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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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XXI.  O Ultimatum inglês e o 31 de janeiro

 

O Ultimatum inglês de 11 de janeiro de 1890 marcou profundamente a vida portuguesa inserindo-se na internacionalização da bacia hidrográfica do rio Zaire e na liberdade de navegação do rio Zambeze. Portugal tinha nas suas mãos as duas chaves da navegação em Angola e Moçambique, sendo forçado a franquear ambos os rios à navegação estrangeira. É uma das consequências do chamado Mapa Cor de Rosa, que pretendia conceder a Portugal o controlo dos territórios entre Angola e Moçambique, na sequência das expedições de Angola até à contracosta de Serpa Pinto, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens. Hesitações na política colonial e uma posição internacional frágil deram espaço a que o influente cônsul britânico Harry Johnston (1858-1927) se tenha tornado um agente ativo no amotinamento das populações em todo o curso do rio Chire – do lago Niassa ao Zambeze.

 

Assim, o Ultimatum pôs em causa as aspirações territoriais portuguesas entre Angola e Moçambique. Portugal deveria evacuar os territórios de Mashona (hoje Zimbabué) e as margens do rio Chire. Perante tão humilhante invetiva, o governo progressista em funções demite-se, cedendo lugar a um gabinete regenerador presidido por António de Serpa Pimentel, que negoceia o Tratado de 20 de agosto de 1890, mal recebido pela opinião pública, que o Parlamento reprovaria – uma vez que previa cedências territoriais excessivas e abrangia compromissos em Angola, quando nesse território não havia questões com os britânicos. Além disso, havia cedências desproporcionadas quanto aos transportes ferroviários e à liberdade de comércio. O governo cai e dá lugar a um ministério não partidário, com apoio do Exército, presidido pelo General João Crisóstomo de Abreu e Sousa (outubro de 1890), tendo como ministro da Marinha e Ultramar o dramaturgo António Enes, que tinha uma posição crítica relativamente ao mapa cor-de-rosa. A capacidade negocial face ao governo britânico era, porém, muito limitada, importando introduzir correção ao Tratado de 20 de agosto. Em Londres, o marquês de Soveral tenta obter junto do Primeiro-Ministro Lord Salisbury (1830-1903) as alterações necessárias que permitissem uma saída airosa e que evitassem perdas irreparáveis para a posição portuguesa. Salisbury resiste: ou se mantinha tudo na mesma ou se renegociava tudo. Cecil Rhodes, com o seu projeto de ligação ferroviária do Cabo ao Cairo, através da South Africa Company, exerce forte influência. Havia que agir rapidamente e António Enes propõe um “modus vivendi”, tendo por base a liberdade de navegação no Zambeze e no Chire para Portugal e o compromisso da Inglaterra de não celebrar novos compromissos com os régulos africanos, até se fixarem as fronteiras.

 

Salisbury e Soveral assinam em Londres a 14 de novembro de 1890 uma convenção para vigorar em 6 meses, pela qual o governo português se comprometia a permitir o trânsito de todas as vias fluviais do Zambeze, do Chire e do Pungue e a facilitar as comunicações entre os portos portugueses da costa e os territórios na esfera de influência da Grã-Bretanha. Era uma solução precária, mas preparava um entendimento. Em 28 de maio de 1891 viria a ser assinado um Convénio e em 11 de junho o Tratado que substituía o de 20 de agosto. Alguns aspetos foram retificados, como os de Angola, mas as reivindicações britânicas em matéria de exploração mineira ficaram. Quanto às fronteiras houve ganhos e perdas e António Enes partiria para a África Oriental para exercer funções de Alto-Comissário. Mas o Ultimatum deixou sequelas definitivas. Antero de Quental presidiu à Liga Patriótica do Norte, que marcou fortemente o protesto contra os britânicos, e em 31 de janeiro teve lugar a tentativa republicana do Porto, muito influenciada pela implantação da República brasileira (de 15 de novembro de 1889), dirigida intelectualmente por Sampaio Bruno e Basílio Teles, mais pensadores do que políticos de ação, que permitiu a aura do movimento, apesar do insucesso imediato, considerado como precursor da República.

 

Nos antecedentes próximos do 5 de Outubro de 1910 temos, assim, fatores políticos (o Ultimatum inglês, o 31 de Janeiro, os adiantamentos à Casa Real, a ditadura de João Franco, o regicídio), económicos (a perda de confiança interna, as imposições dos credores externos, a desorganização), financeiros públicos (o peso da dívida, a bancarrota de 1891-92, a falta de receitas fiscais estáveis), constitucionais (o esgotamento do rotativismo regenerador, a degradação do sistema partidário), educativos (a taxa de analfabetismo próxima dos 80%, a insuficiente cobertura escolar, o mal estar académico de 1907), culturais (o ambiente urbano favorável ao republicanismo), e sociais (tensões cidade/campo, falta de industrialização, ausência de política social). As instituições estavam demasiado frágeis, a humilhação tornou-se intolerável, o descontentamento sobretudo nas cidades gerou um clima que explodiu quando o rei e o príncipe real foram mortos… 

 

Agostinho de Morais

 

 

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XX.  O fim do século XIX e a crise – o Portugal saudosista e decadentista

 

O PNB per capita era em Portugal no ano 1860 de 86% da média dos países desenvolvidos e passa para 45% no início do século XX. Isto aconteceu apesar de uma política de melhoramentos, tantas vezes à custa da dívida pública. Tal desfasamento em relação à Europa deveu-se ao facto de a sociedade industrial ter favorecido um crescimento muito mais rápido nos países desenvolvidos, graças às economias de escala. Pesou o diferente potencial de crescimento entre os países industrializados e as economias menos dinâmicas como a portuguesa, presa à ruralidade e ao atraso. Apesar das importantes mudanças estruturais operadas pela Regeneração, como nos casos dos transportes, da modernização das instituições, bem como do alargamento e aperfeiçoamento dos mercados dos fatores de produção, a verdade é que o potencial de crescimento viu-se reduzido. Alguns números merecem especial atenção. Se pensarmos nos citados melhoramentos, a rede rodoviária portuguesa era de apenas 476 quilómetros construídos em 1860, contra 11 754 em 1900, e a rede ferroviária tinha 69 quilómetros contra 2867 nas mesmas datas. Olhando as Finanças Públicas, temos uma progressão moderada das receitas públicas depois de 1850, com um crescimento muito lento do produto interno, o que conduziria à crise financeira dos anos noventa. As despesas efetivas do Estado correspondiam a 4,3% do PIB na década de 1850 e a 5,6% na década de 1890. No entanto, segundo Maria Eugénia Mata, apenas 38% das receitas da dívida pública foi aplicado em despesas de investimento reprodutivo, sendo o restante absorvido por gastos correntes – com forte penalização das novas gerações. Para Magda Pinheiro, o investimento em despesas reprodutivas foi mais lento do que o desejável. Nestes termos, a eficiência dos melhoramentos ficou aquém do que se pretendia, no sentido de criar recursos para amortizar o endividamento. Os encargos com a dívida pública passaram de 20,5% na década de 50, para 40,2 na década de 90. Veja-se, pois, que o modelo não se revelou sustentável. Se a Regeneração atraiu investidores para as obras públicas, outro tanto não aconteceu no fim do século, em face da ineficiência do modelo económico e da incapacidade reformista dos governos, incapazes de aproveitar condições excecionais de estabilidade institucional. Tudo se agravou em virtude da crise internacional do fim do século.

 

Os anos 1890 foram de recessão económica: o PIB a preços correntes cresceu apenas 1,6% ao ano na década de 1889 a 1899, enquanto na década anterior tinha registado um crescimento de 3,3% ao ano. O certo é que os investimentos públicos, nomeadamente em infraestruturas, praticamente pararam na década de 90, pelos constrangimentos financeiros internacionais (bancarrota da Argentina, quebra da banca britânica, abandono do padrão-ouro e suspensão do pagamento de parte da dívida externa, que culminaria no Convénio de 1902). Das crises que atingiram a economia portuguesa na segunda metade do século (1853-58; 1867-70; 1889-92) a última foi a que mais afetou as condições de vida dos cidadãos, desencadeando subida de impostos, aumento do desemprego, baixa de salários reais, redução do horário de trabalho e migrações internas (para o sul e para as cidades) e externas (para Espanha e Brasil). Jaime Reis interroga-se sobre o porquê da persistência do atraso português na segunda metade do século XIX, em especial no tocante à expansão do sistema educativo, sobretudo quando «estava definitivamente redistribuída a propriedade da Coroa e da Igreja, tinham sido abolidas as principais instituições do Antigo Regime e estavam efetivamente reconciliadas as grandes famílias políticas que se tinham guerreado com ardor durante as primeiras décadas de Oitocentos. Os motins ocasionais que ainda se registaram em reação a questões fiscais ou de propriedade, ou simplesmente, por manipulação de políticos desencantados e descontentes, estavam longe das convulsões populares de 1808-1809 ou da cruel violência das guerras civis dos anos 1830 e 1840». Surge, assim, a dúvida sobre a razão por que uma sociedade com relativa estabilidade não foi capaz de reorganizar a instrução pública e de combater o analfabetismo. E, perante o contraste com outras sociedades europeias com fortes conflitualidades, surge a hipótese explicativa de que «num quadro de maiores tensões, mais forte teria sido a vontade de educar». Temos, pois, que a sociedade e a economia se revelaram incapazes de corresponder aos desafios das reformas e dos investimentos. O impulso republicano procurou criar condições para um sobressalto económico e social, mas as fragilidades da representação política não alcançaram os desígnios propostos.

Agostinho de Morais

 

 

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XIX.  Os Vencidos da Vida – Que herança?

Em 1885 seria aprovado um segundo Ato Adicional à Carta Constitucional, impulsionado por Fontes Pereira de Melo, envolvendo a redução da legislatura de 4 para 3 anos, a supressão do pariato hereditário, a restrição do poder moderador do rei, o qual passaria a ser exercido sob responsabilidade dos ministros, sendo regulado e limitado o direito de dissolução parlamentar, além da consagração expressa dos direitos de petição e de reunião… Já na fase final da monarquia constitucional, sob o peso da crise financeira e das consequências da bancarrota (1892), veio a consagrar-se um derradeiro Ato Adicional (1895-96), pelo qual o rei passou a dispor do poder para dissolver a Camara dos deputados e para convocar eleições sem as restrições previstas em 1885. Os últimos anos do regime viriam, porém, a ser marcados por forte instabilidade, com o envolvimento do rei na política dos partidos, que culminaria no regicídio (1908).

