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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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O PAPA FRANCISCO EM TEMPO NATALÍCIO

O PAPA FRANCISCO EM TEMPO NATALÍCIO.jpg

 

Apesar dos seus 85 anos, Francisco continua atento aos problemas da Humanidade e incansável na sua missão. Mostrou-o de modo exemplar neste tempo natalício. Ficam aí apontamentos, extractos de mensagens, chamadas de atenção...

 

1. Lembrou: "O nascimento de Jesus é um acontecimento universal que afecta todos homens." "Para chegar a Belém é preciso pôr-se a caminho, correr riscos, perguntar e até enganar-se." "Hoje, quereria levar a Belém os pobres e também aqueles que julgam não ter Deus, para que possam compreender que só n'Ele se realizam os nossos desejos e se chega a ser profundamente humano". "Os Magos representam também os ricos e os poderosos, mas só aqueles que não são escravos da posse, que não estão "possuídos" pelas coisas que julgam possuir."

 

2. Migrantes e refugiados. "A família de Nazaré experimentou na primeira pessoa a precariedade, o medo e a dor de ter de abandonar a sua terra natal.

"São José, tu que experimentaste o sofrimento dos que têm de fugir para salvar a vida dos seus entes mais queridos, protege todos os que fogem por causa da guerra, do ódio, da fome. A História está cheia de personalidades que, vivendo à mercê dos seus medos, procuram vencê-los exercendo o poder de modo despótico e realizando actos de violência desumanos."

 

3. Dia Mundial da Paz. "Se nos convertermos em artesãos da fraternidade, poderemos tecer os fios de um mundo lacerado por guerras e violências." "Não serve de nada ir-se abaixo e queixar-se, precisamos de arregaçar as mangas para construir a paz". Aqui, é essencial recordar que no Natal "Deus não veio com o poder de quem quer ser temido, mas com a fragilidade de quem pede para ser amado."

 

4. Natal é tempo de família. Assim, escreveu uma carta aos casais de todo o mundo. Alguns extractos: "Que estar juntos não seja uma penitência, mas um refúgio no meio das tempestades." "As famílias têm o desafio de estabelecer pontes entre as gerações para a transmissão dos valores que conformam a humanidade. É necessária uma nova criatividade para, frente aos desafios actuais, configurar os valores que nos constituem como povo nas nossas sociedades e na Igreja, Povo de Deus." "É importante que, juntos, mantenhais o olhar fixo em Jesus. Só assim encontrareis a paz, superareis os conflitos e encontrareis soluções para muitos dos vossos problemas. Estes não vão desaparecer, mas podereis vê-los a partir de outra perspectiva." "Que o cansaço não ganhe, que a força do amor vos anime para olhar mais para o outro - o cônjuge, os filhos - do que para o próprio cansaço." "Muitos viveram inclusivamente a ruptura do casamento que vinha sofrendo uma crise que não se soube ou não se pôde superar. Também a estas pessoas quero exprimir a minha proximidade e o meu afecto," "A ruptura de uma relação conjugal gera muito sofrimento devido ao afundamento de tantas expectativas; a falta de entendimento provoca discussões e feridas não fáceis de reparar. Também não é possível poupar os filhos ao sofrimento de ver que os pais já não estão juntos. Mesmo assim, não deixeis de procurar ajuda para que os conflitos possam de algum modo ser superados e não causem ainda mais dor a vós e aos filhos." "Se antes da pandemia era difícil para os noivos projectar um futuro, quando era complicado encontrar um trabalho estável, agora a situação de incerteza laboral aumenta ainda mais." "A família não pode prescindir dos avós. Eles são a memória viva da humanidade, e esta memória pode ajudar a construir um mundo mais humano, mais acolhedor."

