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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 

XXXVII - REALISMO (II)

O IMORAL E O CRITICAR PARA CORRIGIR EM MADAME BOVARY

 

O romance de Gustave Flaubert, Madame Bovary (1857), é tido como pioneiro da estética realista na literatura.

 

À semelhança dos romances realistas, propunha-se fazer um inquérito à sociedade francesa, como Eça de Queirós, mais tarde, influenciado pelas ideias importadas de França, se propôs fazê-lo à sociedade portuguesa.

 

Pelo seu pioneirismo e escândalo, na época, o processo movido contra Madame Bovary, é exemplar pelo confronto entre a acusação, a defesa e a sentença final.

 

Autor, editor e impressor foram acusados de delitos de ofensa à moral pública, religiosa e aos bons costumes, em especial Flaubert, o réu principal, qualificando de imoral tal romance o advogado/delegado imperial do Ministério Público, rebatendo a objeção geral de tal obra, no fundo, ser moral, dado que o adultério era punido, alegando: 

 

“Para essa objeção, duas respostas: suponhamos que, por hipótese, a obra é moral - uma conclusão moral do romance não basta para amnistiar os pormenores lascivos que nele se encontram. E depois afirmo: a obra, no fundo, não é moral”.

 

Acrescentando: 
“Digo, meus senhores, que pormenores lascivos não se podem cobrir com uma conclusão moral, porque a ser assim podíamos contar todas as orgias imaginárias, descrever todas as torpezas de uma mulher pública, desde que o fizéssemos depois de morrer numa enxerga de hospital. Seria lícito mostrar todas as suas posturas lascivas! Isto seria ir contra todas as regras de bom senso”

 

Após classificar a obra como imoral, do ponto de vista filosófico, reconhecer que a protagonista morre envenenada, que sofreu muito, alega que “morre no dia e hora que escolheu, e morre, não porque é adúltera mas porque quis morrer”, além de dominar o livro em tudo, havendo que recorrer à moral cristã para explicar e reforçar a imoralidade da obra, dado ser em nome desta que “o adultério é estigmatizado, condenado, não por ser uma imprudência que expõe a desilusões e pesares, mas porque é um crime contra a família”.   

 

Concluindo: embora compreensível que a literatura realista, como arte, pinte o feio, o mau, o ódio, a vingança, o amor, dado que o mundo vive disso, é inadmissível que estigmatize a moral, uma vez que a arte sem regra deixa de ser arte, pelo que impor à arte a regra única da cedência pública não é subordina-la, é honrá-la, só se progredindo com uma norma.

 

O advogado de defesa, nas suas alegações, questiona:

“Este livro, posto nas mãos de uma senhora jovem, poderia ter o efeito de arrastá-la para os prazeres fáceis, para o adultério, ou pelo contrário, de mostrar-lhe o perigo dos primeiros passos e de fazê-la estremecer de horror?”   

 

E acrescenta:

“O adultério não passa de um rosário de tormentos, de pesares, de remorsos; e depois chega a uma expiação final, pavorosa. É excessiva. Se o Sr. Flaubert peca, é por excesso. A expiação não se faz esperar; e é nisso que o livro é eminentemente moral e útil, é que ele não promete à jovem esposa alguns desses belos anos no fim dos quais ela pode dizer: depois disto, não importa morrer”. 

 

Mais se alegou que o autor mostra uma mulher que cai no vício em virtude de um  casamento inadequado e de uma educação desadequada para a condição em que nasceu, que lida a obra a amigos altamente colocados nas letras, que estudaram e examinaram o seu valor literário, nenhum deles se sentiu ofendido, dada a evidência do seu fim moral,  representando dois ou três anos de estudos incessantes para Flaubert, razão pela qual a defesa, por fim, pergunta: 

 

“A leitura de um tal livro provoca o amor pelo vício ou provoca o horror pelo vício? A expiação tão terrível da falta não impede, não incita à virtude?”  

 

Concluindo que ao fazer comparecer o autor em polícia correcional, “já foi cruelmente punido.”  

 

A sentença,  após vários considerandos, decide:  

“Considerando que Gustave Flaubert protesta o seu respeito pelos bons costumes e por tudo o que se relaciona com a moral religiosa; que não parece que o livro tenha sido, como certas obras, escrito com a finalidade única de dar satisfação às paixões sensuais, ao espírito de licença e de deboche, ou de ridicularizar as coisas que devem ser rodeadas pelo respeito de todos;

 

Que ele só errou em perder às vezes de vista as regras que todo o escritor que se respeita não deve nunca violar, e em esquecer que a literatura, como arte, para atingir o bem que lhe compete realizar, não deve ser apenas casta e pura na sua forma e na sua expressão;

 

Nessas circunstâncias, considerando que não ficou suficientemente provado que Pichat, Gustave Flaubert e Pillet se tenham tornado culpados dos delitos que lhe são imputados;  

 

O tribunal absolve-os da acusação pronunciada contra eles e manda-os em liberdade sem custas.”   

 

Para uns, o culto do imoral, do escândalo, o querer chocar, relatando cruelmente o mal, o querer vender para ter dinheiro, com o chamariz do deboche. 

 

Para outros, o fazer um inquérito à sociedade com um fim: criticar para corrigir, emendando-a, tentando a regeneração dos costumes pela arte.

 

Apesar do contexto da época e do vanguardismo do movimento realista, vingou a arte, fazendo e tentando fazer um profundo e subtil inquérito realista a toda a vida em sociedade.  

 

10.04.2017

Joaquim Miguel De Morgado Patrício 

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 

XXXVI - REALISMO (I)

 

O realismo é uma tendência artística que procura reproduzir, de forma real e direta, as manifestações da natureza, buscando a realidade autêntica, tal e qual é e se apresenta, despido de artifícios e correções, em contraposição a tendências idealistas e estilizadoras.   

