Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Tanta gente que foi morta ao longo dos séculos, vítima do ódio e de interesses económicos, políticos, geoestratégicos, imperativos de monopólio religioso, e em nome de Deus!... Haverá coisa mais abjecta e absurda? É evidente que o deus em nome do qual arbitrariamente se torturou, se assassinou, se vandalizou, não existe. Não passa de um ídolo execrável, que serviu de legitimação a interesses brutais, sujos, selváticos. Escusado será dizer que esse deus idolátrico produz e tem de produzir inevitavelmente ateísmo. Matar, mandar matar está nos antípodas do santo nome do Deus vivo.
E hoje essa tragédia continua. E porque entre nós não se fala disso, quero (entre parêntesis) apresentar alguns números sobre a perseguição dos cristãos, sabendo-se que o cristianismo é hoje a religião mais perseguida no mundo. Não é a única, evidentemente — pense-se, por exemplo, nos rohinga, adeptos da religião muçulmana e na sua perseguição brutal em Myanmar, país maioritariamente budista. Segundo a ONG “Puertas Abiertas”, no seu relatório de 2024 referente à perseguição dos cristãos, acabado de ser publicado, entre 1 de Outubro de 2022 e 30 de Setembro de 2023, 14.766 lugares de culto foram destruídos ou encerrados e 4.998 cristãos foram assassinados. Um em cada 7 cristãos é perseguido no mundo — um em cada 5 na África, 2 em cada 5 na Ásia, um em cada 16 na América Latina. A Coreia do Norte voltou a encabeçar o ranking negativo de perseguição mais severa, seguindo-se Somália, Líbia, Eritreia, Iémen, Nigéria, Paquistão, Sudão, Irão e Afeganistão, ocupando Índia e China os lugares 11 e 19, respectivamente. Segundo o Relatório, são 57 os países onde os cristãos enfrentam uma perseguição severa...
Voltando à temática das religiões, constatamos que a corrupção do óptimo é péssima. A religião, que é, pode e deve ser a pátria da expansão in-finita do ser humano, da libertação, da dignidade e dignificação de todos, do amor, da alegria, da paz, do sentido último, também foi, é e pode tornar-se o espaço da loucura toda, à solta. Na religião, houve e há o melhor e o pior: nela, aconteceu e acontece a subida ao céu do humano heróico até ao divino; nela, desceu-se até ao inferno da desumanidade diabólica. Neste início ainda do século XXI, com a confusão e o medo instalados, reflectir sobre esta realidade é imprescindível.
O que durante tanto tempo Hans Küng, recentemente falecido, sublinhou — a necessidade do diálogo inter-religioso para ser possível a paz no mundo — é cada vez mais urgente. Entende-se mais claramente do que nunca que a obra do famoso teólogo se oriente pelo lema: "Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso globo sem um ethos global, um ethos mundial."
Este diálogo assenta em quatro pilares fundamentais. Primeiro: todas as religiões, desde que não só não se oponham ao Humanum, mas, pelo contrário, o afirmem e promovam, são reveladas e verdadeiras. Segundo: as religiões são manifestações e encarnações da relação de Deus com o Homem e do Homem com Deus. Todas são relativas, no duplo sentido de relativo, dito já no étimo latino: relativas, na medida em que estão inevitavelmente inseridas num determinado contexto histórico-social, e relativas, no sentido de que estão referidas, isto é, em relação com o Absoluto, mas elas próprias não são o Absoluto. Precisamente este segundo pilar exige o terceiro: se não são o Absoluto, embora referidas a ele, então os homens e mulheres religiosos devem dialogar para melhor se aproximarem desse Mistério divino já presente em cada religião, mas sempre transcendente a cada uma e a todas. Não se trata, portanto, de mera tolerância religiosa, que pressupõe ainda uma superioridade de quem tolera o outro considerado inferior. É o próprio Mistério infinito de Deus que exige o diálogo para que os crentes se enriqueçam mutuamente num sempre a caminho do Mistério que se revela e ao mesmo tempo se oculta, e do qual o ser humano não pode apoderar-se nem dominar. Deste diálogo fazem parte os ateus, pois são eles que permanentemente previnem os crentes contra a idolatria e a desumanidade. Finalmente — é o quarto pilar —, se Deus é o Mistério que tudo penetra e a todos envolve, então o respeito pelo outro crente, pelo outro homem, por todas as criaturas, não é algo de acrescentado à fé religiosa, mas exigido pelo próprio dinamismo dessa fé. Acreditar em Deus implica em si mesmo acreditar no ser humano, em todo o ser humano.
E uma última observação, essencial. Não haverá paz entre as religiões e com as religiões, sem dois pressupostos fundamentais, e, aqui, peço desculpa por fazer um apelo nomeadamente ao islão, porque aquilo que custou tanto a perceber e concretizar na e pela Igreja católica, vai ser muito mais difícil para o Islão. Primeiro: condição fundamental é a leitura histórico-crítica dos textos sagrados, que não admitem de modo nenhum uma leitura literal. Segundo: a laicidade do Estado, a separação do Estado e da(s) Igreja(s), o Estado não tem nenhuma religião, para poder salvaguardar a liberdade de todos, o que não significa de modo nenhum laicismo, que seria a pretensão de remeter a religião só para o espaço privado, como se ela não tivesse lugar no espaço público.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 27 de janeiro de 2024
Olhamos e perguntamos: “Que anda esta gente toda a fazer?" A resposta é simples, sempre a mesma: "A viver.” É isso: a viver.
O problema é este: são tantas as vezes em que se não dá por isso: o milagre que é viver! Assim, numa sociedade na qual o perigo maior é a alienação - viver no fora de si -, quando a política se tornou um espectáculo tantas vezes indecoroso, quando a mentira e a corrupção imperam, quando Deus foi substituído pelo Dinheiro e o mundo se tornou globalmente perigoso, com a Terceira Guerra Mundial em curso, embora ainda só “aos pedaços”, como diz Francisco, é essencial parar, fazer uma pausa. Porquê e para quê? Como disse Juan Ramón Jiménez: “Devagar, não tenhas pressa, porque aonde tens de ir é a ti mesmo.”
E lembrei-me do meu querido amigo jesuíta Juan Masiá, professor de Filosofia em Tóquio, e de um dos seus livros, precisamente com o título: Vivir. Espiritualidad en pequeñas dosis. "Deixo-me acariciar pela brisa, saboreio a experiência de estar vivo, sentir palpitar a minha vida. E penso: viver, que maravilha e que enigma! Paro em silêncio a saborear esta vivência. Estou vivo, mas a minha vida supera-me: não é só minha nem a controlo. Viver é ser vivificado pela Vida que nos faz viver." A Vida vive-te, vive na Vida!
E aí estão as tarefas para a espiritualidade: dar-se conta do viver; agradecer por a Vida nos fazer viver, nos vivificar: vivemos graças à Fonte da Vida; darmos vida uns aos outros, na compaixão e na ajuda mútua para nos libertarmos. “O que é o mar? O que permite o peixe nadar. O que é o ar? O que permite o pássaro voar. O que é o Nada e o Vazio? A Vida que te faz viver. Vejo a ervita entre as gretas do pavimento. Donde lhe virá a força para abrir passagem entre o asfalto? Palpo aqui uma Presença latente. Não sei quem é. Mas brotam lágrimas de agradecimento.” Então, morrer não é senão sair para dentro da Vida verdadeira, definitiva e eterna: “vida no seio da Vida da vida.”
No meio do rebuliço estonteante, é decisiva a pausa e o silêncio. Chama-se cultura da pausa à tradição oriental de dar importância aos silêncios numa conversa, aos intervalos entre as palavras, aos vazios nas letras, aos espaços livres na arquitectura, ao não dito na mensagem, à receptividade na contemplação. Parar para ouvir o silêncio e contemplar: em vez de olhares para ti e olhar para mim, deixemo-nos olhar ambos pela "Realidade-Assim-Sempre-Presente, cuja aura comum nos envolve". Deixa o eu superficial, transcende, descendo até ao eu profundo e ao "Assim-Sempre-Presente", que se manifesta. Sem pausas de silêncio, como poderíamos ouvir uma mensagem ou uma sinfonia? Sem intervalos, margens e vazios nas letras e entre as frases, como poderíamos ler e entender? E verdadeiramente viver?
