Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Há cerca de um ano referimos e analisamos o Teatro e Cinema Tivoli numa dupla perspetiva de edifício construído para cineteatro e sala de concertos, mas também no ponto de vista estético e da coerência artística, técnica e doutrinário de Raul Lino, autor do projeto e gestor artístico do Teatro, de 1924 a 1931. Evocamos o próprio arquiteto, num texto coligido por Diogo Lino Pimentel e publicado no ano passado num volume evocativo da Exposição Retrospetiva da Fundação Calouste Gulbenkian (outubro/novembro de 1970).
Escreveu então Raul Lino, a propósito do Tivoli:
“Levou mais de quatro anos a construir (…) era grande a vontade de fazer alguma coisa de original na decoração interna e cheguei a propor uma decoração que principalmente consistia em grandes ramalhetes de cerâmica policromada de estilo moderno e cores muito vivas (…) mas não consegui convencer o meu bom amigo (Frederico Lima Mayer): no entanto este pediu-me que me quisesse incumbir de organizar os seus programas, o que fiz durante sete anos” (cfr. “Tivoli - Memórias da Avenida”, coordenação de Duarte de Lima Mayer e João Monteiro Rodrigues, ed. Building Ideas, CM e Arquivo Municipal de Lisboa e Centro Nacional de Cultura - 2016).
E no texto aqui publicado referi a valência cultural do Tivoli como cinema, como teatro e como sala de concertos e de ópera, e isto, desde as chamadas Terças Feiras Clássicas, às sucessivas temporadas de espetáculo teatral e musical, que aliás marcaram uma modernidade absolutamente notável em épocas sucessivas.
E basta lembrar que no Tivoli, em 1925, António Ferro lançou a companhia denominada Teatro Novo, efetivamente a primeira iniciativa experimental da história moderna do teatro português.
Ora, é caso para dizer, no respeitante ao teatro português, o Tivoli marcou uma coerência de modernização, em décadas sucessivas. Vocacionado para a apresentação de espetáculos vindos do exterior torna-se no entanto relevante evocar iniciativas de verdadeira renovação de companhias portuguesas; citamos então o Teatro Experimental de Cascais dirigido por Carlos Avilez, o Circulo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra dirigido por Paulo Quintela, ou o Grupo 4 e mais espetáculos que acertavam este registo de modernização/renovação.
Isto, no que se refere a artistas portugueses. Porque, no que respeita a temporadas ou espetáculos vindos de outros meios, pelo palco do Tivoli passaram a Royal Shakespeare Festival Company com Barbara Jeford e Ralph Richardson, ou o Pirakon Theatron de Atenas, este em cooperação com a Fundação Calouste Gulbenkian.
E ainda as chamadas Galas Karsenty-Herber e outras companhias vindas de França, que levaram à cena peças de Montherlant, Peter Brook, Anouilh, Noel Simon, Ariano Suassuna ou Abélio Pereira de Almeida.
E no que se refere à musica? Aí, evocamos concertos em que se apresentaram “ao vivo” artistas com a qualidade e projeção de Stavinski, Rubinstein, Menhuin, Kempff, ou dos portugueses Viana da Mota, Freitas Branco, Ivo Cruz, Silva Pereira, Frederico de Freitas, Alvaro Cassuto, Tânia Achot e também tantos mais.
No catálogo da Exposição acima referido, enumeram-se os principais espetáculos ou textos dramáticos e bailados em que Raul Lino colaborou como cenógrafo, sendo certo que algumas delas não chegaram a estrear: "Rosas Bravas" de Afonso Lopes Vieira, "Auto de Mofina Mendes", "Fausto" de Júlio Dantas, João de Barros e Manuel Sousa Pinto, "Bailado do Encantamento" de Rui Coelho com coreografia de Almada, "Salomé" de Oscar Wilde, "Milagre" de Veva de Lima, "O Fidalgo Aprendiz", "Orfeu" de Monteverdi, "Pastoral" de Ivo Cruz e Margarida de Abreu - isto quanto a cenários projetados ou executados e para além de largas dezenas de figurinos desenhados para estes e outras espetáculos de ópera e bailado, segundo o Catálogo da Exposição acima referido.
E ainda acrescentamos que Raul Lino é autor do projeto do Cineteatro Curvo Semedo de Montemor-o-Novo e de elementos decorativos do Cinema Palácio de Lisboa. Mas esses serão referidos noutra ocasião.
Em diversos artigos, tivemos já ensejo de evocar os 150 anos do nascimento do arquiteto Ventura Terra, ocorrido em 1866. Retoma-se hoje o tema, agora em função da exposição patente no Torreão Poente da Praça do Comércio, organizada pelo Pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa.
Dá-se especial relevo às intervenções de Ventura Terra diretamente ligadas às artes do espetáculo, como aliás temos aqui referido, mas não só: importa efetivamente enfatizar também algumas das conceções e intervenções de Ventura Terra em projetos, aliás quase todos devidamente construídos, destinados à abordagem de grande público.
