Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE MARGARIDA VALE DE GATO 

  


Condições Mínimas


Esta sarça é interdita a matilhas;
há que mudar a pele para comer
o fogo. Não que eu faça render
qualquer talento, ou tenha em vasilhas
semi-intactas ilustres maravilhas:
uma lista de coisas a fazer,
solidão, pedra de isqueiro, um revólver,
e um aparelho já com pouca pilha
e que só uso eu; a nós vontade
basta – e alguma luz: pede-se intensa,
mas sem que obste o brilho à entrega cega,
aceitas? compreendes? aguentas?
no nervo negro desta densidade
penetra só sentindo que sustentas
e me conténs quando eu me desintegro.


In Relâmpago magazine nº26, 2010


Minimum Conditions


Wolf packs are barred entrance to this bush;
a change of skin must precede the eating
of fire. With this I am not boasting
of particular talents or hush-
ed-up wonders, semi-flawless flattery:
a to-do list, utter loneliness, bristle
cigarette lighter flint, a pistol,
a gadget almost out of battery
for my exclusive use. Willingness
suffices us – and light, hopefully bright,
although not outshining blind surrender
willl you accept? understand? take it in?
pierce the dark nerve of this denseness
but only if you’re able to hold tight
and wholly contain me while I fall asunder.


© Translation by Margarida Vale de Gato and Ana Hudson, 2010
in Poems from the Portuguese

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE MANUEL DE FREITAS 

  


Num livro de Dylan Thomas


Passados seis anos, pouco mais serás
do que isto: o marcador
que assinaste, subitamente descoberto,
uma frase que poderia ser um verso
(«nunca consegui amar nunca»)
a meio de um livro e da minha vida.
Esqueçamos, por esta vez, os desencontros,
a sombra magoada com que
os teus lábios pousaram sobre papel
de arroz – e arderam (o mesmo livro
me contou que não te serviu de filtro
o bilhete para o Seixal, 12 SET. 1996).
A outrem perguntaria se a arte pode ser razão
da arte, enquanto o ciúme (crescendo
no escuro) fulmina talvez as melhores páginas.
Ou nem isso faria: a manhã é lá fora
renovada promessa de abandono
e acabei agora mesmo de ver Mamma
Roma – mais um filme, a vida toda,
a separar-nos.
Quando afinal nada,
deste nada, ficará, «as I sail out to die»
com a última memória do teu nome.


in Blues for Mary Jane, 2004


In a book by Dylan Thomas


In six years time, you’ll be
little more than this: the bookmark
you signed, suddenly found again,
a sentence that could be a line
(‘I’ve never been able to love never’)
half way through a book and my life.
Let’s for once forget the misunderstandings,
the hurt wounded way
your lips touched the roll-up
paper – and got burnt (that same book
told me that the Sept 12, 1996 coach ticket
to Seixal didn’t make it as filter).
I’d turn elsewhere to ask if art can be the reason
for art, while jealousy (growing
in the dark) may perhaps strike the best pages.
Or I wouldn’t even do that: the morning outside
is a renewed promise of forsakenness
and I’ve just watched Mamma
Roma – another film, a whole life,
keeping us apart.
When, after all, nothing
of this nothing remains ‘as I sail out to die’
with the last memory of your name.


© Translated by Ana Hudson, 2010
in Poems from the Portuguese

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE MANUEL ANTÓNIO PINA 

  


As coisas


Há em todas as coisas uma mais-que-coisa
fitando-nos como se dissesse: “Sou eu”,
algo que já lá não está ou se perdeu
antes da coisa, e essa perda é que é a coisa.
Em certas tardes altas, absolutas,
quando o mundo por fim nos recebe
como se também nós fôssemos mundo,
a nossa própria ausência é uma coisa.
Então acorda a casa e os livros imaginam-nos
do tamanho da sua solidão.
Também nós um dia tivemos um nome
mas, se alguma vez o ouvimos, não o reconhecemos.


in Como se desenha uma casa, 2011


Things


In everything there’s a more-than-thing
staring at us as if saying: ‘It’s me’,
something that’s no longer there or was lost
prior to the thing, and that loss is the thing.
In certain high, absolute afternoons
when at last the world welcomes us
as if we too were the world,
our own absence is a thing.
Then the house awakens and the books imagine us
on the scale of their own loneliness.
Once we too had a name
but, if ever we heard it, we did not recognise it.