O que é a liberdade? "Agir de acordo com o melhor de si mesmo." Mas eu não sou eu sozinho. Perguntou ao jesuíta o monge budista: "Em que é que a sua religião e a nossa se parecem?" E respondeu: "Vós falais do amor de Deus e nós da compaixão do Buda. Mas nem vós nem nós praticamos. É nisso que mais nos parecemos."
E como se reza? "Crer, viver e conviver" era o lema de um encontro de meditação e espiritualidade inter-religiosa, sendo um terço dos participantes budistas, a maioria sem ligação religiosa e uma minoria católicos. E ali se elaborou, com todos de acordo, colocando em duas colunas o "Pai Nosso" cristão e uma paráfrase do partilhar a espiritualidade inter-religiosa, a "Oração à Vida, a partir da vida": "Fonte da Vida, que estás na vida, que estás na minha vida, que estás em toda a parte, vivificando tudo. Que nos demos conta de que o Reinado da Vida vem e o construamos, vivificando-nos, dando vida uns aos outros e em tudo dando um sim à Vida. Que recebamos força de viver, fortaleza de corpo e espírito com pão de vida e esperança. Que nos capacitemos para conviver em reconciliação, recebendo e dando perdão, e para conviver com as pessoas mais desfavorecidas, com quem é diferente e com quem nos mostra inimizade. Que sejamos libertos de todo o mal: do mal no nosso interior e do mal que vulnera as relações humanas. Que dê fruto o trabalho pela libertação do mal social." Jesus ensinou: "Quando rezardes, dizei: Obrigado, Abbá, Pai e Mãe nossa. Dá-nos o pão do futuro no presente. Reconcilia-nos e livra-nos do mal."
E também me lembrei da oração de Fernando Pessoa:
"Senhor,
Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.
Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faz com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.
Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.
Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a Lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.
Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim."
Ah! E não vou esquecer o Nobel da Literatura Juan Ramón Jiménez: “Devagar, não tenhas pressa, porque aonde tens de ir é a ti mesmo.” E lá no fundo de ti é o Mistério, o mistério da Vida.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 20 de janeiro de 2024
Em todas as licenciaturas, há uma cadeira se imporia: Antropologia, pois é sempre o ser humano que está em causa.
1 . E quando falamos do ser humano, temos de ter sempre em consideração que se trata de uma unidade em tensão. Assim, ele apareceu na história da evolução e, por isso, é preciso dizer que ele vem da natureza, mas, ao mesmo tempo ele é na natureza, pois é nele que a natureza e a evolução sabem de si. Ele é no tempo: vem do passado, vive no presente e projecta-se no futuro. Ele é simultaneamente impulso, emoção e razão. É consciente, consciente de que é consciente, mas mergulha no inconsciente, o isso em nós sem nós, de tal modo, que por vezes perguntamos: eu fiz isso?, aí não era eu. Limitado, o ser humano é uma abertura ilimitada, nunca estamos suficientemente feitos, estamos abertos a tudo, à Transcendência.
2. Deste modo, encontramos o cuidado. Cuidaram de nós e nós devemos cuidar: cuidar de nós (desde o que comemos ao repouso...), cuidar dos outros (só sou eu face ao tu), cuidar da natureza (há uma ligação estreita entre a saúde e o ambiente), cuidar do Sagrado, de Deus.
3. G. K. Chesterton escreveu: “A coisa mais poética, mais poética que as flores, mais poética que as estrelas, a coisa mais poética do mundo é não estar doente.” Aqui, porque por vezes, nos sentimos mal e caímos doentes, encontramos a medicina. Precisamos de alguém com conhecimentos e técnica que nos ajude, mas no quadro de um conceito holístico de saúde. Quando vamos ao médico, esperamos evidentemente encontrar alguém que perceba do assunto, mas que simultaneamente nos trate como pessoas e atendendo àquela unidade tensa já exposta. O encontro médico não pode reduzir-se a este quadro: de um lado um técnico e do outro uma máquina desarranjada, pois deve ser um pacto entre alguém que sabe e outro alguém que precisa de ajuda. Há estudos que mostram como uma boa relação de confiança entre o médico e o doente é fundamental para a cura — em latim, cuidado diz-se cura.
Quando estamos atentos às palavras, elas dizem o essencial. Clínica vem do grego klínein, que significa inclinar-se : o clínico inclina-se sobre alguém em necessidade. Hospital vem de hospes, hóspede: é como tal que o doente deve ser tratado.
4. Sobre a importância decisiva da saúde dizem as nossas saudações quotidianas quando encontramos alguém, e isso nas várias línguas: “Como está, como estás?” A palavra valor vem do latim: vale!, a palavra usada pelos romanos para saudar alguém, também na despedida: “passa bem!”. É essencial um conceito holístico de saúde — do grego hólon, que significa o todo, não enquanto soma das partes, mas o todo que é mais do que essa simples soma.
Vamos de novo às palavras e ao seu étimo, e encontramos o elo entre a espiritualidade, a religião e a saúde. A palavra medicina tem na sua base um radical med-, que dá origem a moderação, meditação e medicina. Saúde provém do latim salus, salutis, na base também de salvação. E saudar vem de salutem dare. Em inglês, saúde diz-se health e santo diz-se holy, em conexão com the whole ( o todo); em alemão, temos heilig para santo e heilen significa curar. Em português, de uma pessoa com saúde dizemos que está são, a mesma palavra que usamos para São João e São José...
E vamos ao encontro de estudos científicos que mostram uma relação globalmente positiva entre a religião e a saúde – repito: significativamente, o étimo latino de saúde e salvação é o mesmo: salus, salutis. Apenas alguns exemplos — quem estiver interessado poderá procurar outros e um estudo mais aprofundado da questão no meu mais recente livro, O Mundo e a Igreja. Que Futuro?
Mario Beauregard, investigador de neurociências na Universidade de Montréal, escreve que se acumulam provas consideráveis que mostram que as experiências religiosas, espirituais e/ou místicas “estão associadas a melhor saúde física e mental.” Na sua obra The Spiritual Brain, cita 158 estudos médicos sobre o efeito da religião na saúde, concluindo que 77% fazem menção de um efeito clínico positivo. Outro estudo mostrou que “os adultos mais idosos que participam em actividades religiosas pessoais antes do aparecimento dos primeiros sinais de handicap nas actividades do quotidiano têm mais esperança de vida do que os que não o fazem.” O neurocientista Miguel Castelo-Branco, da Universidade de Coimbra, escreveu: “A medicina baseada na evidência tem sugerido que a religiosidade e a espiritualidade influenciam de forma efectiva o desenlace em muitos domínios clínicos, incluindo a dependência de drogas... A experiência espiritual é benéfica para a saúde humana e o tipo de bem-estar psicológico que proporciona pode ser activamente procurado.”
Neste contexto, encontramos, evidentemente, a questão fulcral da religião e do sentido. Foi concretamente Viktor Frankl, sobrevivente de Auschwitz e fundador da chamada terceira corrente de psicoterapia de Viena, que sublinhou, a partir aliás também das suas terríveis experiências dos campos de concentração, a relação entre o sentido e a cura. O que move o ser humano é o sentido, de tal modo que tudo suportará, se encontrar um sentido, e a religião tem a ver precisamente com o sentido de todos os sentidos, o Sentido último. Na busca de Sentido Último, a pessoa, inconscientemente, procura Deus — Der unbewusste Gott (O Deus inconsciente) é uma das suas obras.
Escusado será dizer que é essencial a imagem que se tem Deus. Que Deus?
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 18 de novembro de 2023
Actualmente, porque, com a televisão, temos acesso às imagens, talvez seja sobretudo perante os horrores das guerras que se pode ficar estarrecido perante o silêncio de Deus. São bombardeamentos que não deixam pedra sobre pedra, que matam indiscriminadamente homens, mulheres, crianças, e ficamos esmagados sobretudo pela dor, o clamor, as lágrimas, a desorientação das crianças inocentes. Onde está Deus?