 

Pela sua influência, merece menção o realismo francês do século XIX, num tempo de convulsões político-sociais, marcado pelas teorias de Proudhon, positivismo de Comte, o evolucionismo de Darwin e Lamarck, o idealismo de Hegel, em conjugação com o irreligiosismo de Loisy e Renan, o inconformismo com a tradição, a supremacia da verdade física, um materialismo otimista e um racionalismo criticista apologista da derrocada do trono e do altar.

 

Sendo uma reação contra o romantismo, defende reger-se pela objetividade, realidade e verdade, em que a natureza deve ser reproduzida com neutralidade e veracidade, num retrato fiel, não ocultando o feio, o mal, o vício, todos os aspetos baixos da vida, não lançando mão de estereótipos arredados do mundo real, em oposição ao subjetivismo pensante do idealismo, imaginação e sentimentalismo romântico.

 

Contra a apoteose do sentimento do romantismo, pretende transmitir a natureza em quadros exatos, flagrantes, reais, expurgando a retórica tida por convencional, enfática e piegas, retratando e pintando a realidade negra, maléfica e satanista da sociedade tal qual é, limitando-se a colocar o leitor e o observador diante das paisagens, dos protagonistas e suas condutas.

 

Entre os seus pioneiros, a nível da literatura, temos Balzac, Gustave Flaubert e Zola, cujos romances se liam avidamente, influenciando decisivamente, entre nós, Eça de Queirós, nas suas obras O Crime do Padre Amaro, O Primo Basílio, Os Maias e a Relíquia. Não esquecendo Baudelaire em Les Fleurs du Mal.

 

Estas novas ideias entraram em Portugal pelo caminho de ferro, que encurtou a distância entre Coimbra e Paris, deixando o comboio inúmeros caixotes de livros na Lusa Atenas, onde chegavam mais rápido que a Lisboa, opondo a mocidade estudantil e universitária ao grupo da capital, onde era mentor Castilho e os seus discípulos, cujo conflito ficou conhecido pelo nome de “Questão Coimbrã”, a que se seguiriam, mais tarde, em Lisboa, “As Conferências do Casino”. A Terceira Conferência, subordinada ao tema “O Realismo como nova expressão da arte”, foi feita por Eça de Queirós, defendendo que a arte deve ter por fim corrigir e ensinar (fim teleológico), censurando a arte pela arte, e que só o realismo criaria uma arte capaz de revolucionar a sociedade.

 

Após estes impulsos, o movimento realista começou a concretizar-se com “As Farpas”, uma crónica mensal das letras, costumes e política, num duunvirato Eça-Ramalho Ortigão, em estilo humorístico e trocista. 

 

Seria Eça a impor-se, entre nós, o que ainda hoje sucede, com os seus propósitos de crítica social, ironia, caricatura, sarcasmos, tom zombeteiro e cosmopolitismo, em que O Primo Basílio e Os Maias são tidos como os seus romances realistas mais conseguidos.   

 

A atenção aos temas de carater social, ao mundo laboral e à realidade humana marcaram artistas como Courbet, dedicado à pintura de género e figurativa, de observação exata e um expressivo forte realismo através da densidade das figuras, causando escândalos com Os Britadores de Pedra (1850), o Enterro em Ornans (1850) e A Origem do Mundo (1866). Amigo de Proudhon, lutou por ideias revolucionárias, aderiu à Comuna de Paris (1871), o que lhe valeu a prisão.

 

Também na pintura realista de Millet perpassa o desejo de captar os traços essenciais de cenas ou personagens, sem perdas nos pormenores, analisando o mundo camponês em  O Joeireiro (1848), As Respigadoras (1857) e O Angelus (1859), onde realça figuras monumentais com grande rigor plástico.

 

Assiste-se também a uma espécie de fuga do mundo urbano e ao compromisso político que lhe estava associado, por parte de um grupo de artistas que se reúnem em Barbizon, na floresta de Fontainebleau, em França, cujo representante mais ilustre dessa escola  foi Théodore Rousseau, o primeiro a deixar a cidade e a fixar-se no campo, seguido por J. F. Millet, Troyon, Daubigny, Diaz la Pena, entre outros, teorizando uma pintura de paisagem ao ar livre, de ar-livrismo, procurando o contacto com a natureza, analisando e observando as suas manifestações e os seus segredos.

 

Com eles nasceu uma nova sensibilidade norteada por uma procura ou estética naturalista, tida como afim do realismo, que teve forte impacto em Portugal. 

 

03.04.2017

Joaquim Miguel De Morgado Patrício

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 

XXXV - ROMANTISMO

 

A tela do alemão Caspar David Friedrich, Viandante sobre um Mar de Névoa, de 1818, pode ser tida como uma espécie de declaração ou manifesto do romantismo. De tão expressiva e persuasiva é, por si mesma, demasiado convincente quanto às caraterísticas essenciais da psicologia de ser romântico e do romantismo em geral. Um homem solitário, ousado, estupefacto e meditativo contempla a natureza, a grandiosidade, esplendor, magnificência e temor da paisagem natural, confundindo-se, perdendo-se e inspirando-se nela, num ambiente terreno e sobrenatural que o angustia, emociona, inquieta, questiona, numa ânsia de liberdade e infinito. Sente-se, ao mesmo tempo, iluminado e esmagado. Sente uma nostalgia intensa, idealizando e sonhando. Olha para  o inacessível, o ininteligível, o abismo, querendo alcançar algo distante no tempo e no espaço, mas quanto mais procura, mais distante fica. Projeta no exterior o culto do eu e o seu mundo íntimo na natureza, dando a esta um significado supletivo, não se limitando a representá-la. Angústia metafísica, anseio de liberdade, desespero, inquietação, evasão e fuga.

 

À natureza redescoberta pelos românticos, alia-se um sentimentalismo subjetivo, o mundo íntimo do artista, o culto do eu, a ânsia de liberdade, a ansiedade metafísica, o espírito idealista, a emotividade e a sensibilidade substituindo a fria razão, o interesse pelo irracional, o choque com a realidade, o culto da Idade Média, pessoalismo e melancolia, exaltação do que é nacional, patriótico e popular, liberdade de inspiração.