No ano de 1885 no Porto Oliveira Martins em articulação com Anselmo José Braamcamp, líder progressista, tinha lançado um movimento que se propunha renovar profundamente a monarquia constitucional. Sob a designação de “Vida Nova”, com um manifesto intitulado “Política e Economia Nacional” e um órgão de imprensa significativamente designado como “A Província” tratava-se de assegurar que a vida política pudesse contrariar uma inércia que vigorava e que se arriscava a agravar o atraso nacional. Infelizmente, Braamcamp, que apoiara o impulso, adoece e morre, que o impede de assegurar, a condução dessa renovação social, económica e política. José Luciano de Castro sucede a Anselmo José no partido progressista, mas não tem capacidade para mobilizar as hostes no sentido reformista preconizado pela “Vida Nova”. E o certo é que a decadência é sentida como marca finissecular. Guerra Junqueiro proclama a ocorrência de um horizonte negro em Finis Patriae e António Nobre canta o fim e o isolamento português. Haveria que superar as razões que Antero referira ao proferir a conferência sobre «As Causa da Decadência dos Povos Peninsulares». A coerência mantém-se. Só ela permitiria a perenidade da influência dos homens de 1870 e desta tentativa da “Vida Nova”. Face ao insucesso do movimento, e usando um irónico jogo de palavras, fala-se dos Vencidos da Vida – como “Battus de la Vie”… Se a designação teve uma origem jocosa, a verdade é que a eles se aplica o dito latino: victus sed victor, pois o tempo dar-lhes-ia razão sobre a necessidade de um projeto culturalmente mobilizador, de pôr Portugal a andar ao ritmo da Europa (o aportuguesar Portugal, segundo Garrett e europeizar Portugal segundo a Geração de 1870).

Pode dizer-se que o século XX cultural português foi profundamente influenciado pelos últimos anos do século XIX – Ultimato inglês, humilhação no Mapa Cor-de-rosa, 31 de janeiro de 1891, a bancarrota parcial de 1892, o descrédito da Casa Real no tema dos adiantamentos… Intelectualmente, a Geração de 70, na sequência do primeiro romantismo de Garrett e Herculano, marcou profundamente o pensamento português nas suas diversas manifestações. A decadência ocorre no contexto de um paradoxo – uns reconhecem a fragilidade da situação e acreditam na solução republicana, outros lançam a semente da reflexão sobre um futuro capaz de superar o atraso e de mobilizar vontades reformadoras. Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro, António Cândido Ribeiro da Costa, Carlos Lobo d’Ávila, Carlos Lima Mayer, o Conde de Ficalho, o Marquês de Soveral, o Conde de Sabugosa, o Conde de Arnoso constituem um grupo que janta no Tavares ou no Hotel Braganza e que ficará conhecido como “Vencidos da Vida”, marcando decisivamente as décadas seguintes todo o século XX. Mais do que o grupo individualmente considerado, é a recusa do fatalismo do atraso que prevalece – o que permite a ligação destas personalidades aos movimentos modernizadores, profundamente heterogéneos, que encontraremos nos anos seguintes. Longe de um pessimismo radical, estamos perante a exigência de uma atitude construtiva mobilizadora das energias disponíveis.

Pode dizer-se que na história portuguesa não há uma geração com maior influência do que a de 1870, semelhante à espanhola de 1898. E há cinco pontos que podemos enfatizar: (a) a ligação estreita entre o romantismo liberal de Garrett e Herculano e a ideia de reformismo social de 1870; (b) a afirmação do constitucionalismo e do Estado de Direito que a Lei Fundamental de 1976 viria a afirmar; (c) a consagração de uma cultura e de uma língua de afirmação global, caracterizada por uma identidade aberta, um europeísmo plural e diverso e um humanismo universalista; (d) a afirmação do desenvolvimento humano centrado na sustentabilidade cultural, no planeamento estratégico e na avaliação que a Vida Nova defendeu; (e) a modernização da sociedade pressupõe a audácia inovadora, a aprendizagem, o rigor científico, o diálogo entre arte e cultura.


Agostinho de Morai
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XVIII. Geração de Setenta – os últimos românticos


O sobressalto vindo da Europa, originado na revolta social e na Primavera dos Povos, de 1848, projeta-se em Portugal. Seria impossível, perante a abertura de fronteiras e a emergência do mundanismo, deixar de ter entre nós a repercussão do que ocorria na Europa. A revolta dos estudantes de Coimbra dos anos sessenta, a questão ideológica do Bom Senso e do Bom Gosto. O Romantismo dava lugar ao Naturalismo, apesar da forte reminiscência do idealismo da primeira geração liberal. Os jovens de Coimbra admiram Garrett e Herculano, mas recusam o ultra-romanismo e o elogio mútuo da escola de António Feliciano de Castilho. Antero de Quental era o centro carismático da revolta. E no dia em que Eça o encontrou na Sé Nova de Coimbra («numa noite macia de Abril ou Maio», sob um «Céu onde os escravos eram mais gloriosamente acolhidos que os doutores», e «Aonde o bom Deus se mete,/ Sem fazer caso dos santos/ A conversar com Garrett.») não mais deixou de o admirar, ficando para sempre sentado a seus pés, «num enlevo, como um discípulo».


Depois, os jovens vieram para Lisboa, organizaram as Conferências Democráticas do Casino Lisbonense e tornaram-se a Geração mais marcante intelectualmente dos dois últimos séculos. E que mensagem nos deixaram? Antero, mestre de Unamuno, chave para a compreensão do «sentimento trágico da vida», disse-nos, com muita clareza e determinação, ao lado dos seus amigos: é preciso europeizar Portugal, único meio de o arrancar à sua passividade e ao influxo do passado. Mas, como disse Eduardo Lourenço, «o paradoxo da Geração de 70, que se dera como missão europeizar Portugal, libertá-lo, na medida do possível, do seu arcaísmo, foi o de retratar um país, como ninguém o fizera antes, em função de um modelo de civilização que tinha em Paris, Londres ou Berlim a sua vitrina» (op. cit., p. 46). Mas esse paradoxo é, porventura, a expressão perene do grupo, como referência à abertura de espírito, à modernidade e à recusa de um messianismo secular. E aí os jovens de setenta seguiram Garrett e Herculano. E Eça de Queirós faz em «Os Maias» (1888) o retrato romanesco do «Portugal Contemporâneo». Carlos da Maia e João da Ega simbolizam as contradições do seu tempo, cientes de que faltava modernizar o País e superar a distância da civilização, responsável pelo atraso. Jacinto, Zé Fernandes e Carlos Fradique Mendes simbolizam a divisão entre o progresso e a natureza. E não se diga que os jovens revolucionários de 1870 se acomodaram, como parece acontecer com Gonçalo Mendes Ramires em «A Ilustre Casa». Poderemos dizer, antes, que se manifesta o dilema entre o «transporte» e a «fixação», já evidente na Carta de Bruges do Infante D. Pedro e nos textos dos economistas do século XVII, de que falámos. Como fixar a riqueza? Como criar condições políticas e sociais para o efeito? É sobre o que Oliveira Martins reflete em «Política e Economia Nacional» ou em «Os Filhos de D. João I» – pondo a tónica num projeto nacional que teria de cuidar da justiça distributiva.


Em maio de 1871, iniciaram-se as Conferências do Casino Lisbonense, no Largo da Abegoaria (ao Chiado). Antero de Quental foi o principal animador do evento. O brado deveu-se à intenção de debater ideias novas, capazes de lançar o país numa via de evolução, e progresso. E percebe-se que a partir dessa vontade tenham surgido desconfianças e resistências. Os jovens animadores da iniciativa eram republicanos sociais, iconoclastas e democráticos que queriam romper com o liberalismo formal. “Não pode viver e desenvolver-se um povo, isolado das grandes preocupações intelectuais do seu tempo; o que todos os dias a humanidade vai trabalhando, deve também ser o assunto das nossas constantes meditações”. As Conferências pretenderam, assim, “abrir uma tribuna”, onde tivessem “voz as ideias e os trabalhos que caracterizam este momento do século”, segundo a preocupação com “a transformação social e política dos povos”. Daí os objetivos de “ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada”; de “procurar adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam, na Europa”; de agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência moderna” e de “estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa”. Tratava-se de preocupar a opinião com o estudo das ideias que deveriam “presidir a uma revolução”, preparando e iluminando a consciência pública. Procurava-se uma base para uma “constituição futura”, mas também uma “sólida garantia à ordem”. E o grupo que lançava o repto democrático – Antero de Quental, Augusto Soromenho, Augusto Fuschini, Eça de Queirós, Germano de Meireles, Guilherme de Azevedo, Jaime Batalha Reis, Oliveira Martins, Manuel de Arriaga, Salomão Saragga e Teófilo Braga – pedia o “concurso de todos”, partidos, escolas, pessoas, que, mesmo sem partilhar as opiniões dos subscritores do apelo de 16 de maio de 1871, não recusassem a sua atenção “aos que pretendem ter uma ação – embora mínima – nos destinos do seu país, expondo publica mas serenamente as suas convicções e os resultados dos seus estudos e trabalhos”. À distância do tempo, podemos perceber pelo menos duas coisas: por um lado, estavam nesse grupo os intelectuais que maior influência teriam na sociedade do seu tempo e no século seguinte; por outro, agitavam as ideias fundamentais que marcariam a sociedade, a economia, a política e a cultura daí em diante. E se a proibição de uma das Conferências e a indignação, a começar no patriarca liberal Alexandre Herculano, tornaram ainda mais célebre a iniciativa, projetando-a em termos que não estaria nas previsões dos seus promotores, a verdade é que a palestra de Antero “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares” tornar-se-ia um ensaio obrigatório para compreender a ascensão e a queda da influência de Portugal e Espanha. “Façamos nós (…) diante do espírito de verdade, o ato de contrição pelos nossos pecados históricos, porque só assim nos poderemos emendar e regenerar”. “Que seria dos homens se, acima dos ímpetos da paixão e dos desvarios da inteligência, não existisse essa região serena da concórdia na boa-fé e na tolerância recíproca!” As causas da decadência eram de três ordens – moral, política e económica: as transformações religiosas do Concílio de Trento, o fim das liberdades locais por força do Absolutismo e o efeito funesto das riquezas provenientes das conquistas, por contraponto à liberdade moral, à emergência de uma classe média burguesa e à afirmação da indústria… E contra um quadro de “abatimento e insignificância”, haveria que contrapor o “espírito de independência local” e a “originalidade do génio inventivo”. Eis a atitude de Antero, como representante da geração nova.


