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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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PASCAL: O HOMEM E DEUS. 2

  


Entre o nada e o Infinito, outras tensões, Jesus Cristo e a salvação.


Desproporção no homem.  “O que é um homem no infinito? O que é um homem na natureza? Um nada diante do infinito, um tudo diante do nada, um meio entre nada e tudo, infinitamente longe de compreender os extremos. Todas as coisas saíram do nada e são elevadas até ao infinito.” O homem não se compreende porque está no meio e não se contenta senão com o infinito. “Todos os homens procuram ser felizes. O que não conhece excepção por muito diferentes que sejam os meios para esse fim. A vontade não faz a mais pequena diligência a não ser tendo em vista esse objecto. É este o motivo de todas as acções  de todos os homens, até mesmo dos que se enforcam. E contudo, há tantos anos nunca, sem a fé, houve quem chegasse a esse ponto que todos visam continuamente. Todos se lamentam, príncipes, súbditos, nobres, plebeus, velhos, jovens, fortes, fracos, sábios, ignorantes, sãos, doentes, de todos os países, de todos os tempos, de todas as idades e de todas as condições. Uma provação tão longa, tão contínua e tão uniforme deveria convencer-nos da nossa impotência de chegarmos ao bem pelos nossos esforços... Porque este abismo infinito não pode ser preenchido senão por um objecto infinito e imutável, o que quer dizer senão por Deus. Só ele é o seu verdadeiro bem.”  “Miséria do homem sem Deus. Felicidade do homem com Deus.”


Esta desproporção repercute-se em imensas situações de tensão. Exemplos. “Meu, teu. ‘Este cão é meu’, diziam estas pobres crianças. ‘É aqui o meu lugar ao sol.’ Eis o começo e a imagem da usurpação de toda a terra.” Identidade não reificada, mas processual: “Esse eu dos vinte anos já não sou eu.” Sobre o casamento e o divórcio:  “Ele já não é o mesmo, ela já não é a mesma; se fossem os mesmos, ainda se amariam.” “A justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirânica.” “Conhecemos a verdade não só pela razão, mas também pelo coração.” “Sabedoria infinita e loucura da religião.” “Verdade aquém dos Pirenéus e erro além.” “Há duas espécies de espíritos: um, geométrico, e outro que se pode chamar de ‘finesse’.” “O homem não é anjo nem é besta, e por desgraça quem se quer fazer anjo faz-se besta.” “Os homens ocupam-se em seguir uma bola e uma lebre: eis o prazer por excelência dos reis.” “Vaidade, jogo, caça, visitas, comédias, falsa perpetuidade do nome.”  “Há poucos cristãos verdadeiros. Digo o mesmo na questão da fé. Há muitos que crêem, mas por superstição. Há muitos que não crêem, mas por libertinagem, há poucos entre uns e outros.“ “A piedade é diferente da superstição.” “Dois excessos: excluir a razão, não admitir senão a razão.” Nós e os outros: “Sustento que, se todos os homens soubessem o que dizem uns dos outros na sua ausência, não haveria quatro amigos no mundo.”


Finitude, contingência. “Tivesse o nariz de Cleópatra sido mais curto e teria mudado toda a face da terra.”  “Sinto que podia não ter existido, porque o eu consiste no meu pensamento; portanto, o eu que pensa não teria existido, se a minha mãe tivesse morrido antes de eu ter sido concebido; logo, não sou um ser necessário. Também não sou eterno nem infinito, mas vejo bem que há na natureza um ser necessário, eterno e infinito.”   


Em quem se encontra a salvação senão em Jesus Cristo? “O Evangelho não fala da virgindade da Virgem senão na altura do nascimento de Jesus Cristo. Tudo se reporta a Jesus Cristo.” “Ninguém é feliz como um verdadeiro cristão, nem sensato, nem virtuoso, nem amável.” “Nós não conhecemos Deus senão por Jesus Cristo, como não nos conhecemos a nós mesmos senão por Jesus Cristo; não conhecemos a vida e a morte senão por Jesus Cristo. Fora de Jesus Cristo, não sabemos o que é a nossa vida nem a nossa morte, nem Deus, nem nós mesmos. Assim, sem a Escritura que não tem por objecto senão Jesus Cristo, nada conhecemos, e não vemos senão obscuridade e confusão na natureza de Deus e na própria natureza.” “Jesus Cristo é  o centro para o qual tudo tende. Quem o conhece conhece a razão de todas as coisas.” “Os filósofos. Eles causam espanto no comum dos homens. Os cristãos, eles causam espanto nos filósofos.” A morte e a esperança: “Imaginemos muitos homens algemados, e todos condenados à morte; olhando uns para os outros com dor e sem esperança, estão à espera da sua vez“. “Não nos aflijamos como os pagãos que não têm esperança... Não consideremos a morte como pagãos, mas como cristãos, como ordena São Paulo, isto é, com esperança, pois é esse o privilégio dos cristãos.”


Consequências de ser cristão. “Amo todos os homens como meus irmãos. Amo a pobreza porque Jesus Cristo a amou. Amo os bens porque me dão meio de com eles assistir os miseráveis. Guardo fidelidade a toda a gente. Não devolvo o mal aos que mo fazem, mas desejo-lhes uma condição semelhante à minha. Procuro ser justo, verdadeiro, sincero e fiel a todos, e tenho uma ternura de coração por aqueles aos quais Deus me uniu mais estreitamente. E quer esteja só ou à vista dos homens, tenho todas as minhas acções à vista de Deus, que deve julgá-las e a quem todas consagrei.” “A verdade sem a caridade não é Deus.” “Jesus estará em agonia até ao fim do mundo. Não devemos dormir durante esse tempo.” “Duas leis bastam para regular toda a república cristã melhor do que todas as leis políticas: o amor de Deus e o do próximo.” 

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 16 de dezembro de 2023

PASCAL: O HOMEM E DEUS

  


Quando me perguntam sobre os livros da minha vida, respondo: a Bíblia, a obra de Immanuel Kant, a obra de Hans Küng e Pensamentos de Pascal.


Pascal nasceu em Junho de 1623, portanto, há 400 anos. Neste quarto centenário, fica aí uma modesta homenagem ao matemático, um dos maiores de sempre, mas também a um dos maiores cristãos europeus de sempre, lembrando alguns pensamentos de Pensamentos e outros textos e a sua busca de Deus. Ousei, servindo-me, com arranjos, da tradução de Denis da Luz e Miguel Serras Pereira, uma brevíssima antologia em três momentos.


1. Grandeza e miséria, divertimento, busca de Deus
“O pensamento faz a grandeza do homem.” .“É tão visível a grandeza do homem que até provém da sua miséria. Até as misérias provam a sua grandeza. São misérias de grande senhor, misérias de rei sem trono.” “A grandeza do homem é grande em conhecer-se ele como miserável.” ”O homem conhece que é miserável. É portanto miserável uma vez que o é, mas é deveras grande uma vez que o conhece.”


