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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

58. UMA TEORIA DA CULPA

 

A pé e meditando em silêncio, em passeios salubres de época de pandemia, acautelado em regras sanitárias e de distanciamento, recolhendo vitamina solar e tentando alguma imunidade, certifico-me que uma percentagem significativa de veículos estacionados e em circulação, tantas vezes maioritária, é de origem e marca germânica. 

 

A proporção aumenta ou é mais notória se maiores os sinais exteriores de riqueza da urbanização onde imobilizados ou em andamento, mas verifico ser quase sempre mais alta, no geral, por confronto com viaturas mais acessíveis.   

 

A que acresce a maioria da frota automóvel governamental, elites e cidadãos que fazem o culto do automóvel de modelo alemão.   

 

Embora a mentalidade portuguesa seja imperial e de rico, pelo seu passado histórico e colonial ao longo dos séculos, sempre me impressionou esta apetência automobilística pelo que vem da Alemanha, onde se incluem viaturas tidas como duráveis, de grande qualidade e cilindrada, como se a restante oferta mundial não fosse adequada para a nossa circulação no dia a dia, quer em carros de topo, mais populares e baratos.

 

O que é agudizado pelo desejo, tantas vezes obsessivo ou ostensivo, de querer esta ou aquela marca germânica em particular, para toda a vida, proclamam alguns, mesmo que mais cara e à revelia do ambiente.

 

Este pensar de ricos pobres, num país em que faltam recursos e competitividade, confirma que não são os modelos e veículos mais populares e alcançáveis em dinheiro, os que grande parte dos portugueses preferem.

 

Antes sim os mais dispendiosos e chamativos, comprando mais caro e a crédito, se necessário, endividando-se e produzindo maior dívida, em benefício de outros.

 

O que não deixa de ser sintomático de uma ausência de sentido crítico de quem se endivida e compra produtos mais onerosos, não monopólio de um ou dois produtores, em proveito de quem nos censura por colocarmos “o carro à frente dos bois”.

 

Recordo-me de, em 2012, em plena crise das dívidas soberanas, dirigentes alemães darem como mau exemplo de despesismo e consumo inútil de verbas europeias a construção de bonitas autoestradas e belos túneis na ilha da Madeira, causando impacto e admiração, mas que não aumentavam a competitividade, como deveriam, demonstrando o desastroso uso de dinheiro e o porquê de estarmos endividados.

 

Portugueses houve que interpretaram tal exemplo como um aviso, por via indireta, de nos culpabilizar pelo nosso défice e dívida excessiva, do fundamento para a então imperiosa necessidade de intervenção da troika e consequente punição, com as adequadas adaptações extensivas a outros países, nomeadamente do sul da Europa.

 

E quem salientasse que era de reprovar que a censura e punição não fosse adequadamente extensiva a todos os países credores, incluindo a Alemanha, que vendem desproporcionalmente caro veículos (e outros bens) a crédito vendido por bancos germânicos (mas não só) a países endividados, como Portugal, circulando por  autoestradas e túneis não competitivos da União Europeia, em locais mais tidos como da família da cigarra que da formiga, com o devido respeito pela primeira, a quem nada devo, nem o inverso…   

 

O despesismo de uns é o superavit de outros.

 

É caso para perguntar: e se dissermos a Berlim, com outros países em igualdade de circunstâncias, que como somos pobres e endividados, só podemos e devemos aprender a viver com marcas e modelos de veículos mais económicos? Aplicando, in casu, o princípio da adequação, da proporcionalidade e razoabilidade inerente à capacidade de riqueza produzida e de endividamento de cada país?

 

Ninguém nos obriga a comprar este ou aquele produto, é certo, mas se aos olhos de quem nos quer vender a crédito prevaricamos tanto, de quem é a culpa?

 

Essencialmente do devedor, do credor ou de ambos? 

 

03.07.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

A PANDEMIA. ONDE ESTÁ DEUS?