A célebre fotografia que se reproduz foi tirada no Palácio de Cristal na Cidade do Porto e reúne cinco amigos da geração de 1870: Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Antero de Quental, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro. A imagem está ligada a um mítico almoço de 1885 e à compra de um leque para oferecer a D. Emília, noiva de Eça, autografado com uma pena de cozinha, entre a pera e o queijo: “quem muito ladra, pouco aprende” (Antero), “escritor que ladra não dorme” (Oliveira Martins); “dentada de crítico, cura-se como pelo do mesmo crítico” (Ramalho), “cão lírico ladra à lua; cão filósofo abocanha o melhor osso” (Eça), “cão de letras, cachorro!” (Junqueiro). E a matilha escreveu um “envoi”: “São cinco cães sentinelas / De bronze e papel almaço; / De bronze para as canelas, / De papel para o regaço”… Esta é uma das últimas expressões felizes do tempo em que Antero pôde ser feliz na costa de Vila do Conde.


Agostinho de Morai
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XVII. Garrett e Herculano – Um Novo Portugal


Almeida Garrett (1799-1854) e Alexandre Herculano (1810-1877) simbolizam o Portugal moderno de oitocentos, nascido das sequelas da ação do artífice do nosso “século das Luzes”, Sebastião José, o marquês de Pombal, das resistências da “Viradeira”, das repercussões da Revolução francesa, chegadas até nós pelas invasões napoleónicas, do “francesismo”, nascido da reação ao poder inglês, agravado pelo facto de D. João VI estar ausente e de o Rio de Janeiro ter-se tornado o polo político mais influente do Reino Unido. Não esqueçamos o importante papel desempenhado por D. Leonor de Almeida, Marquesa de Alorna (Alcipe), e pelo seu salão literário, bem como pela Nova Arcádia, da qual fizeram parte Elmano Sadino (Bocage), Nicolau Tolentino ou Filinto Elísio. Combatendo os excessos do barroco, é o neoclassicismo que se manifesta, mas também a transição para o romantismo. O jovem Herculano, discípulo dos Oratorianos das Necessidades, foi um dos frequentadores do salão de Alcipe. É neste caldo de cultura que germina a Revolução de 1820 e o constitucionalismo português. E se D. João VI regressou a Portugal apressadamente, deixando no Rio a semente da independência, que D. Pedro concretiza nas margens do Ipiranga, o certo é que jamais irá dominar a situação interna, sendo provavelmente envenenado depois de se ter deixado enredar numa complexa teia de um absolutismo em que não acreditava – desde a Vilafrancada até à Abrilada. A história política que se segue é bem conhecida e só terminará no virar da metade do século… O Imperador do Brasil, D. Pedro, outorga a Carta Constitucional portuguesa (1826) e propõe uma solução de compromisso a seu irmão D. Miguel, cabeça da reação tradicionalista. D. Maria da Glória, a filha adolescente de D. Pedro, casar-se-ia com o tio… Mas o ambiente europeu foi mais favorável à aventura radical dita legitimista.


Não houve compromisso e a guerra civil (1828-1834) tornou-se inexorável e os jovens românticos Almeida Garrett e Alexandre Herculano tornaram-se resistentes ativos, ligando o compromisso cívico, o pensamento e a criação literária. A fidelidade às tradições históricas e populares exigia o combate pela liberdade. Garrett procura as raízes nacionais na noite dos tempos. Herculano encontra no romance histórico e na moderna historiografia (assente no rigor crítico e no estudo das fontes coevas) as razões para uma nacionalidade livre, baseada na vontade do povo e não em qualquer ilusão providencialista. Garrett vive a vida, segue a moda, é o jurista brilhante que escreve as leis de Mouzinho da Silveira, o maior orador parlamentar do seu tempo (ao lado de José Estevão), o fundador do moderno teatro português, o poeta e o romancista renovador. Herculano assume a austeridade, torna-se uma figura moral, um exemplo cívico, a sua escrita é irrepreensível, madura, mas não transige com a popularidade. «Almeida Garrett e Herculano ‘refundaram’ Portugal porque, pela primeira vez, e de uma maneira mais radical do que acontecera nas raras mas fortes crises que pontuaram a nossa história de nação independente, o País esteve em sérios riscos de perecer» (Eduardo Lourenço, Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade, Gradiva, 1999, p. 27). Só uma atitude de abertura e cosmopolitismo nos permitiria contrariar o fatalismo. A nação queria-se liberal e constitucional para salvar a independência.


«As Viagens na Minha Terra» retratam um País dividido e desiludido, depois da vitória liberal em Évora Monte (1834). Os ideais modernizadores, só no início da década de 30 contaram com um ambiente europeu favorável, mas depararam internamente com uma forte resistência dos interesses instalados, das invejas, da mediocridade. Em setembro de 1836 ganhou a corrente mais avançada, simbolizada por Passos Manuel. Mas em 1842 venceu a linha oposta, representada por António Bernardo Costa Cabral. E reabriu-se o clima de guerra civil, que só terminou em 1851, sob a inspiração do próprio Alexandre Herculano.


O que se deveria fazer? Enterrar o machado de guerra e construir uma nova ordem constitucional, na qual a velha Carta fosse enxertada com a lógica democrática de 1822 e de 1838. E assim aconteceu. A Regeneração e os melhoramentos materiais poderiam permitir ao País sair do atraso e da mediocridade. Iniciou-se então um longo período de paz civil, baseada na rotação entre as duas principais forças políticas – regeneradores e históricos. Mas, com o tempo, a rotina gerou a descrença. Aliás, a solução, uma vez concretizada, não viria a satisfazer Herculano. Mas com Fontes Pereira de Melo (o «António Maria», de Rafael Bordalo Pinheiro) ao leme houve um tempo de estabilidade e de progresso. É o tempo que Cesário Verde descreve com contornos novos: «Batem os carros de aluguer, ao fundo,/ Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!/ Ocorrem-me em revista exposições, países:/ Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!» («Sentimento dum Ocidental»). É a modernidade e a tentativa do cosmopolitismo. Mas que sociedade está por baixo desta visão moderna? O Portugal profundo, descrito por Camilo Castelo Branco, ele mesmo figura contraditória, cruzamento da tradição e do inconformismo. Silvestre Silva (de “Coração, Cabeça e Estômago”), Calisto Elói de «A Queda de um Anjo» ou os heróis de “Amor de Perdição”, Teresa e Simão, complementam a placidez (não destituída de tensão) de «A Morgadinha dos Canaviais», de Júlio Diniz, com a figura tutelar e atualíssima do Conselheiro Manuel Bernardo, pai de Madalena, sem esquecer o retrato do caciquismo eleitoral de Joãozinho das Perdizes… E se falamos de Júlio Dinis, o romancista português mais influenciado pelo romantismo britânico, temos de citar “Uma Família Inglesa”, o melhor retrato do contrato económico do tratado de Methuen, bem como “Os Fidalgos da Casa Mourisca”, representação de uma sociedade que se esgotava nas raízes tradicionais e que precisava de sangue novo para corresponder aos desafios da modernização na economia e nas mentalidades, bem evidenciada no papel de Berta e de Tomé da Póvoa.


Recorde-se ainda o escrito de Almeida Garrett “Portugal na Balança da Europa – Do que tem sido e do que ora lhe convém ser na nova ordem de coisas do Mundo Civilizado”. Trata-se da reflexão de um homem atento ao seu tempo sobre a evolução europeia, a emergência dos Estados Unidos da América na cena mundial e o lugar de Portugal na ordem mundial. E vemos como um ativista liberal olha a realidade nacional e internacional, procurando antever como os portugueses poderiam responder às novas circunstâncias. A obra foi escrita entre 1826 e 1829 e publicada em 1830. Acompanha a atribulada evolução nacional nesse período – desde a morte de D. João VI até ao início da guerra civil que opôs D. Pedro e D. Miguel. Depois de viver em França, como correspondente da Casa Laffitte, Garrett regressa a Portugal, a seguir à outorga da Carta Constitucional (“moldada pelas mais avisadas e prudentes da Europa”), para se dedicar ao jornalismo. Funda e dirige o jornal “Portugal” e passa três meses no Limoeiro por delito de opinião… D. Miguel regressa a Portugal e Garrett é obrigado a iniciar o seu segundo exílio – em Inglaterra, em França, na Ilha Terceira, onde colabora ativamente com Mouzinho da Silveira, regressando com Herculano como soldado do Batalhão Académico, como um dos bravos do Mindelo, no desembarque da praia do Pampelido.


No dizer de Ramalho Ortigão, encontramos em Garrett “um mensageiro do novo espírito europeu”, que se interroga sobre o que Portugal deveria ser na nova balança da Europa. Havia circunstâncias novas: a emancipação da América, a revolução de França e o engrandecimento da Rússia. Na balança antiga, Portugal era contrapeso necessário ao equilíbrio das três potências do Oeste: França. Inglaterra e Espanha. A mais interessada nesse equilíbrio havia sido a Inglaterra. Por isso, sustentou e garantiu a independência portuguesa.


Mas essa independência não era real. E Garrett parte do século XV, do tempo em que os papas e os imperadores haviam dado cabo da liberdade em Itália; em que, na Alemanha, a república federativa das pequenas potências que a compunham sucumbia perante a Casa de Áustria, antiga, inveterada e constante inimiga de toda a independência e liberdade; em que na Espanha os foros de Aragão e de Castela ou eram afogados em sangue ou caíam em desuso e em que em Portugal diminuía o poder dos nobres e aumentava o do rei e o do clero, espaçando-se a convocação de Cortes.


