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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA

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U. UTOPIA E QUINTO IMPÉRIO

 

O folhetim fantasmático chega a um ponto crucial. Tomás Morus celebrizou-se pela publicação do discurso de um português de nome Rafael Hitlodeu, sobre a melhor Constituição de uma República. Esse texto fundamental tem feito correr rios de tinta, sobretudo a partir do seu misterioso título - «Utopia». A etimologia grega remete para uma designação contraditória que significa o que não existe ou não tem lugar… Morus procurou apresentar uma sociedade que pudesse satisfazer a felicidade humana, no entanto a história da humanidade está cheia de exemplos de tentativas falhadas de realizar na prática esse generoso objetivo. Tomás Morus (1478-1535) foi um dos humanistas mais destacados do Renascimento. Foi advogado, deputado à Câmara dos Comuns, «speaker» da mesma Câmara, Vice-Tesoureiro e Chanceler do Ducado de Lancaster até chegar à primeira linha da governação. Amigo de Erasmo de Roterdão, que lhe dedicou o «Elogio da Loucura», este disse de Morus: «É um homem que vive com esmero a verdadeira piedade, sem a menor ponta de superstição, tem horas fixas em que dirige a Deus as suas orações, não com frases feitas, mas nascidas do mais fundo do seu coração. Quando conversa com os amigos sobre a vida futura, vê-se que fala com sinceridade e com as melhores esperanças. E assim é Morus também na Corte. Isto, para os que pensam que só há cristãos nos mosteiros». O conflito com Henrique VIII deveu-se à querela sobre a anulação do casamento com Catarina de Aragão. Morus discordou da posição do monarca e demitiu-se de Chanceler – negando-se a dar o seu acordo no sentido da cisão religiosa. Em consequência recusou-se a prestar juramento a Henrique VIII, o que determinou a sua prisão na Torre de Londres, com o cardeal e bispo de Rochester, John Fisher, o seu julgamento e condenação à morte, que ocorreu em 6 de julho de 1534. As suas últimas palavras foram: «morro como bom servidor do rei, mas de Deus primeiro». Na história britânica esta execução é considerada das mais graves e injustas aplicadas pelo Estado, por atingir um homem prestigiado e de honra.

Tomás Morus usou sobre a sociedade do seu tempo um método semelhante ao de Erasmo em «Elogio da Loucura» (de 1509). Erasmo pôs a loucura a falar, de modo que se percebesse a imperfeição humana – como Morus foi buscar na sua obra referência aos povos com «instituições tão más como as nossas». Curiosa é que a escolha do cicerone tenha recaído sobre um português, Rafael Hitlodeu, conhecedor do latim e sabedor do grego. Nascido em Portugal, cedo abandonou a fortuna paterna aos irmãos, levado pela «intensa paixão de conhecer mundo». Foi companheiro de Américo Vespúcio e um dos poucos escolhidos para ficar nos confins da Nova Castela, no litoral da América, em contacto com novos povos – tendo desembarcado por milagre na Taprobana, seguindo depois para Calecute, «onde um navio português o reconduziu ao seu país». Reler esse testemunho é compreender que um tal português simbólico reúne diversas qualidades pertinentes e atuais – o desejo de conhecer novos mundos e novas gentes, aliado a uma especial sabedoria, capaz de entender que «o dever mais sagrado do príncipe é pensar na felicidade do povo antes de pensar na própria» ou que «a dignidade real não consiste em reinar sobre mendigos, mas sobre homens livres e felizes». Eis por que razão a descrição da «Utopia» tem mais a ver com um caminho livremente aceite e comummente construído. «Na Utopia, as leis são em pequeno número e a administração difunde os seus benefícios por todas as classes de cidadãos». Não cabe aqui, porém, uma descrição da sociedade encontrada por Hitlodeu na ilha com dois mil passos na sua maior largura… Morus diz não concordar com tudo, «há nos utopianos um conjunto de instituições» que se deseja ver estabelecidas em nossos países. Daí a importância do sentido crítico e da liberdade… E o autor deseja-o, mais do que o espera…

Aproveitamos para seguir as pisadas do Padre António Vieira nas viagens diplomáticas, em representação do rei D. João IV. E deparamo-nos com a presença de Menasseh ben Israel (1604-1657).  Em 20 de abril de 1646, Vieira chega a Haia, vindo de Rouen, com duas missões: discutir o futuro de Pernambuco, na posse dos holandeses, e contactar os sefarditas portugueses sobre a possibilidade de regressarem a Portugal num momento decisivo em que os meios financeiros faltavam, com o Tesouro exaurido por sessenta anos de monarquia dual com a Espanha. O jesuíta conhecia bem o estado de espírito dos judeus portugueses – tinham uma boa lembrança da pátria antiga, mas desejavam liberdade de consciência e garantias de segurança, que a Inquisição não dava. Sem provas documentais, o Padre Vieira ter-se-á encontrado com Menasseh ben Israel, cuja pessoa admirava, partilhando muitas das suas convicções. Era indispensável atrair capitais e mobilizar iniciativas para reconstruir uma economia empobrecida. O facto de os capitais ligados ao comércio das Índias Orientais e Ocidentais estarem nas mãos de judeus e cristãos-novos constituía uma oportunidade que teria de ser aproveitada. Daí a importância do diálogo com a comunidade judaica. Quem era Menasseh ben Israel? Nasceu na Madeira, filho de Gaspar Rodrigues Nunes, sendo-lhe dado o nome de Manuel Dias Soeiro. O pai, acusado de práticas judaizantes, teve de partir para a Holanda em 1613 e tomou o nome de Joseph ben Israel, dando a seus filhos os nomes de Ephraim e de Menasseh. Em 1622, encontramos Menasseh como pregador da comunidade, no ano seguinte casado com Raquel Abarbanel. Em 1626, funda a primeira tipografia de caracteres hebraicos. Corresponde-se com Rembrandt van Rijn (que o retrata) e com Hugo Grócio. Semuel ben Israel Soeiro, o filho, prosseguirá a intensa atividade editorial paterna. Em 1651, Menasseh tentará estabelecer pontes com as ilhas britânicas, mantendo contactos com Cromwell. Em 1656 é inaugurada a Sinagoga de King Street e é decidida a construção do hospital de Mile Ende, iniciando-se um grande crescimento da comunidade judaica, sobretudo a partir do reinado de Carlos II, marido de D. Catarina de Bragança. Menasseh está em Londres entre 1655 e 1657, regressando aos Países Baixos em 1657. Morre em Midleburgo em novembro e está sepultado no cemitério judeu de Beit Haym, que fica em Ouderkerk no Amstel, nos arredores de Amesterdão. Diga-se que o rabino Menasseh ben Israel não estava em Amesterdão quando Saul Levi Morteira assinou a condenação de Bento Espinosa, e diz a tradição que se Israel tivesse intervindo tal decisão não teria sido tomada. O Padre António Vieira ficaria nos Países Baixos durante três meses, voltando a Haia a 17 de dezembro de 1647. Se é certo que os resultados práticos não foram grandes, é fundamental o que António José Saraiva descobriu, na sua estada holandesa. Não foi apenas o dinheiro dos judeus que interessou António Vieira, mas a aproximação das teses judaicas. Assim considerou os judeus, a “gente da nação”, um povo laborioso, enriquecedor das comunidades em que se inseriu, em nada podendo perverter os costumes tradicionais da Igreja Católica. E se o capital mercantil dos judeus lhe importou, com resultados práticos, houve igualmente uma preocupação de justificar a aproximação às ideias positivas que poderiam colher-se no pensamento judaico. Daí o sucesso na negociação dos empréstimos para a coroa portuguesa com Duarte Silva, cristão-novo de Lisboa, que abriu caminho aos créditos obtidos nos Países Baixos.  No regresso de Amesterdão que Vieira inicia a escrita, nunca acabada, da “História do Futuro” (1649), e em 1659 da carta “Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo”, pela qual será processado pela Inquisição (a partir de 1663). O “Quinto Império (profetizado no Livro de Daniel, sucedendo aos Impérios Assírio, Persa, Grego e Romano) localizar-se-ia na Terra, na totalidade geográfica da Terra, e não no Céu”, mercê da convergência de vontades de um Imperador espiritual e de um Imperador temporal, no sentido da criação de um estado de justiça e santidade, de paz universal e de sobriedade. As personagens encontram-se nos diversos mundos e responde a mil enigmas.