 

A Universidade de Viena investigou a relação da religiosidade com a pandemia. Os resultados mostraram que as pessoas mais religiosas utilizam estratégias mais activas para dominar a crise. Enquanto as pessoas menos religiosas tendem a reprimi-la ou a negá-la, as mais religiosas procuram apoio social e lidam com ela de modo mais forte, mais optimista e com mais serenidade.

 

São dados significativos. Não houve, creio, nenhum estudo sobre o outro lado, mas estou convencido de que dele resultaria que muitos, esmagados pela pandemia, pelo sofrimento, se perguntaram: Onde está Deus?

 

A História é um autêntico calvário. Hegel referiu-se-lhe como um Schlachtbank: um açougue, um matadouro. E lá está o famoso dilema de Epicuro: Deus tem de ser todo-poderoso e infinitamente bom. Ou Deus pôde evitar o mal e não quis, e não é bom; ou quis e não pôde, e não é omnipotente. Ou quis e pôde; então, donde vem o mal?

 

Mesmo teólogos de renome sentiram-se atenazados pelo dilema, de tal modo que alguns, como J. Moltmann, falaram de um Deus impotente, que sofre connosco; outros, como R. Guardini, chegaram a exclamar que “pediriam contas” a Deus pelo sofrimento dos inocentes, Karl Rahner disse que, “num tribunal humano, não sairia absolvido”, Karl Barth afirmou que, no Jardim das Oliveiras, quando Jesus rezava, suando sangue, Deus “se portou como Judas”, e Urs von Balthasar disse que “se deve falar de uma descarga de ira de Deus sobre aquele que lutava no Jardim das Oliveiras.” Nestas posições, a pergunta ergue-se talvez ainda mais veemente: acreditar como e para quê num Deus irado ou impotente?

 

A Filosofia e a Teologia ficarão historicamente devedoras ao filósofo-teólogo Andrés Torres Queiruga por ter desfeito o preconceito em que assenta o dilema (ver a sua obra marcante: Repensar o mal). De facto, como escreveu, “enquanto permanecer o preconceito de que Deus poderia acabar com todo o mal do mundo, se quisesse, ninguém pode crer na bondade de Deus, sem se ver obrigado a negar o seu poder; ninguém acreditaria na bondade de um cientista insigne que, podendo acabar hoje com os estragos do coronavírus, não quisesse fazê-lo, por altos e ocultos que fossem os seus motivos.”

 

O crente, nomeadamente o crente cristão, acredita no Deus Pai-Mãe, infinitamente poderoso e bondade infinita, que ama os seus filhos e filhas e só quer o seu maior bem. Donde vem o mal? Do mundo, que é finito e no qual há inevitavelmente mal. Não é possível um mundo finito, em evolução, perfeito e sem mal, porque isso  é uma contradição; como se não pode reivindicar a autonomia criatural da liberdade humana finita e a perfeição. “Afirmar hoje que Deus não é bom ou omnipotente, porque não cria um mundo perfeito, é o mesmo que argumentar que não o é, porque não quer criar círculos-quadrados ou não pode fazer ferros-de-madeira.” A primeira coisa que é, portanto, preciso clarificar é que o mundo produz mal, o finito não pode ser perfeito, tem falhas, carências, nele haverá choques, becos sem saída...

 

Desfeito o equívoco de um mundo finito perfeito e sem mal, avança-se para uma ponerologia (do grego, ponerós, mau): tratar do mal, antes de qualquer referência a Deus. De facto, o mal atinge a todos, crentes e não crentes, todos sofrem ao nascer, todos passam pela dor, todos morrem. E devemos todos estar unidos solidariamente na defesa da vida e na procura do real alívio do sofrimento de todos. A pergunta, agora, é outra: se o mal é inevitável, porque é que Deus criou o mundo? “Não posso responder ao ateu que diz que o mundo é absurdo, que não vale a pena. Eu não sou pessimista: creio que vale a pena e que há um referendo na Humanidade: todos, no fundo, sabemos que vale a pena. Por isso, continuamos a trazer filhos ao mundo.”