A descoberta da América veio alterar a balança da Europa. A influência do Mundo Novo tornou-se vantajosa. A agonia dos déspotas despontava, ainda que na Europa as tendências fossem inquietantes – ameaçando perseguir na América a liberdade foragida, através da “remessa periódica de parasitas”. Mas a América reage contra o despotismo europeu. Garrett elogia as virtudes americanas, de uma “confederação geral dos oprimidos contra os opressores”. E encontra o princípio sacrossanto segundo o qual “a liberdade é a única e sólida base de toda a felicidade das nações”. E diz-nos que a pureza do cristianismo é um dos melhores e mais evidentes fatores de consolidação do sistema da liberdade americana, ao lado da descentralização e do equilíbrio de poderes – autêntica “pedra filosofal das repúblicas”. Alexis de Tocqueville vem à nossa memória. E são as Américas e o seu apego concreto à liberdade que induzem a revolução francesa e as suas consequências. Depois houve as invasões. Bonaparte foi o artífice. E “a Europa já escrava ainda duvidava da sua servidão”. Napoleão encarnou a ambiguidade entre os princípios da revolução e uma prática de liberticida. Resistiu a Inglaterra de Pitt? É certo. Mas a causa da “quietação da Inglaterra no meio do bulício e da efervescência geral” deveu-se apenas ao facto de a nação já ser livre… E Garrett não poupa críticas à indiferença e à conciliação da Albion com a política mais retrógrada da Europa… Mas, a liberdade e a civilização triunfaram, e “o apóstata da sua causa foi debelado e punido”.


Garrett elogia a revolução de 1820. Portugal sem rei, sem comércio, sem indústria, sem administração, “descera ao mais vilipendioso estado”. As revoluções peninsulares (1812 e 1820) foram complementares – ambas “moderadas e pacíficas” e ambas conciliadoras com os tiranos, pois cederam para que cedessem. O erro capital de 1820 foi ter a revolução deixado as coisas como achou sem mudar senão os homens. “Como havia o povo de pugnar por um sistema que nem conhecia, nem sentia?”. A revolução foi militarmente construída e militarmente destruída. Assim se pode entender a contra-revolução de 1823 e a Abrilada de 24. A Santa Aliança imperava e a Europa sucumbiu na causa da liberdade, ao contrário da América. Ganharam o despotismo e a oligarquia. O estado do mundo civilizado em 1829 era, assim, perturbador: Luís XVIII reinava em França, onde a causa da humanidade podia ser ganha ou perdida (estava-se em vésperas da revolução de Julho de 1830); nos Países Baixos vivia-se um prodígio de conciliação de duas realidades diferentes e contraditórias (em 1830 nasceria a Bélgica); a Inglaterra estava estacionária enquanto outros andavam; a boa administração e o povo ilustrado da Prússia precisavam de mais liberdade; a Dinamarca era o único reino legitimamente absoluto da Europa; a Suécia, “tranquila e feliz”, era o “país natural das revoluções”; o governo russo (morto czar Alexandre) tinha medo à civilização e o governo austríaco tinha-lhe ódio; a Itália era toda escrava; o futuro da Grécia determinaria o destino de três impérios, o austríaco, o russo e o turco; em Madrid fazia-se o que apenas se desejava em Paris e em Portugal havia ilegitimidade, incerteza e confusão. A América do Norte olhava as misérias do velho mundo do alto do monte. Na América latina, a liberdade tardava porque não se passava facilmente de servo a cidadão e no Brasil havia uma estranha república sob forma de império (com que Garrett pouco se preocupa).


Portugal tem um único fim – ser livre. Daí restar-lhe optar entre uma independência verdadeira, uma independência com liberdade, e uma união com a Espanha. As instituições que conviriam ao País deveriam ser democráticas, baseadas no maior número, temperadas com o elemento aristocrático. Garrett defende a monarquia representativa e o constitucionalismo, em lugar do absolutismo e do radicalismo democrático. Insiste, por isso: na coerência constitucional da velha lei fundamental imemorial do Antigo Regime, que pecava pela forma, faltando-lhe regularidade, nexo e harmonia; na restauração dos antigos princípios da Constituição Portuguesa concretizada em 1822, apesar de haver uma democracia sem elemento aristocrático; e na moderação e equilíbrio da Carta Constitucional de 1826. No entanto, o escritor encontra defeitos e omissões na Carta - que o levarão em 1836 e depois de 1842 a pugnar pela verdadeira Regeneração, que chegará em 1851. Faltava o direito da coroa de dissolver a Câmara de deputados, não havia uma autêntica Câmara hereditária, confundiam-se funções administrativas e judiciais do poder local e minguavam garantias da Constituição: liberdade de imprensa, instrução pública, melhoramentos nas colónias, proteção do comércio e emancipação da indústria. Esse constitucionalismo deveria impedir que a liberdade e a independência fossem sacrificadas por uma oligarquia parasitária… E assim se poderia evitar a união com a Espanha, que Garrett considera um recurso extremo e desesperado…


Agostinho de Morai
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XVI. As invasões francesas e a presença da Corte no Brasil


Nem todos os acontecimentos históricos têm efeitos imediatos significativos, mas podem produzir resultados profundos no longo prazo. A Revolução portuguesa de 1820 é um desses exemplos. Não estamos perante um fenómeno instantâneo, mas diante de um processo gradual em que a sociedade se foi emancipando. Lembremos o que antecedeu no movimento do Porto de 24 de agosto: a ausência da Corte no Rio de Janeiro e a menorização política, económica e social do continente; o domínio de facto dos militares ingleses e o erro tremendo (pelo perigoso excesso de zelo de Beresford) da condenação à morte dos “mártires da Pátria” e da humilhação de Gomes Freire; os ecos da revolução de Cádis de 1812, do levantamento pernambucano de 1817 e da inaceitável recusa de Fernando VII do juramento da Constituição. Como vimos, as guerras peninsulares dividiram profundamente a sociedade portuguesa: havia um sentimento geral de resistência ao invasor napoleónico, Muitos dividiam-se entre a guerrilha contra o invasor, a participação no que restava do exército português ao lado das tropas britânicas ou até as simpatias pelo partido afrancesado, mas o certo é que há uma convergência ibérica que liga a Constituição de Cádis à Revolução do Porto de 1820.


A articulação dos dois sentimentos ibéricos, liberais e independentistas foi tão evidente que o primeiro impulso dos revolucionários portugueses correspondeu à defesa da adoção dos princípios da espanhola Constituição de Cádis em Portugal. As ideias de liberdade completavam a vontade mútua de independência. Foi o texto constitucional de Cádis o primeiro no sentido moderno da Península, apenas antecedido no mundo ocidental pelas Constituições da Córsega de 1755, dos Estados Unidos da América de 1787 e da França de 1791. No entanto, “La Pepa” apenas teve uma primeira vigência fugaz até 1814 e duas restaurações em 1820 e 1823. Mas aí estavam em causa inequivocamente o reconhecimento da soberania popular, a legitimidade dinástica, a separação de poderes, a independência dos juízes e a inviolabilidade dos representantes do povo no exercício de suas funções. Pode e deve dizer-se que nunca mais este reconhecimento deixará de marcar a vida política peninsular. Apesar das resistências mais conservadoras, a verdade é que o Antigo Regime, a legitimidade do absolutismo real e as Cortes Gerais da Nação deixaram de ter razão consensual e não puderam prevalecer sobre as ideias novas da soberania popular. D. João VI e seu filho D. Pedro compreenderam cedo essa nova tendência e a necessidade de salvar a unidade do Brasil. E a política britânica seria levada com o tempo, com a ajuda francesa dos Orleães, a abandonar a lógica dos velhos poderes e a seguir o que mais tarde viria a ser assumido pela orientação reformista liberal do whig Charles Grey (1764-1845), de boa memória, até para o fim do esclavagismo, decisiva na viragem de ventos que permitiria a vitória liberal na guerra civil, consagrada em Évora Monte (1834).


Deve, por isso, ser reconhecida mais do que a importância estrita do Sinédrio como movimento, a inteligência política de Manuel Fernandes Tomás, José Ferreira Borges e José Silva Carvalho. O primeiro singularizou-se pela competência, probidade e sentido patriótico, quer no trato exemplar com o comando britânico quando este era fundamental para a preservação da independência nacional, quer na tomada de consciência sobre a necessidade de não eternizar a dependência inglesa, lançando as bases de uma legitimidade constitucional similar à da Albion depois da “gloriosa revolução” de 1688-89. Garrett afirmou: “Portugal tornou a ver as suas cortes, e a Nação teve quem a representasse: toda a Europa admirou com respeito um congresso ilustrado, e no meio dele o campeão da liberdade, o patriarca da regeneração portuguesa”. Com inteira justiça, o óculo da Sala das Sessões plenárias da Assembleia da República representa Manuel Fernandes Tomás no uso da palavra. Importa, por isso, conhecer o percurso do exemplar magistrado, do estudioso incansável, do conhecedor profundo do género humano, do combatente sem descanso das liberdades e do bem comum. Urge, de facto, lembrar nos documentos que chegaram até nós sobre o magistério cívico do “primeiro dos regeneradores” a análise serena, moderada e objetiva sobre a necessidade de edificar um regime constitucional digno de uma nação civilizada (Cf. Manuel Fernandes Tomás, Escritos Políticos e Discursos Parlamentares - 1820-1822, Introdução e edição de José Luís Cardoso, ICS, 2020).


Sabemos, porém, das dificuldades existentes, numa nação atravessada por contradições que corresponderam à situação política e económica, num contexto incerto saído do Congresso de Viena e da União Sagrada, que favoreceu inicialmente a causa absolutista, e não as ideias liberais. Foram as Constituições de Cádis de 1812 e portuguesa de 1822 de inspiração republicana? Sim, no entanto, D. João VI e depois seu filho D. Pedro procuraram superar esses constrangimentos e encontrar a solução constitucional que a Carta Constitucional de 1826, após a trágica morte do rei, pretendeu preencher, apesar das limitações, que apenas viriam a ser superadas na segunda Regeneração de 1851. Para usar a expressão de Almeida Garrett, cidadão maduro: a Constituição deveria ser a pedra de toque de um regime justo, promover um governo representativo, e segurar a majestade do Povo, a liberdade da Nação, os direitos do Trono, a santidade da religião, e o império das leis. E a Carta Constitucional completada pelo Ato Adicional de 1852 (como Herculano defendeu) tornar-se-ia a mais duradoura das nossas Leis Fundamentais, baseada num consenso cívico e político decisivo.