 

Sendo um modo de sentir, expressa-se contra o racionalismo e as regras artísticas e literárias do academismo e do classicismo. Fosse porque o público em geral não dominava nem entendia a estética dos clássicos, ou porque estes tinham atingido a saturação, tentaram-se novos temas e outros meios de os comunicar. Em que o alastramento da revolução industrial e a crescente urbanização contribuíram para a divulgação do livro, ao mesmo tempo que fomentavam o culto idílico do campo e da natureza. Este gosto pela natureza, apesar de não ser uma novidade, também foi uma reação contra a vida artificial da corte da época precedente.

 

A literatura traduz angústias, êxtases, vivências, o confronto entre o idealizar e o choque com a realidade. Por vezes brutal, onde a desilusão, o desengano, a inquietação febril, o pessimismo, têm como solução a fuga. Uns andam de terra em terra, como Chateaubriand e Lord Byron. Ou Garrett, entre nós, emigrante em Inglaterra e França. Outros refugiando-se e evocando o mundo medievo e popular da Idade Média ou paisagens orientais e exóticas, como Vitor Hugo, Alexandre Dumas e os célebres romances de Walter Scott. E o nosso Herculano, com o seu romance histórico, desde As Lendas e Narrativas, O Bobo, Eurico o Presbítero e o O Monge de Cister. Outros suicidaram-se, como Kleist, Gerard de Nerval e Camilo Castelo Branco. Alguns imprimiram à literatura uma missão social, sendo exemplo Vitor Hugo. Schlegel e Madame de Stael chamaram romântica a uma literatura inspirada no povo e na Idade Média, por oposição à clássica, inspirada na antiguidade greco-romana.

 

Na música, o interesse pela natureza está bem patente na valsa Danúbio Azul, de Johann Strauss, em A Sinfonia do Reno, de Schumann e nas Sinfonias Italiana e Escocesa, de Mendelssohn. Wagner inspirou-se na lenda do rei Artur e do Santo Graal para as óperas Parsifal e Tristão e Isolda. Verdi tratou de temas históricos e políticos. Os Noturnos, de Chopin, expressivos e líricos, são também pessoalíssimos, íntimos, melancólicos e amantes da noite, temas diletos dos românticos. Outros compositores são protagonistas do romantismo: Beethoven, Paganini, Rossini, Donizetti, Bellini, Glinka, Berlioz, Gounod, Schumann, Liszt, Sullivan, Borodin, Bizet, Brahms, Mussorgsky, Tchaikovsky, Bruckner.

 

Nacionalismo e patriotismo estão presentes no quadro Os Fuzilamentos de 3 de maio de 1808, de Goya, lembrando os espanhóis fuzilados depois da revolta contra os franceses, em que a vítima iluminada evoca, pela sua postura, a crucificação de Cristo. Refira-se ainda A Liberdade Guiando o Povo, de Delacroix. Turner, por sua vez, opera uma fusão entre o indivíduo e a natureza, conducente à destruição da imagem figurativa e da sua identidade, afastando-se da reprodução do natural, como em Tempestade de Neve e O Navio Negreiro.

 

Na arquitetura, em Portugal, imperdoável não falar no Palácio da Pena, em Sintra, e na serra em que se insere, tidos como pontos altos do romantismo europeu. No seu revivalismo tardio e romântico, merece menção a Quinta da Regaleira, também em Sintra, por certo a capital do romantismo no nosso país. Na escultura, O Desterrado, de Soares dos Reis, de um jovem nu, introspetivo, intimista, nostalgicamente sentado sobre um penhasco, apesar do corpo, anatomicamente perfeito, lembrar o ideal da beleza da antiga Grécia. O Retrato de Antero de Quental, de Columbano Bordalo Pinheiro, retrospetivo, intimista, ensimesmado, de interiores, com forte presença psicológica, de um “vencido da vida”, colocando a nossa pintura em consonância com a desistência da intelectualidade nacional dos anos do Ultimatum.

 

Mas também o medievalismo, sentimentalismo, subjetivismo, intimismo, o idealismo irreal e ilimitado do romantismo seriam confrontados com a certeza da ciência,  alicerçada em certezas tidas como comprovadas cientificamente. 

 

13.02.2018
Joaquim Miguel De Morgado Patrício

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 

XXXIV - BARROCO

 

A palavra barroco, depois de se aplicar a qualquer coisa de uma forma bizarra, desigual, irregular, começou a ser usada para qualificar uma arte ardilosa, arguta, extravagante, excessiva, empolada, insólita, surpreendente, para qualificar determinada arquitetura, escultura, literatura, pintura, música e artes plásticas em geral.

 

A má fama do barroco foi durante décadas um dado adquirido, o que ainda hoje perdura, para alguns, tendo-o como exagerado, pretensioso, luxuriante, de mau gosto, por maioria de razão por confronto com a arte renascentista tida, para a maioria, como um insuperável modelo de perfeição.

 

Todos sabemos, por experiência, que as coisas mais perfeitas, com a continuação, e não variando, acabam por se banalizar, aborrecendo-nos, dada a ausência de novidade, havendo necessidade de alterar regras, conduzindo os artistas a modificar estilos, saindo do tédio e desentediando-se a si, entre si e aos outros. Para qualquer escola, atingida a saturação, há que superá-la pela ânsia de inovação. Sempre assim foi e será, pelo que por mais adequada e equilibrada que seja uma arte acaba, mais tarde ou mais cedo, por cansar, evoluindo para novos voos, mesmo que sejam novos artifícios para deslumbrar ou uma erudição demasiado trabalhada. Não admira, pois, que perante a saturação estética dos valores do Renascimento houvesse uma transformação da estética até aí dominante, procurando outra originalidade, mesmo que exagerando formas pelos processos mais inesperados, imprevistos e surpreendentes.