“Do Util e do Bello” é a epígrafe do catálogo e da própria exposição em si, coordenada por Jorge Ramos de Carvalho. E nela se destaca, no conjunto da obra vasta e variada, o sentido e o objetivo de relacionamento com o público, seja em salas e edifícios de espetáculo propriamente duto, seja em edifícios destinados, não tanto a espetáculo, mas a receber “espetadores” / visitantes: desde logo, seguindo a cronologia da exposição, os dois Pavilhões de Portugal patentes na Exposição Universal de Paris de 1900.
Estas não eram salas de espetáculo, é certo: mas tanto o chamado Pavilhão das Matas, Caça e Pescas como sobretudo o Pavilhão das Colónias Portuguesas constituíram, de acordo com o roteiro do exposição, uma notável criação de espaços públicos que, como tal, deixavam adivinhar o sentido de “espetáculo” que Ventura Terra iria ao longo da vida sucessivamente concretizar.
Em sucessivos textos que aqui já publicamos, faz-se referência detalhada ao Teatro Politeama, ao Teatro Clube de Esposende, ao átrio do Teatro de São Carlos (onde se suprimiram os frescos do teto de Cyrilllo Volkmar Machado) e ao Teatrinho do Palácio de Brejoeira (Monção). Mas o catálogo-guia da exposição que agora vimos citando, destaca ainda edifícios que, não sendo evidentemente salas de espetáculo, expressam uma vocação funcional de grande ajuntamento de participantes, e como tal exigem o sentido de “assistência coletiva”, chamemos-lhe assim, que as salas de espetáculo representam.
E desde logo o chamado na época Palácio das Cortes, em São Bento, como tal inaugurado em 1833 mas totalmente reformulado por Ventura Terra em 1885/1886, numa modernização epocal que dura até hoje e que incluiu o desenho do mobiliário e do equipamento, então extremamente atual.
Em 1902 surge a Sinagoga de Lisboa aliás muito próxima da casa do próprio Ventura Terra, casa que lhe valeu o Prémio Valmor de 1903.
O catálogo da exposição documenta também um esplendoroso projeto de Palácio do Congresso do Rio de Janeiro, que não chegou a ser construído.
E finalmente, refere os Liceus Camões (1907) e Maria Amália Vaz de Carvalho (1915), o que pode ser relacionado com o carater coletivo das “exibições” dos professores…
O catálogo da exposição, para além de estudos diversos, contem uma exaustiva tabela cronológica da vida e obra de Ventura Terra. Aí encontramos as funções político-administrativas que ao longo da vida desempenhou, com destaque para a Câmara Municipal de Lisboa, onde foi vereador por iniciativa de Bernardino Machado, de 1908 a 1913 e novamente em 1917.
No quadro dessas funções, remete-se para um documento da CML, datado de 28 de Agosto de 1909 e citado por Rute Figueiredo no seu estudo sobre “Arquitetura e Discurso Crítico em Portugal (1893-1918). – (ed. Colibri e HIA – FCSH da UNL págs. 252-252).
Lê-se no referido documento:
“Tendo a Câmara Municipal de Lisboa na sessão de 12 do corrente, tomado em consideração uma proposta do Ex.mo Sr. Vereador Ventura Terra a fim de melhorar quanto possível os serviços relativos à estética da cidade de Lisboa e o seu conforto sob o ponto de vista artístico, principalmente no que respeita à construção e conclusão de avenidas, praças, jardins, etc., e ao aproveitamento das suas magníficas perspetivas, foi pela mesma Câmara criada Cuma Comissão de Estética Municipal.
Ora, nessas “magníficas perspetivas” se inscrevem os teatros de Ventura Terra, e não só em Lisboa!...
A Fundação Calouste Gulbenkian organizou um relevante ciclo de atividades evocativas da participação de Portugal na guerra de 1914-18, numa perspetiva histórica, cultural e literária que prolonga e completa a importante exposição simbolicamente denominada “Tudo se Desmorona - Impactos Culturais da Grande Guerra em Portugal”. Trata-se de notabilíssima mostra de documentos e textos evocativos da intervenção de Portugal, numa análise historiográfica da sociedade e da politica da época, mas também da expressão cultural subjacente - e tão relevante ela foi e é!..
“O Mundo Derrubado” é identificado como o «Jornal da Exposição». Nos textos que o preenchem fazemos aqui referências a aspetos especificamente ligados à dramaturgia e à produção teatral portuguesa no contexto da intervenção de Portugal na Guerra.
E desde logo se salienta o que pode parecer algo paradoxal, a saber, a evocação da guerra no teatro de revista. O tema é abordado por Carlos Silveira, na perspetiva da criação artística em si mesma - textos, espetáculos, atores, autores - mas também na temática política, e ainda em variadíssimos aspetos pessoais da intervenção na guerra.
Citam-se aí diversas revistas da chamada «Parceria», tríade de autores que, durante anos, dominaram em Portugal o teatro ligeiro, a saber, Ernesto Rodrigues, Félix Bermudes e João Bastos.
Bermudes definiu deste modo a estrutura das revistas:
1º ato - Quadro de Abertura, estruturado em fantasia; quadro de comédia; quadro de rua, com as atualidades; apoteose.