A vida do constitucionalismo português tem-se feito e continuará a fazer-se, pois, gradualmente. Por isso, Garrett, no início deslumbrado por Rousseau, cartista crítico, aderiria a Montesquieu e a Chateaubriand. E Alexandre Herculano, cartista de alma e coração tornar-se-ia paladino da Constituição de 1838, cuja matriz estava na Lei Fundamental de 1822, limada de algumas angulosidades. E não se esqueça como o então moderadíssimo Herculano foi obrigado em 1831 a partir para o exílio, perseguido pelo mais cego dos radicalismos absolutistas. Se a Constituição da República Portuguesa de 1976 resultou de um compromisso complexo mas essencial, que perdura, a verdade é que ele se inseriu na tradição começada em 24 de agosto de 1820, no caminho fecundo do Estado de Direito, da soberania popular, do primado da lei, da legitimidade democrática e dos direitos fundamentais… A Revolução de 1820 tem, pois, uma importância maior do que à primeira vista possa parecer. Trata-se do acontecimento que põe termo, de facto, em Portugal ao absolutismo monárquico. A nova Constituição, saída da Revolução em 1822, previu, assim, a soberania popular, a legitimidade dinástica, a separação de poderes, a independência dos juízes e a inviolabilidade dos deputados da nação no exercício das suas funções. No entanto, a fragilidade do texto deveu-se à limitação dos poderes reais, pela ausência do monarca no Brasil. É certo que a vigência da nossa primeira Constituição foi muito curta, mas a verdade é que a partir da Vilafrancada e depois do regresso do Antigo Regime e das Cortes Gerais da Nação com D. Miguel desenvolveu-se uma guerra civil de legitimidades, na qual o absolutismo se encontrou logo fragilizado e ferido de morte.


Apesar dos contratempos e das vicissitudes, o certo é que o rei D. João VI, com um fim trágico, vai ter um papel fundamental no futuro constitucional português e na salvaguarda da unidade do Brasil. D. Pedro outorgará a Carta Constitucional prometida em Vila Franca e a história política da Regência de D. Pedro na ilha Terceira, o desembarque dos heróis do Mindelo (entre o quais Garrett e Herculano), o Cerco do Porto e a vitória de Évora Monte em 1834 confirmarão que os acontecimentos do Porto de 24 de agosto de 1820 marcaram decisivamente a história portuguesa a partir de então. Não esqueço a veneração que encontrei no Brasil por exemplo no saudoso Amigo Hélio Jaguaribe pelos heróis da liberdade dos dois lados do Atlântico. De facto, as circunstâncias internacionais e a importância da Santa Aliança, que deram alento à causa miguelista, alteraram-se totalmente no início da década de 1830, quer pela chegada ao poder do governo liberal de Charles Grey em Inglaterra, quer pela monarquia de julho de Luís Filipe de Orleães. E a causa da liberdade venceu. Relembre-se a coerência de Manuel Fernandes Tomás, o “primeiro dos regeneradores”, com um papel fundamental na ligação ao Estado-Maior britânico, sendo, pois, um fator de equilíbrio e moderação, grandemente responsável pela vitória luso-britânica sobre as tropas de Napoleão na guerra de libertação nacional. Por outro lado, no quadro legislativo, insista-se, a Constituição de 1822 viria a ser a base da Constituição de 1838, após a Revolução de Setembro de 1836, sob a referência cívica e pedagógica de Passos Manuel, que levaria, depois do interregno cabralista, à sábia síntese plenamente concretizada na acalmação regeneradora do Ato Adicional de 1852, que permitiria a maior vigência em tempo de um texto constitucional na história portuguesa.


Almeida Garrett, imbuído dos ideais clássicos mais intensos e nobres, simboliza o melhor deste espírito, o que o leva a afirmar, em novembro de 1820, aquando da Martinhada, ao Corpo Académico: “Vivamos livres… ou morramos homens”. O jovem poeta exprime com entusiasmo a força mais pura dos ideais em que a sua geração acredita. Importaria defender uma solução política que favorecesse a liberdade e a justiça. Por isso, o jovem defende mais audácia dos constituintes de 1821 no domínio da Instrução Pública – “tão livre é o povo ilustrado quanto escravo o povo ignorante”. E enfatiza: “o povo cuja maioridade seja iluminada, esse povo será livre, porque a pequena porção de ignorantes não basta para servir os que o não são”. De facto, exigia-se pedagogia cívica. Essa era a orientação persistente do futuro autor de “Da Educação”. Se havia nele um impulso genuinamente radical contra a tirania e a idolatria, havia igualmente uma preocupação, que se manifestará pela vida adiante, no sentido do pragmatismo e do primado da lei, de acordo com os apelos que Catão e Mânlio fazem a Bruto contra o seu radicalismo. A Lei Fundamental deveria ser, pois, audaz, mas compromissória, reconhecendo a soberania do povo e do seu poder constituinte, assegurando o sufrágio geral e a representatividade popular das Cortes. A Constituição deveria ser, assim, a pedra de toque de um regime justo, promovendo um governo representativo, segurando a majestade do Povo, a liberdade da Nação, os direitos do Trono, a santidade da religião, e o império das leis. Eis a importância da Revolução de 1820, como momento fundador do nosso constitucionalismo, hoje vivo na Constituição da República Portuguesa de 1976. Quando lemos os “Escritos Políticos e Discursos Parlamentares (1820-1822)” publicados por José Luís Cardoso (Imprensa de Ciências Sociais, 2020) percebemos como aqui se encontra a matriz perene de uma cultura de cidadania, de liberdade e de salvaguarda dos direitos fundamentais.

Agostinho de Morais

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Alegoria à Constituição de 1822 – Domingos A. de Sequeira


XV. Da "Viradeira" à Revolução liberal


Com a morte de D. José (1777), caiu em desgraça o Marquês de Pombal. Ao subir ao trono D. Maria I vai procurar reparar o que se considerava serem as maiores injustiças cometidas pelo favorito de seu pai. Dá-se início à chamada “Viradeira”, que se vai limitar, porém, apenas a alguns aspetos da política anterior. Há uma relativa reabilitação da família dos Távoras e uma tentativa de responsabilização de Sebastião José, sem consequências significativas. José Seabra da Silva (1732-1813), o autor da “Dedução Cronológica”, que caíra em desgraça e fora desterrado por Pombal para o Brasil e África por razões nunca esclarecidas, assume funções de Secretário de Estado dos Negócios do Reino (1788-1799), sendo depois afastado por discordar da atribuição de plenos poderes ao Príncipe D. João ainda em vida de sua mãe, D. Maria I (1734-1816), a quem fora diagnosticada grave doença do foro psiquiátrico. Entre as decisões que foram adotadas no seu reinado avultam a fundação da Academia das Ciências de Lisboa (1779), da Real Biblioteca Pública (1796) e da Casa Pia de Lisboa (1780). Diogo Inácio de Pina Manique (1733-1805), Intendente Geral da Polícia, foi o impulsionador desta última instituição, para socorro dos pobres e ensino dos órfãos. A perseguição dos afrancesados partidários da Revolução Francesa por Pina Manique foi controversa, levando, aliás, ao seu afastamento em 1803… Pode dizer-se, assim, que a “Viradeira” é um movimento complexo e ambíguo, já que se há medidas que contrariam a orientação iluminista de Pombal, outras dão-lhe continuidade…


O final do século XVIII será marcado na Europa pela Revolução Francesa e pela ofensiva de Napoleão. As guerras peninsulares constituíram um momento especialmente importante até porque o expansionismo napoleónico encontrou aqui uma forte resistência, em virtude da aposta britânica em complementar a vitória marítima de Trafalgar (1805), beneficiando do acesso por mar relativamente fácil, a partir das ilhas britânicas, em contraste com as dificuldades sentidas pelos franceses, que não dominavam o Golfo da Gasconha. Enquanto os britânicos chegavam por mar, vindos do sul de Inglaterra sem perdas, os franceses, ao passarem os Pirenéus, tinham uma marcha muito depauperante. A Península Ibérica teve, assim, dois destinos: o da salvaguarda da independência portuguesa, graças ao movimento determinante da saída da corte para o Rio de Janeiro, com a criação do único império europeu dirigido da América do Sul; enquanto Espanha teve de sofrer a momentânea perda da independência. Em novembro de 1806, aquando da conquista de Berlim, o Imperador Napoleão proclamou o bloqueio continental, que exigia o fecho de todos os portos europeus aos navios de Sua Majestade Britânica. Esta medida visava a paralisia da indústria britânica e uma inevitável crise social. O príncipe regente D. João, em Portugal, foi protelando a aplicação da decisão, de consequências imprevisíveis. Para o Reino Unido, a Dinamarca e Portugal, pelas armadas importantes que possuíam, eram duas peças chave para um eventual sucesso do bloqueio e para a afirmação do domínio napoleónico. Em Friedland (1807), Alexandre I, czar da Rússia, ficou submetido ao domínio de Bonaparte, o que tornava a fachada atlântica de Portugal – onde se não aplicara o bloqueio – ainda mais decisiva para as aspirações da velha Albion. Aquando dos Tratados com a Rússia e a Prússia de Tilsit (1807), o imperador decide secretamente a ocupação da Península Ibérica, da Suécia e da Dinamarca, devendo as casas reinantes ser depostas e substituídas por monarcas da confiança do Imperador. Em consequência, em setembro de 1807 Copenhaga foi bombardeada preventivamente pelos britânicos, que se apoderaram da esquadra do reino. O bombardeamento britânico de Copenhaga teve um efeito europeu de curto prazo pernicioso, uma vez que conduziu à adesão ao bloqueio de alguns estados que se tinham mantido neutrais até então. A Inglaterra chegou a pôr a hipótese de invadir Portugal, se tal fosse necessário, mas prevaleceu a cobertura defensiva da saída da corte portuguesa para o Brasil – nos termos da convenção secreta de 22 de outubro de 1807. O estudo económico deste período ocupou António Alves Caetano em «Os Socorros Pecuniários Britânicos destinados ao Exército Português (1809-1814) – Subsídios para a História da Guerra de Libertação Nacional» (ed. Autor, 2013), ensaio que explica o sucedido. Sabemos como a frota portuguesa era ambicionada por Napoleão. Jean-Andoche Junot foi, por isso, incumbindo de apresar a armada, logo que chegasse a Lisboa. No entanto, os navios mais importantes tinham partido para terras de Vera Cruz, enquanto a outra parte da frota portuguesa ficou a bloquear o estuário, para evitar que as tropas imperiais fossem abastecidas e para impedir a saída de uma frota russa, que acidentalmente se acolhera ao Tejo. A ocupação de Portugal durou até setembro de 1808, tendo as tropas de Arthur Wellesley imposto aos franceses as derrotas de Roliça e Vimeiro, que puseram em xeque a posição de Junot. Vencido, Napoleão não desiste, propondo-se voltar a conquistar Portugal, encarregando dessa difícil missão o Marechal Nicolas Soult, seu favorito e herói de Austerlitz e de Iéna. A defesa de Portugal foi, no entanto, cuidadosamente preparada pelo Estado-maior britânico, permitindo que o exército português, apesar de enfraquecido, adquirisse uma apreciável capacidade de combate. Havia vantagem estratégica inglesa em Portugal pela proximidade marítima e pelo conhecimento das costas, por contraste com as dificuldades francesas. Sir Arthur Wellesley, Lorde Wellington, traz uma frota de 75 navios à foz do Mondego, em agosto de 1808, com víveres e forragens para os cavalos. O percurso da Figueira da Foz até Lisboa é feito junto ao mar, com o apoio da esquadra e assim ocorreu uma claríssima vitória da logística. William Beresford chegou a Portugal em março de 1809 e foi-lhe confiado o comando e a reorganização do exército, com o apoio do secretário do Governo para a Guerra, D. Miguel Pereira Forjaz. Mercê de uma minuciosa investigação nos arquivos do Erário Régio (no Tribunal de Contas) chega-se a conclusões preciosas: sendo o auxílio financeiro britânico às tropas portuguesas essencial. O governo britânico socorreu Portugal com a entrega de dinheiro, géneros alimentícios, armas, calçado e fardamento, o que correspondeu ao valor espantoso de 70 por cento das receitas totais que o Erário Régio foi capaz de captar nesses anos dramáticos. De 12 de abril de 1809 a 30 de setembro de 1814, entraram nos cofres do Erário Régio 29.258 contos de réis (cerca de 8 milhões de libras esterlinas), para manutenção de 30 mil homens (quando inicialmente tinham sido previstos efetivos de cerca de metade), num exército regular, que Portugal antes não tinha tido, tão bem equipado e eficaz. Aliás, aquando da vitória do Buçaco as apreciações do comando inglês foram encomiásticas sobre as qualidades militares dos portugueses. Acrescente-se que o auxílio financeiro da Grã-Bretanha teve o mérito de prevenir a bancarrota portuguesa, sendo que os atrasos nos pagamentos em 1814-15 foram responsáveis pelo não envio de reforços portugueses para Waterloo. O certo é que foi decisiva a determinação de Lorde Wellington para garantir os «socorros pecuniários». E os ganhos estratégicos da vitória foram evidentes: com a ativação do comércio brasileiro, o domínio do Atlântico Sul, a valorização do porto de Lisboa e do sal de Setúbal – e a reorganização do Exército português, graças ao planeamento de William Beresford.