Joseph Ratzinger, chamado aos 17 anos para o serviço militar do Reich, foi desertor e prisioneiro dos americanos. Já Papa Bento XVI, como já aqui escrevi, esteve em Auschwitz e fez um discurso dramático e deveras emocionante: "Tomar a palavra neste lugar de horror, de crimes contra Deus e contra o ser humano sem precedentes na História, é quase impossível, e é particularmente difícil e deprimente para um cristão, para um Papa que procede da Alemanha. Num lugar como este faltam as palavras; no fundo, só há espaço para um atónito silêncio, um silêncio que é um grito interior para Deus: Porque te calaste? Porque quiseste tolerar tudo isto? Onde estava Deus nesses dias? Porque se calou?”
Perante o horror do mundo e todos os mortos e todas as vítimas — ah!, as vítimas inocentes — e o aparente silêncio de Deus, percebemos a tentação do ateísmo. E até poderá tratar-se de um ateísmo moral, um ateísmo ad majorem Dei gloriam, para a maior glória de Deus, como se, perante o horror, a justificação de Deus fosse não existir. É-se ateu por causa de Deus, que é preciso recusar por causa da moral: um mundo com tanta dor, tantas injustiças, tanto sofrimento de inocentes, tanto cinismo brutal do poder, como pode ser criação de um Deus bom? Mas a quem recusa Deus assalta-o outra pergunta: se Deus não existe, donde vem o bem e a nossa revolta, desde a raiz de nós, contra o mal e a morte, clamando por justiça e salvação para as vítimas inocentes? Porque, sem Deus, afundamo-nos no nada e anula-se, em última análise, a própria diferença entre bem e mal. Por isso, segundo Jürgen Habermas, para mim o maior filósofo vivo, agnóstico, o que mais nos inquieta é “a irreversibilidade dos sofrimentos do passado — a injustiça contra as pessoas inocentes vítimas de maus tratos, aviltamento e assassinato — sem que o poder humano possa repará-los”, acrescentando: “A esperança perdida da ressurreição” sente-se como um grande vazio.”
Há uma pergunta decisiva — para Max Horkheimer, da Escola Crítica de Frankfurt, a que Habermas também está ligado, é mesmo “a pergunta fundamental de Filosofia” —: o que podem esperar as incontáveis vítimas inocentes da História? Quem lhes fará justiça? As vítimas inocentes clamam, e um grito sem fim, ensurdecedor, percorre a História. Há uma dívida incontável para com essas vítimas. Quem a pagará?
Max Horkheimer e Theodor Adorno, principais representantes da Escola Crítica, com quem Bento XVI entrou em diálogo na sua encíclica sobre a esperança, “Salvos em Esperança”, viveram filosoficamente a inconsolável “tristeza metafísica” da impossibilidade de fazer justiça às vítimas da História. De facto, mesmo supondo, no quadro do marxismo e da ideia do progresso moderno, que algum dia fosse possível a edificação de uma sociedade finalmente justa, transparente e reconciliada, ela não poderia ser feliz. A razão é simples: ou essa sociedade se lembrava de todas as vítimas do passado, que não participam dela, e então seria atravessada pela infelicidade, ou não se interessava por essas vítimas, e então não era humana, porque não solidária.
Adorno e Horkeimer exprimiram uma filosofia em tenaz: por um lado, não podiam acreditar num Deus justo e bom; por outro, há uma verdade da religião, apesar de todas as suas traições no conluio com o poder e os vencedores: a religião “no bom sentido” é, segundo Horkheimer “o anelo inesgotável, sustentado contra a realidade fáctica, de que esta mude, que acabe o desterro e chegue a justiça”. Não se trata de um desejo egoísta, mas da esperança contrafáctica de que a realidade dominante da injustiça não tenha a última palavra. Daí, “o anelo do totalmente Outro”, o “anelo da justiça universal cumprida”, “a esperança de que a injustiça que atravessa a História não permaneça, não tenha a última palavra.”
Esta esperança tem de traduzir-se numa práxis solidária tal que, como disse de modo incisivo Kant, “a práxis tem de ser tal que não se possa pensar que não existe um Além.” Nesta práxis, está implicado o pensamento do Absoluto, como exigência moral e como anelo de que o finito e o mundo da injustiça não sejam a ultimidade e o definitivo. Também neste sentido, Adorno escreveu que “o pensamento que não se decapita desemboca na Transcendência”. Neste domínio, a única filosofia legítima seria “o intento de contemplar todas as coisas como aparecem à luz da redenção”. A pergunta pela esperança truncada das vítimas, que acusam o mundo da história dos vencedores, obriga a pensar para lá dos limites da imanência, colocando a pergunta pelo Absoluto enquanto pergunta pela justiça universal.
No seu diálogo com a Escola Crítica de Frankfurt, Bento XVI reconheceu que a necessidade individual da realização plena e da imortalidade do amor já é “um motivo importante para crer que o ser humano está feito para a eternidade”, “mas só o reconhecimento de que a injustiça da História não pode de modo nenhum ter a última palavras” convence da necessidade da ressurreição dor mortos e da vida eterna.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 4 de novembro de 2023
UM DIÁLOGO ECUMÉNICO SÉRIO por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim:
Chegou-me hoje uma carta breve do M... Começava assim: "Teço / solidão e silêncio /e não esqueço / as ditosas horas /em que fui feliz..." Pouco mais dizia, sabes bem como ele sempre foi solitário e silencioso sobre si. Inesperado, por isso, foi ouvi-lo dizer aquilo. Estava escrito, mas era como um desabafo saído do coração na boca. Deixou-me perplexo. Soube, antes, que ele anunciara aos seus alunos que se retirava. E que alguns deles lhe tinham escrito, sem nada mais pedirem, que não esqueceriam o muito que ele lhes ensinara... Ao que apenas respondera que nunca ensinara nada, que apenas partilhara coisas queridas do seu coração, tão queridas que até lhe tinham passado pela cabeça! Conheci-o de pequeno, menino como eu. Ambos órfãos de pai, irmãos de alma nos tornámos e ficámos. Eu, talvez, mais aparentemente condescendente, mais convencional. Quiçá rebelde e refilão, mas sempre atento à circunstância. Ele, ele sempre gostou do desacordo como modo de interrogação. E nunca o escondeu. Questionar, contestar, sempre foi, para o M..., não um capricho, nem uma leviandade, mas antes o seu modo pessoal de estar com os outros, de lhes dizer que os amava porque respeitava a inteligência deles e os considerava capazes de reverem ideias adquiridas. Por isso mesmo, detestava o "fala barato", o presunçoso. Odiava a mediocridade. Dizia que as constipações se curam de janela aberta, que um cérebro emperrado só o é por não querer mexer-se! Claro que se dizia que tinha "mau feitio". Mas, com raras exceções, os que com ele privaram, alunos e colaboradores, reconheceram-lhe e retribuíram-lhe a amizade com que ele, mesmo aparentemente zangado, generosamente lhes fazia justiça. Muitas vezes me lembrou o Padre Chenu, frei Marie-Dominique. Curiosamente, é com homens assim que aqueles a quem, por preconceito obedecido, chamamos infiéis ou incréus, finalmente se abrem mais. Pois não há maior elogio da diferença - como parceira de diálogo - do que interrogá-la connosco. O documento "De Oecumenismo", do Concílio Vaticano II, trata também das relações da Igreja, e da fé católica, com o Islão. Essa parte, como referiu o Cardeal Béa ao apresentar o documento aos dois mil bispos reunidos na Basílica de S. Pedro, teve a aprovação prévia do Institut Dominicain d’Études Orientales du Caire, considerado - tal como o Instituto Pontifício de Estudos Orientais da Tunísia, dos Padres Brancos - uma autoridade na matéria. Esse Instituto e a sua qualidade são fruto da visão e da persistência de Marie-Dominique Chenu. Conheci-o no Saulchoir, na festa de S. Domingos, a 4 de agosto de 1941. Fui lá para visitar um estudante dominicano, então discípulo do Padre Chenu, depois um dos primeiros membros do Instituto do Cairo e, hoje ainda, residente em Kabul, no Afeganistão. Deves saber quem, é de uma família com que temos alguns laços de parentesco: falo do frei Sérgio de