 

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T.  TROVADORES

 

Neste folhetim que vai reunindo fantasmas, encontramos agora os pioneiros do nosso idioma. Quem são eles? Poetas de primeira água. Como idioma nacional, o português tem essa extraordinária originalidade, que advém de ser na sua raiz uma língua de trovadores com talento feito no caminho de peregrinação de S. Tiago de Compostela. Se os trovadores ocidentais utilizaram o galaico-português, os orientais fizeram uso do provençal ou Languedoc, que correspondeu ao falar do sul do território francês, por contraposição à Languedoïl.  E se há monarca português fundador e criador decisivo da língua portuguesa é sem dúvida D. Dinis. Este rei poeta leva-nos ao reconhecimento da importância da poesia trovadoresca na origem da nossa cultura.

«O que vos nunca cuidei a dizer, / com gram coita, senhor, vo-lo direi, / porque me vejo já por vós morrer; / ca sabedes que nunca vos falei / de como me matava voss'amor; / ca sabe Deus bem que doutra senhor, / que eu nom havia, mi vos chamei. /
E tod[o] aquesto mi fez fazer / o mui gram medo de que eu de vós hei / e des i por vos dar a entender / que por outra morria — de que hei, / bem sabedes, mui pequeno pavor; / e des oimais, fremosa mia senhor, / se me matardes, bem vo-lo busquei. / E creede que haverei prazer / de me matardes, pois eu certo sei / que esso pouco que hei de viver / que n’um prazer nunca veerei; / e porque sõo desto sabedor, / se mi quiserdes dar morte, senhor, / por gram mercee vo-lo [eu] terrei».

Tal poesia centrada no amor cortês floresceu na Península, salientando Carolina Michaelis de Vasconcelos, no noroeste peninsular, quatro períodos dessa poesia inicial: o pré-afonsino (1200-1245), o afonsino (1245-1280), de Afonso X e do nosso Afonso III, o dionisíaco (1280-1325) e o pós-dionisíaco (1325-1350). As cantigas profanas galego-portuguesas estão reunidas em três manuscritos. O mais antigo, do século XIV é o Cancioneiro da Ajuda (A), rico manuscrito iluminado, mas incompleto, já que contém apenas 310 composições, na sua esmagadora maioria cantigas de amor. Descoberto na biblioteca do Colégio dos Nobres em inícios do século XIX está na Biblioteca do Palácio da Ajuda, em Lisboa, pouco sabemos sobre as suas origens ou sobre o seu percurso. Os outros dois manuscritos, conhecidos como Cancioneiro da Biblioteca Nacional, também chamado Cancioneiro Colocci-Brancuti, é o mais completo, que o património português ganhou graças à direção magistral da Biblioteca Nacional de Jaime Cortesão. O Cancioneiro da Vaticana está guardado na Biblioteca Apostólica Vaticana, trata-se de manuscritos copiados em Itália, nas primeiras décadas do século XVI, sob as ordens do humanista Angelo Colocci, e a partir de um cancioneiro anterior, muito certamente medieval, hoje desaparecido. Ao que tudo indica, terá sido D. Pedro, conde de Barcelos, trovador e primogénito bastardo de D. Dinis, o compilador das cantigas que chegaram até nós. A lista dos poetas é vasta e inclui João Soares de Paiva, João Garcia de Guilhade, Pero da Ponte, Pai Gomes Charinho, João Aires de Santiago, Afonso X, João Soares Coelho e Pedro Afonso, João de Lobeira (célebre autor do Lai de Leonoreta e provavelmente do Amadis de Gaula, onde este poema se encontra), Rui Queimado e no período de D. Dinis, além do próprio, Afonso Sanches, filho natural do rei. Antes dos cantares de Amor em que a voz é do poeta, temos as cantigas de Amigo em que fala a donzela e ainda as de escárnio e maldizer, em que prevalece o tom picaresco.

Voltando ao tema dos fantasmas, o caso de Amadis de Gaula é essencial, já que não poderemos compreender esta nossa cultura do cadinho ocidental sem o fundamento lírico invocado por Leonoreta. A originalidade da língua portuguesa baseia-se, assim, no seu fundo poético. E o Tratado de Alcanizes foi símbolo político, o mais antigo e estável da Europa – tendo Castela e Aragão reconhecido a D. Dinis especial legitimidade mediadora. A Crónica de 1344 recorda, aliás, a solene comitiva de mais de mil nobres que o rei de Portugal levou à fronteira castelhano-aragonesa, em junho de 1304, por ocasião da arbitragem a que foi chamado. A ocasião foi aproveitada para selar o solene tratado de paz envolvendo os três reinos, Portugal, Castela e Aragão, não tardando a fazer-se o consórcio do infante D. Afonso com D. Beatriz, irmã de Fernando IV. E o reino reforçou-se pelo reordenamento do aparelho administrativo; pela atribuição de forais aos municípios; pelo reconhecimento das comunas judaicas e dos “mouros forros”; pela regularização na cobrança das receitas; pelo fomento das atividades agrícolas e comerciais; pela concessão de feiras francas (no Douro e na estrada da Beira); pela realização de Inquirições Gerais e afirmação da reserva para o rei da distribuição de poderes e dons aos membros da corte; pela adoção de novas regras de recrutamento militar nos concelhos (“besteiros de conto”); pela nacionalização das Ordens religiosas militares (Santiago, Templários/Cristo); pela criação de coutos de homiziados, que previam o cumprimento de penas em zonas fronteiriças pouco povoadas; pela concretização de uma lei sobre tabeliães e selos dos concelhos; pela criação da bolsa de mercadores para apoio aos portugueses que comerciavam em França, Inglaterra e Flandres, pela proteção da atividade mineira (ferro, mercúrio, ouro…); e pela nomeação do genovês Manuel Pessanha para o comando da frota real (1317). O casamento em junho de 1282 com a Rainha Santa D. Isabel de Aragão, filha de Pedro III, o Grande, permitiu uma aliança essencial.

E deve recordar-se a importância da influência franciscana, a abrir novos horizontes e uma nova visão do mundo e da história. Como salientou Jaime Cortesão, as festas do Espírito Santo nos Açores ou no Brasil são sinal dessa presença franciscana. A Livraria de D. Dinis é exemplo notável de abertura de espírito, de curiosidade intelectual e de sensibilidade e o Estudo Geral (1290), futura Universidade, é o indicador de que a autonomia política exigia a criação de uma elite intelectual, de clérigos e legistas, apta a corresponder às novas exigências de uma Administração pública autónoma, centralizada e competente.

Cerca de 1296, a adoção do romanço ou língua vulgar (o galaico-português) nos documentos oficiais da chancelaria permite a consolidação da língua portuguesa. E a medida levou à consagração da prevalência da instância civil sobre a eclesiástica. Fronteira, língua, Estudo Geral, independência económica (agricultura, marinha e pesca) definem ventos novos. O Estado constitui-se, a Nação consolida-se. Fernando Pessoa chamou ao rei, com justiça, “plantador de naus a haver”, fundador da nova potência marítima…

 

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S. SÉRGIO (ANTÓNIO)

 

Educar é o melhor modo de antecipar o futuro. E se falamos de futuro é porque a aprendizagem é a compreensão da importância presente da experiência. O futuro é a compreensão do presente. António Sérgio (1883-1969) seguiu o exemplo de Francis Bacon e de Montaigne privilegiando o método dos Ensaios. E que são os ensaios senão a demonstração do saber todo de experiências feito. Ao longo da vida preocupou-se com o testemunho pedagógico para as gerações futuras, usando essencialmente o método crítico. Hoje, mais do que nunca, é necessário lermos e ouvirmos os seus ensaios, onde nos propõe, em lugar de receitas ou de caminhos pré-fabricados, vias múltiplas centradas na liberdade e na responsabilidade, articulando a importância da singularidade individual (ou não fosse ele sempre um idealista racional) com a solidariedade voluntária (baseada na ação do cooperativismo). Note-se que, no fugaz tempo em que foi Ministro da Instrução Pública, deixou duas marcas muito evidentes, que merecem lembrança: a criação da Junta de Orientação dos Estudos (Decreto nº 9332, de 29 de dezembro de 1923) e do Instituto do Cancro. A Junta foi criada no sentido da abertura dos nossos investigadores e estudantes ao contacto internacional, através de bolsas de estudo e de formações avançadas (que teria continuidade na Junta de Educação Nacional, no Instituto de Alta Cultura, chegando ao Instituto Camões). Devemos lembrar que José de Azeredo Perdigão, um sergiano confesso, desenvolveu, na linha do mestre o apoio ao conhecimento na Fundação Calouste Gulbenkian, com belos frutos na abertura de horizontes centrados no valor e na liberdade. O Instituto Português para o Estudo do Cancro (Decreto nº 9333, de 29 de dezembro de 1923), hoje Instituto Português de Oncologia, que o Professor Francisco Gentil animou, dando projeção internacional e grande prestígio, é um exemplo premonitório da necessidade de ligação estreita entre a ciência e a saúde. Poucos governantes têm a seu favor uma tão importante marca simbólica de valor perene.