“O que é um homem no infinito?” “O silêncio eterno destes espaços infinitos apavora-me.” “O homem não é mais do que uma cana, a mais fraca da natureza, mas é uma cana pensante. Não é necessário que o universo inteiro se arme para o esmagar: um vapor, uma gota de água bastam para o matar. Mas ainda que o universo o esmagasse, o homem continuaria a ser mais nobre do que aquilo que o mata, pois sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre ele; o universo nada sabe. Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. Esforcemo-nos, pois, por pensar bem: eis o princípio da moral.”


“O homem é visivelmente feito para pensar. Nisto consiste toda a sua dignidade e o seu mérito. E o seu dever é pensar como se deve. Ora bem: a ordem do pensamento está em começar cada qual a pensar em si próprio, no seu autor e no seu fim. E em que se pensa afinal? Em tudo menos nisso.”


"Descobri que toda a infelicidade dos homens vem de uma só coisa: não saberem estar sossegados num quarto." O que procuram é "a agitação que nos desvia de pensar na nossa condição e nos diverte." "Por isso amam tanto os homens o ruído e o bulício; por isso o amor da solidão é coisa tão incompreensível. E, em suma, pode dizer-se que o maior motivo de felicidade da condição dos reis consiste em terem quem continuamente procure diverti-los e proporcionar-lhes prazeres." "É uma coisa deplorável vermos todos os homens deliberarem apenas sobre os meios e não sobre os fins." "A única coisa que nos consola das nossas misérias é o divertimento. E, no entanto, é essa a maior das nossas misérias. Porque isso é o que nos impede principalmente de pensarmos em nós e que nos faz perdermo-nos insensivelmente." "O último acto é sangrento por mais bela que em tudo o resto seja a comédia. Deita-se por fim terra sobre a cabeça e está acabado para sempre." "O comum dos homens põe o bem na fortuna e nos bens do exterior, ou pelo menos no divertimento." Ah! E a vaidade: "A vaidade está tão ancorada no coração do homem que um soldado, um servente de pedreiro, um cozinheiro, um carregador se gabam do que são e querem ter os seus admiradores. E os próprios filósofos o querem, e os que escrevem contra isso querem ter a glória de terem escrito bem, e aqueles que os lêem querem ter a glória de os terem lido, e eu que escrevo talvez tenha esse desejo, e talvez os que o lerem..."


“Não tendo podido curar a morte, a miséria, a ignorância, os homens tomaram, para serem felizes, o partido de não pensar nelas. Apesar destas misérias, o homem quer ser feliz e não quer senão ser feliz, e não pode não querer sê-lo. Mas como fará para obter isso? Para o conseguir teria de se tornar imortal, mas não o podendo ser, tomou o partido de deixar de pensar nisso.” 


Que caminho seguir? “Vendo a cegueira e a miséria do homem, olhando todo o universo mudo e o homem sem luz abandonado a si mesmo, e como que perdido neste recanto do universo sem saber quem aqui o pôs, o que veio cá fazer, aquilo em que se tornará ao morrer, incapaz de qualquer conhecimento, entro em pânico como um homem que tivessem transportado adormecido para uma ilha deserta e assustadora e que despertasse sem conhecer onde está e sem meio de sair dela. E depois disso admiro-me como não entramos em desespero por tão miserável estado. Vejo outras pessoas junto a mim de uma natureza semelhante. Pergunto-lhes se estão mais bem instruídas do que eu. Dizem-me que não, e, dito isto, esses miseráveis extraviados tendo olhado em seu redor e visto alguns objectos aprazíveis, a eles se entregaram e apegaram. Quanto a mim, não pude apegar-me a nada e, considerando quanta manifestação há de outra coisa mais do que aquilo que vejo, procurei descobrir se Deus não teria deixado algum sinal de si.” “Se o homem não é feito para Deus, porque não é feliz senão em Deus? Se o homem é feito para Deus, porque é tão contrário a Deus?”


“Há apenas três espécies de pessoas: umas que servem Deus tendo-o encontrado, outras que se dedicam a buscá-lo, não o tendo encontrado, outras que vivem sem o buscar nem o encontrar. As primeiras são sensatas e felizes, as últimas são loucas e infelizes, as do meio são infelizes e sensatas.” “A verdadeira natureza  do homem, o seu verdadeiro bem, a verdadeira virtude e a verdadeira religião são coisas cujo conhecimento é inseparável.”


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 9 de dezembro de 2023

A IMACULADA CONCEIÇÃO, O PECADO ORIGINAL E O SEXO

  


Volto ao tema, pois não sei se a maioria dos portugueses sabe a razão do feriado de 8 de Dezembro.  Os católicos saberão que se trata de uma festa ligada a Nossa Senhora e, se interrogados, talvez respondessem, na quase totalidade, que tem a ver com a virgindade de Maria. Para dizer o quê, celebrando o quê? Volto ao tema, porque pode ser ou tornar-se uma festa com muitos equívocos.       


Logo à partida, que pode significar Imaculada Conceição? De facto, não se refere directamente à virgindade, mas não lhe é completamente alheia. Do que se trata, na realidade, é da afirmação de que Maria, a Mãe de Jesus, foi concebida sem pecado. Mas, aqui, sem hermenêutica, isto é, sem interpretação, pode albergar-se uma série de confusões, profundamente ofensivas sobretudo para as mulheres, minando, desgraçadamente, a mensagem do Evangelho enquanto notícia boa e felicitante também para elas. 


Foi concretamente Santo Agostinho que elaborou a doutrina do pecado original, no sentido de um pecado cometido pelos primeiros pais (Adão e Eva) e transmitido a todos por herança, no acto sexual. Na festa da Imaculada Conceição o que se celebraria é que houve uma excepção: Maria foi concebida sem a mancha do pecado original.


Deste modo, porém, a sexualidade ficou manchada e as mulheres acabavam por sentir-se discriminadas, tanto mais quanto, associando também a concepção de Jesus a uma geração virginal, se lhes propunha o ideal impossível de virgem e mãe.


Subrepticiamente, esta doutrina causou imensos danos ao cristianismo, concretamente à mulher, à visão do sexo e do casamento. Assim, um cristão atento e reflexivo sabe que é necessário e urgente rever o dogma, mostrando o seu verdadeiro sentido. O próprio Papa João Paulo II deu a chave, ao escrever que "o Natal de Jesus revela o sentido profundo de todo o nascimento humano". Afinal, quando percebe que o ser humano não é redutível à biologia, o crente verá em toda a nova geração a presença do Espírito Santo, como aconteceu com Jesus. Por outro lado, nascer é vir à luz e, portanto, dar à luz não constitui uma mancha para a mãe, como supõe a doutrina da virgindade de Maria: virgem “antes, no e depois do parto”. Hoje, o pecado original é inconcebível, concretamente, por causa da evolução: o ser humano aparece no quadro da evolução, o que implica então a seguinte pergunta: quem foram os “primeiros pais”, colocados no mundo sem pecado e que depois pecaram, transmitindo esse pecado a todos, de tal modo que todos nascem em pecado de que só o baptismo os pode libertar?  Ainda conheci mães que viveram verdadeiros dramas interiores porque os seus  bebés tinham morrido sem o baptismo. Mas não. Todo o ser humano é concebido sem pecado; o que se passa é que, entrado no mundo, terá de lutar contra a maldade e o pecado já presentes, na esperança de um mundo melhor, mais digno e mais justo. Uma comparação: alguém que não fuma é de algum modo contaminado pelo fumo ao entrar numa sala com fumadores. E o baptismo? Não é para apagar o pecado original, que não há; os pais baptizam os seus filhos, porque, desejando o melhor para eles, querem que eles entrem na Igreja, comprometendo-se a educá-los na fé como discípulos de Jesus.