2º ato - Dois quadros de variedades, números com cenários próprios e apoteose…
Damos um exemplo extraído da revista «O Novo Mundo» (1916), da Parceria, citado por Luís Francisco Rebello, na sua “História do Teatro de Revista em Portugal” (ed. D.Quixote 1984):
«Meus amigos, esta vida / Pra quem lida / A moirejar cá na roça / É uma grande subida / Que se leva de vencida / Como quem puxa a carroça. / Quando a gente desanima / E a coisa vai parar / Ai ó! / Então adeus ó vindima! / Se não vem chicote acima / Somos uns homens ao mar»
Na publicação da Fundação Calouste Gulbenkian acima citada, Carlos Silveira refere que os autores da Parceria “intuíram lucidamente os impactos do conflito nas camadas populares. São vários os fados de assunto social que animam estes quadros”. E salienta a temática política na época dominante nos anos seguintes à guerra, especificando os teatros onde as peças foram representadas:
«Em “Adão e Eva” de Jaime Cortesão (Teatro do Ginásio,1921) estreado dois meses depois de “Zilda” (de Alfredo Cortez) o protagonista Marcos é um revolucionário idealista que sacrifica o amor à família pela causa da revolução. (…) Em “A Casaca Encarnada” (Teatro Politeama, 1922) anunciada por um cartaz de Almada Negreiros, Vitoriano Braga reproduz o ambiente de promiscuidade e moralidade duvidosa entre o mundo empresarial e a vida desregrada dos clubes noturnos. (…) Ramada Curto, um dos dramaturgos mais representados no período entre guerras, levou à cena drama de conteúdo semelhante, “O Caso do Dia” (Companhia Rey Colaço - Robles Monteiro, 1926)».
E termina-se esta remissão com a transcrição do comentário que Raul Brandão faz em “Vale de Josafat” (1933), citado na publicação que aqui referimos: «Os teatros transbordam.O dinheiro perdeu o valor (1921-1922). Todos caminhamos com febre - a febre de quem não confia no dia de amanhã»
Deve-se a Raul Solnado a construção e direção artística do primeiro chamado teatro de bolso do país, Teatro Villaret de seu nome, homenagem ao grande ator João Villaret (1913-1961) que ao longo de dezenas de anos desenvolveu uma longa e prestigiosa carreira de ator e encenador.
Mas, mais do que a homenagem em si, importa enfatizar a iniciativa: nos anos 60, investir num teatro que não fosse (ao menos!) cineteatro, constituía um atrevimento no ponto de vista socio-económico e até, de certo modo, no ponto de vista artístico e da própria exploração teatral, ainda extremamente condicionada na época. Não se põe em dúvida, note-se bem, o prestígio e a recetividade de Solnado.
Mas o teatro e os Teatros, na época, ainda envolviam um certo distanciamento junto do grande público, para quem a “ida ao teatro” representava não só uma abordagem do espetáculo em si, como uma expressão social. E sendo assim, a constituição, em 1963, de uma sociedade precisamente e rigorosamente denominada TEBO – Teatros de Bolso, e a sua concretização num espaço construído e vocacionado para garagem na cave de um prédio no centro de Lisboa, representa na época um ato de lúcida coragem artística e económica, digamos assim e dizemos bem…
A verdade é que, a partir dessa iniciativa, construíram-se ou adaptaram-se espaços para cinemas e teatros, incrustados nas caves de numerosos edifícios um pouco por todo o país.
O Teatro Villaret constitui assim um percursor/renovador da atividade de espetáculos em Portugal. O teatro e mesmo o cinema, na época exigiam uma tradição de larga escala, de forma a permitir, inclusive, uma exploração diferenciada no ponto de vista socio-económico. Basta lembrar a estrutura dos edifícios, inclusive os que não vinham da transição do século - mesmo os construídos já para o cinema: integrados no centro das cidades, estruturados com áreas bem distintas de acesso interno e espetáculo: plateia, 1º balcão, 2º balcão – e isto, insiste-se, mesmo nos que foram já projetados e construídos como cinema. Porque, se formos veros edifícios mais antigos - e citamos entre numerosos exemplos, o São Luis, o Politeama, o Eden, o Odeon – ainda encontrávamos estruturas das salas respetivas com camarotes e mesmo frisas. E sendo assim – e assim era ainda nos anos 50/60! – a adaptação de um espaço “de garagem” a teatro, constituiu, insista-se, um percurso de relevante inovação arquitetónica e cultural.
Recorde-se que o Cinema São Jorge, inaugurado em 1950 mas projetado pelo menos desde 1946,/1947 segundo projeto de Fernando Silva e inaugurado em 1950, tinha quatro zonas de publico e de acesso – plateia, balcão de luxo, balcão central e balcão superior - devidamente estruturadas e exploradas, mesmo que ligadas entre si. E Não obstante, tal como refere Margarida Acciaiuoli, “com o cinema São Jorge a natureza das funções do recinto especifica-se e a sua estrutura é moldada pelas exigências do espetáculo e pela notoriedade da artéria onde se erigia.” (cfr. Margarida Acciuoli “Os Cinemas de Lisboa – Um Fenómeno Urbano do Século XX” Bizâncio ed. 2002 pag.182). E havemos de ver que também se fez teatro no Cinema Império, este inaugurado em 1952.