Laugier de Beaurecueil. Na altura, em plena guerra, o Padre Chenu ia formando o primeiro grupo de religiosos dominicanos que integraria o Instituto, dotado de autonomia e oficialmente reconhecido em 1953, a 7 de março, na festa de S.Tomás de Aquino: Jorge Anawati, egípcio, cuja língua materna era o árabe, e que foi o primeiro presidente, Tiago Jomier que, para o efeito foi estudar árabe e islamologia para a Sorbonne, e o nosso parente que, antes de entrar para a Ordem dos Pregadores, escolhera como 2ª língua, no liceu, o árabe falado no Egipto! Para se instalarem no Cairo, tiveram ao dispor o convento edificado pelo Pe.Jaussen, professor na Escola Bíblica de Jerusalém, em 1928, para receber os estudantes daquela escola dominicana no tempo que passavam no Egipto, para se familiarizarem com a arqueologia local e seus achados e visitarem o Sinai. Aliás, já o Rei Fouad convidara o Pe.Jaussen a fundar uma academia de sábios dominicanos no Cairo, ideia que ficou na memória da Ordem, por ser tentadora a fundação de um centro de estudos sobre o Islão na cidade onde se encontra a maior universidade muçulmana do mundo... Ideia que, nos anos 30, depois de uma ida a Jerusalém e ao Cairo, o Padre Chenu expôs, em Roma, ao Cardeal Tisserant, ex-aluno da Escola Bíblica e Prefeito da Congregação Oriental no Vaticano. Vale a pena citar-te um texto do Pe. Anawati: "Ninguém melhor do que o Pe.Chenu poderia sentir a importância e urgência de tal Centro... O seu íntimo conhecimento da Idade Média há muito o tinha sensibilizado para o problema que o "arabismo" levanta. Sabia o que tinham sido, para Santo Alberto e S. Tomás, Avicena e Averroes, conhecia melhor do que ninguém a importância das fontes árabes para o estudo técnico das ideias filosóficas na Idade Média. Muito atento ao movimento das ideias, à animação das culturas, às possibilidades enriquecedoras dos intercâmbios culturais, tendo medido a importância atual de uma religião como o Islão, à qual pertencem mais de 400 milhões de homens (o texto é de 1964), e que tem um passado tão ligado aos destinos do Ocidente, logo percebeu o papel que a Ordem de S. Domingos devia desempenhar nesse domínio". Sobretudo, minha Princesa, porque a guerra, a ascensão do comunismo, a confusão das mentes europeias perante o absurdo aparente de tudo, o movimento ecuménico cristão, o previsível advento de novos Estados-Nação com novos centros de expressão religiosa que escapariam ao controlo político, nos protetorados e colónias que se emancipavam das potências europeias, tudo isso aconselhava a humildade, o respeito do outro e o diálogo. É espantoso para muitos, admirável para todos, que o Vaticano do Papa Pio XII tenha expressamente instruído os fundadores do Instituto Dominicano de Estudos Orientais do Cairo para que se concentrassem mais na tarefa de mostrar ao mundo - designadamente à cristantade e ao mundo muçulmano - a mensagem religiosa e espiritual do Islão, do que em fazer proselitismo religioso. Assim, este Centro de Estudos é, ainda hoje, como pude observar numa recente viagem ao Egito, um ponto de encontro, no mundo árabe e universitário, do diálogo inter-religioso. Nessa ocasião, voltei às "Cartas do Egipto" do jesuíta Teilhard de Chardin que, em 1907, do Cairo escreve a seus pais, sobre o regresso a casa de peregrinos a Meca: "Todo o cortejo penetrava lentamente na rua que ladeia os grandes hotéis, estorvando a circulação mas provavelmente para grande alegria dos turistas. O lado impressionante da cerimónia é ver os indígenas acorrerem em grande número ao santo que regressa de Meca, a fim de lhe beijarem as mãos: aí também há uma ideia muito religiosa e muito elevada"... Mais uma curiosidade: na edição das "Lettres d´Égypte" pela Montaigne, em 1963, a apresentação prefacial é feita por Henri de Lubac, jesuíta também e que, com os dominicanos Congar e Chenu, de quem é amigo, foi teólogo do Concílio Vaticano II e... medievalista! A introdução de uma perspetiva histórica fundamentada na investigação teológica trouxe alma nova à reflexão de uma religião incarnada." Com esta carta de Camilo Maria, ocorreu-me algo que eu mesmo disse a um jovem padre, meu amigo, e que não repetirei aqui. Apenas recordo que, além da tradução do "Shifá" de Avicena, a obra mais celebrada de frei Jorge Anawati tem por título "Introduction à la Théologie Musulmane".
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 05.07.13 neste blogue.
Afinal, não há padrões absolutos de beleza: ser bonito é relativo. Hoje, procura-se a elegância até aos limites da anorexia. Mas nalgumas aldeias do interior ainda hoje os mais antigos dirão a uma pessoa jovem mais corpulenta vinda da cidade: “Como está bonita!”... Segundo o dito: gordura é formosura. É que, tradicionalmente, não era necessário cultivar a elegância, pois a carestia, o trabalho braçal duro e a miséria encarregavam-se de impor a magreza por vezes esquelética. Cá está: os gordos, em princípio, eram ricos. Nesses tempos também, a maioria das pessoas trabalhava nos campos, de sol a sol: a pele era fatalmente tisnada. Por isso mesmo, a beleza andava associada à pele branca. Ficaram famosos os banhos com leite de burra na antiga Roma. A alvura da pele significava ser senhor, estar em casa, não precisar de trabalhar no campo...
Depois, com a revolução industrial, a maioria começou a trabalhar em grandes fábricas e escritórios, longe do sol. Por isso, dominava a pele branca. A pele bronzeada tinha então agora a ver com férias e a possibilidade de viajar...
Na base destes comportamentos e critérios está o impulso de marcar a diferença e impor-se aos outros. É daí que surge também a importância dada à marca do carro, ao tipo de cartão de crédito, ao modelo do telemóvel... Mesmo as crianças exigem vestir segundo a marca a, b ou c, a ponto de um miúdo se ter virado para os pais que não podiam comprar roupa de marca: era preferível ter tido outros pais mais ricos...
Também já não se escolhe o local de férias tanto em função do descanso, da tranquilidade, do repouso, da cultura, como da publicidade, da moda, do poder contar aos amigos, aos vizinhos, aos colegas de trabalho, deslumbrando-os..., a ponto de a oração mais frequente antes de se partir para férias ser: Senhor, que, quando regressarmos, encontremos alguém disponível para contemplar as fotografias e os vídeos que fizermos!...
É preciso parecer e aparecer. Corremos até o risco de nos afundarmos numa civilização do aparecer e do parecer, que já não procura o sentido da autenticidade da existência...
A filosofia nasceu da necessidade constitutiva do ser humano de distinguir entre a opinião e a verdade, entre o parecer e o ser, entre a aparência e a realidade. O que é a realidade verdadeira? Também a religião só se compreende na medida em que se confronta não com aparências, mas com a realidade e a verdade. Por exemplo, os místicos sempre perceberam que a realidade mais profunda, eterna, não se confunde de modo nenhum com o banal, a superfície das coisas: o visível é a visibilidade do invisível e é lá no invisível que se encontra o verdadeiro, o bem, o belo, a eternidade e o que salva. Por isso, Jesus preveniu: “De que vale ao Homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua vida?”. Como disse também recentemente numa entrevista à “Visão” o best-seller Yuval Noah Harari, somos indomáveis, porque “por um lado somos mais poderosos do que qualquer outro animal do mundo, por outro, isso também tem que ver com o facto de sermos insaciáveis. Não interessa o que tenhamos conseguido alcançar, queremos sempre mais. Se temos um milhão, queremos dois milhões, se temos dois milhões, queremos dez milhões. O mesmo em relação ao poder: nunca estamos satisfeitos com o que temos porque, na verdade, não sabemos como traduzir esse poder em felicidade. Somos milhares de vezes mais poderosos do que éramos na Idade da Pedra, mas não somos significativamente mais felizes. Se não aprendermos a parar, a desacelerar, o mais provável é que nos destruamos a nós, e a todo o ecossistema.”