No Dia da Sagrada Família, voltou ao tema. Para denunciar "a violência física e moral que quebra a harmonia e mata a família". Para pedir: "Passemos do 'eu' ao 'tu'. E, por favor, rezai todos os dias um pouco juntos, para pedir a Deus o dom da paz. E comprometamo-nos todos - pais, filhos, Igreja, sociedade civil - a apoiar, defender e proteger a família." "É perigoso quando, em vez de nos preocuparmos com os outros, nos centramos nas nossas próprias necessidades; quando, em vez de falar, nos isolamos com os nossos telefones móveis; quando nos acusamos uns aos outros, repetindo sempre as mesmas frases, querendo cada um ter razão e no fim há um silêncio frio." "Talvez não tenhamos nascido numa família excepcional e sem problemas, mas é a nossa história, são as nossas raízes: se as cortarmos, a vida seca." "Jesus é também filho de uma história familiar, inserido na rede de afectos familiares, nascendo e crescendo no abraço e com a preocupação dos seus." E "até na Sagrada Família nem tudo corre bem: há problemas inesperados, angústia, sofrimento." Contra o inverno demográfico: "Alguns perderam a vontade de ter filhos ou só querem um. Pensem nisto: é uma tragédia. É um problema demográfico: façamos todo o possível para vencer este inverno demográfico, que vai contra a nossa pátria e o nosso futuro."

Neste contexto, condenou com vigor a violência contra as mulheres: "Basta. Ferir uma mulher é ultrajar a Deus."

 

5. Não esqueceu a Cúria: "A humildade é requisito" para o governo da Igreja. "Se o Evangelho proclama a justiça, nós devemos ser os primeiros a procurar viver com transparência, sem favoritismos nem grupos de influência." E a Igreja somos todos. "Todos!não é uma palavra que possa ser mal interpretada. O clericalismo faz-nos pensar sempre num Deus que fala só a alguns enquanto os outros só têm de escutar e executar."

A missão de Francisco é continuar a pôr fim a esta situação.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 8 de janeiro de 2022

NATAL: A DIGNIDADE INFINITA DE SER HOMEM

Presépio de Machado de Castro

 

A festa do Natal tem de ser, é, mais do que o festival do comércio natalício. Há pessoas que chegam à noite de Natal cansadas e desfeitas, por causa dos presentes. No último instante, ainda tiveram de ir à última loja aberta, por causa de mais uma compra. Há inclusivamente pessoas para as quais o tormento das compras natalícias começa logo em Janeiro, uns dias após o Natal: o que é que vão dar como presente àquele, àquela, no Natal seguinte?!...

A festa do Natal é infinitamente mais, e deve sê-lo. Porque o Natal é uma visita de Deus aos homens, às mulheres, aos jovens, às crianças. É Deus presente entre nós. E, ao contrário do que frequentemente fazemos com os nossos presentes, que pretendem ser uma manifestação de ostentação de poder junto dos outros, Deus veio, sem majestade, sem poder. Veio, humilde, na ternura de uma criança. De tal maneira que os mais pobres - os pastores – não se sentiram humilhados ao visitá-lo. Foram os pastores os primeiros que viram Deus visível num rosto de criança. Quem é que imaginaria que Deus, se algum dia viesse, viria assim: simples, pobre, precisamente para que ninguém se sentisse excluído?...

Quer se seja cristão quer não, quer se acredite quer não, é necessário reconhecer que foi através do cristianismo, isto é, mediante a fé no Deus feito Homem, que veio ao mundo a tomada de consciência explícita e clara da dignidade infinita do ser humano. Isso foi reconhecido por pensadores da estatura de Hegel, Ernst Bloch, Jürgen Habermas. Hegel afirmou expressamente que na religião cristã está o princípio de que "o Homem tem valor absolutamente infinito". Ernst Bloch, embora ateu, confessou que foi pelo cristianismo que veio ao mundo a consciência do valor infinito da pessoa humana, de tal modo que nenhum homem, mulher, jovem, criança, pode ser tratado como "gado". Jürgen Habermas, o mais importante filósofo vivo, escreveu que a democracia  não se entende sem a compreensão judaico-cristã da igualdade radical de todos os homens, por causa da "igualdade de cada indivíduo perante Deus": o princípio de “um homem um voto” é a tradução política da fé cristã de que cada homem, cada mulher, é filho, filha, de Deus, valendo todos como iguais. A própria ideia de pessoa enquanto dignidade inviolável e sujeito de direitos inalienáveis veio ao mundo através dos debates à volta da tentativa de compreender a pessoa de Cristo e o mistério do Deus trinitário cristão. Embora, desgraçadamente, tenham tido de impor-se contra a Igreja oficial, foi em solo de base cristã que foram germinando e se deram as grandes Declarações de Direitos Humanos.

