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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  

De 18 a 24 de dezembro de 2023


Em Alberto da Costa e Silva a pluralidade da língua portuguesa compreende-se a partir da reflexão sobre “A Enxada e a Lança” ou sobre “A Manilha e o Libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700”, além de “Um Rio chamado Atlântico” – sobre “a África que moldou o Brasil e o Brasil que ficou na África”.


SAUDOSO AMIGO
Dediquei ao saudoso amigo Alberto da Costa e Silva, que agora nos deixou, o texto publicado em maio intitulado “Brasil, Tão Perto”, por ocasião da entrega do Prémio Camões a Chico Buarque. E lembrei então Antonio Candido, por ter desenvolvido na análise da cultura do Brasil, o facto de a obra de Sérgio Buarque de Holanda utilizar a “admirável metodologia dos contrários”. Trabalho e aventura; método e capricho; rural e urbano; burocracia e caudilhismo; norma impessoal e percurso afetivo – os pares que o autor de “Raízes do Brasil” destacou no modo-de-ser e na estrutura social e política, para analisar e compreender o País e os brasileiros. Se dediquei esse texto a Alberto da Costa e Silva, o inesquecível visionário de uma compreensão de largo prazo da realidade brasileira, fi-lo porque ele entendeu melhor que ninguém, na sua obra multifacetada, o Atlântico como presença influente nos continentes americano e africano, designadamente no complexo movimento triangular que une as nossas diferenças. A pluralidade da língua portuguesa compreende-se a partir da reflexão sobre “A Enxada e a Lança” ou sobre “A Manilha e o Libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700”, além de “Um Rio chamado Atlântico” – sobre “a África que moldou o Brasil e o Brasil que ficou na África”. Assim, invocando a língua e as lusofonias, é necessário estudarmos um Atlas prospetivo sobre o que será o Atlântico Sul dentro de meio século, para entendermos o surgimento de um “rio” de incomensuráveis partilhas, nova casa miticamente comum, desde a Macaronésia ao planalto do Huambo e ao grande e múltiplo território brasílico. E recordei ainda o facto de António Correia e Silva, no estudo sobre o caso de Cabo Verde, evocar o ponto de encontro dos polos fundamentais do Atlântico Sul, salientando a importância da “crioulidade”, com variantes dialetais insulares, enquanto manifestação rica da cultura popular, fundamental para a coesão social e para a afirmação da unidade cabo-verdiana. O crioulo é, de facto, uma criação multissecular, com base na língua portuguesa e uma fecunda ligação às variantes culturais africanas. De facto, a cultura africana moldou em parte significativa a cultura do Brasil, ao lado das culturas da língua portuguesa e Alberto da Costa e Silva entendeu-o como ninguém.


LEMBRANÇA DO BENIM
Leia-se “Francisco Félix de Souza – Mercador de Escravos” (a biografia do célebre “Chachá”) e compreenda-se como o seu autor, em 2004, considerou a historiografia complexa sobre o tema num contexto das diferentes perspetivas complementares, evitando transposições ou apreciações anacrónicas e preservando não só as condições concretas dos diversos momentos históricos, mas também o sentido crítico e a transposição para as condições do tempo presente. “Ninguém era bondosamente traficante de escravos. A profissão era cruel e exigia dureza e frio na alma. Quem a exercia estava sempre de chicote na mão. Compravam-se, porém, e se vendiam escravos com a mesma indiferença, ou falta de remorso, aflição ou angústia, com que um empresário contemporâneo despede empregados e despenca famílias na indigência. Algum desassossego, ou mais que isso, um sentimento de pecado, devia, contudo, frequentar o espírito de alguns dos que comerciavam com seres humanos” … É certo que havia uma ponta de melancolia em alguns e noutros oferendas expiatórias, mas “como tantos de seu tempo, na Europa e nas Américas, provavelmente (o traficante) não considerava os africanos como seus semelhantes, mas, sim, uma humanidade à parte ou uma subumanidade, de cuja barbárie a escravização resgatava”. Para Alberto da Costa e Silva, Francisco Félix de Souza seria “um homem de notável inteligência, incomum habilidade e grande encanto pessoal, no trato com os brancos e com os grandes do Daomé”. Gilberto Freyre disse, um dia, que tinha, porém, “alguma coisa de malandro carioca”. Mas o biógrafo discorda: «Não tinha: era cumpridor, zeloso e sério. Mas fico com o resto da frase de Freyre: devia ter o ser tanto ‘de fidalgo pernambucano’ e ‘muito mais do baiano maciamente diplomata’». Em vida do Chachá (que em 1844 teria provavelmente a idade de 90 anos) assiste-se à transição lenta do comércio de gente para a transação de óleo de palma ou azeite-de-dendê e os navios negreiros começaram a adaptar-se, bem como os seus mercadores. Mas os britânicos apertavam cada vez mais o cerco ao tráfico de escravos de Ajudá, o que se traduziu em grandes prejuízos financeiros dos negreiros. Assim se explica que Francisco Félix tenha morrido, em 1849, sem a opulência de outrora, endividado e com o negócio condenado. Contudo, ficou a fama do nome e da família, e tive oportunidade de conhecer pessoalmente o Chachá VIII, Honoré Feliciano Julião de Souza, com evidente influência local. Mas Alberto da Costa e Silva recorda como, ao seu ouvido, um cidadão do Benim, que o acompanhava de visita, salientou, com naturalidade, que Félix de Souza não foi aquele grande homem a quem cantam loas, “mas a principal personagem de um medonho pesadelo”. 


A ENXADA E A LANÇA
Agostinho da Silva referiu-se no início de “A Enxada e a Lança” ao “Embaixador que nunca larga o Poeta”. “Sabe ele toda a história / geografia palmo a palmo / com saber apaixonado / ao mesmo tempo que calmo // mas o que mais lhe louvamos / ao livro de bom narrar / é o principal intento / que permite formular // para termos definido / o que o Brasil nos vai ser / como faísca do mundo // que do nosso vai nascer // pelo toque brasileiro / o de dádiva e de amor / o de alegria na vida / e de divino esplendor…” Para Alberto, a escassez e a fragilidade dos dados sobre o passado africano impuseram uma prosa plena de advérbios de dúvida, além de uma análise em que as hipóteses sobre o passado se associaram aos projetos de futuro. “Se é verdade que toda narrativa histórica é uma aproximação hipotética de acontecimentos que o autor não viveu — o papel escrito, embora pareça neutro, é quase sempre parcial e, como as tradições que a memória coletiva guarda e adultera, também mente, dissimula, cala e ilude, além de ser lido de modo distinto de geração em geração —, esse relativismo se acrescenta, ao tratar-se da África, pois os menos obscuros dos testemunhos de sua antiguidade são os objetos e as imagens de cerâmica, bronze, latão, madeira ou pedra, a indicarem o alto nível de mestria técnica e a agudeza de sensibilidade e inteligência que lhes deu origem”. No fundo, a interrogação sobre as raízes foi para Costa e Silva essencial para a compreensão da cultura como convergência de influências e desenvolvimento de esperanças.


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

  
De 11 a 17 de dezembro de 2023


«Ilustrissimi» do Cardeal Albino Luciani, que viria a ser o Papa João Paulo I, é um conjunto inesperado e notável de missivas a heróis da literatura, em especial da nossa infância.