Podemos então compreender, como dizia o teólogo Karl Rahner, que, nestes domínios, por exemplo, da virgindade de Maria, não se trata de biologia. Referindo-se à narrativa do Evangelho de São Mateus sobre a geração de Jesus por obra do Espírito Santo, escreveu o exegeta Jean Radermakers: "Tomando imagens das mitologias pagãs, depuradas pela reflexão judaica, Mateus não se situa num plano de fisiologia, medicina, ginecologia ou sexologia, mas no de uma realidade mais profunda. Deveríamos reler a nossa experiência do dar à luz e da responsabilidade parental a partir do nascimento de Jesus. Toda a criatura recém-nascida vem de Deus. Assumir uma maternidade e paternidade humanas é deixar que Deus se revele na criatura nascida. A missão de todo o varão e toda a mulher que se unem é dar lugar a que apareça no mundo a realidade do Emanuel, Deus connosco."


Criticando os mal-entendidos da leitura do Evangelho a partir de pressupostos negativos em relação à sexualidade, o teólogo Juan Masiá põe na boca do anjo estas palavras dirigidas a São José: "Não deixes de levar Maria contigo. Não penses que pelo facto da intervenção do Espírito o teu papel como varão está a mais. Não tens que afastar-te para permitir que Deus faça algo grande com a tua família. Com a tua relação com Maria, não vais entrar em concorrência com o Espírito Santo. O teu papel é compatível com a acção de Deus e com que Jesus seja o Cristo."


Não há dúvida de que a Igreja na sua história foi contaminada por uma verdadeira obsessão pelo sexo, numa relação envenenada com a sexualidade e o prazer. É claro que, no universo sexual, que, como escreveu Miguel Oliveira da Silva, continua a ser “um imenso, incómodo e multifacetado mistério”, não vale tudo e que “a sociedade ocidental vive um profundo e grave vazio ético em matéria de sexualidade, que a múltipla oferta de uma sexualidade por vezes devassada sem pudor na praça pública e passível de excessos não consegue preencher — ao contrário.” E a Igreja? O cardeal alemão R. Marx chamou recentemente a atenção para a urgência da “mudança da moral sexual católica”, superando “uma imagem que tem estado marcada pela culpa  e pelo pecado”.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 2 de dezembro de 2023

A REVOLUÇÃO DA IGREJA E NA IGREJA?

  


1. Quando a Igreja aparece nos meios de comunicação social e mesmo no linguajar habitual, a referência é a Igreja enquanto instituição de poder e a hierarquia: Papa, cardeais, bispos, monsenhores, cónegos, padres... O que pensa a Igreja sobre isto ou aquilo? Esta pergunta está, em princípio, referida à hierarquia: o que pensam a Cúria Romana, os cardeais, os bispos, os padres?...


No entanto, a palavra Igreja/Igrejas apareceu no início do cristianismo para designar a comunidade/comunidades de cristãos e cristãs, baptizados, discípulos de Jesus, que acreditavam no Evangelho, notícia boa e felicitante: Deus é bom, Pai e Mãe, nunca, nem na morte, nos abandona, e todos os homens e mulheres são seus filhos, devendo, por isso, ser  tratados como irmãos.


Evidentemente, aumentando o número, teve de haver coordenadores das comunidades — bispos, presbíteros, diáconos. Mas eram servidores — Jesus tinha dito que Ele  veio “para servir, não para ser servido” — e não senhores. Foi numa história longa e complexa que foi surgindo a Igreja como instituição de poder, luxo  e esplendor, com a hierarquia de um lado e os fiéis do outro, aqueles com todo o poder, os que mandam, e estes como os que obedecem. Uma observação: Não se viu no fim de semana passado, televisões, por exemplo, a exultar com o esplendor de barretes cardinalícios e mitras? Jesus, porém, tinha apelado à simplicidade e disse: “sois todos irmãos”.


2. Poucos dias depois da sua eleição, estive na televisão e disse que Francisco era um cristão, um Papa cristão, e esta era a sua novidade e revolução. Parece-me que esta minha perspectiva se vem confirmando cada vez mais, e a sua confirmação decisiva é a convocação do Sínodo sobre a sinodalidade, cuja primeira sessão se iniciou no passado dia 4, indo até ao dia 29, seguindo-se a segunda sessão em 2024.


Francisco tem sublinhado que o único modo de ser da Igreja no século XXI só pode ser este: “o sinodal”. Que se entende por sinodal? Trata-se de uma palavra de origem grega e  significa caminhar juntos. De facto, se, pelo baptismo, somos todos membros da Igreja, então todos devem participar, pois o que é de todos por todos deve ser decidido e assumido.


O documento apresentado para o debate nesta sessão é ele próprio sinodal. De facto, é o resultado de todo um processo.  Começou em 2021 nas dioceses de todo o mundo e todos os católicos foram convocados a pronunciar-se, daí resultando documentos das conferências episcopais. Houve um segundo momento: foram convocadas as assembleias continentais, e surgiram os respectivos textos finais. E aí está o texto final, o “instrumento de trabalho” para o Sínodo, onde se sublinha “o apelo claro a superar uma visão que reserva só para os ministros ordenados (bispos, presbíteros, diáconos) toda a função activa na Igreja, reduzindo a participação dos baptizados a uma colaboração subordinada”, e se advoga “uma concepção ministerial da Igreja no seu conjunto”, com o reconhecimento da “dignidade baptismal” como eixo de toda a participação na Igreja.


Trata-se de um documento com muitas perguntas, algumas verdadeiramente revolucionárias, pois colocam a Igreja perante uma autêntica revolução, revolução que começa logo por, pela primeira vez, um Sínodo dos Bispos contar com padres, religiosos e religiosas e leigos, homens e mulheres, com direito a voz e voto. Exemplos:


“Que medidas concretas são necessárias para chegar às pessoas que se sentem excluídas da Igreja por causa da afectividade e sexualidade (por exemplo, divorciados recasados, pessoas LGBTQ+, etc.)?” Aqui, permito-me confessar que, assumindo toda a responsabilidade naquela situação concreta, não hesitei em dar, numa celebração adequada, uma bênção a um casal de lésbicas.


Face à tragédia brutal da pedofilia, vem ao debate a urgência de criar “uma cultura de prevenção de todo o tipo de abusos”, e a pergunta: Não deverá haver também na Igreja “separação de poderes, órgãos de supervisão independentes?”.


“A maior parte das Assembleias continentais e as sínteses de numerosas Conferências episcopais pedem que se considere de novo a questão do acesso das mulheres ao diaconado. É possível colocar a questão e de que modo?”. Aqui, pergunto eu como foi possível ignorar a pergunta pela ordenação presbiteral e episcopal das mulheres. Um escândalo.