António Sérgio foi um polemista aguerrido, por isso podemos afirmar que, na senda de figuras que tanto admirou, como Alexandre Herculano e Antero de Quental, preocupou-se em modernizar Portugal, seguindo a lição da Regeneração e da Geração de 1870, na perspetiva de superar a mediocridade, sem iludir defeitos e limitações. O empenhamento na causa da Instrução Pública é significativo e facilmente o verificamos na leitura da sua vasta bibliografia. Foi importante a passagem por Genebra com sua mulher D. Luísa Sérgio e compreendemos como António Sérgio pensou a modernização do País através do estudo e do conhecimento. Leia-se a série de ensaios publicados na revista “A Águia”, da Renascença Portuguesa, sobre a “Educação Cívica”, que continua a ter atualidade pela defesa de uma cidadania ativa e pela ideia de República Escolar, na linha do pensamento de John Dewey, um dos mais fecundos pedagogistas do seu tempo. E a verdade é que aí encontramos uma preocupação fundamental em que o rigor e a exigência se aliam à motivação e à tomada de consciência fecunda de cidadãos livres e iguais, autónomos e responsáveis, empenhados e solidários. Para Sérgio a escola era lugar natural de cidadania, e as mais recentes investigações das neurociências confirmam a importância de considerar desde a infância a aprendizagem da cidadania e do compromisso solidário. A sociedade não está fora da escola, faz parte intrínseca da vida escolar e da comunidade educativa. Do mesmo modo, o cooperativismo constitui um desafio prático, que ainda hoje continua por cumprir, sendo um elemento que a história recente tornou mais atual. A ação cooperativista de António Sérgio constitui uma indelével marca política que, apesar das resistências, continua a ser relevante. De facto, nem o Estado nem o mercado só por si podem responder às exigências da sociedade e da economia. Assim, para que não haja um Estado produtor, centralizado e burocrático ou um mercado vulnerável e incapaz de garantir eficiência e equidade ou de assegurar uma concorrência sã e equilibrada, impõe-se a criação de uma economia cooperativa, capaz de realizar um Estado catalisador e ordenador e um mercado justo...

A obra do escritor é rica em reflexão, mas pode dizer-se que o espírito de reformador está enraizado na sua atitude intelectual. Trata-se de procurar linhas de orientação e de ação capazes de garantir a superação do nosso atraso. Daí a dualidade transporte / fixação, na qual há uma procura determinada no sentido do melhor aproveitamento dos recursos próprios – a começar nas pessoas e a continuar nos recursos disponíveis – no território, na inserção internacional e na cooperação científica e técnica. Quando António Sérgio publicou a sua Antologia dos Economistas Portugueses (1924) ou quando proferiu a conferência sobre “as duas políticas nacionais” (1925), dada à estampa no segundo volume dos Ensaios, lembrou que três autores seiscentistas, Luís Mendes de Vasconcelos, Severim de Faria e Duarte Ribeiro de Macedo, iniciaram a doutrina da política da Fixação, contra a política do Transporte; e o reformismo português, desde aí até agora, será o desenvolvimento dos princípios que defenderam nas suas obras. Em Vasconcelos é a Fixação, pela agricultura; em Severim, pela agricultura e pelas indústrias; em Macedo, finalmente, são as minúcias de um programa de fomento industrial”. Logo no final do século XVII, porém, o dinheiro das minas do Brasil, mais tarde os empréstimos do fontismo e as remessas dos emigrantes adiaram a realização das ideias dos reformadores. Mas o seu espírito continua, ressalvadas as distâncias e qualquer anacronismo, vivo e pertinente, em nome de um reformismo que foi assumido por Herculano, pela geração de 1870, pela “Seara Nova” e pelo moderno pensamento democrático. Como afirmou: “parece-me que os males de que nos queixamos são fatalíssima consequência da estrutura da sociedade, - e que só portanto terão remédio se nos metermos firmemente a transformar essa estrutura, o que não é possível com pregações, nem com políticas de autoritarismo, nem com reformas só pedagógicas, - mas com reformas sociais e pedagógicas entrelaçadas como fios de um tecido único, as quais preparem o nosso povo para um uso razoável da liberdade e para empreender por si mesmo a sua emancipação social-económica”. Neste folhetim que prossegue, a modernidade faz-se de consciência crítica. O tempo é revelador de uma cultura de várias realidades… 

 

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ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA

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R.  ROSA (JOÃO GUIMARÃES)

 

Esta fotografia é de 1961 e constitui uma autêntica relíquia. Carlos Drummond de Andrade, João Guimarães Rosa e Manuel Bandeira, lado a lado, num momento glorioso da literatura brasileira, no seio da gloriosa língua portuguesa. Neste abecedário de fantasmas, percebemos bem como a vida persiste e se prolonga. Ler qualquer um destes geniais autores, é encontrar a língua portuguesa na sua expressão mais rica e legítima. Já aqui referimos o Concílio (ou Consílio) dos Deuses. Nesse areópago sagrado, se apurássemos a vista, descobriríamos num dos cantos, uma animada conversa. De quem? Naturalmente desta sacra trindade, deste triunvirato solidamente criador. E ouvimos: “Nunca me esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra” … Mas do outro lado, ouvi: «Vou-me embora pra Pasárgada / Lá sou amigo do rei / Lá tenho a mulher que eu quero / Na cama que escolherei / Vou-me embora pra Pasárgada» … Mas devo ainda recordar que um dia, no final dos anos cinquenta, Alexandre O’Neill disse a António Alçada Baptista que tinha descoberto um grande escritor e um livro extraordinário da língua portuguesa acabado de sair. Referia-se a João Guimarães Rosa (1908-1967) e à sua obra “Grande Sertão: Veredas” (1956, Livraria José Olympio). António tomou boa nota e embrenhou-se na obra tão elogiada. Nas primeiras impressões achou difícil. Mas não bastou muito para se deixar apaixonar por essa escrita tão atraente, de uma escrita genial. E nunca mais deixou de elogiar e de citar esse livro, rigorosamente fantástico. Aparentemente, estamos perante a linguagem rural dos sertanejos, que o Guimarães Rosa maneja com mestria perturbadora. Como diz António Cândido (e o meu amigo Celso Lafer sempre me lembra): “tudo se transformou em significado universal graças à invenção, que subtrai o livro da matriz regional”. Ali estão “os grandes lugares-comuns, sem os quais a arte não sobrevive: dor, júbilo, ódio, amor, morte, para cuja órbita nos arrasta a cada instante, mostrando que o pitoresco é acessório e, na verdade, o Sertão é o mundo”. O livro é complexo como a própria vida. Riobaldo começa a contar, de modo incessante, a sua experiência pessoal. Trata de tudo, dos mistérios do mundo e da vida. “O diabo na rua, no meio do redemoinho”. E contar é “dificultoso”, pela “astúcia” de certas coisas passadas, que fazem “balancé” e se remexem dos lugares. “Vivendo se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas”. Riobaldo encontra Reinaldo, que o fascina. E depois da morte da mãe Brigi, vai para a fazenda do padrinho Selorico Mendes e conhece o mítico chefe Joca Ramiro. É professor do fazendeiro Zé Bebelo, mas isso serve para entrar no cangaço, como jagunço do bando deste, no sul da Bahia e em Goiás. Acaba, porém, por fugir e reencontra Reinaldo, “companheiro” de Joca Ramiro, “transferindo-se” de bando. Reinaldo revela-lhe em segredo que se chama Diadorim e abre-se o combate com o antigo bando, de Zé Bebelo, e contra as tropas governamentais. A pontaria de Riobaldo (chamado o Tatarana) torna-se celebrada e permite ao grupo de Joca levar de vencida Zé Bebelo. Este é julgado e condenado ao exílio em Goiás. Mas Joca Ramiro é assassinado à traição (pelos “judas”, Hermógenes e Ricardão) e Riobaldo, como Reinaldo, continuam no cangaço com Titão Passos. Riobaldo tem um caso com Nhorinhá, mas enamora-se de Otacília, de quem Diadoirim se enciúma. Por entre lutas e contra lutas, Zé Bebelo regressa do exílio e toma a chefia do bando na perseguição dos “judas”. Os bebelos chegam a “Veredas-mortas” e Riobaldo faz um pacto com o diabo, para vencer os “judas”, e torna-se chefe do bando como Urutu-branco. “Deus existe mesmo quando não há. Mas o demónio não precisa de existir para haver”. O combate e a perseguição não têm tréguas nem quartel. Nos sertões de Minas Gerais, vindos da Bahia, os jagunços perseguem traidores. As lutas são sangrentas, e Diadorim enfrenta Hermógenes. Mas ambos morrem. E descobre-se que Diadorim é Maria Diadorina da Fé Bittancourt Marins, filha do próprio Joca Ramiro. Diadorim (Bruna Lombardi) e Riobaldo (Tony Ramos) protagonizaram a mini-série realizada pela Globo (1985), dirigida por Walter Avancini, que contribuiu para popularizar o genial romance. Bruna Lombardi imortalizou Diadorim numa grande representação! No final do romance, Riobaldo fica gravemente doente, mas consegue sobreviver e acaba a vida a gozar da herança do padrinho e a lembrar o pacto com o diabo, concluindo que o que verdadeiramente “existe é o homem humano” … Porque afinal “sertão é dentro da gente”. E Eduardo Lourenço comparou “Grande Sertão” com “Menina e Moça” de Bernardim. No português moderno é insuperável. Os fantasmas encontram-se e superam-se. E assim se demonstra como uma narrativa pode ser imorredoura.