QUE TAREFAS PARA O DIA DE HOJE?
Neste Advento, o mundo apresenta-se incerto, imprevisível e distante dos Evangelhos. Precisamos de sinais de esperança. No prefácio que assinou ao volume “Ilustrissimi – Cartas do Patriarca”, da autoria do Papa João Paulo I, Albino Luciani, o Cardeal D. José Tolentino Mendonça pergunta: “Qual é a tarefa do cristianismo após a fratura da modernidade? Luciani sublinha-o na carta a Gilbert K. Chesterton: é urgente ajoelhar-se não diante daquele Deus que «pela secularização é chamado de “morto”», mas «diante de um Deus mais atual que nunca». Isto, porém, exige a sabedoria de compreender como o «ponto de vista» se tornou culturalmente complexificado. É por isso uma responsabilidade gravíssima da Igreja reativar processos culturais que desaguem na criação de códigos e chaves de leitura hermenêuticamente consistentes e vitais. Por isso, precisamos da literatura, não como um ornamento agradável, que, tudo somado, seja supérfluo, mas antes como estrutura portadora do nosso estar no mundo e da irrenunciável responsabilidade que o cristianismo transporta, como sustentava Luciani, de «fazer refletir!». E o certo é que este “fazer refletir” leva-nos à essência do fenómeno religioso, numa das suas raízes etimológicas – “relegere”, reler, repensar, ao lado do “religare que nos conduz à exigência do contrapor a coesão à fragmentação. E quando esta ligação e este repensamento estão na ordem do dia não podemos esquecer a participação ativa do Papa Francisco não só no desenvolvimento do processo sinodal, chamando todos a uma reflexão séria e persistente como participantes numa comunidade que se emancipa através da partilha de pensamento e ação, tirando consequências dos erros praticados ou das simplificações, mas também num caminho que se deseja de abertura, de diálogo, de capacidade crítica e de compaixão. É verdade que alguns gostariam de uma acomodação do Papa à inércia e ao “dolce far niente”. No entanto, este Sínodo tem uma agenda obrigatória e exigente que procura garantir a vivência de uma Igreja em movimento e em saída.


ECOLOGIA INTEGRAL
Compreende-se o gradualismo, mas é o inconformismo que tem de se constituir como marca e método. A sociedade humana evolui e o universalismo da dignidade das pessoas obriga à releitura da encíclica “Pacem in Terris” de S. João XXIII, numa conjuntura como aquela em que vivemos em que cultura da paz é subalternizada, e em que os direitos e deveres fundamentais são esquecidos. Quando o Papa apelou a “todos” em Lisboa, fê-lo, para além de qualquer formalismo, apontando para um humanismo pleno de pessoas livres e iguais em dignidade e direitos, que tendo como consequência a ecologia integral, afirmada em «Laudato Si’» e na exortação apostólica Laudate Deum, sobre o cuidado relativamente ao planeta, exprime profunda preocupação pela nossa casa comum, porque “não estamos a reagir de modo satisfatório, pois este mundo que nos acolhe, está-se esboroando e talvez aproximando-se dum ponto de rutura”. Embora o estado clínico geral do Papa Francisco tenha melhorado, os médicos pediram ao Papa que não efetuasse a viagem ao Dubai, para a 28ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas, no entanto “o Papa e a Santa Sé continuam dispostos a participar nos debates durante a COP28, através de modalidades definidas oportunamente. O Papa Francisco reafirmou, assim, que, «além da guerra, o nosso mundo está ameaçado por um outro grande perigo, o climático, que coloca em perigo a vida na terra, especialmente a das gerações futuras. E isto é contrário ao projeto de Deus, que criou tudo para a vida”.


UMA LEITURA FECUNDA
D. José Tolentino Mendonça, no prefácio referido, lembra ainda que, no mesmo ano em que foi publicado “Illustrissimi. Cartas do Patriarca”, de Albino Luciani (1976), foram dadas à estampa as “Cartas luteranas”, de Pier Paolo Pasolini. Os dois livros são verdadeiros sismógrafos, já que Luciani alerta profeticamente para a necessidade de atenção às pessoas, enquanto Pasolini adverte para a «reviravolta antropológica promovida pela sociedade dos consumos e consumada pela desapiedada terraplanagem concretizada pelos seus processos sociais e culturais de homologação». A obra de Pasolini é um livro-denúncia, realçando a originalidade do livro de Luciani, que faz uma leitura crítica da realidade, enquadrando-a num horizonte necessariamente dilatado, «surpreendentemente convocado à redenção, pois Deus não desiste de procurar o Ser Humano». Italo Calvino escreveu que «um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer». Como poderemos responder aos desafios que estão lançados pela crise económica e financeira, pelas guerras que se eternizam, pela permanência de uma estranha cegueira relativamente à indiferença, à escalada da violência e á destruição da natureza e do meio ambiente? Somos chamados à ação e às bem-aventuranças.


Guilherme d'Oliveira Martins
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A VIDA DOS LIVROS

  
De 4 a 10 de dezembro de 2023


«Morte e Democracia» de José Gil (Relógio d’Água, 2023) é constituído por um conjunto de ensaios que nos permite compreender as virtualidades e as fragilidades da organização da sociedade contemporânea.


PRODUÇÃO DE VIDAS LIVRES
A procura da identificação do que torna possível a produção de vidas livres e singulares numa “democracia imanente” constitui o objetivo primordial do estimulante conjunto de ensaios, da autoria de José Gil, Morte e Democracia (Relógio d’Água, 2023). De facto, a necessidade de construir um “plano de imanência” do campo político ao social é condição primeira para a formação de multiplicidades singulares que compreendam a complexidade e o pluralismo. Se hoje falamos justamente de crise de democracia, torna-se indispensável realizar uma reflexão aprofundada sobre as razões para uma perniciosa tendência para a fragilização de uma sociedade que se deseja baseada na liberdade e na cidadania. Não se trata, assim, de reduzir os termos desta reflexão fundamental sobre a sociedade, sobre o Estado de direito e sobre uma cidadania inclusiva a aspetos apenas formais, mas antes de considerar a democracia como um sistema de valores, capaz de integrar e de incluir uma cidadania de respeito mútuo, sem interferências de fantasmas ilusórios, incapazes de suscitar a compreensão de quem somos como seres humanos livres e iguais em dignidade e direitos.Compreende-se, pois, os quatro momentos escolhidos por José Gil, a partir da demonstração dos paradoxos do pensamento da morte e dos postulados que comprometem a sua consideração ponderada e complexa: a imortalidade da alma, a natureza dos espectros que emergem e a noção de Abismo inerente ao termo da vida. O segundo momento reporta-se ao laço indelével entre a crença da imortalidade, assumida por certos grupos-tipo de organizações políticas que se afirmam através de referências da morte, enquanto “experiências do impensável”, reportadas à violência e ao terror (que Hannah Arendt encontra nas raízes do totalitarismo). Segue-se a análise das correspondências entre afetos, formações sociais e políticas e modos de existência dos mortos como referências de negação e de injustiça. E, chegados à quarta reflexão, temos a exploração da possibilidade de substituir a transcendência ilusória pela imanência na prática política da democracia. Nestes quatro pontos, trata-se de situar a vivência democrática, não na lógica de uma sociedade ancorada em referências de eternidade, de suposta perfeição ou de infalibilidade, mas na procura de referências baseadas na concreta relação de pessoas de carne e osso entre si. Para o filósofo, trata-se de denunciar “a dinâmica política atual que as democracias conservadoras afrontam constantemente, sob formas novas, por todo o planeta, ressurgências de velhos e fantasmáticos autoritarismos, fascismos e mesmo teocracias”. Dir-se-ia que encontramos então a situação inversa do “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Para José Gil há a verificação de que as forças que querem a imanência se encontram reprimidas e encarceradas nas estruturas sociais e políticas estabelecidas”. E tal contração reduz as possibilidades de autonomia, responsabilidade e autogoverno. Contudo, “o plano da imanência da democracia tem uma consistência frágil”. Gianni Vattimo, há pouco desaparecido, chegou a conclusão próxima.