Em qualquer caso, até pela sua implementação nas caves de um prédio, o Teatro Villaret foi um percursor de novas formas de espetáculo/publico, pela estrutura da sala, que aqui nos ocupa, mas também pela qualidade e inovação do programa desenvolvido por Raul Solnado, em peças que alternavam a comédia com expressões dramáticas muito diversas. O projeto arquitetónico é de Trindade Chagas, a decoração de Daciano Costa, e refere-se também um estudo económico de Carlos Faustino.
Estreou com “O Impostor Geral”, grande espetáculo musicado por Jorge Costa Pinto a partir do “Impostor Geral”, clássico do Nicolau Gogol. Para alem da inovação estrutural – teatro “concentrado” numa plateia, no rés do chão de um edifício - o Villaret marcou desde início pela pela qualidade dos espetáculos e pela modernidade dos repertórios.
Leonor Xavier recorda essa programação original: “Além das comédias e dos musicais a apresentar nas duas sessões da noite pela companhia titular dirigida por Raul Solnado, terá peças de teatro declamado feitas por outra companhia dirigida por Jacinto Ramos, às seis e meia da tarde nos dias de semana. Esta companhia de Teatro do Nosso Tempo, a estrear também em janeiro, criou expectativa designadamente pelo regresso da atriz Maria Barroso, depois de dezasseis anos de ausência do palco”. (cfr. Leonor Xavier - “Raul Solnado – A Vida não se Perdeu” ed. Difusão Cultural,1991 pag.116).
Foi realmente um “regresso” inesperado e muito justamente aplaudido: e na mesma temporada, seria a notável estreia, em Portugal, da “Antígona” de Jean Anouilh.
E em boa hora, o Teatro Villaret continua em plena atividade!
Evocação dos Teatros de Gouveia, a propósito do centenário do nascimento de Vergílio Ferreira
Assinala-se este ano o centenário do nascimento de Vergílio Ferreira. Nascido em Melo - Conselho de Gouveia, em 1916 e falecido em 1996, o que nos remete para a evocação também dos 20 anos da sua morte. Esta circunstância justificará uma evocação do imponente e hoje em plena atividade Teatro Cine de Gouveia, construído em 1942 e devidamente restaurado e requalificado no ano 2000.
Mas também devemos evocar, não só o grande escritor, dramaturgo episódico e teorizador da arte do teatro, que dá o nome à Biblioteca Municipal da cidade, e também a própria tradição de edifícios e atividade teatral de Gouveia.
E nesse aspeto, é interessante recordar, no seguimento destas crónicas, que a então interioríssima Gouveia do século XIX inaugurou o seu primeiro teatro em 1878, denominado Teatro Hermínio, iniciativa de uma então pujante Associação de Beneficência Popular. A obra foi dirigida por José Pinto de Sousa e o espetáculo de estreia esteve a cargo de uma companhia protagonizada pelo ator Francisco Taborda, então um nome primordial no teatro português como aqui temos dito.
Transcrevemos a propósito parte da referência que o sempre citável “Diccionário do Theatro Português” de Sousa Bastos dedica, em 1903, a este Teatro Hermínio de Gouveia: “Tem 13 camarotes, 20 cadeiras, 94 lugares de plateia e 111 de galeria. (…) É lindamente iluminado a luz elétrica. (…)
Ultimamente têm sido feitos grandes melhoramentos na sala havendo ao centro do arco do proscénio um escudo com o nome de Taborda”
Vejamos então o que se passou com o Teatro Cinema de Gouveia. Foi inaugurado em 13 de novembro de 1942 com uma sucessão de espetáculos a cargo da Companhia Rey Colaço - Robles Monteiro, na época, como bem sabemos, referencial (e de certo modo ainda hoje…) do meio teatral português. A companhia permaneceu três dias em sucessivos espetáculos, o que também é de assinalar. A lotação rondava os 350 lugares.
Mas sobretudo, impunha-se a imponência modernista do edifício, com galeria exterior e dupla fachada em que domina a própria designação programática de Teatro Cine numa coluna vertical em rotunda, a unir as duas fachadas, uma delas totalmente envidraçada: exemplo notável de arquitetura de espetáculo.
Vergílio Ferreira escreveu uma única peça, “Redenção”, que publicou em 1949 na revista “Vértice” mas que não inclui na sua bibliografia. Mesmo, assim, tal como noutro lugar já referi, é um texto com interesse, no conflito existencial do “poeta”, que se encerra na sua própria solidão angustiada e “hesitante” recusando a participação que os amigos lhe propõem para no final morrer no terror desse mesmo isolamento social.
É, repita-se, a sua única peça conhecida.
E no entanto, no livro intitulado “Pensar” (1992) Vergílio Ferreira traça uma longa e profunda análise sobre a arte do teatro, que aqui transcrevemos em parte:
“De todas as artes espetaculares a que o mais o é, é o teatro. Ela é por isso mesmo aquela de que mais normalmente se diz que é um «espetáculo». E de tudo o que se caracteriza por um grande efeito público se diz que é «espetacular» (…) Isso explica ainda porque é o teatro a forma de arte privilegiada para um tempo de ação revolucionária, um tempo em que, estando-se fora dele pela arte, está-se dentro dele pelo que de real e imediato há nesse estar em público de seres reais que são os atores” …
Não se pretende neste artigo referir exaustivamente o conjunto de Teatros e Cineteatros do Alentejo, mas salientar, numa primeira abordagem que depois se irá especificando, a evocação de um chamado “estilo mourisco” em sucessivas salas de espetáculo da região, construídas a partir de finais do século XIX e em muitos casos ainda hoje em plena atividade. De tal forma que, repita-se, a algumas delas voltaremos com mais detalhe.