Hoje desconfia-se da razão e da possibilidade de alcançar a verdade: estamos, mais uma vez, sob o comando da banalidade e a ameaça do relativismo céptico e da retórica sofística, em que o decisivo já não é a verdade e o bem, mas o êxito a qualquer preço, a conquista a todo o custo do dinheiro, do prazer, da fama, a procura desenfreada do poder, da notoriedade, do triunfo social e mediático: quem não aparece não existe. E não se teoriza até sobre a pós-verdade? Ah! E as redes sociais!... e o constante dedar... E, assim, como encontrar a verdade? Na vertigem do dedar, um diz uma coisa, outro diz o seu contrário, o terceiro nem uma coisa nem outra... Mais: hoje estão aí, cada vez mais gigantescos, o poder e a ameaça da Inteligência Artificial. De facto, numa conversa online, já começa a não se poder ter a certeza de que do outro lado se encontra outro ser humano ou um bot. Os perigos são tantos e de tal grandeza que investigadores, incluindo criadores eles próprios da Inteligência Artificial, estão a chamar a atenção para o perigo do fim da civilização humana, pedindo, por isso, uma moratória nos avanços desta tecnologia. O linguista Noam Chomsky advertiu: “É o ataque mais radical” ao pensamento, à inteligência. De novo Harari: a IA “é uma bomba atómica para a política”, que pode acabar com a democracia. O Papa Francisco, representantes do G7 e a União Europeia esperam encontrar, antes que seja tarde, acordos para travar perigos e ameaças incontroláveis.
Pelo caminho da vulgaridade, da falta da busca da verdade, com a ameaça nuclear e ecológica, pondo fim ao humanismo, o que vai restar? Afinal, o que queremos? Não precisaremos de parar, reflectir, para podermos ir ao encontro do essencial? E onde se encontrará o essencial?
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 10 de junho de 2023
Como foi possível ensinar e pregar que Deus mandou o seu Filho Jesus para ser crucificado, pagando assim a dívida infinita da Humanidade para com Ele? Desse modo, Deus aplacou a sua ira e reconciliou-se com a Humanidade. Esse seria um Deus no qual não se pode acreditar: um Deus sádico, bárbaro, vingativo. Face a esse Deus é preciso ser ateu. Esse não seria o Evangelho, uma notícia boa e felicitante, mas um Disangelho.
Pelo contrário, o que Jesus anunciou foi realmente o Evangelho, notícia boa e felicitante, repito. E fê-lo por palavras e obras. Esta é a notícia, a melhor notícia que a Humanidade ouviu na sua História: Deus é bom, é Pai e Mãe de todos e o seu interesse é a alegria, a felicidade, a realização plena de todos os seus filhos e filhas.
Nem todos estavam nem estão de acordo com esta mensagem, pois se Deus é bom eu também devo ser bom, se Deus não se vinga eu também não me posso vingar, se Deus é bom, Pai e Mãe de todos os seus filhos e filhas, não pode haver guerras de destruição e horror entre eles. A mensagem de Jesus ia contra os interesses de muitos, nomeadamente contra os interesses da religião oficial da lei, uma religião que oprimia o povo, e contra os interesses imperiais de Roma — a finalidade dos impérios não é explorar? Por isso, os sacerdotes do Templo coligaram-se com Roma, julgaram Jesus, que foi condenado à morte e morte de cruz, a morte que os romanos davam aos escravos e subversivos. Jesus morreu assassinado pelos interesses dos que se opõem aos interesses de Deus, do Deus bom, Pai e Mãe de todos. Jesus não se acobardou, sacrificou-se até ao fim, até ao horror da morte na cruz, fazendo inclusivamente a experiência do aparente abandono de Deus, para dar testemunho da Verdade e do Amor.
Os discípulos fugiram, até Pedro, o primeiro Papa, se acobardou e negou o Mestre. Só as mulheres o acompanharam até à cruz. E a pergunta que fica sempre é esta: o que é que aconteceu para que os discípulos que, tristes e desiludidos, voltaram às suas vidas, pensando que tinha sido o fim, se reunissem de novo para irem anunciar que verdadeiramente aquele Jesus assassinado, crucificado, é o Messias, o Salvador, o Evangelho vivo? Mais uma vez, foram as mulheres. Nomeadamente, Maria Madalena foi a primeira a fazer a experiência avassaladora de fé de que aquele Jesus, o crucificado, está vivo para sempre em Deus. Deus é infinitamente poderoso, Jesus deu a vida por Ele, testemunhando o seu amor sem limites e, por isso, Deus não podia deixá-lo abandonado à morte, ressuscitou-o, Jesus está vivo para sempre na plenitude da Vida. E, lentamente, os discípulos foram fazendo a mesma experiência avassaladora de fé e reuniram-se e partiram, anunciando a boa notícia. E morreram por ela.
Muitos acreditaram e formaram-se comunidades por todo o lado. E viviam a alegria da fé, por palavras e obras. Souberam que Jesus, antes de entregar-se à morte por amor, celebrara uma ceia com os discípulos, uma ceia de despedida, pedindo que se lembrassem dEle. Assim, os novos discípulos celebravam banquetes festivos, recordando essa ceia, a Última Ceia, e lembrando Jesus, o que Ele disse, o que Ele fez, a sua morte, a sua ressurreição, e sabiam que Ele está presente. Quem presidia era algum cristão ou alguma cristã com uma casa melhor.
Com o tempo, foram escolhidos presbíteros e bispos, para a coordenação das comunidades, o anúncio da mensagem... Só mais tarde, nos séculos III-IV, quando os cristãos foram acusados de não oferecer sacrifícios à divindade, se interpretou a Eucaristia como sacrifício — mactatio mystica Christi, cheguei a ler em manuais de Teologia — e apareceram os sacerdotes, com a ordenação sacerdotal, e, desse modo, a divisão da Igreja, Povo de Deus, em duas classes: clero e leigos. No Novo Testamento, não se fala em sacerdotes, Jesus não ordenou sacerdotes, sacerdote é Jesus e o povo cristão é “povo sacerdotal”. Com a ordenação sacra, foi surgindo o celibato, que se foi impondo como lei, e, evidentemente, por causa da impureza ritual, as mulheres foram excluídas.
Hoje, com a urgência da renovação profunda da Igreja, esta questão é decisiva. Neste sentido, o jesuíta José I. González Faus escreveu uma carta aberta a Francisco: “estamos obrigados a procurar remédio para a exclusão da mulher”. Começa por pôr em causa um duplo princípio na Igreja que Francisco, para negar a possibilidade de acesso da mulher ao presbiterado, foi buscar ao teólogo Urs von Balthasar: o princípio mariano (Maria mãe da Igreja) e o princípio petrino (Pedro é a rocha), sendo o primeiro superior ao segundo, mas fechando o acesso da mulher ao ministério eclesiástico. O equívoco está na falsa ‘sacerdotalização’ do ministério, que poderia levar à ideia de “mulheres sacerdotisas”, evocando “figuras pagãs como as prostitutas sagradas”.
O que se impõe não é excluir a mulher. O que se exige, quando se atende ao Novo Testamento, é “a compreensão de que também o presbítero não é um sacerdote, por muito acostumados que estejamos a essa linguagem imprópria. Linguagem que provocou uma sacralização dos presbíteros, que está na base do nefasto clericalismo, que tanto tens combatido e criticado, Papa Francisco, e que foi causa de tanto abusos de todas as espécies. Comecemos, pois, nós, os homens ordenados, por despojar-nos dessa atribuição irreverente de sacerdotes.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 20 de maio de 2023
1. Nestes tempos do imediatismo, do ruído ensurdecedor causado pelas centrais da estupidificação, é urgente voltar ao essencial. E o que há de mais fundamental, essencial, do que a questão de Deus? Há Filosofia sem a pergunta por Deus? Se não quisermos permanecer na superfície ou nas simples convenções, se quisermos apresentar seriamente o fundamento da dignidade humana, dos direitos humanos, não é aí que vamos desembocar? Como diz Kant, o ser humano é fim e não simples meio. Ora, o que é que é fim em si mesmo senão o Infinito? E o que tem o ser humano de infinito senão a pergunta ao infinito pelo Infinito? O ser humano tem dignidade porque de pergunta em pergunta acabará por desembocar na pergunta pelo Fundamento último e o Sentido último, por outras palavras, na pergunta por Deus, independentemente da resposta que lhe dê: uns decidir-se-ão pela fé, outros pelo agnosticismo, outros pelo ateísmo.