A IMANÊNCIA NA PÓLIS
O que distingue as democracias formais dos sistemas autocráticos é contraditório. As primeiras podem favorecer a transcendência do poder do Estado e das instituições, os segundos procuram a dissolução do Estado na figura do líder que se projeta no plano social. Daí a necessidade de distinguir uma imanência de “fusão” por contraponto a uma imanência de “reversibilidade” (o respeito é biunívoco), que encontramos em Claude Lefort e na consideração por este de que o simbólico se torna fundamento da democracia representativa. De facto, o simbólico é finito, está ao nosso alcance. O poder democrático é transitório e efémero na sua indeterminação. A institucionalização de um “lugar vazio” do poder, confere aos cidadãos uma igualdade de direitos na participação no poder democrático. “O vazio criador de possíveis, dispensa a posição da imortalidade”. E Lefort fala, assim, de “institucionalização do conflito”, ou seja, da superação da violência do enfrentamento dual do corpo-a-corpo., que obriga a uma “mediação apaziguadora”, a transformação do conflito aberto em conflito de partidos políticos e de debates jurídicos. Se a vendetta mediterrânica gera uma espiral de confronto e de violência, a mediação permite considerar o tempo e a ponderação. A literatura convoca, assim, os que “partiram”, extraindo daí mais força para se poder viver. É o que encontramos em Platão, no Górgias e no Fédon, mas também nas grandes sagas como a Epopeia de Gilgamesh, a Ilíada, a Odisseia, a Eneida, ou a Divina Comédia, onde se criam “personalidades espectrais”, que projetam o passado no presente. E é oportuna a referência nesse tema a artistas como Lourdes Castro e Jorge Martins nas representações espectrais… Também em Ésquilo, Sófocles, Shakespeare ou Racine encontramos a atração poderosa que as figuras do passado exercem sobre os vivos. O “presente alimenta-se do passado, de um passado móvel, não petrificado”. Os mortos passam a ter um tempo limitado e tornam-se exemplos. A democracia e a cidadania reportam-se, deste modo, à vida comum.


A democracia imanente vai, deste modo, buscar os mortos para os trazer à expressividade da vida. É isso o que encontramos nas tragédias gregas – representando Antígona o confronto entre as leis eternas e a realidade humana. E um dos sinais que José Gil encontra na situação caótica em que vivemos é o desaparecimento de um critério de verdade para o discurso político. As fake news testemunham a incapacidade de os democratas construírem um discurso credível, capaz de persuadir e de mobilizar. Desmoronou-se o passado, os valores da tradição, mas o caos pode trazer possibilidades de criação. O fantasma de Polinices permite ganhar força para pôr em causa as leis terrestres, transformando o sofrimento e a revolta em coragem para lutar contra a injustiça representada por Creonte. Construir a imanência é entrar no mundo e no cosmos e dar continuidade ao desejo de viver. E esse desejo de viver é considerado por José Gil nos quatro modos de envelhecer: uns fecham-se sobre si com medo da morte; outros resignam-se e vão vivendo; outros ainda negam o envelhecimento e querem viver eternamente jovens, seguindo Falstaff e Fausto. Mas ainda há o envelhecimento mais raro – nos casos de uma velhice saudável, não só fisicamente, mas sobretudo espiritualmente. O envelhecimento não quebra o curso da vida, prolongando-o e transformando. É a imanência ativa que prolonga o tempo. 


Guilherme d'Oliveira Martins
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A VIDA DOS LIVROS

  
De 27 de novembro a 3 de dezembro de 2023


No centenário do nascimento de Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013), invocamos a sua obra multifacetada, designadamente «Os Insubmissos» (1961), além da poesia e ensaio, onde se encontram as raízes da cultura e a compreensão da importância da emancipação humana.


“A Primavera vem dançando / com seus dedos de mistério e turquesa / Vem vestida de meio dia e vem valsando/ entre os braços de um vento sem firmeza // Nu como a água o teu corpo quieto e ausente / Só este inquieto esvoaçar do teu sorriso /Loiro o rosto o olhar não se mente / se de tão negro e parado é um aviso / do destino que me fixa finalmente / Ai, a Primavera vai passando / com os seus dedos de mistério e de turquesa / Segue Primavera vai cantando / Que será do nosso amor nesta praia de incerteza” – ouvimos o poeta Urbano Tavares Rodrigues e relacionamos o tema com a sua vitalidade criativa.


Filho de proprietários agrícolas alentejanos nas imediações de Moura, o escritor nasceu em Lisboa a 6 de dezembro de 1923. O Alentejo marcou-o profundamente na beleza da paisagem, na força da natureza, no culto do sol e da luz e na tomada de consciência das injustiças e da pobreza, das desigualdades e dos contrastes. O Baixo Alentejo marca-o, ligando velhas tradições republicanas e a emergência dos movimentos sociais emancipadores. "Por um lado, recebi a oralidade e a magia das conversas dos camponeses, por outro lado, tive uma relação muito próxima com a natureza, com o rio onde aprendi a nadar, com os cavalos [...] tudo, a lua, as estrelas, as árvores, os animais eram-me muito familiares. [...]ao longo dos livros [...] quando volto ao Alentejo, creio que é quando eu encontro uma certa qualidade lírica e mágica da linguagem". Em Lisboa, depois de frequentar o Liceu Camões, vem estudar Românicas para a Faculdade de Letras, aí iniciando uma carreira académica. Entre 1949 e 1955 leciona em França, nas Universidades de Montpellier, Aix-en-Provence e Sorbonne - Paris. Casa-se com a romancista Maria Judite de Carvalho. Uma vez que tinha apoiado a candidatura de Humberto Delgado em 1958 é impedido de ensinar em Portugal e torna-se jornalista no “Diário de Lisboa” e professor no Colégio Moderno e no Liceu Francês Charles Lepierre.


Envolve-se na ação política, participando em diversas iniciativas de luta contra o regime, nomeadamente na designada Revolta da Sé (1959) e no assalto ao Quartel de Beja (1962). Em 1963 é preso no Aljube, sendo por diversas vezes detido às ordens da polícia política. Exilado em França, conhece os meios da emigração. De regresso a Portugal, após a revolução de 1974, foi professor na Faculdade de Letras, sob proposta de Luís Filipe Lindley Cintra, e será crítico literário, ficcionista, ensaísta e investigador. A figura de Manuel Teixeira Gomes, Presidente da República, Embaixador, escritor referencial na primeira metade do século XX, atrai-o especialmente, tornando-se um estudioso fundamental do autor para a compreensão da importância do cidadão e intelectual para a cultura de língua portuguesa. Autor de obras marcantes como Os Insubmissos, Bastardos do Sol ou A Estação Dourada, foi agraciado com inúmeros prémios literários que distinguiram a sua obra, como os prémios Ricardo Malheiros, Aquilino Ribeiro e Fernando Namora; bem como da Associação Internacional de Críticos Literários; da Imprensa Cultural; ou o Prémio Vida Literária — atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores; além do Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco.


A título de exemplo, na antologia intitulada “A Estação Dourada”, Urbano Tavares Rodrigues reúne vinte e uma narrativas breves, escritas ao longo de uma década, e que, no seu conjunto, constituem uma perspetiva multifacetada da realidade contemporânea. O título da coletânea é tirado da narrativa inaugural e pode ler-se como uma celebração da estação estival, tanto no sentido meteorológico como simbolizando a maturidade, com os seus aspetos positivos, mas também com os seus reveses e dúvidas. O Sul está bem presente, quer na dimensão das planuras alentejanas, como no anúncio algarvia, que o autor aprendeu a conhecer e as amar, sob a influência marcante do Mestre Teixeira Gomes, exemplo de bom gosto e de talento, sobremaneira admirado por Urbano Tavares Rodrigues.


Numa obra vasta caracterizada pelo culto da poesia e da narrativa, pela paixão das viagens e da diversidade da natureza, o escritor escreveu ainda “Torres Milenárias”, “A natureza do Ato criador”, “O Mito de D. Juan e outros Ensaios de Escreviver” ou “O Texto sobre o Texto”. Como diz Fernando Pinto do Amaral: “Autor muito prolífico e sempre atento à evolução da sociedade portuguesa, Urbano Tavares Rodrigues partilha ainda com o neorrealismo evidentes afinidades ideológicas (…), mas inscreve-se já no quadro do existencialismo pela atenção que presta à interioridade de cada uma das personagens por vezes adensada em virtude de uma dimensão claramente erótica que acaba por individualizar o seu universo ficcional”. Falecido, em Lisboa, a 9 de agosto de 2013, aos 89 anos, é um autor a que hoje regressamos com a possibilidade de continuarmos a reviver uma experiência literária com qualidades … A língua torna-se expressão de sentimentos e compreendemos a como a existência apela a uma permanente emancipação.