 

 

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Q. Quental (Antero de)

 

Lugar de encontro? O antigo Largo da Abegoaria, onde Antero de Quental (1842-1891), no longínquo dia 27 de maio de 1871, proferiu a mais célebre conferência do Casino, que chegou até nós envolta em celebridade, mas também de mito. E se o nosso folhetim é de fantasmas, o jovem poeta vindo dos Açores e celebrizado em Coimbra, pode dizer-se que nessa reflexão o autor quis ser revolucionário; e marcou decisivamente as gerações intelectuais que se lhe seguiram. É verdade que o caso Dreyfus iniciou na Europa o envolvimento dos intelectuais nos debates políticos, temos de lembrar que em Portugal foi a geração dos jovens de Coimbra a rutura na senda dos ventos que vinham da Europa. As Conferências Democráticas prenunciaram um tempo de intervenção social, que o século XX viria a seguir por caminhos múltiplos. E, assim, mais do que a preparação de uma revolução política, com repercussões imediatas, o que Antero de Quental e os seus pretenderam foi um verdadeiro despertar nacional. Hoje sabemos que a influência das Conferências ultrapassou em muito as fronteiras limitadas de um movimento de contestação. Conservadores e progressistas, republicanos e socialistas sofreram a influência desse impulso pedagógico e social que está condensado na magistral conferência. No fundo, há uma nova atitude, que completa as intervenções fundamentais da “Questão Coimbrã”, segundo um pensamento social renovador, que define, política e espiritualmente, um apelo à capacidade criadora dos povos peninsulares. Para trilhar um novo sentido, haveria que apresentar as condições propiciadoras da decadência, o que aconteceu num texto crucial da nossa literatura: “Erguemo-nos hoje a custo, espanhóis e portugueses, desse túmulo onde os nossos grandes erros nos tiveram sepultados: erguemo-nos, mas os restos da mortalha ainda nos embaraçam os passos, e pela palidez dos nossos rostos pode bem ver o mundo de que regiões lúgubres e mortais chegamos ressuscitados”. E deparamo-nos com os fenómenos capitais definidores desse decaimento: “três, e de três espécies: um moral, outro político, outro económico. O primeiro é a transformação do Catolicismo pelo Concílio de Trento. O segundo, o estabelecimento do Absolutismo, pela ruína das liberdades locais. O terceiro, o desenvolvimento das Conquistas longínquas” …

O que estava em causa? Uma nova ideia de cultura: «uma Cultura que punha em causa (segundo Eduardo Lourenço), radicalmente, a tradição cultural portuguesa na sua expressão tridentina, e em última análise católica. O fim trágico de Antero esconde-nos (…) a essência histórica da sua tragédia cultural que não reside no seu conteúdo, mas na sua exceção. Em suma, no seu isolamento. Só para ele era válida – no sentido doloroso e exaltante – a célebre frase da carta de Wilhelm Storck de que a sua geração teria sido a primeira ‘a sair conscientemente dos caminhos da tradição’». Mas essa atitude de rompimento não poderia deixar de ser paradoxal. Afinal, “nada substitui uma religião se não outra em que o sentido da perdida se regenera e se exalta”. A um tempo, há a proposta de uma transformação radical e a procura de um fulcro pragmático para as mudanças sociais que se exigiam no sentido da justiça. E o que Antero verberou foi o afastamento e a distância dos povos peninsulares relativamente à Europa “pensante e industriosa”. O que estaria em causa teria a ver com a recusa do atraso e do seu fatalismo e de “um destino subalterno e humilhante”. Eis como Antero de Quental e os seus pretenderam um sobressalto geral, sobretudo sabendo que a sociedade portuguesa vivia alheada dessa consciência. A partir de uma atitude atenta ao sagrado e ao religioso, demarcada nitidamente de todo o conformismo: “essa foi a revolução cultural anteriana, bem mais importante que a apologia de uma mera Revolução ideal e idealista que seria menos uma inversão de signos como será a de Nietzsche, ou mesmo de um ateísmo assumido, do que uma nova revolução suscetível de ser para o mundo moderno o que o Cristianismo fora para o mundo antigo”.

Compreende-se que E. Lourenço considere que a única guerra teológico-intelectual válida seja a que opõe Lutero e Erasmo. E, nesta polémica, Antero assumiu claramente o lado do “Elogio da Loucura”, procurando ligar Fé e Razão, e não sacrificando uma à outra. E o pensador micaelense lamentou que a Reforma não tenha podido passar os Pirenéus, fazendo-se, com olhos do seu tempo, e na senda do pensamento revolucionário liberal, como o de Garrett e Herculano, fiel ao ânimo dos bravos do Mindelo, de que seu pai fizera parte. Antero cultiva o drama, Eça usa a sátira e Oliveira Martins afina a crítica histórica pela ironia e pela tragédia. A força transformadora das “Causas” referindo-se a dois outros textos fundadores da modernidade no século XX: o “Ultimatum” de Fernando Pessoa e o “Manifesto Futurista” de José de Almada Negreiros – igualmente definidores de um caminho que tem origem do grito das Conferências Democráticas. E Alexandre Herculano compreendeu bem, apesar de discordar do pendor igualitário da nova geração, mas colocando a liberdade em lugar central, que haveria que reconhecer cultural, social, e politicamente o “lugar da liberdade não apenas de pensar, mas de humanamente respirar e existir”. Antero de Quental exprimiu-o com meridiana clareza. E ainda hoje, seja à porta da Sé Nova de Coimbra, seja no Chiado, seja na cidade do Porto ou em Vila do Conde, esse fantasma poderoso, aqui representado genialmente por Almada Negreiros, continua a guiar os nossos passos.

 

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P. 