 

Aqui, começa a pisteodiceia (de pistis e dikê, justificação da fé). Há diferentes pisteodiceias, pois todos, ateus, agnósticos, crentes, têm de enfrentar-se com o mal e cada um tem, dentro de uma cosmovisão, a sua resposta para o problema, a sua fé. O crente religioso crê e pensa que é razoável crer em Deus e até pode perguntar, com o famoso teólogo Hans Küng: “O ateísmo explica melhor o mundo? A sua grandeza e a sua miséria? Como se também a razão descrente não encontrasse o seu limite no sofrimento inocente, incompreensível, sem sentido!” E crê que Deus não teria criado o mundo, se não fosse possível libertar-nos do mal. O que se passa é que o que não é possível num dado momento pode sê-lo mais tarde. A mãe sabe matemática, mas não pode ensinar matemática ao seu bebé enquanto bebé; fá-lo-á mais tarde. Alguém pode conceber-se a aparecer já adulto no mundo? A realidade é processual, e o crente em Deus como Amor e Anti-mal espera a salvação definitiva e plena para lá da morte.

 

Aqui, ergue-se outra objecção: depois da morte, não continuamos finitos? Os crentes confiam em Deus e podem mostrar, com razões, que a salvação eterna não é contraditória, pelo contrário. Sim, a pessoa é finita, mas com uma abertura infinita. Este é o mistério do Homem. Nunca estamos acabados, nenhum ser humano morre definitivamente feito. Não há nada finito que possa preencher a abertura humana, não há nada finito que possa realizar a nossa capacidade de conhecer e amar. Esta é a possibilidade que se abre ao crente a partir da fé: já para lá dos limites do espaço e do tempo, Deus mesmo entrega-se-nos nesta abertura infinita e finalmente seremos nós com Ele e nEle.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 20 JUN 2020

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

OS ESPECIALISTAS

 