Guilherme d'Oliveira Martins
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A VIDA DOS LIVROS

  

De 20 a 26 de novembro de 2023


Evocamos um amigo, D. Gonzalo Torrente Ballester (1910-1999), em «A Saga / Fuga de J. B.» a propósito do Encontro de Santiago de Compostela sobre o Património Cultural.


GONZALO, UM AMIGO
Escrevo de Santiago de Compostela onde participo no Congresso Internacional “O Património, uma responsabilidade partilhada”, iniciativa de Hispania Nostra, reflexão sobre o património cultural, encarado não como realidade do passado, mas como fator essencial para a compreensão de uma cultura viva. E nada melhor do que lembrar D. Gonzalo Torrente Ballester, que conheci e que, como José Saramago reconheceu foi um autor digno da estirpe de Cervantes e dos seus Quixote e Alonso Quijano. E recordo Castroforte del Baralla, em uma cidade imaginária, que não vem nos mapas e flutua acima da realidade. José Bastida relata-nos o desaparecimento de uma relíquia, o Corpo Santo. Trata-se de uma verdadeira metáfora sobre cultura, património e memória. A ironia e o picaresco aí estão, entre gritos, vozearia e realidades múltiplas, religiosas e profanas, virtude e pecado, realidade e fantasia. Qualquer cultura viva é, por definição, mestiça. E em Castroforte não existe passado nem futuro, apenas figuras do presente que ilustram mil anos de história. Eis como se põe em diálogo memória e futuro. E J.B. ou José Bastida multiplica-se, graças ao génio de Torrente Ballester, uma vez que o lugar retratado é a imagem da cultura das pedras vivas de Rabelais. E encontramos de tudo um pouco – literatura e mito, sonho e realidade, História e Geografia, psicologia e linguística, lembrança e esquecimento. E a relíquia, o Corpo Santo, simboliza o que importa preservar e defender, como raiz e perenidade, encontro e desencontro. Em torno dela tudo se move, como se nada acontecesse.


A CONVENÇÃO DE FARO
Devo falar de um instrumento de defesa do património, não como abstração, mas como compromisso. A Convenção de Faro de 2005 reconhece o “valor” para a sociedade do património histórico e da cultura, considerados como realidades dinâmicas, resultado de uma dialética entre o que recebemos e o que legamos. Mas os valores não são objetos ideais, são realidades imprevistas. Os fenómenos culturais participam dessa qualidade, não cabendo em “modelos estáticos” ou repetições, devendo, sim, inserir-se no horizonte da “experiência histórica”. Perante uma Convenção com clara referência universalista, como a UNESCO fez relativamente à diversidade cultural e ao património imaterial, torna-se indispensável pôr no centro das preocupações deste instrumento jurídico uma teia complexa de direitos e deveres, de garantias e responsabilidades, de instrumentos de acompanhamento e avaliação, que possam fazer convergir não só a salvaguarda concreta, mas também a proteção do património histórico e cultural no âmbito de uma cultura aberta e universalista, de direitos e deveres fundamentais.


Compreende-se, assim, a novidade do objetivo do Conselho da Europa “de realizar uma união mais estreita entre os seus membros a fim de salvaguardar e promover os ideais e princípios baseados no respeito dos direitos do homem, da democracia e do Estado de direito, que constituem o seu património comum”. Deste modo se entende a “necessidade de colocar a pessoa e os valores humanos no centro de um conceito alargado e interdisciplinar de património cultural” e de salientar “o valor e as potencialidades de um património cultural bem gerido, enquanto fonte de desenvolvimento sustentável e de qualidade de vida”. E reconhece-se que cada pessoa “tem o direito de se envolver com o património cultural da sua escolha, como expressão do direito de participar livremente na vida cultural. Com vista “a uma maior sinergia de competências entre todos os agentes públicos, institucionais e privados interessados” reconhece-se “que o direito ao património cultural é inerente ao direito de participar na vida cultural, tal como definido na Declaração Universal dos Direitos do Homem”; “uma responsabilidade individual e coletiva perante o património cultural”; e que a “preservação do património cultural e a sua utilização sustentável têm por finalidade o desenvolvimento humano e a qualidade de vida”. Daí a necessidade de reforçar o “papel do património cultural na edificação de uma sociedade pacífica e democrática, bem como no processo de desenvolvimento sustentável e de promoção da diversidade cultural”.  


MOBILIZAR VONTADES… 
Trata-se de mobilizar vontades, através de um instrumento com força própria, no sentido de tornar o património cultural um fator de paz e de cooperação, ao contrário do que muitas vezes aconteceu no passado, em que o património cultural e as diferenças culturais estiveram, ou estão, no epicentro dos conflitos. Um templo com diversas referências históricas e culturais, religiosas e sociais tem de ser visto como um ponto de encontro e de memória, facto que só enriquece a sua atual utilização, religiosa ou profana, em nome do respeito e da preservação do espírito dos lugares, segundo uma cultura de paz. Assim, o património cultural, longe de se submeter a uma visão estática e imutável, passa a ter de ser considerado como um “conjunto de recursos herdados do passado”, testemunho e expressão de valores, crenças, saberes e tradições em contínua evolução e mudança. O tempo, a história e a sociedade estão em contacto permanente. Nada pode ser compreendido e valorizado sem esse diálogo. O património cultural, material e imaterial, surge, nesta lógica, como o primeiro recurso em prol da dignidade da pessoa humana, de diversidade cultural e de desenvolvimento durável. A originalidade de adotar o conceito de “património comum da Europa” (longe dos nacionalismos) tem de ser vista como elemento dinamizador de uma cidadania ativa e aberta. Somos cidadãos e une-nos um sentimento de pertença comum e os elos que se reportam a uma história viva, simbolizada e representada por uma herança (heritage), pelo património material e imaterial e pela capacidade de tornar presente essa invocação, através da vitalidade da criação contemporânea. O património comum está, deste modo, na encruzilhada das várias pertenças e de várias complementaridades. Indo mais longe do que outros instrumentos jurídicos e políticos e do que outras convenções, esta ideia visa prevenir os riscos do uso abusivo do património, desde a mera deterioração a uma má interpretação enquanto “fonte duvidosa de conflito”. O mesmo bem patrimonial está ligado a tradições diferentes. Um templo pode ter na sua história referências muito diversas. As mudanças fizeram-se violentamente, e haverá a tendência para valorizar apenas a conceção dominante atual. Mas caberá à sociedade de cidadãos livres encontrar o denominador comum, que permita evitar que uma identidade, tradição ou monumento sejam fontes de conflito. Nesta perspetiva, o património cultural fica no ponto de convergência entre um passado de conflito e a procura de um consenso de valores e ideais no âmbito da cultura da paz. E a saga e fuga de J.B., como caleidoscópio, poderão ajudar.


Guilherme d'Oliveira Martins
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A VIDA DOS LIVROS

  
De 13 a 19 de novembro de 2023


Na passagem dos oitenta anos do nascimento de Manuel António Pina, recordamos a sua obra e o seu percurso intelectual de jornalista, escritor e poeta. “Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança” (Assírio e Alvim, 1999) é, sem dúvida, uma das mais sentidas expressões do seu talento.