O mais significativo dessa linha arquitetónica será o Teatro Garcia de Resende, de Évora, já estudado nesta série: projeto do Arquiteto Silva Monteiro, datado de 1887, constituiu até hoje um dos grandes centros de cultura teatral da região. Mas também oportunamente referiremos por exemplo o Teatro Marques Duque de Mértola ou o Cine-Teatro Sousa Teles de Ourique, entre outros mais.
Hoje falaremos do Teatro Pax Julia de Beja, já pelo edifício em si, já pela própria trajetória funcional, cultural e arquitetónica e da relevância que sempre assumiu, em funções diferenciadas (e não pouco!...) mas sempre muito relevantes.
Com efeito, estamos neste caso perante a adaptação do antigo Hospício de Santo António, contíguo ao Convento da Conceição, ao qual pertencia quando foi contruído nos anos 20 do século passado. E é caso para dizer que o processo de intenções, no sentido de dotar Beja de um Teatro, vinha pelo menos de 1866, ano em que se começou a falar da necessidade de um teatro…
O edifício atual foi inaugurado em 1928. Em 1949 sofre obras profundas de atualização e reforça a atividade de exploração cinematográfica. Por essa altura, introduz-se um segundo balcão e procede-se à demolição das frisas e camarotes originais. Não é caso único por esse país fora: e em qualquer caso, funcionou como cinema até ao início dos anos 90.
Em 1994 a Câmara Municipal de Beja adquire o Cinema Pax Julia e um edifício vizinho, para reformulação da sala de espetáculos. Beneficiando de apoios do Ministério da Cultura, a Câmara procede então a uma vasto programa de obras de restauro, conduzidas segundo projeto da Arquiteta Maria Francisca Romão. E desde logo, no edifício contíguo, é instalada uma sala-estúdio que reforçou e de certo modo diversificou a atividade de espetáculos.
E talvez devido a esse prolongamento de vizinhança, o velho Teatro Pax Julia beneficia também de profundas alteações estruturais.
Desde logo, um segundo balcão, acrescentado nas obras de 1949, é suprimido, adequando melhor a sala, precisamente, a espetáculos de teatro e não de cinema. Ganha-se espaço para equipamentos técnicos e áreas de apoio ao espetáculo. E também a própria plateia é reduzida para maior conforto dos espetadores.
Desse modo, a lotação do Teatro reduz-se a 650 lugares: mas o termo “reduz-se”, num teatro, é força de expressão!
E fazemos ainda referência a dois Teatros que, na proximidade geográfica e cultural, assumem também, como o Pax Julia, evocação do estilo arquitetónico “mourisco”, digamos assim mesmo.
Desde logo, o Teatro Marques Duque, de Mértola, sala de pequenas dimensões, construída em 1913, restaurada pelos Arquitetos M. Andrade e Manuel Transmontano, hoje com menos de 170 lugares. E o Cine-Teatro Sousa Teles, de Ourique, este praticamente abandonado no princípio do século mas agora recuperado pelas Arquitetas Céu Oliveira Pinto e Luisa Biscaia, lotação de 183 lugares, com uma área e uma função museológica relevante.
Mas desses dois teatros falaremos em outra crónica.
Em 31 de dezembro de 1870, inaugura-se em Lisboa, na Encosta do Castelo um teatro a que foi dado o nome de Teatro Taborda. Não será o único e não seria o último: já aqui falamos do Teatro Taborda de Cernache do Bonjardim, e Sousa Bastos, no Dicionário de Teatro Português, escrevendo em 1908, assinala mais dois, em Oeiras e em Abrantes. Precisamente em Abrantes nasceu em 1846 o ator Francisco Taborda que lhes deu o nome – e Sousa Bastos não lhe poupa elogios: “incomparável, carater de ouro, artista sublime, joia mais preciosa do palco português, a mais veneranda relíquia da arte nacional”… nada menos! Viria a falecer em 1909.
O certo é que o Teatro Taborda corresponde ainda à geração de salas de espetáculo que, na sequência da fundação do Teatro D. Maria II em 1843, foi marcando zonas urbanas com especificidades e vida própria acentuada pelo local em que se insere.
O Teatro Taborda teve, ao longo de século e meio, uma atividade no mínimo irregular. Construído sobre antigas instalações conventuais cuja origem remontava ao século XVI, a iniciativa deveu-se a um grupo heterogéneo de “capitalistas”, chamemos-lhes assim, que constituíram uma chamada Sociedade Taborda, e encarregaram um arquiteto de renome da época, Domingos Parente da Silva, de elaborar e executar o projeto, enriquecendo-o, no que respeita ao espetáculo, com cenários de Rambois e Cinatti, recuperados do velho Teatro das Laranjeiras, entretanto destruído por um incêndio.