No contexto dos ministérios ordenados, é inevitável a pergunta pelo celibato opcional e pela ordenação de homens casados. Mais: “É possível que, sobretudo em lugares onde o número de ministros ordenados é muito reduzido, os leigos possam assumir o papel de responsáveis pela comunidade? Que implicações tem isto na compreensão do ministério ordenado?” E “como deve evoluir o papel do Bispo de Roma e o exercício do primado numa Igreja sinodal?” Aí está uma questão essencial, quando é necessário aprofundar a sinodalidade com as outras Igrejas cristãs, num compromisso ecuménico renovado.


No contexto de um mundo globalizado e da urgência do combate por um mundo justo e em paz e de todas as questões levantadas pelas novas tecnologias, como não convocar para “gestos de reconciliação e de paz com outras religiões”, no aprofundamento do diálogo inter-religioso?


3. Quando há quem clama: “Heresia!”, só se pode esperar que Francisco se mantenha em funções até 2025 para estabelecer o “documento final” do Sínodo que não permita voltar atrás.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 7 de outubro de 2023

TARDE TE AMEI, Ó BELEZA TÃO ANTIGA E SEMPRE NOVA


Naquela tarde, foi o esplendor do pôr-do-sol! O horizonte em chamas, o Sol que baloiça no horizonte ao mesmo tempo que brinca e se banha no mar e se despede... E se nunca mais voltasse?!... Mas, na manhã seguinte, cá estava outra vez, resplandecente, e novo, novo como na manhã primeira do mundo. Tudo está reconciliado, tudo é perfeito, não há cisão de sujeito e objecto. E é tal o êxtase que até podíamos morrer. Porque aí não há morte. Tudo é apenas um instante. Mas trata-se daquele instante em que a eternidade tange o tempo, e, aí, nesse instante, o que há é a pré-vivência da vida eterna, plena.


Também há os rostos. E o que há de mais "instante" do que um rosto? Nele, o que vem é o Infinito a visitar-nos. Como alguém escreveu: “Cada um, único, é um mistério. Em síntese, o mistério de Deus.”


 Depois, há a arte. Que vai do canto à poesia e à escultura, da dança à pintura e à música.


O poeta abre as palavras, descobre a alma das palavras, põe-nas a cantar, e com o seu canto recria o mundo.


Pela dança e o seu ritmo, o corpo ergue-se acima do peso, é como se fugisse à lei da gravidade, e isso é já a antecipação do que São Paulo chamou paradoxalmente o "corpo espiritual".


Na contemplação da "Virgem Branca", em Toledo, com aquele Menino a sorrir para o enlevo da Mãe, fica-se a saber que a pedra bruta é mais do que ela e quer ser mais: divina!


Com o par de "as botas velhas com atacadores", de Van Gogh, em Amesterdão, percorremos os caminhos todos da vida e do mundo, o seu cansaço, e sobretudo a sua esperança. Lá, lá no termo do caminho, deve morar um reino e a perfeição.


O que se não pode dizer nem analisar diz-se na música. A música diz o indizível. Ela é súplica pela beleza e já a sua presença e oferta.


Na beleza e pela beleza, transcendemo-nos, e somos para lá do zoológico. A comida, a bebida, o sexo dão satisfação: preenchem necessidades. Mas o belo não é necessário, é um luxo, é uma graça: para que é que serve? Como disse Kant, o prazer que vem do belo é o único realmente desinteressado e livre: estamos interessados nele desinteressadamente. E, embora o belo deva agradar universalmente, não sabemos dar a razão precisa por que algo é belo.


O belo também não se confunde exactamente com o bom. Mas deve haver uma relação entre o belo e o bom, dita até na etimologia de belo e bonito: bonus, bonullus, e os gregos associavam o belo e o justo harmonioso. O belo abre a porta do que habitualmente não se vê nem se ouve. Mas, quando se viu o invisível e se ouviu o inaudível e a sua beleza, tudo vem a uma nova luz e se transfigura. A partir daí e dessa reconciliação, somos atirados para a transformação do mundo. É então que às nossas "acções boas" o Evangelho chama-as, no original grego, "acções belas". Desse modo, este mundo torna-se outro, sem ser o outro mundo. Por isso, perante o belo, exclamamos desde a raiz de nós: Como é bom estar aqui! É assim que devia ser! Sempre!


Até quando a arte nos confronta com o monstruoso e dilacerante, ainda é por causa da aspiração à harmonia. Porque "a beleza é uma promessa de felicidade", na expressão de Stendhal, comprometemo-nos "até ao fim com o mal, o falso e o feio da realidade ainda não reconciliada em que vivemos", como diz o filósofo Fernando Savater. “Na denúncia do que falta vê-se contra a luz a possibilidade futura daquilo que poderia ser a plenitude".


No belo, tornamo-nos vizinhos imediatos do próprio Transcendente. Como escreveu George Steiner, "a poesia, a arte e a música são os meios portadores desta vizinhança". Nomeadamente a música é inseparável do sentimento religioso: "Ela foi durante muito tempo, continua a ser hoje, a teologia não escrita dos que não têm ou recusam qualquer crença formal".


O escultor José Rodrigues fazia o favor de ser meu amigo, a ponto de me chamar “meu irmão” e que enquanto ele fosse vivo seria ele a fazer as capas dos meus livros, o que para mim e os leitores foi uma bênção. Falámos muitas vezes e perguntava-me: “Anselmo, quando morrermos, para onde vamos?” E também me dizia, com imensa força: “Se Deus fosse mesmo meu amigo, punha-me tinta a sair dos dedos para eu poder pintar directamente.” Quando ele morreu, passei pelo crematório, para uma despedida. À saída, estava um jornalista que sabia da nossa amizade e eu falei-lhe disto e, perante a pergunta: “Quando morrermos para onde vamos?”, ele próprio perguntou-me: “Que acha? José Rodrigues para onde foi?” E eu respondi-lhe, sem hesitar: “Foi para a Beleza, que é outro nome de Deus. Para onde havia de ir?”


Não foi assim que Platão se referiu ao Divino? Ele é o Bem, a Beleza. Sempre me impressionou que mesmo pessoas simples perceberam esta relação íntima entre o bem e o belo: muitas vezes ouvi mães a dizerem ao filho, que fez uma asneira, algo de mal: “Filho, não faças isso, é feio”. Os Evangelhos, repito, que foram escritos em grego, quando se referem ao mandamento de Jesus: “Fazei boas obras”, escrevem: “Kalá érga: obras belas”.


Tudo a apontar para a Beleza, outro nome de Deus. Lá está Santo Agostinho; em As Confissões; relatando a sua conversão, voltando a Deus, escreveu numa das orações mais belas de sempre: “Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e sempre nova… Tarde te amei.”


Dostoievski também nos ensinou: “A beleza salvará o mundo”. Ela realiza, como explicou o teólogo Leonardo Boff, a sua origem do sânscrito: Bet-El-Za, que quer dizer: “o lugar onde Deus brilha.”