UM ARTÍFICE DA ESCRITA
A última vez que estive com Manuel António Pina foi em S. Pedro de Rio Seco, a terra-natal de Eduardo Lourenço.  E lembro a presença discreta de quem admirava genuinamente o ensaísta, permanente interrogador do destino português. O certo é que à medida que cada um dos géneros que cultivou se desenvolveu, soube sempre, com fino humor e cuidada reflexão, tratar do destino como coisa muito séria, como matéria-prima do carácter e da dignidade humana. Nasceu em 1943, no Sabugal e faleceu, quando muito haveria a esperar dele, em outubro de 2012, no Porto. Era um apaixonado da vida, e quando abraçou o jornalismo, depois de uma incursão pelo Direito, fê-lo pelo amor aos acontecimentos, em toda a sua vitalidade. No Jornal de Notícias, onde foi editor, tornou-se um mestre reconhecido por todos, quando a banca de um jornal era a melhor tarimba e a melhor forma de ser artesão da palavra. É certo que, além da palavra escrita, usou os seus talentos de jornalista na rádio e na televisão, mas o seu campo de eleição era o da palavra escrita e das colunas dos periódicos numa cidade de tão grandes tradições. Depressa o jornalista tornou-se cultor de vários géneros literários desde as obras para a infância e juventude à poesia. E assim a sua obra desde cedo apresenta uma grande coesão estrutural e uma evidente criatividade. Amante das palavras e dos seus jogos, Manuel António Pina tornou a sua obra um constante "jogo de imaginação", como um caleidoscópio ou um labirinto que obriga a um trabalho permanente de descodificação, para a compreensão e a procura da solução dos mais intrincados enigmas literários.


Que melhor forma cultivar a literatura senão pela busca permanente das várias cambiantes dos caldos de literatura e das várias tonalidades da cultura? Nesse sentido, por uma aturada pesquisa de trovador, cada vez mais experimentado, tornou-se uma voz das mais originais da língua portuguesa, sobretudo a partir de Nenhum Sítio, com curiosos ecos de T. S. Elliot, Milton ou Jorge Luis Borges, numa tendência para a exploração das possibilidades reflexivas do poema, transportando, como disse Manuel Frias Martins, a palavra poética "quer para a investigação do processo de conhecimento quer para a investigação do processo de existência literária”.


Reveladora de uma perspetiva aberta dos valores éticos e de um apurado sentido pedagógico, a sua obra infantil e juvenil tem sido escolhida selecionada para manuais escolares, sendo também integrada em antologias portuguesas e espanholas. Por outro lado, os seus textos teatrais foram frequentemente representados em todo o país e a sua ficção tem constituído o suporte para séries televisivas, como  Histórias com Pés e Cabeça, 1979/80.


Recordemos na poesia obras como o citado Nenhum Sítio (1984), além de O Caminho de Casa (1988), Um Sítio Onde pousar a Cabeça (1991), Algo Parecido Com Isto da Mesma Substância (1992); Farewell Happy Fields (1993), Cuidados Intensivos (1994), Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança (1999), Le Noir (2000), Os Livros (2003). Na novela, temos O Escuro (1997). Nos textos dramáticos - História com Reis, Rainhas, Bobos, Bombeiros e Galinhas (1984), A Guerra Do Tabuleiro de Xadrez (1985). Não devemos esquecer o ensaio - Anikki - Bóbó (1997), sobre a obra transposta para o cinema por Manoel de Oliveira.  Na crónica, escreveu - O Anacronista (1994). E na literatura infantil - O País das Pessoas de Pernas para o Ar (1973), Gigões e Anantes (1978), O Têpluquê (1976), O Pássaro da Cabeça (1983), Os Dois Ladrões (1986), Os Piratas (1986), O Inventão (1987), O Tesouro (1993), O Meu Rio é de Ouro (1995), Uma Viagem Fantástica (1996), Morket (1999), Histórias que me contaste tu (1999), O Livro de Desmatemática e A Noite.


UM CULTOR DA IRONIA E DO NON SENSE
Dotado do especial dom de cultivar o non sense, escreveu um dia «A poesia vai acabar, os poetas / vão ser colocados em lugares mais úteis. / Por exemplo, observadores de pássaros / (enquanto os pássaros não / acabarem). / Esta certeza tive-a hoje ao / entrar numa repartição pública. / Um senhor míope atendia devagar / ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum / poeta por este senhor?»    E a pergunta / afligiu-me tanto por dentro e por / fora da cabeça que tive que voltar a ler / toda a poesia desde o princípio do mundo. / Uma pergunta numa cabeça. / — Como uma coroa de espinhos: / estão todos a ver onde o autor quer / estão todos a ver onde o autor quer chegar?»


Prémio Camões de 2011, Manuel António Pina foi justamente reconhecido por diversos prémios, como o da Casa da Imprensa, em 1978, por Aquele Que Quer Morrer; ou o Grande Prémio Gulbenkian de Literatura para Crianças e Jovens e a Menção do Júri do Prémio Europeu Pier Paolo Vergerio da Universidade de Pádua, em 1988, por O Inventão; além do Prémio do Centro Português de Teatro para a Infância e Juventude, em 1988, pelo conjunto da obra; o Prémio Nacional de Crónica Press Clube/Clube de Jornalistas, em 1993, pelas suas crónicas; o Prémio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários, em 2001, por Atropelamento e Fuga; e o Prémio de Poesia Luís Miguel Nava e o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, ambos pela obra Os Livros (2005). Já a título póstumo foi ainda galardoado com o Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes, pelo livro «Como se Desenha uma Casa», e com o Prémio Especial da Crítica dos Prémios de Edição Ler/Booktailors 2012, pelo livro Todas as Palavras – Poesia Reunida.


E Eduardo Lourenço, em homenagem à versatilidade do autor e à sua ironia, lembrou-se o seu gato quando dele se foi despedir: «Em cada gato há outro gato / um pouco menos exato / e um pouco menos opaco // Um gato incoincidente / com o gato indecente / caminhando à sua frente ou a seu lado, / espírito alado / do que é terrestre no gato. // É o segundo gato / (…) / às vezes assomando / nos olhos do gato / como um passado móvel e // enclausurado. / O próprio gato / não sabe que anda por ali / algo que não cabe dentro nem fora de si»…


Guilherme d'Oliveira Martins
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A VIDA DOS LIVROS

  
De 6 a 12 de novembro de 2023


Autor de “As Cidades Invisíveis”, Italo Calvino foi um interrogador de mitos através da literatura, tendo-se dedicado, ao longo da vida, a descortinar os vários mistérios escondidos no Jardim dos caminhos que se bifurcam, que Jorge Luís Borges descreveu genialmente com a capacidade de iludir os leitores, dando-lhes porventura o falacioso conselho de que Teseu não teria tido necessidade do providencial fio de Ariadne para conseguir a proeza que o celebrizou no labirinto do Minotauro.
 