Agostinho de Morai
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XIV. Revisitando a ação dos Bandeirantes no Brasil


Reler “Raposo Tavares e a Formação Territorial do Brasil” (2 volumes) da autoria de Jaime Cortesão (Portugália, 1966) é tomar contacto com uma obra aliciante que segue um percurso que nos permite ver sucessivamente a Geografia e a etnografia da América do Sul, “a reação ao Tratado de Tordesilhas e o mito da ilha-Brasil”, o fenómeno do bandeirismo sob os Filipes, Raposo Tavares e as primeiras bandeiras, as origens sociais do bandeirante, a primeira e a segunda bandeira de Guairá, os bandeirantes e os jesuítas no Tape, a restauração da independência portuguesa, o plano, o desenvolvimento das bandeiras e as respetivas conclusões. Quando acabámos de recordar o papel unificador da língua desempenhado durante o consulado do Marquês de Pombal é oportuno dar um passo atrás para compreendermos como foi possível construir um território tão solidamente identitário como o Brasil. A obra de Jaime Cortesão é de 1958 e surgiu no Rio de Janeiro, numa edição do Ministério da Educação e Cultura do Brasil, sendo escrito para a “Societé d’Études Historiques D. Pedro II, sob patrocínio de Ricardo de Moura Seabra. “Como Vasco da Gama em relação ao Índico, ou Fernão de Magalhães ao Pacífico, Raposo Tavares mediu a sua grandeza por dois dos maiores padrões da Natureza, os Andes e o Amazonas” – disse historiador português. Salientando a luta contra os jesuítas portugueses e espanhóis, o autor conclui: “Melhor do que D. João IV e seus conselheiros, (Raposo Tavares) defendeu juntamente o espírito da grei, fiel à tradição da aventura descobridora; e os interesses duma nação, para quem a expansão do Estado nos Mundos Novos representava um impulso e uma necessidade vitais”.  


De facto, o Brasil e a América do Sul são fruto de movimentos contraditórios e complementares. Os Bandeirantes levaram as fronteiras onde se julgava ser impossível chegar, os índios ora foram perseguidos ora foram protegidos, e os jesuítas representaram o contraponto aos Bandeirantes, empenhados no ensino e na criação das reduções em nome da dignidade humana e de um de criação de pequenas repúblicas autónomas… Iremos confrontar-nos com tais paradoxos e tentar compreender que a cultura brasileira é produto dessas várias influências. Partiremos da cidade de S. Paulo de Piratininga, onde os Padres Manuel da Nóbrega e José da Anchieta fundaram o colégio da Companhia de Jesus para catequese dos índios, no dia da conversão de Paulo de Tarso, em 25 de Janeiro de 1554, num barracão feito de taipa de pilão, entre os rios Anhangabaú e Tamanduatei. Em 1560, iniciou-se o povoamento da futura cidade, tendo o governador Mem de Sá enviado para a vizinhança do colégio a população da vila de Santo André da Borda do Campo. E não se esqueça a figura mítica de João Ramalho, natural de Vouzela (1493-1582), que viveu entre os índios tupiniquins, foi genro do cacique Tibiriçá, e contribuiu para a aproximação entre os índios que liderava e Martim Afonso de Sousa… Fundou uma dinastia de mamelucos ou caboclos que teria no século XVII destaque na epopeia dos bandeirantes.


S. Paulo manteve-se durante dois séculos, como uma vila pobre e isolada, cuja riqueza provinha da lavoura de mera subsistência. Por ser uma das regiões mais pobres da colónia tornou-se centro de irradiação dos chamados Bandeirantes, aventureiros que se dispersaram pelo interior do Brasil em busca de riqueza, de índios, de ouro e de diamantes. Partiam de São Paulo e de São Vicente e dirigiam-se para o interior pelas florestas desconhecidas, seguindo o rio Tieté, um dos principais meios de acesso para o interior do território. As expedições eram designadas como “Entradas” ou “Bandeiras”. As primeiras eram oficiais, organizadas pela administração territorial, enquanto as “Bandeiras” eram financiadas por senhores de engenho, donos de minas e comerciantes, desejosos de encontrar novos recursos e novas riquezas. A descoberta do ouro na região de Minas Gerais nos final do século XVII mudou o curso dos acontecimentos e fez com que as atenções do reino se voltassem para São Paulo, elevada à categoria de cidade (1711). A partir do século XVII viveu-se a febre do ouro e das pedras preciosas. Então, bandeirantes como Fernão Dias Pais, o seu genro Manuel Borba Gato, concentram-se nas buscas de Minas Gerais. Mas outros foram além da linha do Tratado de Tordesilhas já que vigorava o regime da monarquia dual, ou seja, a união pessoal de Portugal e Espanha, e descobriram metais preciosos. Desenvolvem-se Goiás e Mato Grosso e destacam-se: António Pedroso, Alvarenga e Bartolomeu Bueno da Veiga, o Anhanguera. A lista dos bandeirantes foi crescendo. E quando vemos o monumento de S. Paulo, da autoria de Victor Brecheret (na Praça Armando Salles de Oliveira), vêm à memória os nomes de: Jerónimo Leitão, participante na primeira bandeira conhecida; Nicolau Barreto, que seguiu pelo Tieté e Paraná, percorrendo os sertões do Paraná, Paraguai e Bolívia, e regressou com índios capturados; António Raposo Tavares, que atacou missões jesuítas espanholas para capturar índios; Manuel Preto, Belchior Dias Coelho, Domingos Jorge Velho, que foi até ao Nordeste; e Francisco Bueno, que foi até ao Uruguai. 


Pode dizer-se que os bandeirantes foram responsáveis pela expansão do território brasileiro, desbravando os sertões para além do meridiano de Tordesilhas e criando o Brasil de hoje. S. Paulo tornou-se, assim, uma grande metrópole, depois dos ciclos do açúcar e do café, de se ter tornado Cidade Imperial, da criação da Universidade, da industrialização e de ter sido a grande matriz do Brasil Moderno, onde teve lugar a mítica Semana de Arte Moderna de 1922 e onde está o MASP. As Bandeiras juntam-se à reduções jesuíticas e o povoamento do Rio Grande do Sul envolve a província de Tape como sete povos, a do Uruguai com dez reduções. A província do Paraná terá dez reduções entre os rios Paraná e Uruguai, e desenvolver-se-á uma tensão entre jesuítas e bandeirantes, da qual resultará uma síntese muito rica, que permitirá a unidade brasileira. E se com o tratado de Madrid de 1750 se operou a troca entre a Colónia de Sacramento e o Rio Grande do Sul, a verdade é que há uma cultura latino-ibero-americana que ainda hoje está viva e levou Jorge Luís Borges a dizer “A mí se me hace cuento que empezó Buenos Aires: La juzgo tan eterna como el água y como el aire”. Foi uma história marcante com elementos contraditórios, mas todos eles relevantes. Houve atrocidades, é certo; houve injustiças e destruições maciças, mas também houve vontade, determinação e anseios espirituais genuínos e a história do Brasil e da sua unidade geográfica, política e histórica deve-se a essa interessante fecundíssima dialética, que permitiu ao Brasil ser hoje o que é!