Aprofundando, voltamos sempre à questão de Deus. Na sua obra Der Gott der Philosophen (O Deus dos filósofos), Wilhelm Weishedel mostrou que a questão de Deus constitui precisamente “a problemática central da Filosofia”, de Tales e Anaximandro a Nietzsche e Heidegger. “Mesmo onde a teologia filosófica está em decadência, continua a ter uma importância decisiva, pelo menos como algo que há que superar antes de qualquer outra coisa. Por isso, com razão o discurso sobre Deus é considerado como o problema essencial da Filosofia.”
2. Nesta quadra pascal, regresso, mais uma vez, a esse sublime e abissal texto, pavoroso, um dos grandes da grande literatura alemã, que Jean Paul, pseudónimo de Johann Paul Friedrich Richter, escreveu em 1796: "Rede des toten Christus vom Weltgebäude herab, dass kein Gott sei" (Discurso do Cristo morto, a partir do cume do mundo, sobre a não existência de Deus).
Nele, o célebre escritor descreve um sonho-pesadelo. Pela meia-noite e em pleno cemitério, numa visão apavorante, o olhar estende-se até aos confins da noite cósmica esvaziada, os túmulos estão abertos, e, num universo que se abala, as sombras voláteis dos mortos estremecem, aguardando, aparentemente, a ressurreição. É então que, a partir do alto, surge Cristo, uma figura eminentemente nobre e arrasada por uma dor sem nome. E, com um terrível pressentimento, "os mortos todos gritam-lhe: "Cristo, não há Deus?" Ele respondeu: "Não, não há Deus." Então, a sombra de cada morto estremeceu, e umas a seguir às outras desconjuntaram-se. E Cristo continuou, anunciando o que aconteceu no instante da sua própria morte: "Atravessei os mundos, subi até aos sóis, voei com as galáxias através dos desertos do céu; e não há Deus. Desci até onde o ser estende as suas sombras, e olhei para o abismo, gritando: "Pai, onde estás?" Mas apenas ouvi a tormenta eterna, que ninguém governa." Quando, no espaço incomensurável, procurou o olhar divino, não o encontrou; apenas o cosmos infindo o fixou petrificado com uma órbita ocular vazia e sem fundo, "e a eternidade jazia sobre o caos e roía-o e ruminava-se". O coração rebentou de dor, quando as crianças sepultadas no cemitério se lançaram para Cristo, perguntando: "Jesus, não temos Pai?" E ele, debulhado em lágrimas, respondeu: "Somos todos órfãos, eu e vós, não temos Pai." "Nada imóvel, petrificado e mudo! Necessidade fria e eterna! Acaso louco e absurdo! Como estamos todos tão sós na tumba ilimitada do universo! Eu estou apenas junto de mim. Ó Pai, ó Pai! Onde está o teu peito infinito, para descansar nele? Ah! Se cada eu é o seu próprio criador e pai, porque é que não há-de poder ser também o seu próprio exterminador?"
Para Jean Paul, a morte de Deus não era ainda um destino espiritual inevitável. Apenas a tentação de uma possibilidade ameaçadora. E ele queria estar prevenido: que, quando a tentação o visitasse, soubesse de antemão o abismo sem fim, pavoroso, a que a morte de Deus conduz. Quando acordou do pesadelo ateu, a sua alma "chorava de alegria, por poder de novo adorar a Deus - e a alegria e o choro e a fé nele era a oração".
Um século depois (1882), o louco de Nietzsche proclamou a morte de Deus: "Quem o matou fomos todos nós, vós mesmos e eu!" "Nunca existiu acto mais grandioso." Ao mesmo tempo, Nietzsche tem consciência aguda do que se segue: "Para onde vamos nós, agora? Não estaremos a precipitar-nos para todo o sempre? E a precipitar-nos para trás, para os lados, para a frente, para todos os lados? Será que ainda existe um em cima de um em baixo? Não andaremos errantes através de um nada infinito? Não estará a ser noite para todo o sempre, e cada vez mais noite?"
O filósofo Gilles Lipovetsky escreveu, em A Era do Vazio: "Deus morreu, as grandes finalidades extinguem-se, mas toda a gente se está a lixar para isso. O vazio do sentido, a derrocada dos ideais não levaram, como se poderia esperar, a mais angústia, a mais absurdo, a mais pessimismo." Mas mais recentemente, no seu livro A Sociedade da Decepção, reconhecendo "a reafirmação do religioso", vem dizer que, "privados de sistemas de sentido englobante, numerosos indivíduos encontram uma tábua de salvação no reinvestimento de antigas e novas espiritualidades capaz de oferecer a unidade, um sentido, referências, uma integração comunitária: é o que o Homem necessita para combater a angústia do caos, a incerteza e o vazio".
3. Aqui chegados e tomando consciência de escândalos que clamam aos céus, impõe-se que a Igreja se pergunte pela sua responsabilidade no aumento do ateísmo.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 15 de abril de 2023
ENTRE MARTA E MARIA por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim,
De Brantôme para Congar, de frei Ivo para o Japão, onde me espera uma reflexão partilhada sobre experiências estéticas, cá estou no avião e, preparando, no caderno, umas notas sobre estética, dou com outras sobre esse paradoxo tradicional da nossa cultura que encerra a mulher numa fúria mental de diabolização-santificação... E que tantas vezes a inferioriza: discutiu-se (até em concílio!) se a mulher teria alma humana, Aristóteles, no cadinho de certos "ideais" helénicos (que aliás se refletiram em comportamentos sexuais) considerou-a uma frustração ou incompleição da natureza. E o Doutor Angélico, fiel ao seu método dedutivo e ao rigor da sua dívida para com o filósofo ateniense, terá achado de somenos importância aprofundar ou discutir um conceito que não se agitava no seu tempo. (Mas que teria dito, um século antes, Santa Hildegarda de Bingen?). S. Tomás de Aquino vai buscar a Aristóteles o conceito e a justificação da inferioridade congénita das mulheres. Assim, afirma em resposta à "quaestio" 92 da "Summa Theologiae": "Pela própria operação da natureza, a mulher é inferior e é um erro. A causa agente que está na semente masculina tenta produzir algo completo em si, um macho. Mas quando é produzida uma fêmea, isso deve-se ao facto de a causa agente ter sido frustrada, ou por inadequação da matéria recipiente, ou por qualquer interferência deformadora, como ventos do sul, que são demasiado húmidos, como lemos no "Conceção Animal" (de Aristóteles). A esta visão da natureza da mulher, atribuirá ele a primeira razão de recusa de ordens sacras a pessoas do sexo feminino: "Como nenhuma precedência de superioridade pode ser expressa no sexo feminino, que tem um estatuto inferior, esse sexo não pode ser ordenado. Não há aqui qualquer fundamento bíblico nem argumento teológico. Trata-se de uma afirmação decorrente de um princípio aristotélico que, para nós, já não tem qualquer base científica aceitável. À ideia de inferioridade natural da mulher desde logo se associa a da sua impureza, designadamente manifestada pela fisiologia menstrual. Nas religiões antigas, e no próprio judaísmo, eram vários os interditos relacionados com esse período, em que o contacto com a mulher era considerado causa de impureza. Assim, não deviam os sacerdotes aproximar-se de suas mulheres por essa altura, sob pena de não poderem oferecer as preces e sacrifícios rituais. Aliás, é também por esta linhagem de interditos que, já no século XI, a Igreja Católica importa o celibato aos seus padres. Até aí, a castidade não era condição sine qua non do ministério pastoral e sacramental, mas um voto, em regra exigido a quem professasse numa comunidade religiosa, feito por quem escolhia uma vida de consagração especial. Há em tudo isso uma atitude e uma tradição misógina, que até se esquece de que o primeiro papa era um homem casado, cuja sogra foi curada por Jesus... E em lado algum está dito que Pedro tenha enviuvado ou repudiado a sua mulher. Mas sabemos, pelos evangelhos sinópticos, que Jesus curou uma mulher que sofria de um fluxo de sangue, uma hemorragia que, mesmo fora do período menstrual, determinava a impureza