Fernando Midões, num texto livro sobre o Teatro Taborda, editado em 2006 pela Câmara Municipal de Lisboa, recorda com detalhe a inauguração, ocorrida, como vimos, em 31 de dezembro de 1870:
“A festa, muito à maneira da época, e devido à extensão do programa, durou até de madrugada. Iniciou-se com uma surpresa, a do «Hyno da Sociedade», oferta do Prof. Augusto de Carvalho ao que se seguiram: declamações de poesia («A Sociedade aos seus Convidados» de José Inácio de Araújo, recitada por Jesuíno Chaves) o drama em três atos «O Mundo e o Claustro» de Thomaz Lino da Assumpção e duas comédias («A Gramática» e «O Claustro»)”.
Tudo isto entremeado por números musicais diversos: não admira que o espetáculo, segundo crónicas da época, tenha terminado de madrugada!
É interessante recordar, entretanto, que o edifício desde origem foi utilizado, como até hoje aliás, numa heterogeneidade de funções, desde restaurante a centro de convívio e estrutura de atividades sociais. A implantação num bairro histórico com uma magnífica vista panorâmica de Lisboa, pode prejudicar a exploração teatral propriamente dita, mas valoriza a rentabilidade social, digamos assim: foi e é também um restaurante desde há muitos anos. E essa estrutura diversificada permitiu a rentabilização do edifício e, repita-se, dura até hoje.
O Teatro Taborda sobreviveu assim ao longo de dezenas de anos, mesmo sem grande projeção artística, numa exploração irregular que talvez se percebe melhor na perspetiva da expressão urbana da Lisboa, tal como se foi desenvolvendo ao longo do século XX, pelo menos no que respeita ao espetáculo teatral.
Sofreu obras de alteração interna a partir de 1909. Manteve-se numa exploração irregular, de que dão notícia placas evocativas de espetáculos e atividades designadamente da Academia de Recreio Artístico em 1924, ou da Banda da GNR em 1926.
A CML adquire-o nos anos 60 mas a atividade manteve-se intermitente.
Até que em boa hora é recuperado no início dos anos 90, através de projeto dos arquitetos Nuno Teotónio Pereira e Bartolomeu da Costa Cabral, tendo recomeçado a laborar, depois das obras de recuperação, em 1 de junho de 1995. Instala-se lá, e mantém um programa de renovação, o Teatro da Garagem, companhia experimental, fundada em 1989 e até hoje dirigida por Carlos J. Pessoa.
O que queremos agora salientar é que o Teatro Taborda conserva a estrutura original, na harmonia arquitetónica e no ambiente dos pequenos teatros de bolso do século XIX, como ainda subsistem alguns, mas infelizmente poucos, através do país – como temos vindo a referir: plateia enquadrada por duas galerias, devidamente reformuladas e abertas mas mantendo a estrutura correspondente à arquitetura de frisas e camarotes que marcaram e marcam os grandes e os pequenos teatros da época, mesmo que já não funcionem como tal…
Merece destaque esta convergência, pois representa em si mesma como que a homenagem bem merecida à tradição de arte e de espetáculo teatral, numa área urbana que, por esta via, muito se valorizou no aspeto cultural. E no entanto, é legítimo perguntar até que ponto a magnificência arquitetónica do Teatro Joaquim de Almeida do Montijo e a sua atividade constante, conduzem à memória do grande ator da transição dos séculos XIX/XX que dá o nome ao Teatro e a outras salas que o antecederam.
Com efeito, Joaquim de Almeida (1838-1921), nascido no Montijo, onde hoje se situa o Cinema Teatro que o invoca, deu nome a pelo menos três salas de espetáculo, e isto desde 1911. Escrevendo em 1908, Sousa Bastos já lhe elogia o prestígio e a versatilidade de forma que desde logo alude à ligação do nome a salas de Teatro: “Trabalhava hoje em D. Maria, amanhã no Rato; agora no Trindade, logo no Coliseu, duma vez no Ginásio, doutra na Rua dos Condes, e assim percorrendo todos os teatros de Lisboa, Porto, províncias, ilhas e Brasil (…) e sempre brilhantemente” (“Diccionário do Theatro Português” 1908).
Ora, vale a pena então referir que houve Teatro(s) Joaquim de Almeida em Lisboa, este situado no largo do Rato e demolido em 1930, mas sobretudo no Montijo, onde um recinto de madeira mais ou menos improvisado mas já denominado Teatro Joaquim de Almeida em 1911, deu lugar, em 1957, ao Cinema Teatro Joaquim de Almeida, projeto original do arquiteto Sérgio Gomes “com excelentes esculturas em friso de José Farinha e Martins Correia, representando as quatro artes do espetáculo e ainda, o Talento”, tal como noutro lado escrevi a propósito desta sala de espetáculos. (cfr. “De Volta aos Teatros” Livraria Civilização Ed., 2008, pag.149)
E acrescente-se que no mesmo dia 20 de outubro de 1957,foi também inaugurado o Mercado Central do Montijo, projeto do arquiteto Paulo Cunha. Assinale-se uma certa convergência arquitetónica e urbanística entre estes dois grandes edifícios. Ambos apresentam uma fachada em pilastras, com um remate de varanda no Mercado e de uma cobertura que no Cinema, protege o acesso e completa-se na fachada lateral em curva.