Esta pandemia trouxe-nos um novo tipo de pessoas que invadem o espaço público, a que poderemos chamar de “especialistas”. Que fazem esses temíveis palradores? Invadem-nos a casa, através dos meios de comunicação, em especial a televisão, e dão-nos explicações e palpites, sobre tudo o possível e imaginário. Julgam saber de tudo, desde as origens fisiológicas das transformações operadas pelo dramático Covid-19 até aos efeitos psicológicos do confinamento. Têm sempre algo a dizer-nos. São fisiologistas, psicólogos, candidatos a psiquiatras, biólogos, educadores, cientistas – tudo. Fazem-me lembrar o simpático Gaston Lagaffe, aqui representado (que quando chegou a Portugal, no início dos anos sessenta, se chamava Zacarias, e pontificava com as suas desventuras). Também ele era especialista de tudo, mas tudo em que se metia dava desastre… Em qualquer posto de comunicação ouvimos esses especialistas que peroram sobre as máscaras, sobre as viseiras, sobre os perdigotos, sobre os desabafos intestinais, sobre as estatísticas, sobre os ventiladores, sobre os medicamentos, sobre morcegos e ratos, sobre vacinas e testes serológicos, sobre a peste negra e bubónica ou sobre a gripe espanhola, vulgo pneumónica… Eu sei lá? No entanto, tirei-me de cuidados e conversei com um cientista sério e a sério. E que me disse ele? Que ninguém sabe nada, verdadeiramente. Até a respeitada revista “Lancet” teve de reconhecer a dificuldade em dizer algo de relevante, dando o dito por não dito. Talvez daqui a algum tempo possa haver alguma coisa de relevante. Mas para já, apenas podemos proteger-nos. Prevenir é a única palavra de ordem. É que o vírus não é um bicho. Não é um ser vivo. Em latim, vírus significa veneno ou toxina. É um agente infeccioso com 20-300 nanómetros de diâmetro, apesar de existirem vírus ɡiɡantes de (0.6–1.5 µm), sendo constituído por uma ou várias moléculas de acido nucleico. Disse esse meu amigo e eu anotei religiosamente (mas mal percebi) que os ácidos nucleicos dos vírus apresentam-se geralmente revestidos por um envoltório proteico formado por uma ou várias proteínas, que pode ainda ser revestido por uma espécie de envelope formado por uma dupla camada lipídica… Não me peçam para explicar. O que sei é que fora do ambiente intracelular os vírus são inertes… Qual o perigo? Nas superfícies não duram muito tempo, e no ar mantêm-se tempo suficiente para se transmitir pelas vias superiores respiratórias. Mas, uma vez dentro das células, a capacidade de replicação dos vírus é surpreendente: um único vírus é capaz de multiplicar, em poucas horas, milhares de novos vírus. E os vírus são capazes de infetar seres vivos de todos os domínios, inclusive bactérias. Daí todas as dificuldades. Eis por que razão tenho o maior cuidado com a minha máscara e com o lavar das mãos… De facto, os vírus representam a maior diversidade biológica do planeta, sendo mais diversos que bactérias, plantas, fungos e animais juntos. Quase 200 mil tipos diferentes de vírus se espalham nos oceanos do mundo. Por exemplo, a última contagem é 12 vezes maior do que o censo anterior de vírus marinhos registado em 2016. Esse meu amigo, que, como diria o saudoso Bocage, não era um doutor das dúzias, fez-me compreender como esses especialistas falam barato do que não sabem e peroram sobre o que não existe. Assim se entende que o Senhor Donaldo Trump se aventure num campo difícil e minado, como se fosse um verdadeiro especialista – falando de desinfetantes e aconselhando práticas mortíferas para os mais incautos. Alguns que o seguiram foram levados a perigosas lavagens ao estomago. O mesmo se diga do Senhor Bolsonaro e de tantos outros, que na Idade Média teriam emprego certo como bobos ou como charlatães… Percebe-se assim que estes especialistas que nos invadiram têm onde se inspirar.  E percebem-se as cautelas postas pelos verdadeiros infeciologistas, que são os primeiros a dizer que muito pouco se sabe ainda sobre este tema. Todo o cuidado é pouco. Andamos todos às apalpadelas – que o diga este momento de grande incerteza. De facto, ainda a procissão vai no adro. E não podemos facilitar. Ninguém se julgue imune. A ciência sabe muito pouco. Por isso os falsos especialistas são como esse Gaston, que um dia se lembrou de organizar um arquivo com o mais estranho dos instrumentos – uma ventoinha… O resultado dessa operação é exatamente a que suspeitam..… Está tudo dito… É assim também com estes doutores da mula ruça. Quando virem e ouvirem um destes especialistas ilusórios ponham-se de sobreaviso.

 

Agostinho de Morais

CRÓNICA DA CULTURA

ENTREVISTA

 

- Como tem sido para a senhora e seu marido o suportar deste confinamento?

Pois, para nós o confinamento não tem custado.

- Ah!, não? Tem-nos parecido que ninguém gosta.

Bem, no início fomos na onda, digamos assim, do horror de ficar em casa, íamos ao supermercado uma vez por semana, e vínhamos logo para casa. Mas afinal não era mau.

- Não era mau? Deixaram de fazer a vossa vida normal, deixaram de usufruir da vossa liberdade, dos vossos costumes, dos vossos prazeres, já para não falar do medo da doença…?

Pois o medo da doença tocou-nos fundo e toca-nos – e também nos toca o medo de outras doenças - mas quanto ao confinamento, chegámos à conclusão que já vivíamos confinados, e não nos tínhamos dado conta que a situação até já estava batizada por essa palavra.