N.B. Fica para a semana um balanço da JMJ.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 5 de agosto de 2023

NOTAS SOBRE A IGREJA CATÓLICA EM PORTUGAL

    


A poucos dias do início da Jornada Mundial da Juventude, deixo aí, também a partir de perguntas de jornalistas, inclusivamente estrangeiros, algumas notas dispersas sobre a Igreja em Portugal.


Genericamente, diria que o seu estado geral é um pouco estagnado, falta dinamismo. Entre os pontos mais positivos, parece-me que é de justiça sublinhar, disso ninguém duvidará, o papel social que a Igreja presta aos mais vulneráveis, nomeadamente através das IPSS (instituições particulares de solidariedade social), um papel insubstituível, mas também através de outras instituições como o Banco Alimentar, as conferências vicentinas de São Vicente de Paulo… A Igreja desempenha também um papel importante, decisivo, na salvaguarda de valores essenciais, como a família, a dignidade humana, a solidariedade…


Aspectos negativos. Pouco dinamismo pastoral, um clero envelhecido… Sublinho que a Universidade Católica Portuguesa com a sua Faculdade de Teologia deveria desempenhar um papel mais activo e dinamizador na evangelização e quanto a questões de ética, nomeadamente de bioética…


Quero sublinhar que a Igreja Católica é ainda uma realidade pública reconhecida mesmo pelos media.


Neste contexto, é importante apresentar dados estatísticos. Segundo o Censos de 2021, os católicos constituem a grande maioria da população: 80,2% declara-se católica (em 2011, eram 88%); 14% diz não seguir nenhum credo religioso.  Um outro estudo, de 2022, sobre “Jovens, fé e futuro” revela que 56% dos jovens entre os 14 e 30 anos se afirmam católicos e 34% dizem rezar regularmente e participar em celebrações. Mariano Delgado, Director do Instituto para o estudo das religiões e o diálogo inter-religioso na Universidade de Friburgo/Suíça, faz notar que “quase nenhum outro país europeu conta com estatísticas tão favoráveis para a Igreja católica”. Note-se, por exemplo, que, segundo uma sondagem recente, mais de um terço da população italiana, 37%, se declara “não crente”.


Claro que a prática religiosa tende a cair devido à secularização e também ao modo das celebrações. Precisamos, também neste nível, de uma reforma profunda. As celebrações têm de ser mais vivas, pois correm o risco de serem um ritual seco. As homilias são, de modo geral, um desastre. Neste contexto, julgo que bispos e padres deveriam aceitar o desafio de passar para o outro lado, isto é, disfarçados, assistir entre os fiéis de modo a sentir o que levam dessas celebrações, tomando consciência de certo vazio.


Entre os maiores desafios está certamente uma secularização crescente, no sentido de a religião já não ser tão determinante como era para a autocompreeensão e realização das pessoas nas diferentes esferas da vida. Assim, cada vez mais há menos casamentos pela Igreja e aumenta o número de divórcios… O Estado legalizou o aborto, acaba de legalizar a eutanásia activa…


Mas tenho a convicção de que a Igreja ainda encontra um lugar no mundo moderno, um lugar central, pois é portadora da mensagem decisiva do Evangelho, a melhor notícia que a Humanidade ouviu ao longo da sua História. Como diz a própria palavra Evangelho, que vem do grego: notícia boa e felicitante. Jesus entregou à Humanidade o Evangelho, essa notícia boa e felicitante: Deus é bom, é Pai e Mãe, ama todos os seus filhos e filhas e o seu maior interesse é a alegria, a felicidade, a plena realização de todos. Portanto, a Igreja transporta consigo não só o mandamento da parte de Deus da justiça e da paz, mas também a mensagem do sentido último da existência: não caminhamos para o nada, mas para a plenitude da vida em Deus.


Assim, a transformação da Igreja só pode realizar-se verdadeiramente, se cada um, a começar pelos bispos, padres, cardeais, perguntar a si próprio: acredito verdadeiramente nesta mensagem?, ela é boa para mim?, para mim? De facto, só se a considerar existencialmente boa e felicitante para mim, poderei ir convictamente entregá-la aos outros também.


Como é natural, a confiança na Igreja viu-se abalada por causa dos abusos sexuais. Como diz um estudo acabado de ser publicado, 68% dos portugueses pensa que a imagem da Igreja  piorou no último ano precisamente ao ter de lidar com os resultados da investigação sobre os abusos sexuais.  Ao mesmo tempo, o estudo mostra que 72% achou bem ou mesmo muito bem que a Conferência Episcopal Portuguesa tenha criado a Comissão Independente para um estudo independente dos abusos da Igreja desde 1950, mas 42% pensa que a mesma Conferência Episcopal respondeu mal ou muito mal aos resultados que a Comissão apurou, enquanto 33% pensa que a sua actuação  foi “nem boa nem má”.


Numa outra sondagem sobre a confiança nas instituições, em relação à Igreja Católica 42% dizem tender a confiar e 53% tender a desconfiar.


É importante fazer notar que faz parte do programa da visita do Papa Francisco, para presidir à Jornada Mundial da Juventude, um encontro com um grupo de abusados.


Significativamente, desta mesma sondagem resulta que 79% crê que a Jornada Mundial da Juventude, com a presença do Papa Francisco, terá um impacto mais positivo do que negativo.   Pessoalmente, também penso isso e que, com a presença de mais de um milhão de jovens vindos de todos os Continentes e quase todos os países, de diferentes cores, línguas, culturas e credos, ela poderia constituir uma espécie de micro-ensaio de como um mundo em diálogo, em justiça e em paz é possível.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 29 de julho de 2023

FRANCISCO E OS JOVENS. 2

  


Continuo com os apelos e pedidos do Papa Francisco aos jovens. A partir de uma síntese de Gilles Donada publicada no jornal La Croix. Poderá ajudar na preparação para a Jornada Mundial da Juventude.


6. “Fazei escolhas audaciosas”.
Francisco quer que os jovens sonhem grande. E em que consiste o essencial desse sonho?  É um sonho que passa pela realização se si. “Levanta-te e torna-te o que és”. “Levanta-te” também significa “sonha”, “arrisca”, compromete-te com mudar o mundo”. “Obrigado, jovens, por cultivar o sonho da fraternidade, ter cuidado com as feridas da criação, lutar pela dignidade dos mais fracos e difundir o espírito de solidariedade e partilha.”


Em ordem à sua concretização, os sonhos passam por “decisões concretas  e grandes escolhas”. “Não tenhais medo de escutar o Espírito, que vos sugere escolhas audaciosas, não  titubieis, quando a consciência vos pedir para seguir o Mestre.”


7. “Falai sempre com Jesus”
.
“Ide ao encontro de Jesus, estai com Ele na oração, confiai toda a vossa existência ao seu amor misericordioso e à vossa fé, e a vossa fé será um testemunho luminoso de generosidade e de alegria por segui-lO.” “Falai sempre com Jesus, tanto no bem como no mal, quando fizerdes uma coisa boa ou uma coisa má. Não tenhais medo dEle.”