Afinal, é uma alegria enorme dar um presente e receber um presente, concretamente na época de Natal. Mas essa alegria não provém tanto do valor material do presente como desse saber que consiste em sermos e estarmos nós próprios presentes uns aos outros: ele lembrou-se de mim, eu lembrei-me dele; eu lembrei-me dela, ela lembrou-se de mim...

O pequeno presente oferecido é sinal, símbolo, dessa presença calorosa, e exprime a alegria de se ser pessoa, cuja dignidade infinita reconhecemos em cada ser humano. Assim, celebrar o Natal tem de ser também contribuir para que se concretize o anúncio dos anjos aos pastores, que constituíam a classe baixa dos pequenos e pobres e que inclusivamente viviam à margem da prática religiosa: "Nasceu para vós um salvador; Paz na Terra aos homens amados por Deus". É uma vergonha para a Humanidade que hoje mais de 800 milhões de pessoas passem fome enquanto os gastos com armamento não cessam de aumentar.

José Tolentino de Mendonça escreveu: “O Natal do comércio chega de um dia para o outro. Fácil, tilintante, confuso, pré-fabricado. É um Natal visual. Um amontoado de símbolos. Dentro de nós, porém, sabemos que não é assim. Para ser verdade, o Natal não pode ser só isto. Não pode ser apenas para uma emoção social, para um corrupio de compensações, compras e trocas. Para ser verdade, o Natal tem de ser fundo, pessoal, despojado, interpelador, silencioso, solidário, espiritual. Acorda em nós, Senhor, o desejo de um Natal autêntico.”

Considero suicidário que os europeus menosprezem a sua herança cristã. Sinto como desastroso e ridículo, que, em nome da inclusão, uma vez que nem todas as religiões celebram a data, a Comissária Europeia para a Igualdade, Helena Dalli, tenha recomendado a abolição da palavra “Natal”, a substituir por “período de festas”, por exemplo. No guia distribuído aos funcionários da Comissão Europeia, chegou-se ao cúmulo de recomendar a substituição de nomes cristãos, como Maria e José... por outros. Pergunto: Será que alguém que não estima a sua cultura vai respeitar as dos outros? O ser humano, na e para a sua identidade, é ao mesmo tempo enraizado e aberto. Quem nega as suas raízes, perdendo a identidade, tem competências para se abrir ao diálogo são e enriquecedor com os outros? Significativamente, Ursula von der Leyen, Presidente da Comissão Europeia,  escreveu pessoalmente ao Papa Francisco assegurando que a União Europeia se inspira na “herança cultural, religiosa e humanista da Europa”.

Seja como for, é Karl Rahner, talvez o maior teólogo do século XX — tive o privilégio de ser seu aluno —, que tem razão: ”Quando dizemos ‘é Natal’, estamos a dizer: Deus disse ao mundo a sua última palavra, a sua mais profunda e bela palavra numa Palavra feita carne. E esta Palavra significa: Amo-vos, a ti, mundo, a vós, seres humanos.” Natal bom e feliz!

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 25 de dezembro de 2021

FELIZ NATAL!

 

Não sei, ninguém sabe, qual a data certa e o lugar real do nascimento de Jesus... Tampouco a maioria das pessoas pensará hoje no sentido deste evento natalício: a Festa do Natal, agora, é sobretudo social e profana, promovendo férias e encontros, libações várias, fúria consumista. Mas no âmago secreto da nossa cultura permanece esta celebração cristã do solstício de Inverno, quando do fundo da noite e do frio nasce a esperança, a certeza - que é fé - de que a luz não tardará a voltar, esplendorosa como o amor que nos aquece o coração e nos devolverá fraternidades perdidas.

Seja Feliz em nós, e promissora, a festa do Natal da misericórdia!

 

Camilo Maria
      

Camilo Martins de Oliveira

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


90. FASCÍNIO NATALÍCIO


Vive-se o Natal pensando que pode dar um sentido à vida.  
Um aconchego de nós em nós e com os outros.
Um querer permanente convocando família, ausentes e presentes.  
Sempre em formação e por uma humanidade melhor.   
Aconchego, acolhimento, irmandade, solidariedade, paz.    
Dele ficou-nos um estímulo encantatório e nostálgico. 
Um impulso que vem da nossa meninice aos dias de hoje.   
Um incitamento a reviver um tempo mágico, num presente que nos envolve.
Um júbilo e um reviver da infância no entardecer da vida.   
Como uma madalena de Proust que o levava a reencontrar um saudoso tempo perdido. 