© Translated by Ana Hudson, 2011
in Poems from the Portuguese

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE LUÍS QUINTAIS 

  


6 (An Italy of the mind)


Na Itália da mente
não sabemos
se é de noite
ou se é de dia.
Na Itália da mente
nada se sabe
e tudo é matéria
de crença.
Na Itália da mente
a beleza
ainda é possível,
mesmo sob
cendrados céus
e talvez por isso.


inédito


6 (An Italy of the mind)


In the Italy of the mind
we don’t know
whether it’s night
or day.
In the Italy of the mind
nothing is known
and everything is the subject
of belief.
In the Italy of the mind
beauty
is still possible,
even under
the ashened skies
and that’s perhaps why.


© Translated by Ana Hudson, 2013 unpublished
in Poems from the Portuguese 

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE LUÍS FILIPE PARRADO 

  


Partes de um todo


Esta tarde, sentado num banco do jardim,
tentava ler um livro difícil
enquanto esperava por ti.
O livro tornava mais dura, mais penosa, a espera.
Então levantei os olhos das páginas,
pousei o livro, vi um homem novo
aproximar-se e passar à minha frente
com um saco de plástico
com maçãs vermelhas numa das mãos
e uma caixa de cartão, com ovos, na outra.
O saco de plástico era transparente
e revelava nitidamente o esplendor e a forma
perfeita das maçãs, todas muito juntas
como partes de um todo.
Não consegui deixar de as olhar,
e tu chegaste logo de seguida.
Só agora, depois do jantar
e da loiça lavada, me lembrei do livro
que ficou no banco do jardim.


in Entre a Carne e o Osso, 2012


Parts of a whole


This afternoon, as I sat on a park bench,
I tried to read a difficult book
while waiting for you.
The book made waiting harder, more painful.
Then I lifted my eyes from the pages,
put the book aside; I saw a young man
approaching and going by
holding a plastic bag
full of red apples in one hand
and a carton of eggs in the other.
It was a transparent plastic bag
clearly revealing the perfect shape
and splendour of the apples, all together
like parts of a whole.
I couldn’t stop looking at them
and just then you came.
Only now, having had dinner and done
the washing, I remember the book
left abandoned on the bench.


© Translated by Ana Hudson, 2010
in Poems from the Portuguese 

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE LUÍS FELÍCIO 

  


repito a inexorável argúcia dos salmos


repito a inexorável argúcia dos salmos
e amo os portais abertos diante da força da água
tento compreender o meu tempo
e o imponderável intuito do poema
não tenho outros olhos nem outras mãos
já não me mostras imagens
mas eu vejo as heras fazendo lábios
sombrios por interjeição e bafo
sou só boca fremente
e a terra aflita dos vulcões
água rosto incessante
diante das portas repito
os tropos a sonora legibilidade do lugar
sei que alguém espera sempre
o fruto maturado
a véspera da mão a água turva
pela cintura
sei que alguém espera sempre
como se esperasse
de gládio em punho
o florescimento das janelas
sei que alguém espera sempre um poema


in o som e a casa, 2010


I repeat the inexorable sagacity of the psalms


I repeat the inexorable sagacity of the psalms
and I love the open gates in the face of the water’s strength
I try to understand my time
and the weightless intent of the poem
I have no other eyes or hands
you no longer show me the images
but I can see the ivies shaping their sombre
lips through interjection and breadth
I am just a throbbing mouth
a troubled volcano ground
water’s incessant countenance
before the doors I repeat
the tropes the audible readability of the place
I know that someone is always waiting
for the mature fruit
on the eve of the hand murky water
to the waist
I know that someone is always waiting
as if waiting
holding the glaive
for the windows to blossom
I know someone is always waiting for a poem


© Translated by Ana Hudson, 2013
in Poems from the Portuguese 

 

POESIA

ODISSEIA (6)


XX

  


Se existir um leitor que reúna qualquer dia

com o próprio dia,

para ele escreverei

no sentido de o ouvir,

no sentido de abrir coisas,

no sentido de me dizer da morte antes do nascer

e do que significam as coisas antes de significarem.