8. “... e evangelizai de joelhos”.
“A evangelização faz-se de joelhos”, por outras palavras, com a oração. “Sede sempre homens e mulheres de oração. Sem uma relação constante com Deus, a missão torna-se uma profissão”, insiste concretamente diante de seminaristas. É preciso fazer como Jesus, que, “na véspera de cada acontecimento importante se recolhia numa oração intensa e prolongada. Cultivemos a dimensão contemplativa, também no meio do turbilhão dos compromissos mais urgentes e pesados. E quanto mais a missão  vos chamar a ir às periferias existenciais mais o vosso coração deve estar unido ao de Jesus, cheio de misericórdia e de amor.”


Diz o Evangelho que Maria, para ir ajudar a prima Santa Isabel, “se levantou e partiu apressadamente” — este é o lema escolhido por Francisco para  a Jornada Mundial da Juventude em Lisboa. O Papa vê nesta atitude uma boa fonte de inspiração para a juventude. “O mundo de hoje tem necessidade de jovens que vão com pressa, que não se cansam de ir apressadamente, de jovens que têm esta vocação de perceber que a vida lhes oferece uma missão.” “Temos necessidade de jovens em marcha. O mundo só pode mudar, se os jovens estiverem em marcha.”


Mas como dirigir-se a uma pessoa afastada da Igreja? “A última coisa a fazer é dizer-lhe alguma coisa, fazer comentários.” A atitude tem de ser outra. “Começa por fazer e essa pessoa verá o que tu fazes e far-te-á perguntas, e, quando fizer perguntas, então responderás.”  “Evangelizar é dar este testemunho: eu vivo assim, porque acredito em Jesus Cristo; desperto em ti a curiosidade da pergunta: “mas porque é que fazes estas coisas?” E a resposta do cristão deve ser esta: “Porque acredito em Jesus Cristo e anuncio Jesus Cristo não pela Palavra — claro também é necessário anunciar pela Palavra —, mas sobretudo através da minha vida.”


9. “Sede embaixadores da paz”
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Para Francisco, uma dos combates prioritários é o da paz. “Sabei-lo bem, vivemos momentos terrivelmente difíceis. A Humanidade está em grande perigo. Estamos em grave perigo. Sede, pois, embaixadores da paz, para que o nosso mundo redescubra a beleza do amor, do viver juntos, da fraternidade, da solidariedade.”


O combate pela paz implica “um compromisso concreto, a partir da fé, para a construção de uma sociedade nova: viver no meio do mundo e da sociedade, para fazer crescer a paz, a justiça, os direitos humanos, a misericórdia, e estender assim o reino de Deus no mundo.”


Colocar “Deus no centro” da vida, acolhê-lo com fé, opera uma “revolução copernicana”. “A fé incita ao amor de Deus, que nos dá segurança, força, esperança. Quando Deus está presente, no nosso coração permanecem a paz, a doçura, a ternura, a coragem, a serenidade e a alegria, que são os frutos do Espírito Santo”, transformando “o nosso modo de pensar e agir, que se tornam o modo de pensar e agir de Jesus, de Deus.” Exorta os jovens: “Caros amigos, a fé é revolucionária, e eu peço-vos a cada um de vós, a cada uma de vós, hoje: estás preparado, estás preparada, para entrar nesta onda revolucionária da fé? Só entrando nela é que a vida de jovem terá um sentido e assim será fecunda.”


10. “Reencontrai as vossas raízes: escutai a sabedoria dos idosos”.
É constante em Francisco o apelo  à ligação viva entre as diferentes gerações, atacada pela “cultura da rejeição” e a “cultura da produtividade”. “A juventude é muito bela, mas a eterna juventude é uma alucinação muito perigosa. Ser velho é tão importante — e belo — como ser jovem. Não esqueçamos isto. A aliança entre as gerações, que restitui ao humano todas as idades da vida, é o nosso dom perdido e que devemos retomar.”


Quer que os jovens se reaproximem dos seus idosos, para irem ao encontro da sabedoria. “Deixa-te iluminar pelos conselhos e o testemunho dos idosos. Dialogar com as raízes, com as pessoas de idade, com os que nos precederam, e vós a caminhar para diante... É crescendo sob o olhar benevolente e atento dos mais velhos que construímos uma personalidade sólida para as lutas quotidianas e mais: eles transmitem-nos a fé e as suas convicções religiosas.”


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 22 de julho de 2023

FRANCISCO E OS JOVENS. 1

  


No passado dia 2, no jornal “La Croix”, Gilles Donada sintetizou, em dez pontos e a partir de citações de discursos, mensagens e apelos feitos  por ele, o pensamento e atitude do Papa Francisco em relação aos jovens. Permito-me pedir emprestado, e com a devida vénia, o essencial dessa bela síntese, que, julgo, poderá ajudar imenso na preparação para a Jornada Mundial da Juventude.


1. “Vós, jovens, criai confusão, fazei barulho”.
É a tradução da frequente  exortação de Francisco aos jovens: “hacer lío”, expressão tipicamente argentina. Com ela, quer pedir que não adormeçam, que remem  “contra a corrente”, erguendo-se contra a injustiça. “Fazei barulho”, mas “um barulho construtivo”, “um barulho de amor”. “Quero que vos façais ouvir nas dioceses, quero que a Igreja vá para a rua, quero que nos defendamos de tudo o que é mundanidade, imobilismo, conforto, do que é clericalismo, de tudo o que nos fecha em nós próprios”.


Confia aos jovens a tarefa de serem “revolucionários”, “discípulos missionários, mensageiros da Boa Nova de Jesus, sobretudo para os  contemporâneos e os amigos.” “Não tenhais medo de  levantar questões que ponham as pessoas a reflectir”. “Quereria pedir-vos que griteis, não com a voz, mas com a vossa vida, com o coração, para assim serdes sinais de esperança para o desencorajado, uma mão estendida a quem está doente, um sorriso acolhedor para o estrageiro, um apoio atento para quem está só.”


2. “Não confundais a felicidade com um divã”
.
Francisco não quer ver uma parte da juventude anestesiada na passividade e no consumismo. Ele agita-a: Onde se instalaram  “estes jovens adormecidos, atordoados,  embrutecidos?” Denuncia a atitude dos que se instalam num divã sem se importar com nada e dos que ficam num balcão a ver de longe a vida a passar, reformados antes do tempo... “Na vida, há uma paralisia ainda mais perigosa e muitas vezes difícil de identificar e que nos custa muito reconhecer. Gosto de lhe chamar a paralisia que nasce quando se confunde a felicidade com um divã”. “Um divã que nos ajuda a sentirmo-nos confortáveis, tranquilos, bem seguros. Um divã que nos garante horas de tranquilidade para passar  para o mundo dos videojogos e horas e horas diante do computador. Um divã contra toda a espécie de dor e de medo, sem preocupações. Cuidado: quando escolhemos o conforto,  confundindo felicidade e consumismo,  o preço que pagamos é elevadíssimo: perdemos a liberdade”.


3. “Deixai a vossa pegada neste mundo”
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Não viemos ao mundo para “vegetar”  como “legumes”, insiste, mas para deixar uma “pegada”. “Podeis tornar o mundo melhor, deixar uma pegada que marque a história, a vossa história e a de muitas outras pessoas. A Igreja e a sociedade têm necessidade de vós. Que a vossa visão das coisas, a vossa coragem, os vossos sonhos e ideais derrubem os muros do imobilismo e abram caminhos que nos conduzem a um mundo melhor, mais justo, menos cruel e mais humano!”