24.12.21
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

 

Iam os ventos muito grandes em demanda

Das coisas deste mundo e era dezembro

 

Apressem-se, apressem-se – ouvia-se

Tendes vós pouco tempo para o nascer encontrar

E só ele vos dará o favor do deus para os poemas

Favorecidos pelo sonho que sois

Mânticos e núbios à aproximação da luz

 

Diz o Ouvinte:

 

Concedo-vos argila e oleiro

Moldai a ideia nova e se faça ela tão perto

De tão perto e tão humana

Que não haja casa nem rua

 

Onde não penetre

 

E de onde

Se não invada

 

Mão.

 

Teresa Bracinha Vieira

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:


   Dizes-me que tens estranhado o meu silêncio, melhor dirias o apagão da minha escrita... Ando apagado, sim, porque me estranho. Quiçá a mudança de habitação, a troca de um meio urbano pelo sossego isolado do campo, envolto em silêncio, me tenha disposto a ensimesmar-me. E nesta minha idade, qualquer encontro a sós comigo, fatalmente me remete para a proximidade desse muro que só transporemos como fantasmas atravessam paredes. Talvez também por não me sentir saudoso, ainda que habitado por muitas lembranças, sobretudo agora, quando o abrir de tantas caixas me confronta com o destino atual de muitas coisas passadas. Calhou-me abrir e reler um opúsculo do José Ortega e Gasset, escrito em 1943, creio que no Estoril, esboço de uma hipótese sobre a saudade, mito e segredo lusitano. Cito-te um trecho que se atém ao que te venho dizendo: Las circunstancias del mundo me han traído aquí y las razones por las que aquí estoy me aconsejan la vida retirada. Mas aunque nada de esto fuese, causas personales me impedirían ya de entrar en la intimidad de Portugal.  Ésta solo puede ser vista desde dentro de ella, como la fisiognomía es visión desde fuera. Y "entrar" en un pueblo es lisa y llanamente no solo estar en sus calles sino vivir en él, ser en él. Ahora bien, es aquí donde he empezado a sentir que soy viejo y ser viejo es para el hombre la manera normal de ir dejando de ser, de vivir. A cierta edad el hombre se va volviendo "ausente" allí mismo donde está,se va alejando de las cosas y éstas comienzan a non serle. Es la iniciación de un proceso que termina en el "espectro", idea ésta muy profunda que los primitivos tenían del muerto. La muerte que ellos no concebían (por supuesto, nosotros tampoco) se les representaba como una pervivencia en nueva forma. Los muertos siguen viviendo una "vida espectral". 


  
Ortega y Gasset, o mesmo que dizia que a filosofia é a forma que toma a juventude ao florescer e amadurecer no homem velho, escreve no tal esboço de ensaio que te lembro: La Saudade no es un tema portugués, sino el tema portugués por excelência. Si algún otro pude situar-se a su vera es, acaso, la "Descoberta". Ambos polarizan la realidade histórica que es Portugal. Y resulta que son una contraposición: la "Descoberta" es el ansia de irse, la "Saudade" el ansia de volver. La ex-patriación (una vez) y la re-patriación permanente: antes e después de la Descoberta. Portugal es el "hijo pródigo" de si mismo. Qué es en él lo más autentico, el irse o el volver? Aquéllo lo hizo una vez: esto lo há hecho y lo está haciendo siempre. Cada dia, cada hora, el português vuelve a si.


  
Aqui tens, Princesa, como entre eu e mim me sinto agora. Sabendo ainda que tudo o que disse, diga ou hoje possa dizer, outros já disseram ou dirão melhor. Neste momento, sobretudo pensossinto que uma súbita mudança das referências do meu quotidiano - do próprio quadro físico da minha vida - logo me tornou, sozinho, na alcançável (?) referência de mim. Em novos ares, só em mim poderei reconhecer-me, procuro encontrar-me não com o que fui, mas com um ser familiar e simultaneamente estranho, e nesse sentido sou o filho pródigo de mim.