- Como assim?

Olhe, nós somos reformados. O meu marido é engenheiro, mas devido a um problema de coluna, teve de antecipar a reforma e ela é baixinha, e eu trabalhava em Alcoitão e já me reformei, também com pouco, face ao que auferia, que era pouco.

- Alcoitão?

Sim, lá no local onde as impossibilidades se tornam, às vezes, desconfinamentos de futuros. Trabalhei muito lá, e acreditando sempre que se eu não desistisse dos meus doentes, eles teriam êxito. Era fisioterapeuta. Mas voltando ao confinamento. Sabe?, nós falámos aqui em casa - o meu marido e eu - e decidimos ir ao supermercado, mas todos os dias, durante e após a pandemia para fingirmos que vivemos mais desconfinados. Entende?

- Como assim?

O que eu quero dizer é isto: como pode imaginar as reformas baixas não dão para almoçar fora, nós nunca almoçamos fora, também não dão para viajar, nós nunca viajamos, nem cá dentro. Também não dão para irmos ouvir concertos de que tanto gostamos. Ir ver montras, às vezes, sabe bem, mas não temos disponibilidades para adquirir algo só pelo gosto de ter esse bem connosco, e, fica-se um pouco triste. Também não saímos de metro, pois o meu marido fica com medo dos empurrões e pode ficar pior da coluna. Andar de táxi, é caro, só se temos de ir ao médico. A Caixa é longe daqui. Resumindo: íamos ao supermercado uma vez por semana para adquirir o essencial, e não nos tínhamos dado bem conta de que é precisamente o que fazemos agora com o confinamento.

- Ah! Daí a decisão de irem todos os dias ao supermercado, agora e depois da pandemia?

Sim. Havia muito mais para dizer, mas é isso. Resumindo, é isso. Tudo isto foi um modo de concluirmos, mais exatamente, que a nossa liberdade já era confinada.

- Disseram-me que tinham filhos, eles não participam num jeito de vida melhor, para vós?

- Bem, é assim: os nossos filhos têm mais de trinta anos e se for preciso queixam-se de nós não os ajudarmos financeiramente, mas eles a nós, nem que seja para estarem connosco à beira-rio, não têm tempo. São bons filhos, mas é assim que pensam. Pensam neles. E nós atenuamos o impacto disto em nós, ou pintamos cor no que se vive agora dentro deles. Até os elogiamos quando falamos com outras pessoas. Dizemos que estão bem na vida e são inteligentes, etc., essas coisas. Nós nunca imaginámos que nos confinariam assim. Para eles, fazerem conversa connosco e companhia no estarmos juntos, é amputar muito tempo do seu mundo. Ou seja, para eles basta a mera regra a cumprir nas festividades. Eles desconfinam do grupo no Natal. Vêm aqui e não se demoram, e sempre levam algum…mas eles amam-nos, pode crer! Mas é assim.

- Então o confinamento nem sequer alterou o vosso estado psicológico? Nem o usar máscara vos incomodou?

O meu marido, um dia, até me disse: ó Laura já ninguém nos ouvia antes e agora é mais difícil; as máscaras até são boas a clarificar certas coisas. Eu não transmito o vírus dos problemas ou da tristeza que incomode os outros; os outros, ou fingem que não têm problemas, no olá como estão, nós ótimos, ou, com a ajuda da máscara, escondem algum sorriso de felicidade, o que é bom para eles, não vá terem de dividir com alguém, um vírus positivo.

- Obrigada. Obrigada pela entrevista que me concedeu.

Ah!, ó senhora jornalista, é verdade, escreva que estamos bem, não temos covid 19, ou julgamos não ter, não temos esperança nem medo, o que é fantástico face a tanta tragédia por aí.

