vem aí a vida nova. Quem não o sente? Mas quem a conhece de antemão?! Sabe-se apenas que as suas mais altas esperanças mergulham as raízes nesses milhões de sepulturas. Os túmulos dos soldados da grande guerra sãos caboucos donde o palácio do futuro vai erguer-se”.
Guilherme d'Oliveira Martins
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