XXI

  


Existe sim, uma arte no encurvar-se,

mas não sob um peso,

antes sob um não falar e um não calar

porque ambos abrem algo

num tempo

que se vai mostrando.


XXII

  


O que vi?

Vi sempre a mesma coisa:

tanta forma de morte que até se assiste ao seu envelhecer;

tanto pólen da piedade dos deuses

sem linguagem para o final,

quando até a bondade humana

se confunde.


XXIII

  


Embora hoje os sinos toquem,

eles estão equivocados.

Ainda a última morada antes da última se não escolheu

e ainda nem desafiámos o que nos resta,

nem sequer sabemos se o pensamento será fiel às suas ruínas

ou até se não existimos o suficiente.

Afinal.


XXIV

  


Receio qualquer porta que não reconheça a morte,

enquanto sem entrar e sem sair

e sem tempo,

aqui estou sem ter escrito uma escrita que um dia se possa ler

num algoritmo de milho.


XXV

  


É chegada a hora da canção.

Canta ela que para cá e para lá da morte ainda resta a transgressão

do muito que se não conhece.


XXVI

  


Debaixo da mesa, numa das suas raras entrevistas,

a morte afirmava nada saber do que lhe perguntavam.

Acrescia mesmo que se calhar, ela era vida num tempo diferente,

numa parte do real fora do nosso alcance,

ou não fosse impossível entender uma realidade

fora dela mesma,

como quem coloca flores que já emigraram ou ainda não chegaram,

dentro de uma jarra.


Teresa Bracinha Vieira

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

  


Escatologia


E, por fim, Deus regressa
carregado de intimidade e de imprevisto
já olhado de cima pelos séculos
humilde medida de um oral silêncio
que pensámos destinado a perder
Eis que Deus sobe a escada íngreme
mil vezes por nós repetida
e se detém à espera sem nenhuma impaciência
com a brandura de um cordeiro doente
Qual de nós dois é a sombra do outro?
Mesmo se piedade alguma conservar os mapas
desceremos quase a seguir
desmedidos e vazios
como o tronco de uma árvore


in Estação Central, 2012


Eschatology


And, at last, God returns
full of intimacy and unexpectedness
contemplated already from centuries above
humble measure of a verbal silence
we thought destined to be lost
See God climbing the steep path
that we have paced a thousand times
and stop to wait without impatience
meek as a sick lamb
Which one of us is the other’s shadow?
Even if no pity preserves the maps
we’ll come down close behind
rampant and empty
like a tree trunk


© Translated by Ana Hudson, 2012
in Poems from the Portuguese

POESIA

ODISSEIA (5)


XXIII


A morte é a raiz que lhe falta dentro e fora dela.

A morte só se apoia.


XXIV


Numa pausa concertada.

O olhar longe

numa ideia que é parte

de cá e de lá.

O olhar

numa entrega sem nada mais.

Sem a pergunta desnecessária.

Estorvo.


XXV


Também nos aproximamos de tudo o que inaugura um novo adeus,

um novo adeus que é apenas parte intermédia,

parte encurralada, insegura e ainda assim

experiência.


XXVI

  


De quantas vidas necessitamos para que se cumpra

uma morte?

Talvez se algo mudasse de sentido,

o pudéssemos saber,

mas sempre

a meia distância

de tudo.


XXVII


A morte tem de ser inteira,

sem fraude.

Os fantasmas que se passeiam nas ruas de nós,

conhecem

o quanto as mortes são

nossas experiências desarmantes,

o quanto não basta

cronologicamente arrumar

as circunstâncias.


XXVIII


A eternidade também nos esquece.

Sobretudo se já tivermos iniciado

a abolição dos pretextos,

esses mesmos que não aprenderam a morrer

nem a viver.


Teresa Bracinha Vieira