PAIXÃO MISTERIOSA
Sabemos, porém, que um tal parecer era falso, cabendo ao narrador construir com imaginação o modo de tornar a história verosímil…. Daí a paixão para com Ulisses de gerações incontáveis de leitores. E Calvino lembra-nos que as aventuras marítimas da Odisseia, no regresso a Ítaca, foram uma “rápida sucessão de encontros com seres fantásticos (que surgem nos contos populares do folclores de todos os tempos e países: o ogre Polifemo, os ventos encerrados no odre, os encantos de Circe, as sereias e monstros marinhos)”, que contrastam “com o resto do poema, em que predominam os tons graves, a tensão psicológica, o crescendo dramático gravitando em torno de um fim: a conquista do reino e da esposa assediados pelos Prócidas”. Estamos perante o mito de todas as viagens e aventuras. E se o herói épico tradicional era o paradigma das virtudes aristocráticas e militares, Ulisses não é só isso, sendo também “o homem que suporta as experiências mais duras, os trabalhos, a dor e a solidão”. Mais do que um lutador contra bruxas e gigantes, monstros e comedores de homens, foi alguém que usou a inteligência e o artificio. Para Italo Calvino, a memória constituía o fator essencial para a compreensão da realidade humana. Lembremos a criança que aprendia de cor os poemas de Montale, “poesias sedimentadas na memória”. Os clássicos servem para compreender quem somos e onde chegámos e o escritor considerava indispensável um cosmopolitismo que permitisse pôr em diálogo as culturas nacionais e estrangeiras, já que as identidades se enriquecem pela comparação entre diferentes situações. E quem são os clássicos senão aqueles que constituem objeto de estudo nas classes escolares? O longo prazo é assim o fator crucial de relevância. Como um dia afirmou Umberto Eco, quem lê e quem recorda o passado diferencia-se de quem não o faz, pois estes podem viver apenas o tempo que lhes é dado pela vida terrena, enquanto quem lê e estuda o passado pode viver o correspondente a cerca de seis mil anos que é o tempo das civilizações históricas que conhecemos. Contudo, a consideração dos clássicos não deveria centrar-se na preocupação de saber se “servem” para alguma coisa, preferindo dizer o escritor que “a única razão que se pode aduzir é que ler os clássicos é melhor que não ler os clássicos”. E perante a objeção de que não valeria a pena tanto trabalho, Cioran lembrava que “enquanto lhe preparavam a cicuta, Sócrates pôs-se a aprender um ária de flauta”. Mas para que servirá? – perguntaram-lhe. “Para saber mais esta ária antes de morrer”.


HISTÓRIAS INTERMINÁVEIS
Leitor prolífero, recorda a personagem referencial de Ulisses, tornado paradigma clássico europeu, mas conduz-nos ainda pelos caminhos apontados por autores tornados cultores emblemáticos da memória clássica, como Stendhal. Obras como A Cartuxa de Parma e O Vermelho e o Negro constituem exemplos de narrativas próximas do nosso tempo que reinterpretam acontecimentos em que a história repete preocupações ancestrais do género humano. Fabrício Del Dongo e Julien Sorel ilustram o período romântico correspondente às guerras napoleónicas. Mas Fabrício não é Julien, sendo maior a complexidade psicológica deste, havendo semelhanças dele com o caso de Alexandre Farnese, futuro Papa Paulo III, na configuração da narrativa. E Balzac consideraria a Cartuxa como uma obra fundamental, comparável na inovação dramática e influência social à obra maior de Maquiavel. E Italo Calvino concordava, afirmando: “o que faz da Cartuxa de Parma um grande romance ‘italiano’ é o sentido da política como ajustamento calculado e distribuição dos papéis: com o príncipe que enquanto persegue os jacobinos se preocupa em poder estabelecer com eles futuros equilíbrios que lhe permitam pôr-se à cabeça do iminente movimento de unidade nacional”. Deste modo, as personagens desenhadas por Stendhal, Fabrício, Gina Sanseverina e Clélia desenvolvem a sua ação sedutora num panorama que anuncia o Ressurgimento italiano. E Calvino verifica a existência de “uma espécie de acordo miraculoso entre a massa de felicidade e de prazer que irrompeu em Milão com a chegada dos franceses e a nossa alegria de leitura: o efeito narrado coincide finalmente com o efeito produzido”. E assim a obra de arte ganha pleno sentido para os leitores do romance, que revivem com entusiasmo os acontecimentos históricos como puro prazer e exaltação da leitura na representação artística, graças ao talento de Stendhal.


A cada passo, na invocação das grandes obras, há sempre segredos por descobrir. E Italo Calvino não se poupava a tais esforços, como no caso dos Dois Hussardos de Tolstoi, escritor tão avaro na revelação dos instrumentos de construção da narrativa. E aí o que se encontra? “A plenitude da vida tão gabada pelos comentadores de Tolstoi – neste conto como no resto da sua obra – é a constatação de uma ausência. Tal como no narrador mais abstrato, o que conta em Tolstoi é o que não se vê, o que não se diz, o que poderia existir e não existe”. E são estas realidades que revelam os segredos escondidos numa qualquer obra de arte, em especial clássica. Afinal, a vida e a complexidade dos destinos levam-nos a perceber que é o aparente não sentido que revela a essência da ação. E sobre Pasternak, autor da estirpe de Poe, Dostoievski e Kafka, o escritor italiano, que tinha saído do partido Comunista em 1957 e escrevia em 1958, ano da atribuição do Prémio Nobel ao autor russo, afirmou que o autor de Doutor Jivago advertiu provavelmente para que “a história não era suficientemente história, como construção consciente da razão humana, sendo sobretudo desenrolar de fenómenos biológicos, estado de natureza bruta e não reino das liberdades”. Restaria saber se tal foi compreendido e se a então União Soviética estaria a ponto de tirar consequências desse alerta…


A vasta obra literária deixada por Italo Calvino juntou a lucidez histórica, o realismo e a fantasia, recriando narrativas memoráveis como as Cidades Invisíveis, onde o diálogo entre Marco Polo e Kublai Kan se traduz na revelação de um deslumbrante panorama, rico em sentido de imaginação e na descoberta do desconhecido.      


Guilherme d'Oliveira Martins
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A VIDA DOS LIVROS

  
De 30 de outubro a 5 de novembro de 2023


A Cultura como Enigma
procura, num conjunto de crónicas e ensaios, salientar a importância das Humanidades como aprendizagem do ser, do conhecimento, do saber fazer e do viver com os outros, ligando cultura e ciência e visando superar a indiferença e o relativismo que subalternizam a memória, que absolutizam os contextos e os mercados e que põem em causa a dimensão emancipadora e universal da dignidade da pessoa humana e a salvaguarda da liberdade e dos direitos humanos.


UM MOMENTO ESPECIAL
Num momento em que o Direito e a Cultura da Paz são menosprezados e desrespeitados, importa recuperar as virtualidades do universalismo humanista, longe da separação e da fragmentação de um formalismo que pode tornar os seres humanos súbditos ou instrumentos de novas idolatrias. O elogio do livro e da leitura significa, assim, a procura de uma emancipação baseada na autonomia, na liberdade e no sentido crítico.  O enigma da cultura está, assim, no misterioso diálogo com as gerações que nos antecederam e com os pensadores, artistas, cientistas, criadores, que podemos encontrar na leitura ou no usufruto das mais diversas formas de arte e de conhecimento. É esta a pergunta fundamental da esfinge na porta de Tebas.


Eis o introito desse conjunto de reflexões: «Gosto das casas com livros e da alma que eles alimentam. E falar de livros é lembrar a sua presença a ocupar amigavelmente todos os cantos das casas onde eles existem. Não concebo a hospitalidade de uma casa sem a omnipresença dos livros. E não há prazer maior do que ir à estante e folhear um livro, que já não recordamos, do qual temos uma lembrança vaga ou que julgamos ter bem presente. No fundo, os livros fazem parte dos nossos afetos. No entanto, porque os livros vivem, ou não fossem a projeção permanente dos seus autores nas nossas vidas, é normal que quando os relemos, e julgamos conhecê-los, descubramos novas ideias, novas perspetivas, cambiantes diferentes, com se fossem eternamente novos. As bibliotecas são sempre lugares iniciáticos, misteriosos, labirintos autênticos e inesgotáveis.