 

Monumentalidade, crise de consciência, lutas religiosas, inquietação espiritual, teatralidade, fausto, complexidade, sensualidade, decoração, jogo de construções, de luzes e sombras, de palavras, imagens e figuras, metáforas, antíteses, contrastes, paradoxos, cultismo, conceptismo, forma, contorno, tudo se patenteia no barroco.

 

Resultando de uma interpretação arbitrária das formas clássicas, o barroco prima pela ausência de regras, pela liberdade e movimento, corroborado com a perda do geocentrismo bíblico e a crise provocada pela reforma protestante, criando uma nova visão do infinitamente grande e do imensurável desígnio divino, conducente a uma nova mitologia religiosa.

 

As guerras religiosas geraram o barroco tido como arte da Contra-Reforma e dos Jesuítas, tendo Roma, sede do papado, como centro do poder, onde nomes como Caravaggio, Bernini, Borromini, Carraci, Guercino, Andrea Pozzo e Pietro da Cortona pontuam. Telas como A Conversão de S. Paulo (1600-1), A Deposição de Cristo (1603-4) e A Morte da Virgem (1605), de Caravaggio, esculturas como Êxtase de Santa Teresa (1646-52), na igreja Santa Maria della Viottoria, e os Anjos, em Sant`Andrea delle Fratte, ou na Ponte Sant`Angelo, de Bernini, são seus exemplos. Em que também há cânones não canonizados, como no retrato sensual e pouco ortodoxo do jovem São João Batista (1602), de Caravaggio, mais afastado da ortodoxia iconográfica dos modelos estabelecidos.   

 

Com o decurso do tempo, para além do culto em serões de Paço Reais (vida de Corte) e de Príncipes, o barroco tornou-se uma arte essencialmente burguesa, em que as classes emergentes (artesãos, mercadores) veem nos retratos (individuais e coletivos) de Rubens, Van Dyck, Fran Hals, Rembandt e Vermeer, um reconhecimento da dignidade social que alcançaram. A Lição de Anatomia do Doutor Tulp (1632) e A Ronda da Noite (1642), de Rembrandt, exemplificam-no.

 

Na música, o barroco opõe-se à polifonia, ao contraponto, realçando a voz individual, através do órgão. A música sacra, para a corte, teatro e ópera evoluiu, na Inglaterra protestante, com Henry Purcell. A música religiosa, na Alemanha luterana, com Johann Sebastian Bach. Mas é com a ópera que atinge a sua máxima expressão, onde a música profana adquire finalmente uma forma expressiva a favor do patronato, mecenas, cortes de príncipes e publico em geral. É um período musical riquíssimo, com grandes protagonistas: Monteverdi, Allegri, Schutz, Carissimi, Lully, Charpentier, Pachelbel, Purcell, Corelli, Couperin, Vivaldi, Albinoni, Bach, Handel, Telemann, Rameau, Scarlatti, Arne, Gluck. 

 

Como maneirismo essencialmente decorativo do barroco, surge o rococó, do primeiro quartel até ao fim do século XVIII, caraterizado pela abundância excessiva de elementos de composição e assimetria, predominando na arquitetura e cerâmica, sendo  marcante em França, Alemanha, Itália, Países Baixos, Portugal e Espanha.   

 

Em Portugal, há muitos exemplos barrocos: Igreja da Madre de Deus, de São Roque, do Menino Deus, Basílica da Estrela, estátua equestre de D. José I (Lisboa), Igreja, Palácio e Convento de Mafra, Igreja e Torre dos Clérigos, Igreja de S. Francisco, Palácio do Freixo (Porto), Retábulo da capela-mor da Sé Nova de Coimbra, Bom Jesus do Monte (Braga), Solar de Mateus (Vila Real), Palácio de Queluz, coches reais, azulejos, pinturas de Josefa de Óbidos, compositores Carlos Seixas e António Francisco de Almeida.

 

Sendo uma arte igualmente associada, entre nós, a protagonistas tidos como responsáveis por malefícios da pátria (absolutismo, dinastia de Bragança, Jesuítas, Inquisição, Contra-Reforma, Concilio de Trento), decadência e mau gosto (segundo Garrett, Herculano, Antero, Oliveira Martins), tornou-se polémica, a que acresce, nos tempos atuais, o cortar em tudo o que não é linear, velocidade eletrónica, sinopse e síntese.

 

Valores políticos à parte o barroco, como qualquer arte, deve ser avaliado pelo seu valor intrínseco, artístico e estético, à luz do contexto e cultura (artística) então dominante. A intemporalidade de Bach prova-o à exaustão. Também o padre António Vieira tido, para tantos, como o imperador da língua portuguesa, é excelente antídoto. Não esquecendo a ópera, declarada e proclamada, por muitos, a maior de todas as artes.

 

Começando a ser usual dizer-se que “O barroco é muito hot”, dado serem tidas como bastante sensuais e sexualizadas obras famosas da arte barroca, como a escultura do Êxtase de Santa Teresa D`Ávila, de Bernini, que inspirou a pintura, sobre o mesmo tema, de Josefa de Óbidos, de 1672, da Igreja Matriz de Cascais.

 

06.02.2018

Joaquim Miguel De Morgado Patrício

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 

XXXIII - RENASCIMENTO - II

 

Cosmopolitismo, universalidade, globalismo, multiplicidade, uma inesgotável capacidade para todos as atividades do engenho e arte, é uma das caraterísticas de marca do homem do Renascimento. Leonardo da Vinci é tido como o seu excelso exemplo. Ao arrepio da retórica e ensino livresco tradicional, tem a observação real, o contacto direto com a natureza e a experiência, como pressuposto primordial da ciência e da formulação das leis científicas. É simultaneamente astrónomo, escultor, engenheiro, geólogo, investigador, matemático, médico, pintor, poeta. Um sábio, um génio, um polímata, de uma curiosidade implacável, de um infinito apetite de conhecimento, de uma imaginação admirável, que imaginou o avião, o carro de combate, o submarino.