canónica. E diz-nos S. Lucas que Jesus não encarou logo com quem lhe tocara a veste, mas disse: "Quem me tocou? ... Alguém me tocou, pois senti sair de mim uma força!" Há algo de sacramental nessa afirmação. As representações do episódio "Noli me tangere" são recorrentes na história da arte europeia, desde os primórdios do cristianismo, como no fresco romano na igreja de Santi Pietro e Marcellino em Roma. A presença importante das mulheres na vida e na Igreja primitiva de Jesus foi relatada por S. Paulo nas suas epístolas. Na primeira aos Coríntios, pergunta: "Não teremos o direito de levar connosco uma senhora cristã, como os restantes Apóstolos, os irmãos do Senhor e Kefá?" Nessa carta, em que se preocupa e procura desenhar linhas de comportamento desejável para as mulheres - que, por serem cristãs (emancipadas?) não perdem todavia o estatuto social e as conveniências impostas pela sociedade do seu tempo - afirma: "Aliás, no Senhor, nem a mulher se compreende sem o homem, nem o homem sem a mulher. É que, assim como a mulher provém do homem, assim também o homem existe por meio da mulher; e tudo vem de Deus". Na carta aos Romanos, recomenda "a nossa irmã Febe, que é diaconisa da Igreja..." e refere-se a muitas outas, incluindo a mulher de Andrónico: "Saudai Andrónico e Júnia, meus parentes e companheiros de prisão, que são insignes entre os apóstolos e me precederam em Cristo." Santo Agostinho, num dos seus sermões, aconselha: "Devíamos ponderar a providencial aptidão da obra de Nosso Senhor. Assim, como o Senhor Jesus Cristo fez com que fossem mulheres os primeiros a testemunhar que ele tinha ressuscitado. Porque o homem caiu por uma mulher, e porque a virgem Maria deu à luz Cristo, mulheres deveriam proclamar que Ele tinha ressuscitado. Através da mulher, morte? Através da mulher, vida!" E não era o bispo de Hipona - que aliás repudiara a mulher aquando da sua conversão ao cristianismo - muito propenso a enaltecê-las, nem sequer a Mãe de Jesus: não deixou escrito um só sermão sobre Nossa Senhora, mas referiu-se a Maria de Betânia como símbolo da contemplação e à Madalena como símbolo do amor. Das duas naturezas, humana e divina, coexistentes na pessoa de Jesus, Maria de Nazaré é só mãe da primeira. E como mulher só é confiada por Jesus, do alto da cruz, a João, para que este tome conta dela e não o contrário. É esclarecedor do seu pensamento sobre o poder de intercessão de Maria, o comentário de Agostinho sobre as bodas de Caná: "Porque ela não era mãe da Sua divindade, e o milagre que ela pedia tinha de ser feito pela Sua divindade, ele respondeu-lhe desta maneira: Que podes querer de mim, mulher? Mas para que não penses que não te reconheço como mãe, acrescento que ainda não chegou a minha hora. Então reconhecer-te-ei, quando a fraqueza que deste à luz tiver começado a sua hora na cruz." Será quando entregará a mãe ao cuidado do seu discípulo. Morrendo antes de mãe, para ressuscitar antes da mãe, Ele, como ser humano entrega a outro humano o cuidado desse humano de onde lhe veio a humanidade". A condição humana de Maria de Nazaré - que a tornava herdeira do pecado original - foi reafirmada por S. Bernardo, todavia um devoto de Santa Maria e pregador de cruzadas. A piedade popular fez constar que Deus teria então marcado de negro a sua alma... o que não dissuadiu S. Tomás de Aquino, passado um século, de se pronunciar contra a Imaculada Conceição, não só porque tal significaria negar a Cristo a natureza humana (posto que nascido de uma mulher), como ainda "retirar-lhe a honra de ser o salvador de todas as pessoas"... Enfim: discussões escolásticas cuja subtileza me escapa e que não impediram a proclamação desse dogma no séc. XIX. Nem a insistência crescente na mediação de Maria, que a piedade do povo católico foi impondo à doutrina oficial da Igreja. Aproximo-me dos meus 80 anos, Princesa, nasci, cresci e vivi, num mundo em que as mulheres não podiam seguir os cursos de estudos facultados aos homens, nem votar em eleições "democráticas" (muito embora, no passado, por direito divino ou genealógico, tivessem sido rainhas e imperatrizes), nem ser diplomatas, juízes ou militares. Hoje, a pouco e pouco vão podendo ser tudo isso, e em Igrejas cristãs irmãs da nossa na fé, mesmo conservadoras (como a anglicana/episcopaliana), até já vão acedendo às ordens sacras... Mas é na Igreja Católica, e nas ortodoxas, que o culto de Maria, como medianeira entre céu e terra, mais foi e tem sido cultivado. E não se define a função sacerdotal como essencialmente medianeira? Interrogo-me acerca deste ostracismo, não tenho que me pronunciar, apenas pergunto porquê. Já que, na verdade, nada, que eu saiba, exclui as mulheres desse munus no Novo Testamento. Recordo, nesta cabine de avião onde te escrevo, prestes a aterrar em Tokyo, o texto em que Congar explica como, nessas sagradas escrituras, nem sequer surge qualquer fundamento para o sacerdócio ritual que certo "machismo" eclesiástico reclama (esta frase é minha, não de frei Ivo): "Eis os factos. A palavra "hiereus" (sacerdote, o que oferece sacrifícios) surge mais de trinta vezes no Novo Testamento, e a palavra "archiereus" mais de cento e trinta. A utilização destas palavras é tão constante, que claramente denuncia uma intenção deliberada e altamente significante, sobretudo porque os escritores da primeira geração cristã seguem cuidadosamente a mesma linha. Neles, tal como no Novo Testamento, "hiereus" (ou "archiereus") é utilizada para designar quer os sacerdotes da ordem levítica, quer os sacerdotes pagãos. Aplicada à religião cristã, a palavra "hiereus" só serve para falar de Cristo ou dos fiéis. Nunca se aplica aos ministros da hierarquia da Igreja". Já apertei o cinto de segurança. É quando, nos aviões em manobras de voo, mais se reza. E eu rezo também, para que a nossa Igreja se entenda com a sua circunstância. Não por relativismo, mais ou menos oportunista. Mas porque, como Cristo, é incarnada. E vive na história dos homens." Camilo Maria não voltaria, por modo epistolar, a assuntos eclesiais. Mas, pela atualidade de um texto escrito nos anos setenta do século passado, transcrevo uma citação do Cardeal Congar, inserta num apontamento avulso do Marquês de Sarolea: "Os conceitos de Povo de Deus e de Sacramento da Salvação impõem-se como ponto de partida para o que se procura: uma Igreja desclericalizada, uma Igreja para o mundo. Enquanto que, até ao concílio (Vaticano II) vimos o mundo a partir da Igreja, tendemos a ver a Igreja a partir do mundo, correndo o risco de a secularizar e de esquecer o facto de que, por muito que ela seja feita para o mundo, ela é uma coisa diferente do mundo: é fruto de iniciativas divinas sobrenaturais, irredutíveis à criação ou à história. Por outro lado, um estudo histórico, a valorização de um laicado ativo, e também o diálogo ecuménico levam-nos a reler e alargar a teologia dos ministérios..."
A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA OS MEUS SETE PAPAS (II)
1. Como alguns se lembrarão, estava perto do Taj Mahal quando, tarde e a más horas, soube da morte de João Paulo I, por tão pouco tempo meu quinto Papa.
De lá segui para as Pirâmides e para o Egipto, mas não foi entre faraós que soube do Papa posto em vez do Papa morto. Já tinha regressado à pátria, findo o meu mês de orientes, quando apareceu fumo branco por Karol Wojtyla, que, como o seu efémero predecessor, escolheu dois nomes e os mesmos dois nomes: João Paulo II. Tinha 58 anos e era o mais novo Papa desde 1846 e desde a eleição de Pio IX com 54 anos. Esse Pio IX que morrera cem anos antes da eleição de João Paulo II (a 7 de fevereiro de 1878) e fora o pontífice de mais longo reinado na história da Igreja (32 anos), se não contar a incerta duração do papado de S. Pedro. João Paulo II, que reinaria 27 anos, seguiu-os de perto.