ENCRUZILHADAS, BIFURCAÇÕES
Os contos de Jorge Luís Borges têm a ver com esses caminhos, encruzilhadas, bifurcações, becos, saídas que nos entusiasmam ou exasperam. As minhas primeiras recordações da biblioteca fantástica de meu avô têm a ver com as Enciclopédias e os Dicionários. Foi por aí que comecei, na tentativa, sei hoje que vã, de procurar as saídas dos labirintos. E lembro-me bem dos sábados, passados até que a luz se desvanecesse, a correr de Herodes para Pilatos nas várias entradas do velho “Dicionário de Portugal”, a descobrir os vultos do nosso oitocentismo, a desvendar uma gigantesca Enciclopédia espanhola ou o “Larousse Illustré”, a folhear os Atlas e os livros imponentes e pesados com as reproduções já um pouco desmaiadas das grandes obras de arte do mundo, nos grandes Museus, desde o Louvre aos Ofícios de Florença, passando pelo misterioso Hermitage…


Eram horas esquecidas, em companhia da multidão de mortos que povoavam essa encruzilhada única que era a livraria de meu Avô (biblioteca e livraria eram sinónimos no vocabulário lá de casa). Penso que o vício dos livros veio no meu código genético. Nunca me senti bem sem eles. E quando há o vício de lidar com livros, tudo o que vem à rede é peixe. E, a pouco e pouco, depois da História, que havia para todos os gostos (o meu Avô era professor de História e Geografia), vinha o território da poesia e dos romances - dos romances, inevitavelmente. Entre duas revoltas e quatro viagens virtuais ou imaginárias (Odisseia, Ilíada, Eneida, Gulliver, Robinson e Júlio Verne) ia à poesia (Camões, Garrett, Antero, Cesário, Pessanha…) e aos romances, às coleções completas de Camilo e de Eça, sem restrições. Lá estavam todos. E rapidamente pude perceber por que razão Tolstoi era o romancista preferido dessa livraria ordenada e silente. Em frente de um antigo Atlas, perante a trajetória audaciosa e suicida do Imperador, jamais esquecerei as descrições épicas de “Guerra e Paz”.


Aos mortos das enciclopédias juntava-se a outra multidão das personagens romanescas: Simão Botelho e Teresa de Albuquerque, Zé Fernandes, Jacinto, Carlos, Maria Eduarda, Basílio, Luísa… Stendhal confundia-se com Julien Sorel, com Fabrice del Dongo, com Clélia ou Sanseverina. Só Flaubert permitia compreender a ascensão e a queda de Cartago, através de Salammbô… E fica uma enorme saudade dessas aventuras e de quando minha Mãe vinha dizer serenamente que era chegada a hora de voltar».   


Guilherme d'Oliveira Martins
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A VIDA DOS LIVROS

  

De 23 a 29 de outubro de 2023


Umberto Eco – A Biblioteca do Mundo
de Davide Ferrario é mais do que um documentário. É um elogio da Biblioteca e da leitura como lugares de memória.


COMO TUDO COMEÇOU… 
Tudo começou na Bienal de Veneza em 2015 quando nasceu a ideia de fazer uma vídeo-instalação sobre a memória. O melhor seria organizar uma conversa com Umberto Eco, enquanto “estrela” do mundo da cultura, como especialista das linguagens e das línguas. Depois de uma primeira troca de ideias, Eco aceitou e convidou o realizador a visitar a sua biblioteca. A resposta foi positiva, mas Ferrario compreendeu que teria de fazer algo diferente do que tinha inicialmente pensado. Haveria que ir a um sétimo céu, a um labirinto com corredores mágicos, paredes integralmente forradas de livros de todas as idades e épocas, com os mais variados temas, e diversas escadas móveis capazes de permitir o folhear livros reveladores do carácter inesgotável da procura do conhecimento. Património de cultura e memória desperta ali estavam ao alcance de um qualquer visitante numa espécie de montanha-russa em que se juntavam incunábulos austeros, contos infantis, cancioneiros eruditos e populares, romanceiros e enciclopédias… E tratando-se de um labirinto, haveria que ter cuidado em munir-nos com um indispensável fio de Ariadne que permitisse não nos perdermos nos milhares de caminhos, travessas, becos, encruzilhadas e armadilhas encontráveis num espaço misteriosamente indecifrável.


UM SANTUÁRIO EM MILÃO
A casa de Umberto Eco fica no centro de Milão, na proximidade do castelo dos Sforza, tem um longo corredor com trinta passos de estantes totalmente cheias, com encadernações diversas, de pergaminho, de pele, de couro macio, de pano, dos mais diversos tipos de papel, de diferentes cores. Percebia-se uma curiosidade infinita por parte do anfitrião, com gosto pelo insólito. E compreende-se a lenda verdadeira de que Umberto Eco se refugiava na sala ampla, com aparência de arquivo, com uma mesa-redonda cheia de livros em montes, para tocar flauta, rodeado daquele universo de memórias vivas. Qual o grande enigma da cultura senão essa possibilidade transcendente de encontrar os maiores espíritos de todos os tempos e de dialogar com eles ao folhear o que escreveram e pensaram? E a própria flauta é a metáfora da vida, como diria o alquimista Robert Fludd – “o ar soprado por Deus para dar vida ao mundo” passa pelo tubo escuro que o escritor prefere a qualquer instrumento eletrónico… E vem a definição daquele lugar (ou livraria, como diria meu avô): “Bibliotheca, semiológica, curiosa, lunática, mágica e pneumática”. Lembramo-nos dos ocultistas de O Pêndulo de Foucault, que acreditavam em tudo com fanatismo. Baudolino era um falsário genial. A ciência falsa e oculta, as linguagens imaginárias – tudo isso entusiasmava Eco. Mais importantes do que a obra fundamental de Galileo Galilei eram as respetivas refutações falsas. É a mentira que revela a verdade. E qualquer obra revela-se como necessariamente aberta. Poética ou artística a obra abre-se a uma série infinita de leituras possíveis. Autor de uma tese de doutoramento em filosofia sobre S. Tomás de Aquino e a teoria da beleza na Idade Média, Umberto mostrou-se avesso à ideia de escrever um romance. Mas a oportunidade veio inesperadamente. Nascia O Nome da Rosa, e o convite para um pequeno conto, tornou-se oportunidade para uma trama romanesca iniciado com uma lista de monges medievais e com a perigosa pergunta discretamente a um especialista amigo: como se poderia envenenar uma pessoa que estivesse a ler um livro… E a continuação da história é sabida. Conheci Umberto Eco em Lisboa, quando aqui veio a convite de Mário Soares, por sugestão de Fernando Gil. Com António Tabucchi fomos buscá-lo ao Aeroporto, contando com o seu fino humor e uma aversão sistemática aos idiotas. A conferência que realizou na Fundação Calouste Gulbenkian, apresentada por Eduardo Prado Coelho, em 11 de fevereiro de 1988, foi magnífica – “O Irracional, o Misterioso e o Enigmático”, e começava pela afirmação: «Há uma frase de Chesterton de que não consigo recordar o contexto original e que cito de memória: ‘Desde que os homens deixaram de acreditar em Deus, isso não significa que já não acreditem em nada, acreditam em tudo».


RECORDAR FUNES
Nesse tempo, não havia ainda nem telemóveis nem internet, mas profeticamente Umberto Eco já temia a tentação de abarcar o conhecimento universal através de uma espécie de super-memória, como no caso do conto de Jorge Luís Borges “Funes ou a Memória”, de 1944 (in “Artifícios”, Ficções), lembrado no filme, como referência preventiva, perante a evocação dos perigos das tecnologias de informação…  Ireneo Funes era um rapaz uruguaio com qualidades inatas que o singularizavam por algumas estranhezas, como a de não se dar com ninguém e a de saber sempre as horas como um relógio. Um dia foi derrubado por um cavalo bravo e ficou paralisado sem esperança. Não saía da enxerga, de olhos postos na figueira do fundo ou numa teia de aranha. Ao cair perdera o conhecimento, mas quando o recuperou “o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido que se tornara, e também as memórias mais antigas e mais triviais”. Tornou-se um extraordinário cadinho de memórias, afirmando: “Mais recordações tenho eu sozinho do que devem ter tido todos os homens desde que o mundo é mundo”. Ireneo não só se lembrava de “cada folha de cada árvore de cada monte, como também de cada uma das vezes que a tinha notado ou imaginado”. Mas resolveu reduzir cada uma das suas jornadas pretéritas a umas setenta mil lembranças para poder abarcar o que poderia valer a pena. Uma vez, pediu emprestados alguns volumes com os mais difíceis problemas do latim, como a Naturalis Historia de Plínio, que está na origem das enciclopédias modernas. E desenvencilhou-se perante as mais difíceis sentenças, designadamente no inusitado primeiro parágrafo do capítulo 24 do livro sétimo, exatamente sobre a memória, como “ut nihil non iisdem verbis redderetur auditum”, ou seja, “de modo que nada seria reproduzido sem ouvir as mesmas palavras”. Funes tinha “aprendido sem esforço inglês, francês, português e latim. Suspeito, no entanto, de que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos”. O exemplo do “memorioso” era, afinal, uma verdadeira metáfora atual sobre o pequeno clique digital que nos dá acesso a uma bibliografia de dez mil volumes, quando ninguém, de facto, poderá lê-los. Por isso, Ireneo Funes tinha a estranha angústia sobre a multiplicação de gestos inúteis. Antigamente líamos três ou quatro livros e ainda poderíamos aprender qualquer coisa. Agora somos obrigados a ter de eliminar o máximo de informação, protegendo-nos o mais possível dos ataques de quem nos quer importunar a todo o custo, num mundo sobrecarregado de mensagens. Naquele mágico labirinto, o verdadeiro enigma continua a ser o que permitiu a Teseu libertar-se de Minotauro…       