 

Como cientistas do Renascimento destacam-se também o polaco Copérnico, o alemão Kepler e o italiano Galileu. Como humanista refira-se também Erasmo de Roterdão, amigo do grande representante do humanismo em Portugal Damião de Góis. 

 

As obras renascentistas são uma fusão e síntese de elementos da antiguidade clássica, medievais e modernos, dado que continuando os temas medievais, que as antecedem, se inspiram no património e saber da antiguidade greco-romana, tratando-os de modo original e atualista, reabilitando-os e fazendo-os renascer.

 

Outro génio artístico renascentista foi Miguel Ângelo. Cristão de inclinação platónica, foi arquiteto, escultor, poeta, pintor e urbanista.

 

Na escultura faz-se o culto das figuras e formas nuas, de linhas belas, esbeltas, robustas, vincadas e sinuosas do corpo humano. Com inspiração na arte clássica grega, reverenciadora da beleza, do belo, do equilíbrio, da perfeição, do absoluto, com representações anatómicas perfeitas, chamativas, sedutoras, sensuais, voluptuosas, divinas. Na fase final do helenismo, a arte grega degradou-se, entrando em declínio e desequilíbrio, vindo o equilíbrio a ser retomado no Renascimento. Onde sobressai Miguel Ângelo, com figuras atléticas, belas, tipo homem-divinizado, como no seu Cristo de Minerva e na escultura de David.

 

Na pintura procura-se e descobre-se a terceira dimensão, desconhecida da Idade Média. Para os artistas medievais, pessoas e coisas aparentam estar à mesma distância de quem as observa. Para os renascentistas, existem três dimensões, onde subjaz a ideia da profundidade (além da largura e altura), a sua maior descoberta, com cada coisa à devida distância, com determinadas coisas e pessoas que parecem estar mais próximas de nós e outras mais afastadas, tentando exprimir fielmente a realidade em toda a sua beleza, em simultâneos jogos de luz e sombras. As figuras são corpos localizados espacialmente. As cores não são uniformes. O convencionalismo e dogmatismo religioso é humanizado. Valoriza-se a natureza e o humanismo. Exemplificam-no A Virgem e o Menino com Santa Ana, A Virgem dos Rochedos e a Gioconda, de Leonardo da Vinci. Outro inimitável artista foi Rafael, de influência platónica. 

 

Em Portugal são tidos como cientistas do Renascimento Pedro Nunes, Garcia de Orta, Duarte Pacheco Pereira e D. João de Castro. Gil Vicente e Camões como expoentes da literatura renascentista. O estilo manuelino, baseado na observação da natureza,  experiência e método experimental, caraterísticas fundamentais que o Renascimento defendia, é tido como um estilo renascentista, de feição especial, ligado aos descobrimentos, em que motivos náuticos como cordas, boias, redes, conchas, corais, plantas e seres exóticos se impõem, diferenciando-o. 

 

O Classicismo continuou a herança do Renascimento, fazendo o culto da tradição greco-latina, tentando reerguer o prestígio antigo da Antiguidade Clássica tendo, como ideal clássico, regras que se deviam acatar para alcançar o Belo, com gosto pela linha pura, frase simples, palavra própria e razão humana, tendo horror ao vago e retorcido, trinfando na segunda metade do século XVII, com Luís XIV, em França.

 

Porém, já em pleno Renascimento, o exagero de formas, nomeadamente na arquitetura e escultura, patente na estátua Moisés, de Miguel Ângelo, abriu caminho para um novo estilo artístico conhecido por barroco. 

09.01.2018

Joaquim Miguel De Morgado Patrício

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 

XXXII - RENASCIMENTO - I

 

À volta de 1500 surge um movimento literário, artístico e científico herdeiro e continuador da Idade Média, mas que, ao mesmo tempo, a repudia, ao querer fazer renascer o mundo antigo, em especial a antiguidade clássica da Grécia e de Roma. Imita-se, em primeiro lugar, os gregos e os romanos, criando depois o homem ideal do renascimento: cosmopolita, universal, completo, perfeito, a mais bela criatura divina, obra suprema de Deus, o melhor na filosofia, nas letras, na ciência, nas artes em geral, admirado, famoso, poderoso e rico.   

 

Transita-se do teocentrismo dominante na Idade Média, em que Deus é o centro omnipresente e total, para o antropocentrismo, que atribui ao indivíduo uma posição de centralidade em relação a todo o universo.

 

O humanismo, que etimologicamente significa culto, civilizado, foi um fator decisivo e influenciador do Renascimento, prestando tributo às letras, belas artes e ciência, ao estudo dos problemas de que o ser humano é o centro, reabilitando a antiguidade grega e latina, pensadores e filósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles, escritores como Homero, Cícero e Virgílio, nomes como Ovídio, Suetónio e Tito Lívio, sem esquecer a época de Péricles (Grécia) e de Augusto (Roma).

 

Foi em Itália, pátria da antiga civilização romana, que surgiu o movimento humanista, florescendo em Florença, Génova, Milão, Pádua, Pisa, Roma e Veneza, tendo como precursores Dante, Petrarca e Bocácio, contagiando as elites, governantes, desde papas, príncipes, banqueiros, senhores da guerra e da paz, riqueza e poder, detentores do poder espiritual e temporal, surgindo novos mecenas, protetores das letras, artes e ciência.

 

Cria-se uma união entre o espírito religioso e a curiosidade profana, com o reabilitar, por um lado, da cultura e herança mitológica greco-latina, até então tidas como pagãs e opostas ao cristianismo, e, por outro, com o redescobrir das ciências exatas, experimentais e naturais, bem como de disciplinas esotéricas, como a alquimia e a astrologia.   