Essencial para poder deixar a sua pegada neste mundo é cada um, cada uma acolher primeiro a pegada de Jesus. “Que Cristo transforme o vosso optimismo natural em esperança cristã, a vossa energia em virtude moral, a vossa boa vontade em amor autêntico, desinteressado. Eis o caminho que sois chamados a percorrer. Este é o caminho para vencer tudo o que, nas vossas vidas e na vossa cultura, ameaça a esperança, a virtude e o amor. Deste modo, a vossa juventude será um dom para Jesus e para o mundo.”


4. “Não deixeis que vos roubem a vossa alegria e a vossa juventude”
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Francisco está consciente do perigo de instrumentalização da juventude pelo mundo de hoje. “A cultura actual apresenta um modelo de pessoa muito associado à imagem do jovem. Sente-se belo quem tem um ar jovem, que faz tratamentos para fazer desaparecer os traços do tempo. Os corpos jovens são constantemente utilizados na publicidade, para vender. O modelo de beleza é um modelo jovem, mas atenção!, porque isso não é elogioso para os jovens. Isso significa apenas que os adultos querem roubar a juventude para eles, isso não significa que respeitem, amem e cuidem dos jovens.”


Por isso, suplica: “Por favor, mantende viva a vossa alegria, ela é o sinal de um coração jovem, de um coração que encontrou o Senhor. E se mantiverdes viva esta alegria de estar com Jesus, ninguém vo-la poderá tirar, ninguém. Mantende esta alegria, conscientes de ser amados pelo Senhor. Com este amor, ireis poder mudar esta sociedade.“


Pede que não se deixem enganar. “Vós, caros jovens, vós não sois o futuro. Diz-se habitualmente: ‘Vós sois o futuro’. Não; vós sois o presente. Vós não sois o futuro de Deus: vós sois a hora de Deus. Ele convoca-vos, chama-vos nas vossas comunidades, chama-vos nas vossas cidades para ir à procura dos vossos avós, dos vossos anciãos, apela para que vos levanteis e tomeis a palavra com eles e realizeis o sonho que Ele sonhou para vós.”


5. “Ousai sonhar grande!”
É outro refrão de Francisco, dirigindo-se aos jovens: “Não tenhais medo do futuro. Ousai sonhar grande! É para estes sonhos grandes que vos convido hoje. Por favor, não vos acantoneis  na ‘pequenez’, não voeis ao rés-do-chão, voai alto e sonhai em grande!” “Nós, nós todos, ficamo-vos gratos quando sonhais. Sim, enquanto Igreja, também temos necessidade de sonhar, temos necessidade do entusiasmo, do ardor dos jovens para ser testemunhas de Deus que é sempre jovem.”


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 15 de julho de 2023

A FÉ EM DEUS E O MAL

  


"Ou Deus quer tirar o mal do mundo, mas não pode; ou pode, mas não o quer tirar; ou não pode nem quer; ou pode e quer. Se quer e não pode, é impotente; se pode e não quer, não nos ama; se não quer nem pode, não é o Deus bom e, além disso, é impotente; se pode e quer - e isto é o mais seguro -, então donde vem o mal real e porque é que não o elimina?"


Este é o famoso dilema de Epicuro: ou Deus pôde evitar o mal, mas não quis, e então não é bom; ou quis, mas não pôde, e então não é omnipotente.


Quando se considera o dilema, é preciso ser consequente. De facto, não é legítimo invocar o mistério de modo cego. O mistério é, pela sua própria natureza, supraracional ou transracionl, mas não pode ser contra a razão. A primeira luz que temos é a da razão e, concretamente depois da modernidade, quando a razão alcançou a sua maioridade autónoma, não se lhe pode ser infiel. Isto significa, no caso pendente, que, se Deus pudesse criar o mundo sem mal e o não tivesse feito, não poderíamos acreditar nele, já que seria um Deus que não merece o nosso crédito nem a nossa confiança. Qual é o pai ou a mãe que, se pudesse evitar o mal do filho, o não faria? Que diríamos de alguém que, podendo aliviar as dores de outra pessoa, o não fizesse? Não consideraríamos essa pessoa sádica? Deus não pode ser menos bom do que os seres humanos.


Assim, ou há alguma falha no dilema de Epicuro ou só resta mesmo a alternativa do ateísmo.  O que falha é o pressuposto de que é possível um mundo perfeito. Mas precisamente um mundo finito perfeito é o que não é possível, pois é contraditório. Já Leibniz viu claramente que é a limitação do mundo que torna inevitável a existência do mal. Isto não significa que o mundo seja mau em si mesmo, mas que, dada a sua finitude, inevitavelemente está afectado pela negatividade, seguindo-se daí os males  concretos, físicos e morais. Como escreve o filósofo da religião Andrés Torres Queiruga — e a filosofia e a teologia terá sempre essa dívida para com ele —, um mundo finito "não pode existir sem que no seu funcionamento e realização apareça também o mal". Portanto, isto também não significa que Deus seja impotente ou mau. O mesmo filósofo dá um exemplo: a mãe, matemática famosa, não pode ensinar ao seu menino de quatro anos trigonometria ou a teoria da relatividade. Teoricamente, ela sabe e pode ensinar e ama o filho, mas este, dada a sua tenra idade, não é ainda capaz de receber as lições. Deus é omnipotente e infinitamente bom, mas, quando se fala em omnipotência, ela não pode ser entendida de modo arbitrário, infantil e abstracto: por exemplo, Deus não pode cometer suicídio nem fazer com que dois mais dois não sejam quatro nem criar um mundo finito perfeito... Não pode criar pessoas livres - já pensámos suficientemente no milagre da liberdade? – e, ao mesmo tempo, por causa da finitude, evitar o seu mau uso.  Já São Paulo se queixava: “Ai de mim, que sou um homem desgraçado, pois faço o mal que não quero e deixo de fazer o bem que que quero”.


Surge então a objecção de fundo. Como pode Deus dar-nos a salvação plena que esperamos depois da morte, se continuaremos finitos e precisamente a finitude é que torna inevitável a existência do mal? A resposta desdobra-se. Em primeiro lugar, é preciso compreender que este mundo é finito, mas perfectível. O mundo e as pessoas nele não apareceram fixos, acabados, já feitos. Pense-se, por exemplo, no que seria cada um de nós aparecido no mundo já adulto. Alguém é capaz de pensá-lo? Portanto, tanto o mundo como as pessoas estamos em processo de nos fazermos e realizarmos. O tempo pertence constitutivamente à estrutura do ser finito, de tal modo que se deve mesmo dizer que o tempo é o modo como o ser finito se realiza. Depois, o crente é aquele que espera —  e não é verdade que, no que se refere às respostas às questões últimas, todos (crentes religiosos, ateus ou agnósticos) se colocam num plano de fé? —, após o tempo do crescimento e da maturação na história, a salvação plena por dom gratuito do Deus que lhe vem ao encontro. Então, já para lá dos limites da História, "não se pode afirmar que seja contraditório que, ao intensificar-se a presença criadora fora dos limites do espaço e do tempo, a criatura participe, de algum modo, com tal força na infinitude divina, que resulte livre do mal", conclui Andrés Torres Queiruga.