Guilherme d'Oliveira Martins
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A VIDA DOS LIVROS

  

De 16 a 22 de outubro de 2023


No centenário da morte de Guerra Junqueiro recordamos duas das suas obras mais conhecidas “A Velhice do Padre Eterno” e “Os Simples”.


“Engana-se quem entre Os Simples e a Velhice do Padre Eterno descobrir porventura contradições. Aquela indignação é o comentário desta elegia.  Este lirismo é o reverso daquela sátira. O cristianismo d’Os Simples é o inocente e meigo cristianismo popular, feito com ignorância absoluta do dogma e com a intuição humana dos Evangelhos. A exegese do povo, na sua rudeza nativa e embrionária, é por vezes duma penetração sublime e reveladora”. É Abílio Guerra Junqueiro quem o afirma em nota a Os Simples. A passagem do centenário da morte de Guerra Junqueiro permite compreender o lugar que o poeta tem na cultura da língua portuguesa, bem como entender melhor o tempo em que viveu, obrigando-nos à leitura atenta da criatividade do escritor, ligando-o ao seu compromisso cívico. Começo por lembrar o intelectual que iniciou a sua intervenção política na cidade do Porto próximo do movimento da Vida Nova, animado pelo autor de Portugal Contemporâneo, em meados dos anos oitenta do século XIX, grupo nascido no seio do Partido Progressista, sob o comando de Anselmo José Braamcamp, com o objetivo de renovar profundamente a Política e a Economia Nacional. Concluído o curso de Direito em Coimbra, em 1873, Junqueiro publicou no ano seguinte A Morte de D. João. E este encontro com o grupo de Oliveira Martins prolongar-se-á até à constituição do chamado grupo dos “Vencidos da Vida”, sendo destes anos a publicação de obras críticas de acentuado sucesso editorial e popularidade, como A Velhice do Padre Eterno (1885), Finis Patriae (1891) e Pátria (1896). Está na nossa memória a célebre fotografia tirada no Palácio de Cristal do Porto do célebre grupo dos Cinco: Antero de Quental, Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro. E a obra política de Guerra Junqueiro de combate corresponde a uma séria determinação em dotar o País de instituições democráticas e republicanas, capazes de representar os cidadãos e de mobilizar a sua participação ativa. Contudo, o escritor não esquece um sentido filosófico, uma cosmovisão de amor pela humanidade e pela natureza, como complemento natural da campanha cívica. Daí a publicação em 1892 de Os Simples, obra pedagógica marcante, que se articula com Oração ao Pão (1902) e Oração à Luz (1904). Como salientará Sampaio Bruno, Junqueiro assumiu, deste modo, com coragem, todos os riscos de uma atitude severamente crítica, que tinha como marca fundamental a defesa de uma necessária emancipação cívica.


Mas, porque a história tem coincidência surpreendentes, a verdade é que Guerra Junqueiro morreria em Lisboa, numa vivenda, que foi propriedade da família de minha Avó, hoje há muito demolida, no coração de Campo de Ourique, na antiga rua de S. Luís, números 52-54, a atual rua de Silva Carvalho. Tal facto também me ligaria à sua memória. Aliás, em 1955 a filha do poeta, Maria Isabel, bater-se-ia com determinação para que a casa não fosse destruída, o que infelizmente aconteceria, como ocorreu com a última morada de Almeida Garrett, em lugar expressamente escolhido pelo autor de Frei Luís de Sousa. E assim Lisboa recusou a criação da Casa-Museu de Junqueiro, que hoje se encontra na cidade do Porto, constituindo uma referência de grande valor patrimonial, pela extraordinária coleção que alberga. De facto, a Fundação Maria Isabel Guerra Junqueiro e Luís Mesquita de Carvalho honra da melhor maneira a memória do grande poeta. A recordação do artista de A Morte de D. João e de Os Simples esteve assim bem presente ao longo da minha vida, e sempre encontrei a lembrança do poeta como algo de próximo. E agora, graças ao meu amigo Manuel Cavaleiro Ferreira, descendente de Junqueiro, tenho acompanhado a celebração deste centenário. Por isso, no Museu Nacional de Arte Antiga, fiz questão de começar por fazer ouvir as palavras de Guerra Junqueiro no seu poema dedicado a Portugal: “Maior do que nós, simples mortais, este gigante / foi da glória dum povo o semideus radiante, / Cavaleiro e pastor, lavrador e soldado / seu torrão dilatou, inóspito montado, / numa pátria… E que pátria! A mais formosa e linda / que ondas do mar e luz do luar viram ainda! / Campos claros de milho moço e trigo loiro… / Pátria feita lavrando e batalhando: aldeias / conchegadinhas sempre ao torreão de ameias. / Cada vila um castelo. As cidades defesas / por muralhas, bastiões, barbacãs, fortalezas; / e, a dar fé, a dar vigor, a dar o alento, / grimpas de catedrais, zimbórios de convento, / campanários de igreja humilde, erguendo à luz, / num abraço infinito, os dois braços da cruz! (…) / Águas sem fim! Ondas sem fim! Que mundos novos / que estranhas plantas e animais, de estranhos povos, / ilhas verdes além, para além dessa bruma, / diademadas de aurora, embaladas de espuma”. Este é o Portugal que o poeta amava, também como colecionador de coisas antigas. E em Arte Antiga pudemos ver um breve apontamento do espólio que evoca o poeta. E na homenagem ao cultor das nossas raízes, foi-me possível chamar a atenção dos circunstantes para cinco obras-primas: A “Anunciação”, preciosidade de alabastro policromado de origem britânica do século XV; a “Virgem com o Menino”, do século XIV, em pedra calcária policromada; a Cruz processional em cobre dourado do século XIV; a “Virgem e o Menino” do mestre das Meias Figuras, em têmpera sobre madeira de carvalho (de cerca de 1500); o retrato de D. Juan de Áustria, óleo sobre madeira de castanho (segundo modelo de Alonso Sanchez Coello) e o preciosíssimo “Ecce Homo” de Estêvão Gonçalves Neto (1604) em têmpera e ouro sobre pergaminho. Guerra Junqueiro amava as melhores coisas. São exemplares as cerâmicas que se encontram na casa do Porto. E recordei a pequena história do gatinho que comia sopas de leite numa valiosa taça indo-portuguesa. O poeta amante e cultor do património antigo convenceu facilmente o proprietário do bichano a dar-lho com o pratinho antigo. O exemplo serve para entender a coerência e o talento do velho republicano, para quem o amor da pátria exigia conhecimento e amor do território, proximidade do povo, sentido de justiça, compreensão da gesta e da grei, vontade de sermos melhores, culto das artes e da sensibilidade cultural do povo, numa palavra, consideração da cultura e do património como responsabilidade.


Guilherme d'Oliveira Martins
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