 

Homens da Igreja, como S. Bernardo e S. Tomás de Aquino, tendo estudado e lido literatos e poetas da antiguidade clássica, procuraram integrar o humanismo no cristianismo. O mesmo sucedeu com os monges, nos conventos, ao copiarem obras famosas da antiguidade, salvando-as do esquecimento. 

 

A corrente humanista dissemina-se em visões diferentes. Para os que admiram Platão, sendo o mundo terreno uma rude cópia de um outro verdadeiro e eterno, veem no seu mentor um antecessor de Cristo e no seu pensamento um meio do ser humano se elevar até Deus. O amor humano era uma faísca do divino. A inteligência humana uma fagulha da divina. Os mortais, uma imperfeição da perfeição divina. O culto do amor, da beleza, da bondade, da justiça e da razão, feito pelos autores clássicos, como Platão, aproximava o humano do sagrado e do cristianismo. Tomás Moro, na sua Utopia, inspira-se em Platão, ao imaginar uma sociedade ideal, perfeita, numa ilha longínqua que não existe em lado algum.

 

Outros depuraram e cristianizaram a doutrina de Aristóteles, transformando o ensino em habilidosos raciocínios fundados em silogismos, sem abertura para novos voos que o humanismo explorava. Outros ainda, como Maquiavel, baseado na história de Roma e na Política de Aristóteles, escreve O Príncipe, em que razões de Estado justificam os meios para atingir os fins.

 

Mas surgiriam academias e colégios subsidiados por príncipes, reis e mecenas, onde tudo era debatido, ultrapassando a tradicional escolástica universitária, em que a ciência evoluiria a par da evolução filosófica, sendo Leonardo da Vinci tido como o seu máximo representante.

 

02.01.2018
Joaquim Miguel De Morgado Patrício 

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

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      XXXI - IDADE MÉDIA

 

Platão interpretava o mundo terreno, em que vivemos, como uma cópia grosseira, imperfeita, findável, deteriorável, transitória e mortal de outro mundo eterno, de beleza e perfeição: o mundo das ideias. Este mundo ideal ajustava-se com a ideia de céu, de paraíso, com a criação divina, sendo esta entendida, de certo modo, como a concretização material das ideias de Deus.

 

A obra deste filósofo grego influenciou decisivamente a filosofia cristã de Santo Agostinho e de outros mentores da Igreja, em que os crentes aspiram a um mundo de bem, beleza, eternidade e perfeição.

 

Aristóteles, ao invés de Platão, defendia que a beleza, a perfeição e outras ideias superiores se encontram neste mundo, podendo nele ser criadas por uma observação e experiência atenta e inteligente.

 

Influenciou grandes nomes como São Tomás de Aquino e Alberto Magno, que adaptaram a sua doutrina aos ensinamentos bíblicos, passando a ser conhecido por escolástico o ensino aristotélico, oficialmente aceite pela Igreja.

 

Fosse a opção filosófica mais abstrata e adequada a desviar da terra a atenção humana (platónica) ou mais ligada ao concreto, observação e experimentação (aristotélica), a igreja era o centro nuclear da vida de relação das pessoas e o lugar onde todas as populações medievais confluíam, mesmo quando surgiram as primeiras manifestações humanistas abrindo caminho para o Renascimento.

 

A arte em geral, quer numa perspetiva platónica ou aristotélica, era uma imitação ou representação, e mesmo se tida como engano ou uma saudável mentira, tinha por base o teocentrismo, a teocracia ou governo de Deus, tendo Deus como o centro de tudo.

 

Natural e lógico que na história, literatura, teatro, arquitetura, escultura, pintura e artes tidas como menores, a religião se entrelaçasse à vida, emoções e sentimentos das pessoas, com as cruzadas, temas de inspiração religiosa (milagres, mistérios, vida de santos), catedrais românicas, góticas, escultura e pintura religiosa, cuja missão era transmitir ao público analfabeto e inculto os dogmas e verdades da fé, em que baixos-relevos, frescos e vitrais eram “A Bíblia dos que não sabem ler”

 

Há uma exaltação e glorificação do sagrado, do divino, ora convidando ao intimismo, recolhimento e à prece do românico, ou à alegria e otimismo do gótico.

 

Na pintura plana medieval, de inspiração cristã, contemplação, celebração e louvor do divino, as coisas apresentam-se à mesma distância do observador, de modo uniforme, em largura e altura, em duas dimensões, sem profundidade e sem as leis da perspetiva.

 

A Virgem com o Menino Jesus, rodeada de Anjos, de Cimabue, do século XIII, é um exemplo, em que sobressai como fundo uma superfície dourada e uniforme.

 

Também a pintura medieval das igrejas ortodoxas são exemplos representativos.

 

26.12.2017

Joaquim Miguel De Morgado Patrício

 

 

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 

XXX - A ARTE COMO IMITAÇÃO EM PLATÃO E ARISTÓTELES

 

1. Para Platão a arte é uma falsidade, porque uma aparência, uma imitação da realidade, um engano, uma mentira. A imitação do real, por mais perfeita que seja, é sempre ilusória, inviabilizando a compreensão do real, o conhecimento da essência das coisas, no seu sentido objetivo, real e verdadeiro.
Se para Platão o mundo concreto e sensível em que vivemos já é uma cópia do que tem como real e verdadeiro, em que os humanos e demais seres da natureza são cópias sensíveis de modelos originais de um mundo superior e inteligível, a arte afasta-se ainda mais do real, dado que imita a cópia, uma vez que a realidade sensível já é uma imitação do inteligível.   

O pintor, por exemplo, é um fingidor, imitador, mentiroso, falsificador da realidade, como o poeta também o é, simulando ambos para se poderem exprimir esteticamente, a exemplo de Fernando Pessoa, quando escreve:

 

O poeta é um fingidor. 
Finge tão completamente, 
que chega a fingir que é dor   
a dor que deveras sente.