PAPIAR KRISTANG – NOSSA LÍNGUA FRANCA

 

Já falámos de várias línguas e culturas. A língua materna, os crioulos, o mirandês… hoje vamos mais longe e chegamos ao Oceano Índico até às proximidades do Pacífico. Chegamos a Malaca e à língua franca de mercadores e missionários. Falamos do papiar kristang. Malaca é a guardiã do estreito, encruzilhada de muitas culturas e influências (hindus, chineses, malaios e javaneses). Nas viagens que temos feito ao encontro da nossa História, visitámos a cidade mítica com a erudição e o bom humor de Luís Filipe Thomaz. Foi uma imersão total no clima húmido e quente da Índias. A cidade data de 1403, começou por ser uma pequena povoação de pescadores e corsários e esteve sob influência portuguesa de 1511 a 1641. A imigração chinesa é intensa e muito evidente, dividindo-se entre uma vaga mais antiga, os babas e as nyonyas, do início do século XV, constituída por letrados e comerciantes, e uma segunda, mais numerosa, de agricultores, correspondente ao período da guerra do ópio e da colonização britânica, no século XIX. A história de Malaca é muito rica e é marcada pela situação estratégica da cidade como porto de abrigo e como centro de comércio. O célebre navegador chinês Zheng He aqui estabeleceu importantes contactos que levariam o rajá de Malaca a declarar-se vassalo do Celeste Império, sacudindo o jugo da antiga Sião. Quando Afonso de Albuquerque definiu este como um dos pontos cruciais do império português do Índico, com Goa e Ormuz, fê-lo conhecedor do grande valor da cidade e das possibilidades que apresentava como placa giratória para o Extremo Oriente. Já Álvaro Velho, no seu Roteiro, e Gaspar da Índia falavam da importância de Malaca, tendo incumbido o rei D. Manuel D. Francisco de Almeida da tarefa de «assentar trato em Malaca» e de construir uma fortaleza na cidade. Mas só em 1509 a armada capitaneada por Diogo Lopes de Sequeira atingiu Malaca, sendo primeiro bem recebida pelo Sultão, mas sofrendo depois a violenta oposição dos mercadores indianos do Guzerate. Afonso de Albuquerque delineará a tomada da cidade, reforçando a armada de Diogo Mendes de Vasconcelos, especialmente enviada para o efeito. Chineses e hindus tornam-se aliados objetivos dos portugueses, permitindo o domínio da cidade. Durante 130 anos os portugueses tornarão Malaca como o grande centro do comércio e o principal nó da rede marítima. Após a ocupação holandesa, uma parte da população irá para Macau ou para outros destinos na atual Indonésia, como a ilha de Java. E os fantasmas multiplicam-se.

 

A cidade atrai pela história riquíssima e pelos contactos culturais e económicos que se estabeleceram aqui. O Museu Marítimo ostenta como seu verdadeiro símbolo a nau “Flor de la Mar”, a mais rica e poderosa do seu tempo, que naufragaria no final de 1511, com Afonso de Albuquerque a bordo. E falar de Albuquerque é referir a figura controversa, com quem o rei D. Manuel tinha uma relação muito especial, até em virtude de ser um dos mais determinados apoiantes na defesa de um império de Estado, por contraponto à liberdade concedida aos navegadores para comerciarem, e ganharem influência e riqueza. Descobrimo-lo num momento decisivo da sua ação, no ano seguinte a tomar Goa e antes de avançar para o Golfo Pérsico e o Mar Roxo. E sentimos que as intrigas e as incompreensões de que será vítima têm sobretudo a ver com o grande debate que se desenvolve em torno de D. Manuel sobre o Plano da Índia e a estratégia do Oriente, se o domínio do Estado e da Coroa ou se a influência poliárquica dos mercadores. O certo é que Malaca foi um ponto nevrálgico (que Albuquerque bem entendeu) para o comércio das especiarias e para a administração imperial.  A qualidade da Casa del Rio, um dos mais recentes hotéis de Malaca, é assinalável. É essencial o aprofundamento da cooperação luso-malaia, quer no domínio do património cultural, uma vez que a zona histórica está classificada pela UNESCO, quer no campo económico. A visita ao bairro português é motivo de especial de interesse. Da antiga fortaleza de Afonso de Albuquerque - "A Famosa" - apenas resta a porta da muralha, já que os ingleses não evitaram no século XIX a destruição do edifício militar, que muito se assemelhava à nossa Torre de Belém, como foi representado por Manuel Godinho de Erédia em 1604. É emocionante a subida até à Igreja do Monte, da Anunciação ou de São Paulo, onde São Francisco Xavier pregou e onde se encontra a pedra tumular de D. Miguel de Castro, filho de D. João de Castro. E encontramos os resquícios do papiar do século XVI, o kristang, a língua franca dos mercadores, que os missionários desenvolveram. No restaurante Papa Joe podemos provar uma canja divinal e usufruirmos de iguarias com o seu quê de familiar. E assim podemos ouvir o português das antigas canções tradicionais graças à comunidade de portugueses de Malaca. O papiar cristão, a língua franca do século XVI, não foi esquecido, apesar da distância e da história. A emoção liga-se ao entusiasmo e todos se envolvem na animação desta herança portuguesa. Muitas vezes perguntamo-nos o que significa no mundo das culturas da língua portuguesa a cidade de Malaca. Não se trata de uma mera referência vaga. É a expressão do património material e imaterial. É o encontro de uma pequena comunidade com a referência histórica que segue para Sul e Oriente, até Java, às Flores e a Timor, e ainda às Molucas e às Celebes. Eis por que razão Malaca não pode ser vista como um epifenómeno. Daí a necessidade de aprofundarmos as relações culturais e económicas com a Malásia. O que está em causa é a perceção de uma história dinâmica, que não pode ficar apenas no passado, devendo projetar-se no presente e no futuro. E fica a exigência de sermos mais atentos a esta referência da nossa identidade linguística e à comunidade de pessoas que a constitui. E uma vez que, como habitualmente, levamos connosco textos significativos – não podemos deixar de invocar Fernão Mendes Pinto, em Malaca, sempre ele. E se falamos de fantasmas, chegamos à alusão mítica e imaginosa de Sandokan, o Tigre da Malásia, não só por ele, mas por Gastão Sequeira, um português que simboliza os nossos mercadores e mercenários, que povoaram a Malásia, o Bornéu e as Molucas desde o século XVI. Emílio Salgari deu-lhe originalmente o nome de Ianes de Gomera, mas a linhagem portuguesa não oferecia dúvidas. E Mompracem, a ilha que Sandokan desejava ver livre do jugo de Sir James Brooke, era provavelmente Mangalum, nome derivado de Fernão de Magalhães, que aqui esteve aquando da sua visita ao Sultão do Brunei…. É o tempo dos fantasmas verdadeiros.

 

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O. ORTA (GARCIA DE) E COMPANHEIROS

 

O caso é singularíssimo. Num folhetim de fantasmas, encontram-se três cientistas. As três vidas são apaixonantes, e tantas vezes esquecemos a sua importância. O contributo português para a História das Ciências refere, de facto, três personalidades muito marcantes, nascidas no início do século XVI – Pedro Nunes, Garcia de Orta e D. João de Castro. Senão, vejamos. Pedro Nunes (1502-1578), ilustre matemático, foi professor em Coimbra, cargo que ocupou durante 18 anos, até se jubilar. Celebrado no seu tempo, Nunes, natural de Alcácer do Sal, não fez muitas considerações “Sobre a revolução das órbitas celestes”, o importante livro de Nicolau Copérnico, publicado em Nuremberga. Contudo, o grande matemático português considerou o sistema do polaco Copérnico correto do ponto de vista matemático, nunca tendo chegado a pronunciar-se sobre a respetiva realidade física. O certo é que as obras de Pedro Nunes serviram de referência aos principais matemáticos e astrónomos europeus de renome. E o seu nome está ligado ao célebre instrumento de medida “Nónio”, que mereceu geral admiração.