Mas, em 1978, a grande novidade não foi a "tenra" idade do novo Papa, mas a sua nacionalidade. Pela primeira vez, desde 1523, ou seja, durante 455 anos, o Papa não era italiano e pela primeira vez, em quase dois mil anos de Igreja, o Papa era polaco. Com Wojtyla acabou uma era, que, em categorias adaptadas da história geral para a história da Igreja por Cristiani, no monumental Tu Es Petrus, correspondem à Idade Moderna (1447-1870) e à Idade Contemporânea (1870-1978). Desde o fim do Cisma do Ocidente até ao "ano dos três papas", dos 55 pontífices que se sentaram no trono de S. Pedro durante cerca de 540 anos, apenas dois não foram italianos: o aragonês Calisto III (Papa de 1455 a 1458, que, apesar das suas origens, gerou os italianíssimos Borgia) e o holandês Adriano VI, o tal que pontificou entre 1522 e 1523 e que tanto contrastou com os Medici que o precederam e lhe sucederam (Leão X e Clemente VII) em desgosto pelas artes e pelos ofícios. Mas isso já são outras conversas, pois que nenhum deles foi Papa das minhas vidas, embora nos renascentistas me tenha ficado muito da melhor parte delas. Das outras e desta.
2. "O ano dos três papas" (Paulo VI, João Paulo I e João Paulo II) foi expressão corrente para o ano de 1978. Às vezes, penso em como teria vivido esse ano um amadíssimo amigo meu, poeta de 35 Poemas, que partiu deste mundo e destes papas em 1968, dez anos antes do ano trino. Digo-o porque, em 1963, quando morreu João XXIII, ele viveu premonitoriamente a febre papal que em 78 já subira uns pontinhos e em 2005 entrou no delírio a que se assistiu. Foi ele o primeiro a inventar a expressão "totopapa", enviando-me, e a outros amigos comuns, antes e durante o conclave, listas de probabilidades com os nomes que os eleitos escolheriam, caso viessem a ser os contemplados.
Dentre os inúmeros cartões retangulares que me mandou, escritos a tinta encarnada, copiei estes: Probabilidades (Flos Florum)
1 - Siri (Pio XIII, de que Deus nos guarde) 2 - Montini (Pio XIII, João XXIV ou Leão XIV que: vá lá com Deus) 3 - Lercaro (João XXIV - Deus queira) 4 - Confalonieri (João XXIV, Bento XVI ou Clemente XV, que talvez Deus queira) Hipóteses desvairadas más 1 - Ottaviani (Alexandre IX, Calisto IV, Anastácio V ou Júlio IV) 2 - Larraona (Anastácio V) 3 - Marella (Bonifácio X) 4 - Cerejeira (Urbano IX)
Na altura, todos nos ríamos com estes totopapas, que ele corrigia, emendava e voltava a enviar. Mas a realidade excede sempre a ficção: tanto na morte de João Paulo II, como na eleição de Bento XVI, televisões e jornais ultrapassaram em excentricidade e delírio o meu amigo das "profundidades intactas". Muitos dos cardeais já nem sei quem são, como esse Lercaro que, pelos vistos, era o favorito dele. Não previu nenhum Paulo VI, mas previu um Bento XVI, que seria - se tivesse sido - o cardeal Confalonieri, "que talvez Deus queira".
Em 1963, no interior de círculos muito restritos e - vá lá - muito especiais, vivia-se assim a eleição de um papa, guardando segredo para os não iniciados que já suspeitavam da nossa sanidade mental, mesmo sem saberem destes desvarios. Quem nos diria - quem me diria? - que 42 anos depois, milhões viveriam momentos desses em delírio ainda maior, imaginando papas hindus, argentinos, chineses e até (como sempre) portugueses?
Tudo - tamanha mudança! - talvez se deva a esse Papa polaco que, entre 1978 e 2005, fez mais pelo pope system do que todos os seus antecessores reunidos. E volto a 1978.
3. Estou a começar a dizer mal de João Paulo II, ou, como alguns já lhe chamam, de S. João Paulo Magnus? Não estou. Quando foi do Jubileu dele, escrevi, neste mesmo jornal, um artigo em que disse o que pensava e penso dele, exaltando sobretudo o homem da fé.
Escrevi então e mantenho: "Não é o "Papa da minha vida", no sentido em que o foram, dos que conheci, João XXIII ou João Paulo I. Não é o Papa que me dê mais esperança ou que eu ame mais do que os outros. Mas tudo o que me separa dele de nada conta quando o vejo - sobretudo nos últimos anos - dar um tamanho testemunho que só consigo explicar pelo inexplicável mistério da Fé." Acima citei a idade com que foi entronizado. Mas parecia muito mais novo, respirando saúde física por todos os poros, o que muitos atribuíam a um passado de desportista. Três anos depois - apenas três anos dessa imagem pletórica - o atentado da Praça de São Pedro fez esse Papa de 60 anos envelhecer 20 em poucos meses. De então para cá, a pujança original quase que se esqueceu e o "atleta" deu lugar a um velhinho, atacado por mil doenças, até, no fim, mal se conseguir mexer ou falar.
Alguns lhe censuraram - velada ou abertamente - o lugar que deu, na sua própria biografia, ao dia 13 de maio de 1981, em que quase se realizou a sarcástica profecia de Buñuel no filme La Voie Lactée. Mas não é muito fácil compreender como é que se deu tal mudança num homem. Não é a questão da sobrevivência, pois que outros têm recuperado de coisas ainda piores. É a consciência, não proclamada, mas crescentemente interiorizada, de que a sua salvação teve e tem um sentido e que esse sentido só podia ser desvelado com a crescente transfiguração do corpo quebrado num corpo oferecido. Muito e muito se há-de escrever - pressinto-o - sobre os vários sentidos a dar a essa maceração. Por um lado, há a "papolatria" ou os riscos dela, tão temida nos anos 60 e tão escancaradamente recuperada nesta viragem de séculos. Mas reduzir à papolatria o calvário de João Paulo II é perder a dimensão fundamental dele. Falou-se do seu imenso carisma, do seu imenso magnetismo. Que querem dizer essas palavras? Quem saiba que explique e João Paulo II nunca explicou. Acreditou, não só com toda a sua alma (expressão já de si incompreensível), mas com todo o seu corpo e, como só este lhe podia ser imagem, fez dele o grande plano para um mistério insondável. Por agora - e por mais algum tempo - se falará ainda e muito do Papa que venceu o comunismo, sob o qual viveu desde os 25 anos. Mas não faltam nos textos papais - antes e depois da queda do Muro - advertências ainda mais graves contra a sociedade permissiva e libertária que era, aparentemente, a grande inimiga dos chamados "socialismos reais". Qual o significado da sua presença junto a Fidel em Cuba, tão estranho, por parte de um, como por parte de outro? Qual o sentido das suas mil viagens? Qual o sentido dos "estádios cheios e das igrejas vazias"? Qual o sentido do seu altivo moralismo? Porque o aplaudiam milhões de jovens que depois não fundavam famílias de 14 filhos, como nos tempos de Maria Teresa da Áustria, ou nem sequer se precipitavam para os ter, como nos tempos da geração dele? Quanto mais medito na ação deste Papa, mais ela me parece paradoxal, mas de um paradoxo que não desafia a razão, antes a busca. Por isso, grande parte do mistério de João Paulo II só será percebido com a passagem do tempo e com os pontificados que se seguirem ao deste Papa tão tirolês quanto carpático ou, se se preferir, tão terra a terra, como céu a céu.
4. Sabe-se como foi recebida a eleição de Bento XVI, conhecem-se os juízos que já se fizeram. Mas não se tem reparado muito (ou então sou eu que tenho andado muito distraído) que ao turbilhão de abril (velório e exéquias de João Paulo II, conclave, etc.) se seguiu um estranho e agudo silêncio. Ouve-se Bach no Vaticano (talvez pela primeira vez).
Perguntam-me o que penso. Pensei mal, quando pensei depressa e me vieram dizer que Ratzinger era o novo Papa. Agora espero para pensar. Bento XVI já não é Ratzinger. É o meu sétimo Papa. Seja minha a solidão deste silêncio, como escreveu o poeta dos 35 Poemas, e dos trinta e cinco cardeais.
por João Bénard da Costa 20 de maio de 2005 in Público