 

E embora as imagens do tempo de Platão, comparativamente com as dos nossos dias, sejam uma brincadeira, por certo se “suicidava” se confrontado com a manipulação das imagens televisivas, cinematográficas, de propaganda e outras, que na sua realidade virtual nos condicionam permanentemente. 

 

2. Aristóteles, discípulo de Platão, defende que a imitação é benéfica, uma fonte de aprendizagem, de prazer, de caráter pedagógico, uma criação humana própria da nossa natureza.
Ao invés da negatividade não saudável associada à imitação platónica, a arte funciona na base de uma imitação e saudável mentira, sendo a representação artística uma representação com verosimilhança. Quando no cinema alguém dá um murro, o som respetivo não corresponde ao real, mas é verossimilhante, por isso o aceitamos, mesmo que corresponda a uma explosão de dinamite.

Sendo a arte uma produção humana, pode imitar a natureza, o material, o racional, o verosímil, o que está ao nosso alcance, mas também abordar e interpelar o espiritual, o imaterial, o infinito, o inatingível, o irracional, o inverosímil, suprindo o que está ausente no mundo natural. Que pode ter a utilidade prática de uma bênção, uma compensação, um refúgio, uma redenção, uma salvação. 
Entre a dissemelhança de Platão e a verossimilhança de Aristóteles, há o afastamento cada vez maior do real e a possibilidade permanente de a imitação criativa humana ser cada vez mais real. 
Ao mundo das ideias, que nos transcende, contrapõe-se o mundo concreto e terreno, onde vivemos, lembrando-nos uma obra prima de Rafael, “A Escola de Atenas”, de 1509, em que ao centro está Platão, de toga vermelha, e Aristóteles, de toga azul, dialogando, apontando o primeiro para cima, para o Céu, o mundo das ideias, e o segundo para baixo, para a Terra, o mundo humano e material, em que vivemos. 

19.12.2017 
Joaquim Miguel De Morgado Patrício

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 

XXIX - ARTE POP - IV

ARTE POP AMERICANA - II

PRECURSORES NEODADAÍSTAS, BANDA DESENHADA, OLDENBURG

 

 

1. No princípio dos anos 60, Nova Iorque abrigou artistas como Larry Rivers, Jasper Johns e Robert Rauschenberg, tidos como neodadaístas, cujas obras, de tendência dadaísta, estabeleceram a transição entre o abstracionismo e os que viriam a ser os protagonistas da arte pop em plena maturidade, abrindo caminho, por exemplo, a Warhol e Roy Lichtenstein. A incorporação neodadaísta de coisas, objetos e utensílios usuais da vida quotidiana,  como arames, chaves, garfos, jornais, pneus, pás, réguas, contraplacados, fragmentos e pedaços de tela, animais, camisas, tacões de sapatos, bolas de ténis, via intromissão perturbadora do exterior na superfície da realidade pintada, está patente na obra  Flag (Bandeira) (1954/5) e Três Bandeiras (1958), de Johns, pintadas segundo uma antiga técnica de encáustico sobre tela, misturando cera fundida com pigmento puro, e em Monograma (1955/9), de Rauschenberg, em que mistura a pintura a óleo com a colagem e a escultura. Mas há nelas também a apropriação de símbolos e técnicas da cultura publicitária, produzindo arte a partir do consumismo americano, enraizando-se nele, ao invés do intimismo expresso pelo expressionismo abstrato. O gosto por objetos consumíveis levou Rauschenberg a sentir pena de quem pensa que saboneteiras e garrafas de coca-cola são feias, fazendo-as infelizes, ao invés do que ele próprio pensava, dado que estamos rodeadas de tais coisas, todos os dias.

 

2. Foi Rauschenberg o autor de um conjunto de telas pintadas uniformemente de tinta  branca, intituladas Pinturas Brancas, de 1951, de afinidades com a tela suprematista Branco sobre Branco, de Malevitch, tidas como precursoras do Minimalismo. O que  influenciou o seu amigo e compositor John Cage a escrever, em 1952, uma peça famosa, de não-música, 4´ 33´´, uma experiência sonora onde impera o silêncio, com os executantes sentados em silêncio no palco, em que a única “música” audível é proveniente do público ou do exterior. A capa do disco White Album (Album Branco), dos Beatles, de 1968, totalmente branca, com o nome da banda gravado quase invisível, criada por Richard Hamilton, também tem influências de Pinturas Brancas. Refira-se, ainda, Desenho de Kooning Apagado, de Rauschenberg, inspirador de artistas na década de 60, a nível da arte performativa. 

 

3. Roy Lichtenstein, por sua vez, monumentalizou e emancipou a banda desenhada, conferindo aos seus heróis e heroínas a mesma dignidade dos grandes ídolos. Fê-la entrar no domínio da arte, sendo tido como um pai espiritual e precursor para as gerações vindouras, como os criadores de grafitos dos anos oitenta, instruídos na escola dos cartoons. Embora imitasse o estilo gráfico, os balões das tiras da banda desenhada e as suas legendas, também copiava o processo de impressão que as fazia, dado que se a impressão não cobria todo o papel com tinta, imprimindo apenas pontos de cor, por que não com a banda desenhada, ampliando gravuras e vinhetas, dando visibilidade ao complô e trama das imagens? Privilegiando a técnica em relação ao conteúdo, descobriu um estilo próprio, que se universalizou com êxito, em paralelo com os heróis da arte popular que retratava, em histórias aos quadradinhos (ou quadrinhos) indo para além da técnica de impressão conhecida por Ben-Day Dots.    Realiza uma análise linguística desmistificadora das imagens das bandas desenhadas.