 

Nascido um ano antes, destacamos a figura do contemporâneo Garcia de Orta, médico, botânico e naturalista, nasceu em 1501, em Castelo de Vide. Foi o primeiro filho de Fernando de Orta, um dos judeus, expulsos de Espanha em 1492. Estudou em Salamanca e Alcalá de Henares (de 1515 a 1523) Gramática, Artes, Súmulas, e Filosofia Natural, licenciando-se em Medicina. Em Alcalá teve por mestre Antonio de Lebrija em matéria de herborização. Cerca de 1523 regressou a Castelo de Vide, com licença para exercer o cargo de físico. Em 1531, recebeu o encargo de reger em Lisboa interinamente o curso de Filosofia Moral, vago desde a saída de Pedro Nunes. Em 12 de março de 1534, Garcia de Orta partiu para a Índia, como físico do Capitão Mor do Mar da Índia, Martim Afonso de Sousa, recentemente vindo do Brasil. Por um período de quatro anos, acompanhou-o nas campanhas de mar e terra na costa ocidental da Índia, de Diu a Ceilão, percorrendo a costa de Cambaia e atravessando o Golfo. Viu o aspeto da vegetação daquela parte da Índia, com clima mais temperado. Na região de Malabar estudou diversos produtos vegetais que não vira no Norte. Na baía de Bombaim visitou o templo de Elephanta, tornando-se o primeiro europeu a dar notícia deste local. Assistiu à assinatura do tratado de aliança que Martim Afonso faz com o sultão Badur, pelo qual foi cedida Baçaím, que seria capital da «província do Norte». Entre 1534 e o final de 1538, Garcia de Orta viajou na companhia de Bahádur Sha, presenciando a tomada de Repelim e a batalha de Beadalá. Passou algum tempo em Ceilão e daqui foi a Malabar, de onde se recolheu a Cochim e depois a Goa. No final de 1538, Martim Afonso de Sousa voltou a Portugal, enquanto Garcia de Orta ficou a residir em Goa. Foi físico mor de vice-reis, governadores gerais, e potentados indianos, com destaque para Bunham Nizam Sha. No tempo do governador Pedro de Mascarenhas tomou de aforamento a ilha de Mombaim - uma das sete ilhas sobre as quais se viria a fundar Bombaim. Foi também mercador de drogas e coisas de natureza médica, joias e pedras preciosas, dispondo para isso de navio próprio. Mercadejou com persas, árabes e malaios e foi amigo de médicos e eruditos hindus, e muçulmanos, de todos colheu informações, plantas, produtos e objetos locais. Casou com Brianda de Solis, filha do mercador Henrique de Solis, de quem teve duas filhas. A casa de Garcia de Orta situava-se na parte alta da Cidade. Aí tinha uma biblioteca e um museu que foi formando com drogas raras e objetos que colecionava. Tinha uma horta onde plantou um Negundo e vários Jambos, como referiu nos Colóquios. Movia-o um grande desejo de saber das drogas medicinais. A obra "Colóquios dos Simples" resultou das observações feitas durante mais de trinta anos de estada na Índia, tempo em que refletiu e discutiu os clássicos, e apreendendo os conhecimentos dos seus homólogos indianos. Morreu em 1568. A Inquisição de Goa condenou sua irmã Catarina de Orta, no ano seguinte, por suspeita de criptojudaísmo, e condenou também, Garcia de Orta, postumamente, fazendo em dezembro de 1580 desenterrar os seus ossos da Capela de Santa Catarina de Goa para serem queimados, e as cinzas lançadas ao Mandovi.

 

Já D. João de Castro nasceu em Lisboa a 27 de fevereiro de 1500, tendo falecido em Goa a 6 de junho de 1548. Foi moço fidalgo no reinado de D. Manuel, iniciando-se com dezoito anos na arte da guerra em Tânger, acabando por ser armado cavaleiro pelo governador da cidade, D. Duarte de Meneses. No ano de 1535 participou na poderosa armada no Mediterrâneo, para dar caça ao corsário Kheir-ed-Din, mais conhecido por "Barbarroxa", apoiado pelos turcos. Em 1539, quando chega à Índia, depara com o cerco a Diu, feito pelas tropas turcas comandadas por Solimão Baxá; em 1541 participa na armada, capitaneada por D. Cristóvão da Gama, nas costas do Mar Vermelho. De regresso à Índia (1542) é nomeado capitão-mor da armada, com a tarefa de salvaguardar as praças marroquinas do inimigo muçulmano; em 1546, como 13º governador da Índia, trava uma luta heroica, saindo vencedor contra uma força turca, que, de novo cerca a cidade de Diu. Quando partiu para a Índia a bordo da nau “Grifo”, em 1538, teve um contributo decisivo no campo científico: com a determinação da latitude e longitude, a representação cartográfica e o desvio do norte magnético; estudando em simultâneo o regime de ventos, as correntes, e o magnetismo terrestre. A sua obra é das mais significativas de entre as que se produziram na época. Entre os textos que chegaram até nós, avultam três excecionais roteiros - "De Lisboa a Goa "(1538); "De Goa a Diu"(1538-1539); "De Goa ao Suez", com o roteiro do "Mar Roxo"(1541). A honradez de D. João de Castro é um exemplo, bem expresso no seu lema: “Vim a servir, não vim a comerciar no Oriente”. Eis um diálogo surpreendente entre supremas personalidades.

 

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N. Nemésio (Vitorino)

 

Num folhetim de fantasmas, Vitorino Nemésio não pode deixar de estar, como pensador da cultura na sua expressão mais rica. Nemésio não é, ele mesmo, um fantasma, é um genial criador de protagonistas que representam de forma suprema a vida humana… E de que falamos na História da Cultura? De continuidades e de mudanças, de características singulares e convergências, de identidades e diferenças, de desafios e respostas. Não se trata apenas de seguir os acontecimentos, mas de compreender a lógica sincrónica e a perspetiva diacrónica. Não basta um sobrevoo da cultura geral, que mais não significa do que um contacto vazio e superficial com a criação e a arte, esquecido do que avança e progride e do que estagna. Assim, no ensino da Cultura Portuguesa, António Manuel Machado Pires tem recordado a preocupação que Vitorino Nemésio tinha com os seus discípulos, no sentido de abrir as suas mentes, ligando e relacionando realidades aparentemente distintas: “E por ‘ligar as coisas’ deve entender-se ligar mesmo, não apenas somar conhecimentos: fazer relacionações entre conhecimentos convencionalmente arrumados em cadeiras diferentes, ligar uma romaria a uma feira, esta a um modelo de vida, este à evocação de um almocreve, este a Gil Vicente e por que não, a O Malhadinhas de Aquilino?” (Cf. “Luz e Sombras no Século XIX em Portugal” de António M. Machado Pires, INCM, 2007).

 

A cultura pressupõe diálogo e confronto, entre quem vê e tenta compreender e o que se pretende ver e entender numa relação sempre complexa entre a vida humana e a natureza que a rodeia. Daí a metáfora da varanda para ver a Cultura, tantas vezes usada pelo próprio Nemésio – “Varanda de Pilatos”. E quando voltamos a ouvir as charlas televisivas de Nemésio, “Se bem me lembro”, verificamos que estas corriam entre a intuição e a inteligência, entre a erudição e a capacidade de perceber o “mundo da vida”. Mau Tempo no Canal (1944) é uma obra-prima da literatura portuguesa. É marcante no século XX por pôr em destaque, de um modo original, a panóplia de elementos novos que se distanciam do romance oitocentista.

 

Segundo Miguel Real, em “Obras de Referência da Cultura Portuguesa”: «Mais do que um espelho dos Açores, Mau Tempo no Canal é, sobretudo, um espelho do fim de um certo Portugal, o Portugal do fim do prestígio dos nomes aristocratas substituídos pelos nomes dos "Garcias" comerciantes e procuradores; do fim de uma economia assente em agregados familiares, substituída por uma economia empresarial; do fim das famílias alargadas identificadas com uma quinta ou um palácio, substituídos pelos prédios de apartamento; do fim da carroça e do cavalo como meios de transporte substituídos pelo automóvel e pela camioneta; do fim do azeite, do petróleo e do gás como meios de iluminação, substituídos pela eletricidade; do fim da cultura própria das comunidades de pescadores de caça à baleia, substituída pela cultura migrante americanizada; do fim dos transportes marítimos de passageiros, substituídos pelo avião; do fim da ocupação doméstica das mulheres substituída pelas profissões femininas; do fim de uma sociedade hierarquicamente ordenada de um modo atávico em privilégios irrevogáveis de superiores e em obrigações sociais de inferiores, substituída por uma sociedade popular e de massas.