                                                                                 

Teresa Bracinha Vieira

COMO VOLTAR À TONA DE ÁGUA…

 

A retoma da economia depois da pandemia do covid-19 vai demorar. E vai ocorrer gradualmente, consoante as atividades económicas e os países. A prevenção contra a pandemia vai ter de continuar, até porque vai haver grandes assimetrias na superação da doença. A livre circulação das pessoas será afetada e o tema fundamental vai ser o do combate ao desemprego e o da criação de valor. Começando pelas lições de 2008, importa recusar a ilusão monetária e financeira. O endividamento e o mero aumento da circulação monetária não criam riqueza. Temos de lembrar a regra de ouro das Finanças Públicas – só pode haver dívida pública para financiar despesa de investimento reprodutiva. Não basta lançar dinheiro sobre os problemas. E se aumentam as desigualdades, importa garantir a justiça distributiva – horizontal, com salários e impostos justos que garantam uma partilha de riqueza e a criação de valor; e a vertical, pela equidade intergeracional, reduzindo o endividamento.

 

Depois da crise, a prioridade terá de estar nas políticas de emprego, orientadas para a satisfação das necessidades fundamentais, o combate ao desperdício, a promoção de poupanças virtuosas e a melhoria da qualidade de vida, para que o desenvolvimento se oriente para as pessoas. Mas o tema do emprego obriga a repensar o tempo de trabalho. A situação atual de confinamento e de teletrabalho, e a política gradual de retoma, ensinam-nos que os horários de trabalho presencial terão de ser repensados. O grave problema demográfico dos países ricos obriga a criar políticas de conciliação familiar com horários flexíveis. As licenças de paternidade para marido e mulher e os horários flexíveis para os pais tem permitido melhorar as taxas de natalidade nos países nórdicos, sem esquecer o cuidado dos mais velhos.

 

Terão de ser considerados, assim, “bancos de tempo” com flexibilidade, em vez de uma lógica de horários rígidos. Isto, para conciliar as necessidades, a disponibilidade individual e o melhor aproveitamento das capacidades disponíveis. Os “bancos do tempo” permitirão acorrer a uma multiplicidade de tarefas sociais que têm de ser asseguradas por todos. Não devemos esquecer que a inovação vai obrigar à ligação das políticas do Estado, do mercado e das iniciativas privada, social e pública não estatal. Por iniciativa pública não estatal entendemos a das instituições sociais, culturais, académicas e científicas de utilidade pública ou natureza cooperativa. As políticas públicas têm de ser consideradas como catalisadores económicos e sociais. A inovação científica obriga a que a lógica do lucro não impeça a difusão do conhecimento. A criação de valor dependerá da articulação do Estado e da sociedade. A lógica Silicon Valley tem de ser completada com planeamento estratégico global e com redes coordenadas de informação e conhecimento.

 

Mas não haverá inovação sem aprendizagem. Daí uma atenção necessária à educação e à formação ao longo da vida. Uma parte dos “bancos do tempo” tem de ser ocupada com formação contínua relevante, afinada individualmente. Por outro lado, o ensino profissional terá de articular os níveis secundário e superior, com atenção à cooperação entre Universidades e Politécnicos. Não deve haver becos sem saída, nem canais rígidos e não comunicáveis entre si. Prosseguimento de estudos, vida ativa, mobilidade e cooperação internacional (Erasmus) têm de se articular.

 

Numa palavra, a prioridade é a promoção de valor e de um desenvolvimento justo e sustentável. O “doce comércio” de Montesquieu tem de se completar pela subsidiariedade. Urge tornar a informação conhecimento, e o conhecimento sabedoria. Para contrariar os egoísmos, temos de favorecer a solidariedade e o cuidado. Com instituições mediadoras, participadas e representativas, atentas a uma justiça complexa e equitativa, que favoreça a coesão e a sustentabilidade, é a democracia das pessoas, pelas pessoas e para as pessoas que está em causa. 

 

Guilherme d'Oliveira Martins
in Jornal Expresso | 18 de abril de 2020