 

4. Para o esbatimento das fronteiras entre a arte e o comércio viria a contribuir, de modo engenhoso, Claes Oldenburg, um prestigiado criador de objetos, através de uma imagética díspar e genuína. Recheou a sua Store, um cenário teatral, com produtos comestíveis e vestuário, que eram vendáveis, mas não para comer, usar ou vestir. Eram feitos de arame, gesso, tinta gelatinosa, materiais similares, obras de arte feitas por um autor reconhecido a preços acessíveis. Faz alimentos em pasta colorida. Ou objetos diários e vulgares enormes, desproporcionados, contraditórios, chamativos, irónicos, insólitos, como molas de roupa, colheres de pedreiro, máquinas de escrever, ferros de engomar, telefones, que pela sua dimensão deformada, hiperbólica e monumental se afastam da sua carga emocional. Interruptor Mole (1966), Weathring Steel (1976, Filadelfia) e Spoonbridge and Cherry (1988), Garfo com Bola de Carne e Esparguete, são alguns exemplos (A obra de Joana Vasconcelos, entre nós, na atualidade, faz lembrar Oldenburg, pelo ready-made, o kitsch, a transfiguração e a sua escala entre o absurdo e o monumental/espetacular).
Eis alguns nomes, todos eles desbravadores de novos movimentos artísticos, embora também influenciados por outros que os antecederam.

 

31.10.2017

Joaquim Miguel De Morgado Patrício

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 

 

XXVIII - ARTE POP - III
ARTE POP AMERICANA - I
ANDY WARHOL

 

Andy Warhol é o artista pop mais famoso e um dos mais conhecidos artistas do século XX. De mero artista comercial a trabalhar em publicidade, desenhando sapatos e criando montras atraentes para lojas, fez experiências com motivos pop: um desenho do escritor Truman Capote (1954), de James Dean morto (1955), uma garrafa de coca-cola representada graficamente, com um disco do seu logótipo ao lado (1960), o anúncio de um aquecedor de água (1961). 

 

Até que, em 1962, exibiu trinta e duas pinturas suas, Latas de Sopa Campbell`s, retratando cada uma um sabor diferente, que de unidades isoladas se viriam a converter numa peça única, definindo-o como criador e consolidando a arte pop como um movimento afeto à produção massificada e à cultura do consumo. Ao imitar a publicidade moderna através da sua natureza repetitiva, contesta a norma de que a arte deve ser sempre original, contrariando as tradições do mercado da arte, que atribui maior valor ao que é raro e único. Há, aqui, uma influência dadaísta, nomeadamente de Duchamp. Mas apesar da uniformidade das latas e da aparente banalização do motivo repetido, está a mão do autor, um indivíduo ou pessoa singular que executa o trabalho, a recordar os nomes anónimos que produzem as latas de sopa.

 

Reproduzindo gostos e hábitos alimentares da sociedade americana em que viveu, via repetição da imagem de produtos presentes na despensa de uma família da classe média, incluindo reproduções tridimensionais de embalagens de detergente Brillo, foi com o mesmo olhar que olhou para personagens famosas consumidas através do cinema, da televisão e da imprensa como mercadorias ou produtos comestíveis.

 

A sua obra Twenty Marylin (Vinte Marylin) e o seu Díptico de Marylin, de 1962, cujo tema é um dos símbolos universalmente mais conhecidos do século XX (pelo que desempenhou no ecrã e suas aventuras sentimentais), oferecem-nos várias Marylin Monroe alinhadas como as latas de sopa Campbell, equivalendo-se as suas imagens, dado que as imagens de revistas e os produtos enlatados são consumidos do mesmo modo.

 

A queda obsessiva de Warhol para repetir imagens, permitiu-lhe descobrir a serigrafia como o meio de expressão ideal, permitindo-lhe reproduzir fotografias sobre um suporte de seda e alterar-lhes a cor, abdicando da intervenção manual direta na pintura, que substituiu por uma técnica de impressão sobre tela (silkscreen), corroborando o caráter anónimo, artificial e industrial da execução.  Foi quem afirmou que gostaria de ser máquina e que todos teríamos direito a quinze minutos de fama. Retratos de pessoas famosas, celebridades e vedetas testemunham o seu fascínio pelo mundo da ribalta, pelo glamour mundano e suas estrelas.

 

Veja-se o poder icónico do retrato, em grande plano, da obra Judy Garland (1979), da Coleção Berardo, uma serigrafia e acrílico sobre tela, com um expressivo uso da cor, sobressaindo e sublinhando os lábios.

 

E o seu conjunto de fotografias de personalidades mundanas, políticas e outras, tão diversas como as de Liz Taylor, Liza Minelli, Jacqueline Onassis, Kissenger, João Paulo II, Dalí, Tenessee Williams, Truman, Bianca Jagger e Diana Vreeland.

 

A exaltação das vedetas, por vezes realçada pela repetição da imagem, como foi (e é) excelente exemplo Marylin Monroe, ou Elvis, na serigrafia sobre tela de Triplo Elvis, de 1962, é caraterística das obras deste período histórico em que as pessoas são vítimas do consumismo e da publicidade.

 

Chegou-se ao extremo de ser irrelevante o conteúdo da obra de arte, dado que o que interessava era ser uma boa compra em termos financeiros, de estatuto e de prestígio social, pois que “comprar um Warhol”, desde que autenticado pelo próprio, era o suficiente, mesmo que não fosse o autor.

 

Porém, o encantamento pela fama tem, em Warhol, nas palavras de Alexandre Melo, na esteira de outros, um contraponto paradoxal e perverso: “Ao submeter imagens famosas aos seus métodos e processos de pintura, mecânicos e impessoais, Warhol acaba por, ao mesmo tempo que as glorifica, as banalizar, ao colocá-las em pé de igualdade com todas as outras imagens que ele trata exatamente da mesma maneira (…) Tornar banal o que era excecional e tornar excecional o que era banal são dois movimentos de um processo de distanciação que define, afinal, o ponto de vista de Andy Warhol sobre a sociedade contemporânea: crítico segundo uns, apologético segundo outros” (Coleção Berardo, arte pop & cª., Sintra Museu de Arte Moderna, abril 2002, p.ª 63). 

 

24.10.2017

Joaquim Miguel De Morgado Patrício