 

Toda esta atmosfera social e mental (prossegue Miguel Real) desenha-nos literariamente um Portugal do "fim", fundamentalmente o Portugal do fim da Monarquia (os capitães-donatários, os barões, as vastíssimas quintas, as terras cedidas diretamente pelo rei a antigas famílias, que agora vendem a novos ricos, como a Ribeira dos Flamengos, dos Dulmo), mas também o anúncio do fim do Império, identificando-se os Açores com a nau de Portugal em deriva histórica no exato centro da imagem que tem constituído parte importante da nossa identidade cultural - o mar. Nada havendo já por descobrir e restando-nos a pulsão da "demanda", as personagens revertem-se sobre si próprias, criando labirintos mentais monstruosos de saudade e desejo, não raro criando ou situações perversas (Henriqueta, Catarina, Diogo Dulmo, Ângelo...) ou situações trágicas (Margarida).

 … Mau Tempo no Canal é dos poucos romances portugueses do século XX cuja personagem central, Margarida Clark Dulmo, encontra-se esteticamente à altura de um destino trágico, não já da tragédia clássica - e por isso é também um romance do fim -, onde os deuses se conjuram contra a vontade humana, mas da tragédia atual, onde os desencontros, os acasos, as perfídias subterrâneas, as pequeninas vaidades humanas, desembocam na mais pura e inviolável das rotinas: a anemia social, a indiferença, a passividade, o absentismo e, sobretudo, a resignação e a renúncia ao sonho. Margarida acaba por se casar com André Barreto, salvando assim da falência e da ruína a casa dos Dulmos. Margarida levará uma existência rotineira, parasitária, uma existência vazia. É nesta ausência de futuro - que não seja o futuro do tédio - que reside o elemento trágico da existência de Margarida. Neste caso, a tragédia não resiste na vontade de lutar ou no desejo de desafiar, mas na sua renúncia e na consequente interiorização de um profundo luto pela vida que nunca se terá. Os títulos dos capítulos ("A Serpente Cega", "Uma Aranha e uma Teia", "Outra Aranha e Outra Teia", "Mortos e Vivos", "A Íris da Aranha", "Cucumaria Abyssorum", "As Aranhas Fecharam as Teias", "Fogo") geram desde logo a atmosfera de suplício e opressão social que forçará Margarida a desistir da sua vontade singular, conformando a sua "soberba" e o seu "orgulho" com os ditames sociais, resignando-se a um destino semelhante ao da mãe, reprimindo o seu desejo de viagem, de realização em Inglaterra, contra os preconceitos sociais. A tragédia - a pior das tragédias atuais – evidencia que, depois do seu casamento com André, Margarida não tem História, deixou de haver História para Margarida, estará viva para os filhos e para a sociedade e morta para si própria…»

Tantos fantasmas encontrámos já, mas neste caso Nemésio transforma as suas personagens em verdadeiros símbolos de um tempo que rapidamente se transforma… ao desenhar a figura austera de Alexandre Herculano e ao evocar o subjetivismo existencial de Margarida, Nemésio retrata o seu tempo, numa evolução rápida que o levará a si mesmo às fronteiras do surrealismo, bem presentes na sua poesia…

 


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M. MIRANDÊS


Falo de espíritos bem vivos. Os falantes distribuem-se principalmente por uma área de 550 quilómetros quadrados, conhecida como Terra de Miranda, formada pelo concelho de Miranda do Douro e as freguesias de Angueira e Vilar Seco no concelho de Vimioso. Também se deve incluir o território de Caçarelhos. A língua mirandesa é o nome oficial que recebe o asturo-leonês persistente em território português. O mirandês tem três subdialetos (central ou normal, setentrional ou raiano, meridional ou sendinês), dispondo de um dicionário, gramática e ortografia próprios; os seus falantes são em maior parte bilíngues ou multilingues. O mirandês é, desde 1999, a segunda língua oficial de Portugal. A preservação da língua mirandesa deve-se à geografia e ao isolamento das Terras de Miranda, sede episcopal. Os rios e as cordilheiras são fatores cruciais para a criação de uma "fronteira linguística". O rio Sabor isolou a área da influência da língua portuguesa. Outro fator foi a proximidade de Espanha, com o comércio centrado no turismo espanhol. A cidade recebe espanhóis do antigo Reino de Leão, que muitas vezes falam asturiano. Assim, o mirandês chegou aos nossos dias, defendido também pelos espanhóis de fala asturiana. Havia muitos anos que o mirandês não era falado no coração da comarca, Miranda do Douro, mas, nos últimos anos, a deslocação das pessoas das aldeias para a cidade trouxe o mirandês de volta. As aldeias preservaram melhor a língua antiga. São naturais os entraves, como se nota em "Lição de Mirandês: You falo como bós i bós nun falais como you" de Manuela Barros Ferreira, onde é evidente a natural fragilidade da língua mirandesa face ao português. Não se fala o mirandês quando os alunos estão em situações formais, como por exemplo na relação com o professor. Então a língua portuguesa prevalece. A língua mirandesa é reservada para contextos familiares, do quotidiano ou mesmo de extrema intimidade.

Eis o exemplo de uma frase em mirandês com a respetiva tradução em português, num texto de Amadeu Ferreira, um dos grandes divulgadores da língua mirandesa. «Muitas lhénguas ténen proua de ls sous pergaminos antigos, de la lhiteratura screbida hai cientos d'anhos i de scritores hai muito afamados, hoije bandeiras dessas lhénguas. Mas outras hai que nun puoden tener proua de nada desso, cumo ye l causo de la lhéngua mirandesa». E eis a versão portuguesa. «Muitas línguas têm orgulho dos seus pergaminhos antigos, da literatura escrita há centenas de anos e de escritores muito famosos, hoje bandeiras dessas línguas. Mas há outras que não podem ter orgulho de nada disso, como é o caso da língua mirandesa».

Apresentamos ainda o texto do projeto lei de reconhecimento dos direitos linguísticos da comunidade mirandesa, apresentado em setembro de 1998 pelo deputado Júlio Meirinhos aprovado pelo Parlamento e com expressão constitucional. «La Lhéngua Mirandesa, doce cumo ua meligrana, guapa i capechana, nun yê de onte, detrasdonte ou trasdontonte mas cunta cun uito séclos de eijistência. Sien se subreponer a la "lhéngua fidalga i grabe" l Pertués, yê tan nobre cumo eilha ou outra qualquiêra. Hoije recebiu bida nuôba.

Saliu de l absedo i de l cenceinho an que bibiu tantos anhos. Deixou de s'acrucar, znudou-se de la bargonha, ampimponou-se para, assi, poder bolar, strebolar i çcampar l probenir. Agarrou l ranhadeiro para abibar l lhume d l'alma i l sangre dun cuôrpo bien sano. Chena de proua, abriu la puôrta de la sue priêça de casa, puso fincones ne l sou ser, saliu pa las ourriêtas i preinadas. Lhibre, cumo l reoxenhor i la chelubrina, yá puôde cantar, yá se puôde afirmar. A la par de l Pertués, a partir de hoije, yê lhuç de Miranda, lhuç de Pertual», Lei nº 7/99 de 29 de janeiro

Depois de José Leite de Vasconcelos, Amadeu Ferreira (1950-2015, Sendim, Miranda do Douro) foi o grande estudioso e divulgador do mirandês nos últimos anos, sendo jurista, escritor e tradutor de uma vasta obra em português e em mirandês, em nome próprio e com os pseudónimos de Francisco Niebro, Marcus Miranda e Fonso Roixo.

Traduziu para a língua mirandesa obras como Os Quatro EvangelhosOs Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, Mensagem, de Fernando Pessoa, e obras de Horácio, Vergílio e Catulo, bem como dois volumes de Astérix entre muitos outros. Foi colaborador, sobretudo em mirandês, de diversos meios de comunicação social, nomeadamente do Jornal Nordeste, do Mensageiro de Bragança, do Diário de Trás-os-Montes, do Público e da rádio Mirandum FM. Publicou mais de três mil textos, quase exclusivamente literários, em blogues como Fuontes de l AireCumo Quien Bai de Camino e Froles Mirandesas e CNC. Autor de obras científicas e literárias, em poesia e em prosa. Entre muitas outras, publicou, nas áreas das Ciências Jurídicas e Direito dos Valores Mobiliários; em poesia, Cebadeiros; e em prosa, Cuntas de Tiu Jouquin.