   Quiçá tal seja uma conversão, sou como Saulo derrubado, que se levanta e já é Paulo. Ou como Mateus, no quadro do Caravaggio, que Cristo aponta e um raio de luz toca no peito, Mateus que leva a mão ao próprio coração que se pergunta: Eu, Senhor? Assim este Advento me vem trazendo outro Natal: sempre me fascinou no cristianismo essa nova de Deus ter tornado humana a sua transcendência. O Mistério da Encarnação é, desse modo, a contemplação de uma incógnita: qual é a relação ontológica de Deus com o homem, o mundo, a história? Por este Natal de 2016, ocorre-me um caudal largo e sereno de questões que, no decurso da minha vida, sempre vieram bater a uma qualquer porta bem dentro de mim: onde está Deus? poderei encontra-lo? E, ao longo dos anos, vou sentindo e pensando que cresce em mim essa torrente invisível do meu renascimento no perpétuo Natal do cosmos.


   Por isso mesmo sempre digo e desejo FELIZ NATAL! - seja feliz o vir à luz do nosso livramento. O Reino de Deus começa por uma criança que nunca envelhece. Repito: desejo-te - a ti e a todos os que lerem esta carta - a continuação de um Feliz Natal!

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 18.12.2016 neste blogue.

A INFÂNCIA DE JESUS

Jesus no Templo de Heinrich Hoffmann (1881).jpg

 

Longe de mim querer minimamente ferir o fascínio da magia divina das narrativas do Natal, mas é natural que a pessoas se perguntem como foi a infância de Jesus, em que data nasceu e onde, quem eram os reis magos, se houve a matança dos inocentes, se Jesus menino foi levado para o Egipto...

É a essas muitas perguntas que vou tentar responder, inspirando-me em parte no exegeta Ariel Álvarez Valdés: Cuál es el origen del diablo? Para descobrir o sentido autêntico e profundo das celebrações natalícias.

1. O Natal é a maior festa do cristianismo? Embora seja a mais popular, e compreende-se - a luz, o calor humano da família e da amizade, a evocação do milagare do nascimento de uma criança... -, o Natal não é a festa maior. A festa central da fé cristã é a Páscoa, que celebra a vida, o anúncio da boa nova do Reino de Deus, a paixão e morte de Jesus e a sua ressurreição: na morte, Jesus não morreu para o nada, na morte encontrou a plenitude da vida em Deus, que é Pai-Mãe. Este é o núcleo da mensagem cristã, como proclamou São Paulo: “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé.”
E é à luz da Páscoa que se comprendem as narrativas do Natal. De facto, no início, os cristãos não se interessaram pelo seu nascimento, pois o essencial era a vida, a morte e a ressurreição.

2. Como apareceu a festa do Natal? Hoje, nenhum historiador sério nega que Jesus existiu realmente. Quando, por volta do séculos III-IV já havia comunidades cristãs espalhadas pelo Império Romano, houve a ideia de transformar a festa pagã do Dies Natalis Solis Invicti (Natal do Sol Invicto), associada ao solstícoo do Inverno, quando os dias começam a aumentar e com eles a luz solar, na festa do nascimento do Sol dos cristãos, dAquele que é o verdadeiro Sol invencível, a Luz verdadeira. A Missa do galo está associada a esta luz, o galo canta, anunciando a aurora.

3. Quando nasceu? Estamos enganados quando dizemos que entrámos no ano 2021 depois de Cristo. De facto, no século VI, quando o cristianismo já se tinha vastamente difundido e Jesus surgia como figura determinante da História, de tal modo que agora o calendário se deveria orientar pela data do seu nascimento: a. C., d. C. (antes de Cristo, depois de Cristo), o monge encarregado de determinar essa data, Dionísio, o Exíguo, enganou-se em 4 ou mesmo 6 anos. Portanto, Jesus, paradoxalmente, nasceu em 4-6 a.C.

4. Nasceu em Belém? Voltamos ao início. O essencial da fé cristã encontra-se na Páscoa. Foi a partir dessa fé que os discípulos leram a vida histórica de Jesus, real, situada num tempo concreto, uma história real, mas lida e interpretada com o olhar da fé. Esta leitura é particularmente visível nos relatos da infância, que só aparecem nos Evangelhos de São Mateus e São Lucas, utilizando um género literário próprio, que projecta e vê no princípio o que sabem no fim: em Jesus cumpriram-se as promessas, Ele é o Messias, o Filho de Deus, o Salvador por todos esperado. Na realidade, Jesus terá nascido em Nazaré: é conhecido por Jesus de Nazaré ou o Nazareno. Mas puseram-no a nascer em Belém: trata-se de mostrar que ele é o verdadeiro Messias e rei, da descendência de David, que era de Belém.