Tal como escrevi no texto acima citado, “O Cinema Teatro correspondeu a uma definição urbana de certa transição na expansão da cidade. E revelou também uma mudança de hábitos do espetáculo. Foi construído no local da antiga Praça de Touros, na cerca e jardim de um convento. Mas a traça é bem característica de certo modernismo que perdurou até tarde”.
Ou, como escreveu José de Matos Cruz, “caracterizando-se como um belo exemplar da arquitetura civil do gosto modernista, este imóvel apresenta, a par da sua grandiosidade, uma fachada de linhas sóbrias, constituindo uma peça fundamental do património arquitetónico e cultural do Montijo” (in “Cinema e Teatro Joaquim de Almeida – Montijo e o Cinema” – Publicações D. Quixote e CM Montijo -2001 pag.27).
Em qualquer caso, importa referir que o Cinema Teatro Joaquim de Almeida inscreve-se também no seu historial, na própria evolução e significado do espetáculo teatral e cinematográfico, desde a época da inauguração. Quem o inaugurou foi a Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro: nisso integra-se bem na cronologia cultural/teatral. Mas rapidamente passa a concentrar-se no cinema. E nesse aspeto, a sala correspondia às exigências habituais naquele tempo: desde logo a lotação exagerada (1220 lugares), a separação em plateia, dois balcões e uma geral (terceiro balcão como então se dizia), um pequeno palco e um avantajado foyer, como também se dizia.
Netas condições, não é de estranhar que o Cinema Joaquim de Almeida tenha perdido a designação de Teatro e tenha encerrado em 1991. Em boa hora, porém, a Camara Municipal do Montijo adquire-o em 1999, e reinaugura-o em 2005, devidamente restaurado no exterior e reconstruído no interior. Desaparece o terceiro balcão, reduz-se a lotação a metade, alarga-se o palco.
E recupera-se a zona de circulação do público, agora valorizada por atividades de cultura e convívio: livraria, café-concerto, sala de música, galeria de exposições, espaço de conferências.
MODELO DO AMBIENTE CÉNICO-ARQUITETÓNICO DO SÉCULO XIX
O Centro Nacional de Cultura realizou um “Passeio de Domingo” a Cascais, que incluiu alguns dos mais notáveis exemplos de património histórico e arquitetónico de expressão cultural e religiosa, designadamente a Igreja da Assunção, a Fortaleza de Nossa Senhora da Luz, o Palácio da Cidadela, o Museu Condes de Castro Guimarães e o Teatro Gil Vicente. Dirigiu o conjunto da visita Anísio Franco, com quem partilhei a abordagem sobre o Teatro.
Ora, importa situar a construção do Teatro Gil Vicente no contexto global da Cascais histórica tendo em vista, no que respeita especificamente ao Teatro, alguns fatores que até hoje, o singularizam no contexto do património teatral português, perspetivado na abrangência da expressão: edifício e atividade cénica e cultural.
Trata-se, antes de mais, de um dos poucos “sobreviventes” em plena atividade daquilo a que chamo a geração dos teatros que, um pouco por todo o país, foram sendo contruídos na sequência da inauguração do Teatro de D. Maria II em Lisboa, no ano de 1843. Não restam muitos, como aliás aqui temos visto: e no caso presente, há que assinalar a conservação da arquitetura teatral da época e a respetiva rentabilidade cénica a artística.
Este Gil Vicente de Cascais data de 1869: Sousa Bastos, no “Diccionário do Theatro Português” (1909) evoca a inauguração, em 15 de agosto daquele ano, com um drama, “O Ermitão da Cabana” e uma comédia, “Matheus do Braço de Ferro”: programa habitual na época! E mais diz que que o Teatro foi construído por iniciativa algo inesperada de um capitão da marinha mercante e armador, de seu nome Manuel Rodrigues de Lima, no espaço urbano em que teria existido um pequeno teatro adaptado de um armazém.
Os trabalhos foram dirigidos por José Vicente Costa “carpinteiro de Caparide”, assim mesmo: e mais, acrescenta Sousa Bastos “o cenário (das peças da estreia) consta de três salas ricas, uma pobre, jardim, praça e mar, deve ser magnífico, pois foi ainda pintado por Rambois e Cinatti”, efetivamente grandes nomes da cena portuguesa da época.
Curiosamente, Sousa Bastos ainda esclarece que o Teatro já servia de sede da “Associação Humanitária Recreativa Cascaense com 4 secções: bombeiros voluntários, filarmónica, grupo dramático e sócios contribuintes”… Ora, passado mais de um século, manteve-se a ligação institucional aos Bombeiros de Cascais, entidade com a designação, a partir de 1942 de Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Cascais.