Há ainda os Pauliteiros de Miranda, praticantes da dança guerreira céltica, característica destas Terras, designada de dança dos paus,  representativa de momentos históricos locais, acompanhada com os sons da gaita-de-foles, caixa e bombo, com a particularidade de ser dançada por oito homens (mais recentemente também por mulheres) que vestem saia bordada e camisa de linho, um colete de pardo, botas de cabedal, meias de lã  e chapéu enfeitado com flores e finalmente por dois paus (palos) com os quais os dançadores fazem uma série de diferentes passos e movimentos coordenados. E neste folhetim de fantasmas, a propósito do Mirandês, invoco um texto de Orlando Ribeiro sobre o seu Mestre José Leite de Vasconcelos, que antevia com «os olhos do espírito de que se apagam lentamente os últimos fulgores». «Num pedestal de tosco granito», vislumbrava «não uma figura enroupada no traje académico, mas um velho meão mas desempenado, de cabeça coberta e barba intonsa, de chapéu de viagem, abordado ao bastão de jornada, mostrando aos novos – ele, eterno caminheiro – os rumos científicos da “boa Terra Lusitana”, de que esclareceu as origens nas pedras incompletas, na língua como expressão da vida coletiva, na multiplicidade dos textos e dos falares rústicos, sobre o pedaço de terra que nos coube neste fim da Europa, onde o povo, considerado no conjunto das classes da Nação, afirmou o seu direito de ser livre, de pensar e sentir a seu modo e a seu jeito e até contribuir, com as luzes de Espíritos de que o Mestre foi o mais poderoso e operoso para o progresso geral do conhecimento humano. Só assim a lenda de José Leite de Vasconcelos se consagrará na História, a que há mais de um século ofereceu as primícias do seu pensamento».

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ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA


L. LOPES (FERNÃO)


Nesta visita sistemática dos fantasmas da Casa Portuguesa, chegamos ao loquaz Fernão Lopes, autor da “Crónica de D. João I”, um dos grandes marcos da língua portuguesa. A vida de Fernão Lopes é um mistério. Por ironia do destino, o homem através de quem conhecemos a História da geração que o precedeu, é-nos quase desconhecido como pessoa. A própria efigie que aqui reproduzimos é duvidosa. Talvez seja ele uma das figuras representadas nos Painéis de S. Vicente de Nuno Gonçalves. Não sabemos quando nasceu, mas presumimos que tenha sido nos anos da crise. A sua origem era plebeia, e esse facto explica a atenção que reserva na sua escrita à “arraia miúda de ventres ao sol”. O seu nome aparece-nos pela primeira vez em 1418, como guarda-mor das escrituras da Torre do Castelo de Lisboa. Um ano depois, é escrivão dos livros de D. João I e em 1422 exerce o cargo de escrivão da puridade do Infante D. Fernando, sendo depois nomeado tabelião geral do reino. D. Duarte atribui-lhe uma tença anual vitalícia em 1434 para escrever as crónicas da história geral do reino, até D. João I. Como cronista-mor exerce funções, com zelo e competência, até 1454, altura em que, por estar “mui velho e flaco”, é aposentado. Gomes Eanes de Zurara é quem escreve a versão final da terceira parte da Crónica de D. João I. Estando Fernão Lopes com avançada idade em 1459, julga-se que morreu no ano seguinte. Como cronista é o primeiro grande estilista da prosa em língua portuguesa, com a sua escrita fluida e atraente, presenciamos uma sucessão de acontecimentos que anunciam uma nova era, diferente do estilo medieval. Assistimos ao “crepúsculo” do tempo antigo, na sequência de um rumo modernizador preparado na passagem dos séculos XIII para o XIV no período dionisíaco. Um dos temas novos é o da legitimidade política, que deixa de ser fundada no património e no senhorio, para passar a ser ditada pelas gentes e pelo “poboo”. Sente-se a influência da escola de Bolonha. Desde que se fixara a fronteira do reino e que a língua comum se tornara idioma oficial dos tabeliães foram abertos os caminhos do “direito de naturalidade”, por contraponto ao “direito senhorial”. E se houve divisões drásticas na sociedade portuguesa, com a alta nobreza e o alto clero a sustentarem o conceito “legitimista” de D. Beatriz, e a burguesia das cidades a ansiar por um entendimento mais ligado aos povos, o certo é que a matriz legitimadora do reino (o Estado que precedeu a nação) atribuía uma forte importância aos municípios, aliados naturais do poder real. O “direito de naturalidade” representava o anúncio de uma nova conceção. E Fernão Lopes desenvolve na “Crónica de D. João I” esse entendimento, quer na narração quer nas reflexões. Fala de “verdadeiros portugueses”, mas também de “cidadãos honrados”, de “amor da terra”, do grito “Portugal” da gente “miúda” e até de “evangelho português”. E esse entendimento leva-o a conceber a historiografia como uma procura de factos fiéis à realidade, em nome da causa legitimadora do Mestre da Avis. Lembremo-nos dos relatos do Cerco de Lisboa e da batalha de Aljubarrota. Os acontecimentos são minuciosamente descritos, numa cadeia de factos que culmina no sucesso de D. João I. Se o cronista apresenta um novo entendimento social e político, fá-lo com o recurso originalíssimo à narrativa, demonstrando “o estofo de um dramaturgo poderoso”, como dirá António José Saraiva, afirmando-se como um exímio “contador da História” na expressão de Teresa Amado… Fernão Lopes reúne os elementos fundamentais para justificar a “justa aclamação”. O relato das Cortes de Coimbra é magistral. O cronista dá-nos, com minúcia, as provas da argumentação jurídica de João das Regras. Aí estão a incerteza da paternidade de D. Beatriz, a situação matrimonial irregular de D. Leonor Teles, o apoio cismático de D. João de Castela ao Papa de Avinhão, a demonstração da ilegitimidade (e da indignidade por apoio á causa de Castela) de D. João de Castro, filho de D. Inês de Castro… A argumentação jurídica alia-se aos sinais da Providência, protagonizados pelo jovem Condestável do Reino D. Nuno Álvares Pereira, chefe militar da linhagem de Galaaz, o cavaleiro de Camelot e companheiro do Rei Artur, do ciclo bretão. Álvaro Pais, o rico cidadão de Lisboa, é a verdadeira alma do movimento. As hesitações e até a descrição da personalidade contraditória de D. João, Mestre de Avis, demonstram com meridiana clareza que houve um forte impulso, vindo do movimento popular, mobilizador de vilões, mesteirais e lavradores. E se o Mestre começa por ser quem está em posição mais frágil na linha sucessória, sem mesmo desejar ser rei, como várias vezes afirma, considerando ser seu meio-irmão D. João de Castro quem teria maior legitimidade dinástica, a verdade é que a sua condição de clérigo o afastava da sucessão. O certo é que os acontecimentos (e a determinação de Álvaro Pais) irão colocá-lo no centro dos acontecimentos e à frente dos destinos do reino.  Em Coimbra, porém, o legista João das Regras, depois de declarar o trono vago, demonstra que a nova legitimidade, a dos povos, não oferecia dúvidas, cabendo ao Mestre ser o novo Rei. O movimento popular não tinha, é certo, a aceção que hoje lhe daríamos. Opunha-se à aristocracia fidalga, na linha da consolidação da monarquia fundada por Henrique de Borgonha e seu filho Afonso Henriques. E como é facilmente compreensível a conceção do “direito de naturalidade” reforçou o peso e a importância dos povos dos concelhos, segundo o que Jaime Cortesão designaria como “os fatores democráticos na formação de Portugal”. Estamos, assim, perante uma revolução de “cidades” e de “vilões”, logo desde os acontecimentos de Lisboa, em 1383, com a morte do conde de Andeiro, mas também em Beja, em Évora, no Porto. Sente-se a “epopeia” das mudanças profundas, a partir da “gente pequena dos lugares” e, sobretudo, de uma razão nova: “Ó geração que depois veio, povo bem-aventurado, que não soube parte de tantos males nem foi quinhoeiro de tais sofrimentos” … As vilas combatem os castelos, a legitimidade nova destrona a legitimidade senhorial. Novos espíritos se anunciam.


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