5. São José é o pai de Jesus? A teologia não é um tratado de biologia e anatomia. São Paulo escreverá de modo simples: Jesus, “nascido de mulher”, para dizer que é da nossa raça, que é o que se lê também nos dois evangelistas. Mas Ele é único, especial. Para mostrar que João Baptista é especial, os Evangelhos dirão que foi concebido quando a mãe, Isabel, já não podia ter filhos. Quanto a Jesus, acreditando que Ele é o Filho de Deus, a revelação definitiva de Deus como Pai, escreverão que foi concebido pelo Espírito Santo.
A mãe era Maria, o pai era José. Tinha irmãos e irmãs. Há algum mal em ter uma família numerosa?

6. Como foi a sua infância? Normal e despercebida, de tal modo que, quando aparece em Nazaré, no início da vida pública, a anunciar o Reino de Deus, os seus conterrâneos ficam profundamente admirados a ponto de perguntarem: não é este o carpinteiro, a família dele não vive entre nós?
Certamente, frequentando a sinagoga, Jesus aprendeu a rezar, a escrever e a ler as Escrituras (Antigo Testamento) até aos 12 anos, quando iniciou a aprendizagem do ofício de tekton, artesão, trabalhando com a madeira, a pedra, o ferro: um ofício duro. Trabalhou em vários lugares, o que lhe deu conhecimento da vida, da sua dureza, das relações sociais e dos seus labirintos.

7. O episódio dos reis magos vindos do Oriente, guiados por uma estrela, é dos mais conhecidos e fascinantes para o imaginário colectivo, mas, quando se analisa criticamente todos os dados, realmente não crível historicamente.
O que se passa é que o evangelista compara Jesus com o rei Salomão. Salomão, tão estimado pelos judeus pela sua sabedoria, foi visitado por uma rainha anónima vinda de longe, de Sabá, atraída pela sua fama. Jesus é mais do que Salomão. Ele é a Sabedoria verdadeira, que a todos ilumina. Daí, a visita dos reis.

8. Também não é crível a matança dos inocentes. Como seria possível Flávio Josefo não ter referido essa matança?
O evangelista compara Jesus e Moisés. Aquando do seu nascimento, o faraó mandou matar todos os meninos nascidos no Egipto. E Jesus é levado para o Egipto - realmente nunca terá lá estado -, donde voltará. Para dizer que Jesus é o novo verdadeiro Moisés, o Libertador de todo o mal e opressão, incluindo a morte. Porque Deus não suporta a opressão, a escravidão.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 02 JAN 2021

NATAL: DEUS SEM MÁSCARA

 

1. Ia eu na rua e uma jovem interpelou-me: “Já não se lembra de mim? Até me baptizou...”. E eu: “Puxa um pouquinho a máscara”, e ela puxou. “Continuas linda, Susana!...”.


Se eu algum dia imaginei que havíamos todos de andar de máscara! Antes também havia muita gente mascarada, mas as máscaras eram outras... Agora, impomo-nos o uso da máscara a nós próprios, por causa de nós e dos outros: para nos protegermos a todos, ao mesmo tempo que nos desprotegemos, porque ficamos sem a presença dos outros. Como faz falta vermo-nos cara a cara, falar cara a cara, tocarmo-nos, sorrir, rir, colocar os sentidos todos alerta na presença viva dos outros. Passámos a vida a dizer às crianças: “Dá um beijo ao avô, um beijo à avó, um beijo à tia...”. Agora, de repente, é tudo ao contrário, como se os outros fossem inimigos, pois até viramos as costas... Apertávamos as mãos, porque apertar as mãos é um gesto de encontro na paz: as mãos livres de armas vão ao encontro do outro, sem medo. Abraçávamo-nos de alegria pelo reencontro ou chorando pelo luto ou antecipando a saudade pela despedida. Agora, não há proximidade, até nos mandam, e bem, manter a distância (e até se dizia: “a distância social”, mas eu espero que seja só a distância física, espero que a outra — a espiritual, a afectiva — se mantenha e aprofunde).