De qualquer forma, só temos indícios que nos permitem esperar com razões. Immanuel Kant viu bem quando preveniu que estamos apetrechados para conhecer dentro do espaço e do tempo. A morte é o abalo total precisamente porque nos arranca do espaço e do tempo, deixando-nos, por isso, em total silêncio.  Quando se trata de representações para lá do espaço e do tempo cósmicos, ficamos sem palavras.


O mal é o aguilhão contra a fé; assim:  por um lado, a existência do mal põe a fé em sobressalto, mas, por outro, sem a fé em Deus, não há resposta para o abismo do mal. No processo de nos fazermos, é sensato e razoável acreditar e esperar em Deus que dará realização plena à aspiração de plenitude, constitutiva do ser humano.


Entretanto, é essencial, vital, evitar o mal evitável, pelo qual somos directa ou indirectamente responsáveis.  E já nem me refiro aos horrores incríveis da guerra, como a gente vê agora na Ucrânia,  mas a coisas simples:  cumprir o nosso dever, impedindo males e contribuindo para a alegria de outros; por vezes, uma simples palavra basta.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 17 de junho de 2023

AS DEZ CHAGAS DA IGREJA

  


O padre italiano Antonio Rosmini foi um notável filósofo e teólogo do século XIX, que, perante as transformações que então se operavam, escreveu, por amor à Igreja, em 1832, um livro famoso com o título Delle cinque plaghe della Santa Chiesa (Sobre as cinco chagas da Santa Igreja).


Desgraçadamente, a obra foi condenada e colocada no Index Librorum Prohibitorum (Catálogo dos livros proibidos). Mas, lentamente, a sua memória foi reabilitada e até foi beatificado em 2007 por Bento XVI. Em síntese, quais eram essas chagas? “O distanciamento entre o clero e o povo (na vida e na liturgia — não esquecer que as celebrações litúrgicas eram em latim); a fraca formação do clero, tanto no plano cultural como espiritual; a desunião entre os bispos; a intromissão da política na nomeação dos bispos; a riqueza acumulada pela Igreja”.


Na esteira de Rosmini, o padre espanhol Luis Pose Regueiro, historiador da Igreja,  acaba de publicar em Religión Digital, “as dez chagas da Igreja”. Baseado no essencial do seu texto, deixo aí uma reflexão sobre essas chagas.


1. O tradicionalismo e o individualismo.
Vivemos em tempos de confusão, incerteza, perplexidade, e, neste quadro, há a tentação de “refugiar-se anacronicamente na segurança do antes” — sempre se fez assim — ou então “isolar-se” no que cada um considera o correcto e mais seguro. Ora, o que se impõe é ir ao Evangelho e procurar “um caminho o mais possível comum”, seguindo o velho princípio: “nas coisas necessárias, unidade; nas duvidosas, liberdade; em tudo, caridade.”


2. O clericalismo
. O poder dos padres e dos bispos, do clero, é tantas vezes “excessivo e distanciador”. Contra uma Igreja piramidal,  Francisco não se tem cansado de chamar a atenção para essa “peste” do clericalismo e do carreirismo, que impede uma Igreja verdadeiramente sinodal, que a todos mobilize.


3. As riquezas e bens acumulado
s. “Por vezes ainda se vêem comportamentos economicistas por parte de pastores que sustentam uma espécie de ‘mercado’ de sacramentos.” E eu pergunto: não é um escândalo os cardeais na Cúria, com tudo pago — felizmente, o Papa Francisco acaba de decretar que cardeais e bispos da Cúria devem pagar uma renda pelos apartamentos no Vaticano—, terem um salário entre 4 e 5 mil euros mensais? Também penso que “precisamos de procurar maneiras dignas de austeridade, desprendimento e caridade.”


4. O etnocentrismo
. A Igreja continua demasiado “romanocêntrica”. A mensagem do Evangelho precisa de encarnar nas várias culturas e actualizar a linguagem. Pergunto muitas vezes: o que teria acontecido na nossa compreensão da mensagem cristã, se o cristianismo, no princípio, em vez de ter passado da cultura hebraica para a cultura helénica, tivesse passado para a China ou para a Índia?


5. O machismo
. Jesus, para escândalo de muitos, teve discípulos e discípulas. São Paulo entendeu que “Não há judeu nem grego, escravo nem livre, não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo.” Portanto, também na Igreja não pode haver discriminação das mulheres. O que pode impedi-las de presidir à Eucaristia?


6. O celibato obrigatório
. O celibato como opção livre “é um chamamento digno e admirável, como o de unir-se para formar uma família: um e outro requerem amor, sacrifício e dedicação (não sei qual é mais exigente...). “ Onde está que Jesus exigiu o celibato? Francisco acaba de mostrar abertura à  sua revisão.


7. A visão reducionista da sexualidade
. “A doutrina ‘oficial’ pelo menos já defende que o sexo não é só para a procriação e admite a paternidade/maternidade responsável, mas não admite os métodos anticonceptivos artificiais nem o sexo pré-matrimonial; julgo que, no primeiro caso, se trata de uma incoerência (se se admite a atitude, porque não admitir uma ajuda artificial?) e, no segundo, de uma ingenuidade (não só porque não é cumprível, mas porque desconhece a importância do sexo na comunicação e vida de um casal).”


8. A homofobia
. Já algo se avançou “em relação à visão humilhante da homossexualidade — que não é uma doença nem um capricho —, mas continua a não se aceitar que seja um modo digno de pessoas que se amam em consciência; e creio que isso é o verdadeiramente importante e o que Deus nos pede: que as pessoas amem como sentem em consciência.” Pergunto: o que impede, neste caso, que se lhes dê uma bênção?


9. Os abusos sexuais e o seu encobrimento. Uma infâmia, como aqui tenho escrito desde há muito tempo, os abusos e o seu encobrimento sistémico. Impõe-se cuidar das vítimas, que têm de ocupar o centro, fazer reparação, também financeira, sabendo que é um pecado hediondo, mas também um crime. E fica a necessidade de repensar a formação dos padres, também no domínio afectivo-sexual. E, com a idade com que são ordenados, têm consciência dos compromissos que assumem? E sabem o quê da vida real? Como garantir “tolerância zero”?


10. O ritualismo vazio e a espiritualidade débil
. As celebrações comunitárias devem ser alimento para a vida cristã, também para a prática na vida quotidiana. Mas o que se constata é que de facto se fica num “cumprimento rotineiro e pouco enriquecedor”. E quando se pensa nas homilias...


Concluindo: Se houver a convicção funda da importância da Igreja, cuja missão é levar e entregar, por palavras e obras, a mensagem de Jesus à humanidade de cada tempo, para a vida das pessoas e das sociedades, estas questões não poderão deixar de ser debatidas com “liberdade e audácia”.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 18 de março de 2023