Agostinho de Morais

 

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XIII. Sebastião José de Carvalho e Melo e o Século das Luzes


Aproximando-se a chegada ao trono de D. José, D. Luís da Cunha, o experimentado diplomata, apresentou sugestões para um novo governo, indicando alguém que tinha experiência diplomática em Londres e Viena, na maturidade dos 50 anos, o que na altura era já uma idade avançada. Referia-se a Sebastião José de Carvalho e Melo, para a Guerra e Negócios Estrangeiros. Nestes termos, o “primeiro” Sebastião José assumiu uma missão muito concreta: arrumar as finanças do reino e reorganizar o Estado. Não há, assim, de início, um plano de ação que vise mais do que pôr ordem num Estado desorganizado e incapaz de responder aos novos problemas económicos. Porém, as dificuldades sentidas no Brasil por parte de Xavier de Mendonça Furtado, irmão do futuro marquês, e a resistência que encontra por parte dos jesuítas vão determinar uma viragem política centrada na necessidade de limitar o poder da Companhia de Jesus, no Brasil, que envolvia o risco da fragmentação do território. O “segundo” Pombal nasce a 1 de novembro de 1755. Inicia-se então o tempo do “terramoto dos homens” (1755-1759). Desde a destruição de Lisboa ao atentado de 1758, passando pela resistência dos jesuítas, pela tentativa de incriminação de Pombal junto de D. José e pelos motins do Porto, temos a constelação de acontecimentos que vai gerar um novo tipo de ação. Pombal tentou “preencher o sonolento vazio europeu em que Portugal sobrevivia desde D. João III”. Mas “não conseguiu” o que almejava, “não porque as medidas estivessem erradas, mas porque a violência por que as aplicou criou tanto um deserto em redor do Estado, de que tudo dependia, quanto um campo concentracionário de quase dois mil presos e exilados”. Os jesuítas foram expulsos e depois extintos por decisão papal (1773). E Pombal impôs a sua orientação, centrada nos poderes do rei, na limitação da nobreza e do clero e na definição de objetivos correspondentes a uma leitura parcial do interesse comum. Daí que o governante extremasse “dramaturgicamente uma situação política e cultural”: perante o vazio, “restabelecer o Estado”, sobre as ruínas do antigo Estado arcaico e incapaz. E, a partir de 1759, passou a haver plano, que antes não existia – o Erário Régio, o Colégio dos Nobres e a Universidade, a Intendência-Geral de Lisboa, a lei da Boa Razão, o fim da distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos, a subordinação da Igreja a uma conceção regalista. Urgia criar um corpo moderno de funcionários educados segundo as ideias de um iluminismo pombalino, dispostos a reformar o Estado e a Igreja.


Lisboa, cidade símbolo do novo tempo.
 


Na altura do terramoto, Jácome Ratton, descrevia a cidade de Lisboa como um “recinto fechado que abrangia o bairro da Alfama, bairro do Castelo, Mouraria, rua nova, Rossio, bairro alto, Mocambo, Andaluz, Anjos e Remolares”, contando no resto, que depois conheceu princípio de urbanização, Santa Clara e Sant’Ana, o Salitre, Cotovia de baixo e de cima, Boa Morte e Alcântara, “apenas algumas casas aqui e acolá, à borla de caminhos que atravessavam por terras cultivadas”». Duas obras resistiram da cidade antiga: um bairro contruído a partir do século XVI, o Bairro Alto, que beneficiou da vizinhança de S. Roque e da casa professa dos jesuítas e o Aqueduto da Águas Livres, que em França se considerava ser «a mais magnífica e a mais sumptuosa empresa do género». A catástrofe em quase nada atingiu estes dois elementos, mas, ao invés, o luxuoso Teatro de Ópera, a Ópera do Tejo, inaugurado sete meses antes do terramoto, foi arrasado. Dois terços das ruas da cidade ficaram impraticáveis, das quarenta igrejas paroquiais, trinta e cinco desmoronaram-se, apenas onze conventos ficaram habitáveis. O Núncio Apostólico calculava que haveria quarenta mil mortos. Carvalho e Melo preferiu falar de 6 a 8 mil, mas o número correto teria sido de 12 a 15 mil… O rei D. José foi poupado, uma vez que estava em Belém, jurando a partir de então não mais desejar dormir em casa de pedra e cal. Daí ter sido construída no Alto da Ajuda, a «Real Barraca», em madeira, que viria, mais tarde, a ser consumida pelas chamas, por inadvertência de uma cozinheira. Perante um panorama desolador, haveria que «enterrar os mortos e tratar dos vivos», na fórmula tornada célebre da boca de Sebastião José, homem forte do novo tempo, mas que poderia ter sido proferida pelo duque de Lafões, Regedor das Justiças, que formava com o presidente do Senado da Cidade, marquês de Alegrete, e com o marquês de Marialva, Governador das Armas, a estrutura da governança de urgência. Para evitar desmandos e pilhagens, montam-se forcas em lugares estratégicos, como dissuasores. O futuro marquês de Pombal torna-se então ministro do Reino e rodeia-se do Estado-Maior do Exército para tomar as medidas urgentes e lançar de imediato a reconstrução da cidade. Houve quem dissesse que emergiu um segundo terramoto.


A Engenharia militar pontua, com decisiva influência. O General Manuel da Maia, engenheiro-mor, com os seus quase oitenta anos, e uma longa folha de bons serviços sob o reinado de três monarcas, apresenta as alternativas para a reconstrução: «as cinco hipóteses (…) podem classificar-se em duas ordens: na primeira vemos reedificar-se a cidade tal como era dantes, melhorada apenas pelo facto de serem novos os edifícios, mas vemos também (diz José-Augusto França) alargarem-se as ruas para melhor serventia e maior formosura do conjunto, e vemos ainda, de acordo com uma prevenção constante de Manuel da Maia, reduzir os edifícios reconstruídos à altura de dois pisos sobre as lojas. Na segunda ordem de programas encontramos duas ideias radicais: arrasar o que restava da cidade velha, na sua parte central, ou baixa, mais danificada pelo terramoto, e planifica-la com inteira e conveniente liberdade; ou abandonar a Lisboa antiga ao seu destino, deixando os proprietários dos prédios derruídos agir à sua vontade, e edificar outra, completamente nova, para os lados de Belém, aliás menos flagelados pela catástrofe – ideia que, de resto, andava no ar e teve eco numa correspondência da altura para o “Journal Étranger” de Paris». Este trabalho de reflexão é muito rico. Maia inclina-se para uma profunda renovação. Além de Belém, fala-se ainda na hipótese de S. João dos Bem-Casados (hoje Campo de Ourique / Amoreiras) – ou até de Buenos Aires (atual Lapa). Entretanto o jovem capitão Eugénio dos Santos, arquiteto do Senado da cidade, desenha arruamentos e edifícios, e para cada uma das ruas «a mesma simetria em portas, janelas e alturas». Os exemplos de Londres e Turim estão bem presentes, em nome do arejamento e do espaço para circulação. E aparece ainda o tenente-coronel Carlos Mardel (húngaro, chegado a Portugal em 1733, protegido da rainha Habsburgo), ao lado de Gualter da Fonseca e Elios Poppe. Prevalece o traçado ortogonal regular da autoria de Eugénio dos Santos (que morreria prematuramente em 1760), dois polos – o do Rossio e o da futura Praça do Comércio (antigo Terreiro do Paço). Havia que abrir espaços de grande dignidade, que definissem o espírito da cidade. E a zona de desenvolvimento da cidade a norte coincide com o leito da Ribeira de Valverde (a atual Avenida da Liberdade) e o Regueirão dos Anjos (atual avenida Almirante Reis). Por outro lado, o Passeio Público (hoje Restauradores) «oferecia timidamente um contraponto ao sistema racional do pombalismo, como se apresentasse, no quadro do seu Iluminismo, a face da natureza que nele paradoxalmente se integrava, em possível anúncio romântico». Os prédios de rendimento obedecem uma disciplina racional e regular, segundo uma hierarquia no tocante aos requisitos de qualidade, sendo os prédios das três ruas principais ou nobres (que ligam a Praça do Comércio ao Rossio – rua Áurea, rua Augusta e rua da Prata) de maior exigência. A disciplina é, no entanto, rigorosa quanto ao cumprimento de uma certa uniformidade racional. Há castigos severos para quem não cumpra, que podem ir até à expropriação. Há ainda as «casas nobres» que preocupam Manuel da Maia, sendo exemplos, o palácio Castelo Melhor, à entrada do Passeio Público, o palácio do conde de Valadares no Carmo (que viria a ser o Liceu do Carmo), os de Sebastião José, na rua Formosa (hoje Rua de «O Século») e das Janelas Verdes (este vindo de um Távora, condenado em virtude do atentado a D. José), além dos palácios Sobral no Calhariz, Caldas na rua da Madalena e Quintela na rua do Alecrim. Quanto ao ritmo da reconstrução, os testemunhos variam – há quem diga que quando Pombal sai do poder cerca de metade está concretizada, outros falam de um terço…


É a burguesia enriquecida pelos privilégios e monopólios (designadamente as Companhias brasileiras) que mais facilmente vai contribuir para a reconstrução. Note-se que as soluções encontradas são variadas, avultando a Companhia Reedificadora, formada por dois mestres-de-obras que tomam à sua conta a urbanização da encosta que vai da Cotovia a S. Bento. Já a modéstia das novas igrejas paroquiais deve-se à míngua de esmolas, heranças e legados. Alexandre Herculano descendia dos construtores da cidade – nascendo no pátio do Gil, na rua de S. Bento, cujo nome vem do tio-avô materno do historiador, António Rodrigues Gil, mestre carpinteiro. Quanto aos processos técnicos, refira-se o sistema de «gaiola» para prevenção contra os sismos e para garantir flexibilidade na ocorrência de terramotos. Na zona alagadiça da Baixa (no Esteiro do Tejo), adotou-se o sistema de estacaria de pinho verde, seguindo a experiência da cidade de Amesterdão, de modo a estabilizar a organização urbana. O pinho verde não apodrece dentro de água, mantendo-se ao longo dos séculos. Numa abordagem pragmática, sem grandes laivos de genialidade criadora, a reconstrução da cidade deve-se a uma demonstração de eficácia – em ligação com as medidas nos domínios da economia (região demarcada do vinho fino da Real Companhia Velha das Vinhas do Alto Douro, pescarias no Algarve, construção de Vila Real de Santo António), do direito (lei da Boa Razão de 18 de agosto de 1769), da educação (Colégio dos Nobres e reforma da Universidade de Coimbra), das manufaturas (Fábricas das Sedas e dos Pentes em Lisboa, nas Amoreiras; Vidro da Marinha Grande, têxteis na Covilhã), das Companhias (como a de Grão-Pará e Maranhão)… Em suma, «o processo de Reconstrução é, no fim de contas, um processo autónomo, que podia correr, melhor ou pior, com maior urgência ou lentidão, independentemente das crises que se sucediam nos outros setores da ação do futuro marquês de Pombal. A prova está em que, no momento desejado, o ministro pôde pôr (ou impor) um ponto final no discurso, fazendo erigir, numa Praça do Comércio menos de meio terminada, a estátua que glorificava o êxito da empresa». E diz a tradição que as víboras que o cavalo de D. José pisa são suficientes para que os pombos nunca aí poisem. Quando Sebastião José caiu em desgraça, o seu medalhão na frente do monumento foi retirado. Mas voltaria a ser reposto, onde está ainda hoje. Dizia, aliás, o povo de Lisboa poucos anos depois – “Mal por mal, antes Pombal”.