Foi precisa a pandemia para que se nos tornasse inválida a afirmação de Sartre: “O inferno são os outros”. Afinal, é o contrário: a falta dos outros é que é o inferno, a solidão é um inferno.


2. Não é só, mas também, pela ausência ou pela perda que tomamos verdadeira consciência do valor das coisas e das pessoas. A falta que nos fazem os outros! Só quando alguém se nos morre é que verdadeiramente nos apercebemos da importância e valor dessa pessoa na nossa vida. A falta que nos faz o Natal, o Natal que dizemos normal! Mas essa falta também pode e deve ser uma oportunidade para um Natal melhor, mais verdadeiro, mais autêntico, mais íntimo, mais solidário. Afinal, esfalfávamo-nos na correria ditatorial das compras e esquecíamo-nos do essencial!


E o que é o essencial? Talvez já tivéssemos esquecido, mas o Natal é, antes de mais, a celebração deste acontecimento determinante da História: o nascimento de Jesus, o nascimento do ser humano bom, verdadeiro. Seja como for, não há figura histórica mais estudada (ainda há dias o especialista em cristianismo primitivo, que é agnóstico, Antonio Piñero, lembrava que continuam a ser publicados anualmente uns mil novos livros sobre Jesus) nem mais amada.


O que há neste homem, nascido há mais de dois mil anos, para arrastar multidões e ser uma referência determinante para a Humanidade? Segundo o ateu Ernst Bloch, Jesus agiu como um homem “pura e simplesmente bom, algo que ainda não tinha acontecido”, e Umberto Eco, que se dizia agnóstico, escreveu que, se fosse um viajante proveniente de galáxias longínquas, ao encontrar-se frente a uma Humanidade que soube propor o modelo de Cristo, com o amor universal, o perdão dos inimigos, a vida oferecida em holocausto pela salvação dos outros, “consideraria esta espécie miserável e infame, que cometeu tantos horrores, redimida pelo simples facto de ter conseguido desejar e crer que tudo isto é a Verdade”. Eduardo Lourenço, recentemente falecido, disse: “Não há nada superior a Jesus”. Até Nietzsche reconheceu, no seu O Anticristo, que no fundo só houve um cristão, mas esse morreu na cruz, e acrescentou: “Só uma vida como a daquele que morreu na cruz é cristã”.


Que vida foi essa? Porque é que o mataram?


Foi morto como blasfemo. Ergueu-se contra o Templo e a religião oficial que, em vez de libertarem o Homem, o esmagavam. Levantou-se contra o Sábado. “O Sábado é para o Homem e não o Homem para o Sábado” constitui talvez a afirmação mais revolucionária da história da consciência humana, pois coloca como critério último dos mandamentos do próprio Deus a realização e o bem-estar do ser humano.  Não era um asceta, e foi apelidado de “comilão e beberrão”: a salvação e a alegria são desde já e aqui, para todos.


Foi morto como subversivo sócio-político. Os seres humanos têm todos igualdade radical na dignidade inviolável, porque divina: já não há judeu nem grego nem homem nem mulher nem branco nem negro nem adulto nem criança nem livre nem escravo nem religioso nem ateu. Rebeldemente livre, Jesus não prestou culto nem a César nem ao Dinheiro, e o Deus a quem tratava terna e filialmente por Pai (também pode ser tratado por Mãe) não quer sacrifícios, mas misericórdia, e não se adora nem em Jerusalém nem em Guerizim, mas em espírito e verdade. A sua Boa Nova é o Reino de Deus da filadélfia, um Reino de amigos e irmãos.


A história das revoluções que têm Jesus na sua base está ainda por escrever. A maior delas é a revolução da ideia de Deus. Quereríamos um Deus-Poder que justificasse o nosso poderio de mando e subordinação. Mas o Deus de Jesus não se confunde com o Poder da dominação, Ele é omnipotente, não no sentido de dominar, mas como Força infinita de criar e promover. Por isso, no Natal, não veio em poder e glória, mas humilde, revelou-se num rosto de criança, que chora,  que ri, que se pode tocar. Um Deus que não está longe, mas próximo dos homens e das mulheres, dos jovens e das crianças, um Deus bom, amigo, amável e misericordioso para todos.