Por seu lado, Ferreira de Andrade recorda que “pelo Gil Vicente passaram as maiores figuras do teatro de então”, citando grandes nomes da época: Vale, Beatriz Rente, Mercedes Blasco, Pereira da Silva… (cfr. “Cascais Vila da Corte” e “Monografia de Cascais”, ed. Câmara Municipal de Cascais). E ao mesmo tempo, o Gil Vicente acolhia récitas de amadores, animadas até pelo Rei D. Luís, que era espectador habitual: ”gostava de assistir aos espetáculos no Gil Vicente”, diz-nos Maria José Pinto Barreira de Sousa, que reproduz um longa conversa do Rei em 1878, recordando alguns desses espetáculos. No estudo referido são evocadas sucessivas temporadas de teatro até finais do século XIX. (cfr. “Cascais - 1900”, ed. INAPA, 2003)
Por meu lado, assinalei designadamente uma récita de 1895, dirigida por Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro e, em 1915, um facto pouco conhecido: a estreia de uma revista composta e cantada pelo então jovem Pedro de Freitas Branco (1896-1963) que tanto marcaria, como maestro, a história da música portuguesa. (cfr. “Teatros de Portugal”, ed. INAPA, 2006, pág. 36)
Mas é altura de passarmos a anos mais recentes. Em 1965 Carlos Avilez inicia, no Teatro Gil Vicente, a atividade do Teatro Experimental de Cascais. E lá se conservou, na direção desta companhia referencial, até 1977. Note-se bem a expressão: “referencial” foi efetivamente o TEC que, ao longo de dezenas de anos, procedeu (e ainda procede, noutro teatro) a uma renovação da cultura e do meio teatral português, ao nível de repertório, ao nível de elencos e até do relacionamento do público com o teatro.
Importa ter presente que as versões/encenações de Carlos Avilez no TEC assumiram sempre uma expressão de modernidade, mesmo quando se trata de autores clássicos ou românticos, nacionais ou estrangeiros. Recordem-se alguns, entre tantos mais: Gil Vicente, António José da Silva, António Ribeiro Chiado, André Brun, Paço d’Arcos, Bernardo Santareno, Alice Vieira, Norberto Ávila, Shakespeare, Frederico Garcia Lorca, John Osborne, Arrabal, Jean Tardieu, Samuel Beckett, Jean Genet, Bertold Brecht e tantos mais…
Efetivamente, como noutro lado escrevi, o grande momento histórico do Gil Vicente de Cascais decorre nos anos 60 e 70 do século passado, com o Teatro Experimental de Cascais mas também com os Cursos Musicais de Verão da Costa do Sol. O TEC marca de facto uma época, formara um público e dezenas de artistas e, mais ainda, renovara um repertório e cria uma certa mentalidade - até hoje.
Vimos, em crónica anterior, o historial e a atividade do Teatro Lethes de Faro. Na sequência, referiremos hoje o Teatro Municipal de Faro, inaugurado em 2005 mas também conhecido por Teatro das Figuras, evocação de uma tradição urbana que vem do século XVIII: aliás, recorde-se que o Teatro Lethes surge em 1843, na adaptação de um edifício monástico que esse, começou a ser construído em 1599.
A expressão “Teatro das Figuras” decorre pois de uma construção de 1740, junto ao Solar da Horta do Ourives, cuja capela data daquele ano. O edifício ou o que dele resta denominava-se A Casa das Figuras pela decoração com figuras híbridas de pessoas e animais, numa alegoria insólita. Na mesma zona da cidade, assinala-se ainda o Solar de Veríssimo de Mendonça Manuel, também classificado.
Mas vejamos A Casa das Figuras. Tânia Pereira descreve “os seres meio humanos e meio animalescos, quase antropomórficos, meio diabos e meio figuras jocosas, típicas do teatro barroco, uma feminina e outra masculina (que) marca no centro da imagem. O ser que encima a empena é um homem ou uma entidade, mas sem pernas. É ele o ser mais humano (…) Os outros são uma mistura de alegoria com zoologia. Entende-se uma ponta de ironia no conjunto que também olha para quem passa”. (in “A Horta do Ourives” - revista “Monumentos”, ed. DGMN, Março 2006, pág. 119).
Este conjunto arquitetónico (Teatro e Casa das Figuras) valoriza e caracteriza a zona central da cidade que para ali se prolongou. Com efeito, a traça setecentista do Solar harmoniza-se com a força arquitetónica e com a modernidade do Teatro, projeto final do arquiteto Gonçalo Byrne, numa implantação em H, alternando fachadas com zonas de janelões e contraste na implantação de paredes revestidas de pedra de tom amarelo, também notáveis na conciliação com a modernidade do conjunto do edifício e da área urbana.
A sala principal comporta 800 espectadores, com um fosso de orquestra para 70 executantes e uma estrutura cénica designadamente no palco, que permite, como tem sucedido ao longo da década, concertos de grande orquestra e ópera.
Esta proximidade e simultaneidade do Lethes e do Teatro Municipal devem ser devidamente realçadas. Tal como tive já ocasião de escrever, “a diferença de dimensões e lotação (do Teatro Municipal) relativamente ao Teatro Lethes, parece marcar uma certa vocação para cada uma destas salas, na medida em que o concerto sinfónico e a ópera, em geral exigem maior espaço e chamam mais público, até porque os espetáculos são em menor número para cada programa. Isto, com as exceções para ambos os lados, que bem se conhecem!” (in “Teatros em Portugal - Espaços e Arquitetura”, ed. Midiatexto, 2008, pág. 98).