Agostinho de Morais

 

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XII. O Ouro do Brasil e as sequelas de Methuen


Os Tratados de Methuen estabeleceram o acordo de Portugal com a Grande Aliança, formada pela Grã-Bretanha, as Províncias Unidas e o Sacro-Império Romano-Germânico, para enfrentar a Espanha e a França na guerra de sucessão espanhola. À frente das negociações deste tratado estiveram o embaixador inglês John Methuen e D. Manuel Teles da Silva, marquês de Alegrete, do lado português. Portugal não desenvolveria as suas infraestruturas industriais, em especial têxteis (e portanto perdeu a corrida industrial). Contudo, Portugal manteve uma posição política forte num cenário que se revelou fundamental na preservação da integridade territorial do Brasil, num momento em que a exploração do ouro e diamantes ganhou importância. O segundo tratado, assinado em 27 de dezembro de 1703 (popularmente conhecido como "Tratado do Vinho do Porto", estudado por David Ricardo) incentivou as relações comerciais entre a Inglaterra e Portugal. Os seus termos permitiam que o tecido de lã inglês fosse admitido em Portugal com isenção de direitos; em troca, os vinhos portugueses importados para a Inglaterra estariam sujeitos a um terço a menos do que os vinhos importados da França. Isso foi particularmente importante para ajudar o desenvolvimento da indústria portuária. Como a Inglaterra estava em guerra com a França, tornou-se cada vez mais difícil adquirir vinho e, assim, o Vinho do Porto tornou-se uma bebida muito apreciada.


Pouco tempo antes, dera-se a primeira grande descoberta de ouro no Brasil nos sertões de Taubaté, em 1697, quando o então governador do Rio de Janeiro Castro Caldas anunciou a descoberta pelos paulistas de ouro da melhor qualidade. Iniciou-se então a primeira “corrida ao ouro” da história moderna. O movimento foi tal que em 1720 D. João V limitou a saída de pessoas do noroeste de Portugal, prevendo autorizações especiais e passaportes para outros casos. Chegaram então ao Brasil cerca de dois milhões de imigrantes, de várias origens. A confluência destes dois fatores, incentivo à produção do vinho e descoberta do ouro, determinou uma clara redução da política da fixação, em benefício do transporte, o que atrasou aas manufaturas e a industrialização do país. A descoberta do ouro do Brasil interrompeu, assim, a concretização do desígnio manufatureiro – o qual só viria a ser concretizado algo fugazmente pela política de Sebastião José de Carvalho e Melo, o futuro Conde de Oeiras e Marquês de Pombal…


A Europa das Luzes: Portugal e os Estados modernos


Portugal, depois da Restauração da Independência de 1640, saiu enfraquecido, procurando responder às novas circunstâncias em que se encontrava. E assim jogou com a liberdade dos mares e com a relação com a Inglaterra (em plena crise interna britânica de índole constitucional, religiosa e política). Daí as tentativas para criar núcleos economicamente ativos nas zonas de influência, em especial no Brasil, sendo desse tempo a proposta do Padre António Vieira de recorrer aos cristãos-novos e judeus, de modo a refazer o império marítimo, contra a lógica do isolamento a que a Espanha nos quis condenar. E o Prof. Jorge Borges de Macedo refere duas tendências em confronto na política externa portuguesa – uma atlântica, inclinada ao entendimento com a Inglaterra, e outra continental, orientada para uma ligação à França. E se o casamento de D. Catarina de Bragança com Carlos II de Inglaterra, procurou pôr fim ao isolamento português, segundo uma opção atlântica, que parecia ser a mais consistente, não podemos esquecer a ambiguidade do casamento de D. Afonso VI com a princesa francesa D. Maria Francisca Isabel de Sabóia, que viria a originar uma série de acontecimentos que culminariam na deposição do rei e na aclamação de seu irmão, D. Pedro II. “Para Portugal, - refere ainda Borges de Macedo - as boas relações com as potências marítimas apresentavam-se como indispensáveis, uma vez que era por mar que se fazia o comércio externo mais significativo; por aí saíam o vinho, o sal, as frutas, chegavam e partiam as produções coloniais, como sejam o açúcar, o tabaco e os couros”.


Aliás, a participação portuguesa na guerra da sucessão espanhola (1701-1714) é bem ilustrativa dos cuidados estratégicos e da exigência tática. Haveria que acautelar o que restava da influência marítima, sobretudo na América do Sul e no que restava da influência na Índia. E se houve mudança de campo e de partido por parte de D. Pedro II, primeiro ao lado de Luís XIV e da causa dos Bourbons, e, depois de uma aparente hesitação neutralista, na “Grande Aliança”, de Inglaterra, Holanda, Áustria e alguns Estados alemães, a verdade é que a preocupação fundamental estava ligada à necessidade de preservar a relevância de Portugal como potência atlântica. O primeiro Tratado de Methuen (1703) celebrado com a Inglaterra inseriu-se nesta orientação e teve uma influência grande na evolução económica do século XVIII. No entanto, os lucros da comercialização dos produtos canalizados pela economia portuguesa pertenceriam aos grandes comerciantes franceses, ingleses e holandeses. O tratado de Utrecht (1712), no fim da guerra de sucessão, permitiu a Portugal reforçar a sua posição no Brasil – num momento em que se anunciava a riqueza e magnanimidade do ouro…


Enquanto a Grã-Bretanha se tornava paulatinamente a potência marítima hegemónica, Portugal vivia uma fase próspera, com meios de pagamento abundantes, graças ao ouro, e ao resultado das vendas do açúcar brasileiro, dos vinhos e das frutas, e gozava de prestígio internacional, designadamente junto da Santa Sé (com a atribuição do título de “Fidelíssimo” ao monarca português) reforçado pela participação na vitória sobre os turcos em Matapão (1717).


A influência dos Estrangeirados


No século XVII, um conjunto de autores portugueses preocuparam-se com a necessidade de recuperar a posição de Portugal no contexto internacional, não só evitando a subalternização relativamente a Espanha, mas também garantindo a defesa dos domínios ultramarinos e das frotas do Brasil. Estiveram neste caso diversas figuras relevantes em diversos domínios da vida nacional, como: Manuel Severim de Faria, Duarte Ribeiro de Macedo, o Padre António Vieira, o 4º conde da Ericeira, Alexandre de Gusmão, José da Cunha Brochado, o Cardeal da Mota (D. João da Mota e Silva) ou António Ribeiro Sanches. É nestas águas que encontramos também D. Luís da Cunha, autor do célebre Testamento Político. Quando encontramos referências aos estrangeirados, estamos, assim, perante uma corrente política que procurava assegurar uma ligação à chamada “Europa das Luzes”, que procurava seguir as orientações marcantes nos países com maior desenvolvimento, quer pelo culto da racionalidade, quer pelo conhecimento científico. Está nesse caso o Dr. António Ribeiro Sanches, formado nas Universidades de Coimbra e Salamanca, de origem judaica, que D. Luís da Cunha conheceu bem, designadamente num contacto que fez com a Universidade de Leiden (Países Baixos), em diligência feita no ano de 1730 para a aquisição de livros de Medicina e de Filosofia Moderna, destinados à Universidade de Coimbra.


No relatório que produziu, Sanches salientava, porém, que os lentes de Coimbra iriam ter certamente dificuldades em aceitar as novas ideias por exemplo no tocante à Física de Newton ou a moderna medicina experimental, por estarem demasiado dependentes do ensino escolástico. Ribeiro Sanches partiria pouco depois para S. Petersburgo (donde regressaria em 1747) a solicitação da czarina Catarina II, onde exerceu influência significativa. Continuou, porém, a reflexão sobre como modernizar Portugal, o que, segundo o conselho dado a D. Luís da Cunha obrigaria a encontrar alguém com grande influência no Rei que pudesse contrariar as práticas censórias e inquisitoriais e mudar profundamente as mentalidades e os métodos vigentes. Sanches escreveu as “Cartas sobre a Educação da Mocidade” (1759), onde preconizava as urgentes medidas necessárias a ultrapassar os grandes atrasos do país.


Importa referir o exemplo de Luís António Verney, autor do “Verdadeiro Método de Estudar” (1746), leitor dos pensadores britânicos, como John Locke, no qual é feita uma crítica ao ensino rígido e escolástico, devendo proceder-se a uma nova orientação, baseada na inovação e na experiência, devendo a instrução elementar ser ministrada a ambos os sexos e a todas as classes e cabendo ao Erário fomentar e custear as despesas da educação. Refira-se ainda o caso de Francisco Xavier de Oliveira (Cavaleiro de Oliveira), o autor da mais severa crítica aos métodos inquisitoriais, que considerava serem a razão do atraso português. Menos preocupado em adotar uma perspetiva pedagógica e reformista, assume essencialmente uma perspetiva de denúncia. Por isso, será condenado pelo Santo Ofício, tendo-se convertido ao protestantismo, escreveu vasta obra crítica entre a qual as Reflexões de Félix Vieira Corvina dos Arcos…  Já Filinto Elísio foi um admirador dos franceses, com o cuidado de evitar excessos galicistas. Clérigo de formação, foi mestre de latim de D. Leonor de Almeida, a marquesa de Alorna (Alcipe). No exílio, com o seu amigo Félix Avelar Brotero, aplaudirá a Revolução Francesa, regressando no ano seguinte a Portugal. O próprio Padre José Agostinho de Macedo, o famigerado Padre Lagosta, foi influenciado pelos ventos estrangeirados, mas tornou-se conhecido pelas diatribes antiliberais e pela linguagem radical. Pertenceu com Bocage à Nova Arcádia, com Cruz e Silva e Reis Quita, onde teve por nome Elmiro Tagídeo, mas deixou uma sombra pouco acolhedora. E D. Luís da Cunha? Há quem ponha dúvidas. Mas não há que as ter, pois foi indiscutivelmente o verdadeiro símbolo de inteligência fulgurante, num tempo de radical mudança.

Agostinho de Morais

 

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