Para os cristãos, a Transcendência divina tem um rosto reconhecível, sem máscara: o homem Jesus, confessado como o Cristo e Filho de Deus.


Bom Natal!

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 20 DEZ 2020

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

68. DIGNITATIS HUMANAE


A dignidade não tem preço. Ninguém a pode comprar.   

É pessoal, inalienável e intransmissível.

Ao falarmos em dignidade humana falamos em direitos humanos, sendo estes a concretização efetiva do que é denominado como “dignidade da pessoa humana”.

Assumir os direitos humanos como um mínimo ético existencial que é expressão da dignidade humana, é tornar acessível ao ser humano todas as coisas de que necessita para ter uma vida digna: alimentação, vestuário, habitação, constituir família, direito ao trabalho, à educação, à saúde, à liberdade de informação, de religião, igualdade essencial entre todos, sem distinção de cor, raça, sexo, condição económica ou social.

Esta titularidade de direitos inalienáveis, positivados e reconhecidos como uma exigência de respeito pela dignidade da pessoa humana, tem deveres correspondentes.

Preocuparmo-nos só com a consagração de direitos, convencendo-nos de que a nossa dignidade nos obriga a reclamar sempre mais, é esquecer que a efetiva realização do Direito e dos direitos humanos passa, em grande medida, pelo cumprimento significativo de deveres. 

Por exemplo, o direito à vida tem, como correlativo, o dever de respeito pela vida nas suas mais variadas formas, o que implica, em especial, o dever de não matar, incluindo o de não destruir as plantas e de matar os animais sem causas de justificação. 

Refira-se, em especial nesta data natalícia, o reconhecimento a todos os seres humanos, pelo cristianismo, de uma inabalável dignidade, como filhos de Deus, extensiva a todos em igual medida, chamando a atenção para a “dignidade de cada homem concreto como filho de Deus” e para a “unidade do género humano”.   

E se é verdade que a doutrina cristã dignificou o Homem, estando igualmente na base da tomada de consciência da dignidade inviolável da pessoa humana, também é verdade que não conseguiu uma verdadeira igualdade entre os filhos de Deus, pois esse reconhecimento irredutível de dignidade não significou o reconhecimento de direitos, sendo a pessoa mais um beneficiário dessa dignidade do que um verdadeiro sujeito de direitos. Iguais perante Deus, os seres humanos mantiveram-se separados em razão do “berço”, o que é mais um privilégio para alguns do que um verdadeiro direito para todos.   

O que não é novidade, pois é destino das doutrinas, sendo fundamental a sua permanência e intemporalidade, resistindo e sobrevivendo às contingências, guerras, ruturas e revoluções, como sucedeu com o cristianismo.   

Mas a mensagem cristã perdura, com caraterísticas intemporais, deixando vigente um critério de identidade centrado na dignidade humana, referida pela Declaração Dignitatis Humanae, do Concílio Vaticano II: “Os homens de hoje tornam-se cada vez mais conscientes da dignidade da pessoa humana e, cada vez em maior número, reivindicam a capacidade de agir segundo a própria convicção e com liberdade responsável, não forçados por coação mas levados pela consciência do dever. Requerem também que o poder público seja delimitado juridicamente, a fim de que a honesta liberdade das pessoas e das associações não seja restringida mais do que é devido”.

Dignidade humana que o Natal também intenta recuperar, a que acresce o respeito pelos animais, na versão franciscana do presépio, por confronto com o apelo a um consumismo compulsivo, antítese de uma sã dignidade, a que muitos não resistem e, infelizmente, só assim se sentem “dignos”, em “dignidade”. 

Iguais perante Deus e não separados em razão do “berço”, um fim e não um meio ao serviço de interesses estamentais instituídos, eis o núcleo central de uma permanente mensagem natalícia que anseia por realização. 
 

Um feliz Natal, neste Natal pandémico.

 

24.12.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

DEZEMBRO

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Quando voltarmos a partir

Rumo àquele mundo que em nós

Foi percurso de esperança

Alegria

Desejo único de expor o segredo

Nos teus braços

Mundo

Semente do meu sulco

Culto

Colherei

O que em ti reconheço

Minha única porta

Minha saída

Minha meta conhecida

Natal

 

                                                                                         Teresa Bracinha Vieira